2015

A ética da obediência

por Frédéric Gros

Resumo

Os famosos experimentos conduzidos na década de 1960 por Stanley Milgram – acadêmico de Yale da área de Psicologia Social – produziram resultados tão perturbadores e marcantes que a comunidade científica logo se debruçou sobre eles para tentar compreendê-los em toda sua extensão. Um desses estudiosos, Günther Anders, foi capaz de perceber uma série de componentes e matizes de uma forma de violência revelada pelo projeto de Milgram. Ela não se identificava com as duas formas “clássicas” que aqui denominamos violência instrumental e violência intransitiva. A primeira pode ser compreendida a partir de Hobbes, para quem as relações humanas mais próximas de seu estado de natureza se caracterizariam pela guerra de todos contra todos. A violência instrumental, conforme a denominação sugere, visa finalidades exteriores a ela, sendo praticada como meio. Hobbes explica essa forma violência é movida por três grandes paixões naturais: a cupidez, a desconfiança e a vaidade. Mas, comete-se também uma violência intransitiva, com fim em si mesma, uma violência pela violência, destituída de cálculo, cujas paixões dominam quem a exerce. Suas paixões são a cólera, o ódio e a crueldade. Essas duas formas de violência frequentemente são combinadas. O que surpreende, conforme examinaremos nesse ensaio, é que a Experiência de Milgram revela um outro tipo de violência que não se enquadra nas duas categorias acima. Trata-se de uma violência cujo agente é compelido ou coagido pelo autor, que representa uma figura autoridade. A esta, denominaremos violência anônima, que se alimenta de uma nova tríade de paixões: a docilidade, a obediência e a submissão. Sob essas paixões, o agente costuma ter seu sentimento de compaixão para com a vítima anestesiado. É o que Milgram chama o estado de agente. Hannah Arendt identificou algo de patológico nessa reação: a ausência de pensamento ou ainda a simples estupidez, resultando na banalidade do mal. É o caso de revisitarmos o que escreveu La Boéthie já no século XVI sobre a servidão voluntária. Mas atenção: apesar de toda essa conspiração para a prática da violência, não se pode eximir sistematicamente o agente de culpa. Não é sempre que se pode separar o autor do agente. O último pode agir por comodidade de não se opor à figura de autoridade do primeiro, tentando convencer a si e aos outros com o mantra: “Não sou responsável, já que apenas obedeço ordens”, ao que opomos outro mantra: “Não esqueças nunca que, mesmo quando obedeces, é a ti mesmo que ordenas obedecer”. Esse é o princípio que, desde os antigos gregos, orientaria a ética do homem político.


[1]

Pode parecer estranho, no quadro de um ciclo consagrado à violência, apresentar uma conferência cujo título é “A ética da obediência”. Escuso-me de antemão por essa discrepância e, quase ia dizer, por essa contradição com o tema geral, uma vez que poderia também ter intitulado esta exposição de “As raízes não passionais da violência”.

Já que estamos atualmente em pleno período de relembrar a Primeira Guerra Mundial, começarei por duas citações. A primeira é extraída de um livro já antigo de John Paul Scott que tem por título Aggression (Agressão):

No começo da Primeira Guerra Mundial [escreve esse psicólogo] um arquiduque austríaco foi assassinado em Saravejo. Alguns dias mais tarde, soldados avançam dos quatro cantos da Europa em direção ao front

– não porque reagissem ao destino trágico do arquiduque, mas porque foram treinados a obedecer[2].

A segunda se apresenta bem mais como um depoimento, dado numa correspondência por um soldado francês, Louis Mairet, que cairá sob as balas dos alemães em Craonne, em 16 de abril de 1917. Ele escreve:

Sabem por que eles combatem? Pela Alsácia-Lorena […]? Alguém ainda acredita que a Europa está em guerra por esse pedaço de terra? […] Pela pátria? Eles não a conhecem. Pegue cem homens do povo, fale-lhes da pátria: metade deles rirá na sua cara, de estupor e incompreensão. Então por que combatem? […] O soldado de 1916 não combate nem pela Alsácia, nem para arruinar a Alemanha, nem pela pátria. Combate por honestidade, por hábito e por força. Combate porque não pode fazer outra coisa. Ou então continua combatendo porque, depois do primeiro entusiasmo, depois do desânimo do primeiro inverno, veio […] a resignação[3].

Vocês veem surgir aqui, portanto, a ideia de que as grandes violências guerreiras se alimentam de disposições passivas, como a docilidade ou o hábito, tanto quanto talvez – se não mais – de energias furiosas e destruidoras. E convém lembrar a contabilidade macabra feita sobre o século xx, que foi o século dos dois grandes conflitos mundiais. Os historiadores constataram, de maneira atroz, que no século xx as mortes violentas provocadas por esses conflitos, os mais terríveis da história humana, foram na verdade muito menos numerosas que aquelas perpetradas pelos Estados contra suas próprias populações. Ou seja, as violências policiais, legitimadas por atos administrativos, foram bem mais mortíferas que a loucura das guerras. Não seria então possível, com mais razão, reencontrar essa mesma obediência na raiz das grandes violências totalitárias, já que ela foi também denunciada como o que principalmente arrastou os soldados à guerra, ainda que evidentemente tenham existido e, poderíamos dizer, existam ainda paixões nacionalistas?

Antes de tentar compreender como se pode articular a violência a uma ética da obediência, gostaria de fazer algumas considerações gerais que poderão ser úteis para o desenrolar da minha apresentação. Com efeito, parece-me importante fazer uma distinção entre o que chamarei de violência instrumental e de violência intransitiva. Pode-se chamar de instrumental a violência que se exerce para produzir certo efeito exterior a ela, uma violência que não contém em si mesma, portanto, seu princípiode justificação. Tomarei aqui como exemplo a filosofia de Hobbes. Como vocês sabem, Hobbes considera que a relação primeira, imediata e natural dos homens entre si é uma relação de guerra, o que ele chama de guerra de todos contra todos. Na ausência de uma autoridade política superior, antes da instauração de regras que valessem para todos e cujo respeito devia ser garantido por um aparelho judiciário e policial, os homens viviam num estado de anarquia caracterizado pela violência e a destrutividade mútuas. Esse estado de coisas se explica, para Hobbes, fundamentalmente pelo fato de o homem ser movido por três grandes paixões naturais, que seriam a cupidez, a desconfiança e a vaidade. A cupidez é a paixão de querer apoderar-se dos bens de outrem, a raiva de ver o outro proprietário de riquezas que se gostaria de possuir, a vontade irresistível de aumentar seus bens em detrimento dos outros. A desconfiança representa o medo instintivo da hostilidade dos outros. Teme-se a priori que o semelhante queira nos fazer mal. Assim, a violência tem na raiz uma irreprimível desconfiança: antecipa-se uma agressão possível tomando-se a ofensiva, ataca-se o outro por medo de ser atacado. Enfim, a vaidade significa a necessidade de mostrar ao outro que se é superior a ele. Ora, esse desejo de reconhecimento obriga a colocar-se a si mesmo em perigo colocando o outro em perigo. É desprezando a negatividade da morte que demonstro ao outro minha superioridade. Eis aí, com essas três paixões (o desejo de glória, a desconfiança e o amor às riquezas) que Hobbes diz serem naturais e que Rousseau denunciará como sendo sociais, as três grandes explicações das guerras que atravessaram a história humana. Quero aqui assinalar que a violência nunca é praticada por ela mesma, é simplesmente um meio para obter outra coisa: os bens materiais, a segurança ou a reputação. A violência está a serviço das três grandes paixões descritas por Hobbes, mas não constitui a identidade fundamental delas. Por outro lado, o que etólogos como Konrad Lorenz chamam de agressividade tem a ver, me parece, com essa violência instrumental, pois se trata, aqui também, de finalidades exteriores: a sobrevivência da espécie, a defesa do território, o estabelecimento de uma hierarquia dentro de um grupo.

Então certamente há um segundo registro passional, relacionado, desta vez, ao que chamarei de violência intransitiva. Refiro-me a uma violência sem outra justificação senão sua própria manifestação, violência que encontra na destruição do outro uma fonte de satisfação. E, nesse quadro, há outra tríade passional: a crueldade, o ódio e a cólera. Na cólera aparece sobretudo o tema da exasperação frente a uma realidade – por exemplo, política ou social – decepcionante, que não atende às nossas expectativas, que é até mesmo insuportável e cuja injustiça é denunciada. A violência da cólera supõe rancores passados, indignações contidas, que se exprimem na intensidade de um instante. Penso que há na cólera uma dimensão de pontualidade e talvez até uma reivindicação de justiça como a que se verifica, por exemplo, na violência revolucionária. A cólera é o que tenta, na magia de um instante, anular ou reverter o tempo. No ódio aparece mais outra coisa: é o desejo sombrio de destruir o outro, de eliminá-lo, na medida em que sua existência representa uma negação de minha existência. O outro, que é o objeto do meu ódio, é quem me impede de existir. Odiar é considerar que a própria presença do outro é um doloroso espinho plantado no centro de minha própria vida. Na crueldade, enfim, aparece a ideia de um gozo obtido, desta vez, do sofrimento do outro. Penso que a psicanálise, ao fazer a hipótese de uma pulsão de morte no núcleo do psiquismo humano, tornou ainda mais espesso esse mistério, criando algo como uma vontade cega e irredutível de autodestruição no indivíduo, como se a violência se explicasse por uma negatividade fundamental que estaria inscrita no mais profundo de nós mesmos.

Com essas duas grandes tríades passionais das violências instrumental e intransitiva, temos um registro causal relativamente extenso, e as grandes explicações filosóficas ou sociopsicológicas da violência vão sempre se referir, finalmente, à totalidade ou a uma parte desse conjunto. Aliás, penso que elas não são excludentes, podendo combinar-se entre si. Quero dizer, por exemplo, que se pode tomar a decisão política de entrar em uma guerra visando à conquista de territórios ou de riquezas naturais, à busca de uma glória militar, à defesa de uma integridade territorial que se crê ameaçada – e que essa decisão que vai animar, entre os combatentes, as paixões de cólera popular, alimentadas pela frustração ou o ressentimento, mas também pelo ódio contra um inimigo considerado responsável por nosso mal-estar e, por que não, por instintos baixamente cruéis. No entanto, gostaria aqui de deslocar um pouco o olhar, buscando noutra parte, não nessas paixões hostis e sombrias, algo que esclareça a história das violências humanas e, particularmente, talvez, as violências terríveis ocasionadas pelos totalitarismos do século xx. Tão logo tentamos

articular o conceito de obediência ao problema da violência, deparamos com o famoso experimento de Stanley Milgram, descrito em seu livro Obedience to Authority (Obediência à autoridade). Essa experiência, uma das mais conhecidas da psicologia social, é vista principalmente através de seus resultados. Gostaria de apresentá-la brevemente aqui (talvez alguns de vocês a conheçam), na tentativa sobretudo de recuperar sua dinâmica própria, esclarecê-la à luz das noções já definidas e, enfim, ver como ela pode nos ajudar a compreender o conceito de banalidade do mal de Arendt e a desenvolver uma ética da responsabilidade e da obediência.

Stanley Milgram é um psicólogo social da Universidade de Yale que começou a trabalhar sob orientação de Salomon Ash, outro psicólogo célebre que realizou experiências, no começo dos anos 1950, sobre o conformismo social e a influência do grupo. Ash chegou a demonstrar a existência da pressão do grupo sobre o indivíduo, organizando experimentos nos quais se apresentavam aos sujeitos folhas em branco em que estavam desenhadas três barras verticais de alturas diferentes, para que indicassem quantas dessas barras eram mais altas que uma barra de referência situada mais à esquerda. O exercício era de uma simplicidade infantil; bastava saber contar até três e enunciar o que se via. Ora, Salomon Ash mostra que um sujeito ingênuo, cercado de pessoas que declaram ver duas barras mais altas que a barra de referência, quando claramente há só uma, vai contrariar sua evidência perceptiva e afirmar que ele também vê duas. É tal a pressão do grupo, que ele preferirá contradizer sua certeza sensível mais imediata, mais elementar, para não correr o risco de ser o único a ver ou declarar ver o que, no entanto, vê com a maior clareza. Mas por ora ainda não se demonstrou senão uma coisa: a dificuldade que pode haver, para um indivíduo, de mostrar sua diferença em relação ao grupo ainda que não haja risco nenhum em jogo, como se o simples fato de enunciar a diferença no seio do grupo, mesmo composto de pessoas desconhecidas, representasse um perigo.

Vejamos agora o deslocamento que será operado por Milgram: primeiro, não interrogar o conformismo social, isto é, a tentação de fundir-se numa comunidade, a vontade de ocultar sua singularidade, a tentação de encontrar no anonimato um elemento de segurança. Milgram vai interrogar sobretudo a capacidade de se conformar a ordens provenientes de uma autoridade que possui pelo menos a aparência da legitimidade. Segundo deslocamento: não colocar em jogo uma simples relação entre o indivíduo e uma massa anônima, mas introduzir uma relação dupla com o outro; um outro como um semelhante ao mesmo tempo direto e individualizado, que se tratará de fazer sofrer; e um outro como a autoridade que dá as ordens de infligir sofrimentos ao meu semelhante. Portanto, dois parâmetros são introduzidos aqui em relação à experiência de Ash sobre o conformismo: a relação com a autoridade e a violência exercida contra um outro.

Milgram precisava criar um dispositivo de experiência bastante sofisticado e, quase se poderia dizer, diabólico. Ele planejou então pedir a indivíduos, recrutados por meio de pequenos anúncios de jornal, para participar de experiências científicas sobre a memória. Essas experiências eram remuneradas com quatro dólares por dia, o que representava pouco mais que o correspondente ao salário mínimo. Foram realizadas num prédio da prestigiosa Universidade de Yale. O suposto objetivo do experimento era compreender a importância da punição na aprendizagem. As condições concretas do experimento eram explicadas, àquele que doravante chamaremos de indivíduo comum, somente no início. Tratava-se de dar choques elétricos num aluno que devia tentar memorizar pares de palavras e reconhecê-las. A cada erro, o aluno recebia uma descarga elétrica, e a voltagem era cada vez maior se os erros de memorização se acumulassem.

É preciso então representar bem as coisas: um indivíduo comum dispõe diante de si de uma série de interruptores que vão de 15 a 450 volts, com indicações que vão de choque muito leve até perigo. A cada novo erro cometido pelo aluno em questão – na primeira série de experimentos esse aluno está invisível e é quase inaudível atrás de uma divisória (ouvem-se apenas ruídos de cadeira no momento de uma voltagem mais alta) –, o indivíduo comum deve passar ao interruptor seguinte. Um experimentador, vestindo um avental cinza, fica atrás dele e verifica se os interruptores são ativados corretamente. Às primeiras hesitações do indivíduo comum, o experimentador exige firmemente que ele continue, por meio de frases do tipo “O experimento exige que você continue” ou ainda “Você não tem escolha, o experimento deve continuar”. Por outro lado, o experimentador lhe assegura que, embora os choques sejam de fato extremamente dolorosos, não ocasionarão lesões duradouras. É evidente que não se trata em realidade de sessões de tortura: nenhuma descarga elétrica é enviada e o aluno preso a uma cadeira com um eletrodo no punho é um ator.

O problema que Milgram colocava era o seguinte: primeiro, quantas pessoas aceitariam fazer essa experiência, quando tivessem compreendido que ela consistia em infligir choques elétricos a um semelhante em nome do progresso científico; em segundo lugar, como estava previsto que o aluno cometeria muitos erros e o experimentador não decidiria em momento algum parar a experiência, a questão era saber em qual nível de voltagem o indivíduo comum decidiria abandonar o dispositivo experimental e desobedecer, e quantos iriam até o fim, sem se deter.

Ora, o verdadeiro choque veio do resultado da primeira série de experimentos: ninguém, e esse fato permanecerá constante, recusou participar da experiência. Por outro lado, e sobretudo, 65% das pessoas vão até o choque máximo e aceitam dar choques elétricos apontados como extremamente perigosos. Mais uma vez, essa taxa muito significativa de obediência cega não era previsível. Milgram fez uma enquete com psiquiatras apresentando-lhes o protocolo do experimento, e esses especialistas da alma humana responderam que seria de esperar que de uma a duas pessoas em mil aceitassem acionar as alavancas com a menção “atenção: choque perigoso” e enviar descargas de 450 volts a um semelhante. Em vista disso, portanto, o resultado da experiência é cinco vezes mais elevado que suas estimativas.

Acrescento aqui um esclarecimento: um primeiro encontro fictício fora previsto entre o indivíduo comum e o aluno. Assim, o sujeito encontrou sua futura vítima que, na experiência de Milgram, é um homem de 47 anos, gordo e simpático quem se passa por vítima ao longo das experiências. Um sorteio, também forjado, fora organizado para saber quem ficaria atado à cadeira com um eletrodo no punho e quem estaria confortavelmente instalado diante do painel elétrico. O indivíduo comum, portanto, podia perfeitamente se identificar com a vítima e imaginar que poderia estar no lugar dela e receber choques elétricos violentos.

O problema de Milgram a partir daí é saber em que condições o indivíduo comum estaria pronto a desobedecer e o que o motiva a aceitar seu papel de carrasco. As primeiras variantes consistirão em introduzir maior proximidade entre o sujeito e a vítima, pois no início uma divisória opaca os separa, deixando filtrar apenas ruídos abafados. Talvez a abstração do dispositivo, o distanciamento da vítima, é o que impede o indivíduo comum de perceber concretamente a violência do seu gesto. Aliás, essa separação e o efeito de desresponsabilização que ela produz são interessantes. Elas colocam, como bem mostrou o filósofo Gunther Anders em vários de seus livros, o problema de uma certa monstruosidade da técnica. Com efeito, a técnica permite esse corte entre o sujeito que inflige choques elétricos e sua suposta vítima. Há como que uma desproporção entre, de um lado, a mão que ligeiramente e sem esforço manipula interruptores e, de outro lado, as dores atrozes que poderiam ter sido o efeito imediato e direto desses gestos. O laboratório, como foi dito, está situado numa universidade de prestígio, o aparelho é visto como uma máquina experimental muito respeitável, de tal modo que o movimento da imaginação ética, esse impulso de compaixão que Rousseau, por exemplo, descreveu longamente, através do qual naturalmente me descentro e sofro com o outro, é aqui impedido e bloqueado. Há também um segundo elemento, sobre o qual insiste Anders, no dispositivo técnico: é o da especialização das tarefas. O indivíduo comum pode se concentrar em sua tarefa, direi mesmo que pode se deixar fascinar por esse pequeno segmento de ação que lhe pedem para efetuar. O que deve fazer o indivíduo comum no experimento de Milgram? Articular corretamente listas de palavras, verificar conscienciosamente as correspondências e acionar um interruptor. O indivíduo pode então sentir-se dominado por uma maquinaria mais importante que ele e à qual não precisa responder. Pode imaginar que ele não passa de uma peça intercambiável de um dispositivo que tem sua legitimidade própria. É esse, se quiserem, o segredo da frase que o experimentador lhe dispara, quando o indivíduo comum tem dúvidas e hesita em passar a uma voltagem superior: “O experimento exige que continue”. “O experimento”, mas igualmente “Deus”, “a pátria”, “a raça”, “a história” ou “as leis do mercado” são entidades abstratas impessoais, necessidades superiores diante das quais o indivíduo comum sente sua humildade, sua impotência e sua ilegitimidade e às quais, portanto, se submete, aceitando como dever e princípio de sua dignidade o fato de realizar da melhor maneira possível o que lhe pedem para fazer. Pode haver aí também outra alavanca poderosa de desresponsabilização: ler listas de palavras, pressionar com o dedo um botão, é algo que outro teria feito também em meu lugar. Ou seja, convenço-me de não ser um monstro, dizendo-me que outro, assim como eu, teria igualmente praticado esse ato monstruoso e que, portanto, esse eu que pressiona os botões não sou eu, é um sujeito anônimo, inexistente, intercambiável. Afinal, a experiência comum do trabalho num escritório ou numa fábrica mantém dentro de nós essa estrutura de desresponsabilidade.

Espantado com esses primeiros resultados, Milgram vai tentar varian-

tes do experimento capazes de fazer baixar essa taxa de obediência. Num primeiro momento, ele faz gemer, depois gritar, suplicar e por fim uivar de dor o aluno, que exige que o soltem, que pede para acabarem com seu sofrimento, que alega mesmo problemas cardíacos. A partir de certa voltagem, o aluno não responde mais. O experimentador exige então do indivíduo comum que ele considere a ausência de resposta como um erro e então aumente a voltagem após dez segundos de silêncio.

Contudo, nada resolve. Certamente, ao ouvir os gritos de dor e, em seguida, o silêncio angustiante, o sujeito manifesta sinais de inquietação e de grande nervosismo. Fica ansioso, angustiado, trêmulo. Pede ao experimentador para verificar o estado de saúde de sua vítima, para ver se não lhe aconteceu alguma coisa. Mas, principalmente, busca assegurar-se com ele que não poderá ser responsabilizado pelo que acontece. Ora, a taxa de obediência não cai de maneira significativa, ainda que efetivamente diminua, quando se coloca o indivíduo comum na proximidade de sua vítima. A pressão imposta por uma autoridade legítima parece decididamente muito superior às capacidades de empatia do sujeito. Uma violência infligida a outro, a partir do momento em que se considera que se é apenas o agente e não o autor, a partir do momento também em que ela é intermediada por uma aparelhagem técnica e legitimada por uma autoridade superior, rompe facilmente a barreira dos sentimentos de empatia mais elementares.

As únicas variantes do experimento realmente decisivas, nas quais o indivíduo comum infligirá somente as descargas menos fortes, serão aquelas em que lhe for dada a livre escolha da sanção; quando, por exemplo, recebendo ordens por telefone, tiver a possibilidade de trapacear, ou então aquelas nas quais estará na companhia de dois ou três outros participantes que denunciarão vigorosamente o caráter intolerável da situação. É como se o que paralisasse a capacidade de desobediência fosse o confronto de um indivíduo sozinho com uma figura de autoridade, garantida por todo um aparato institucional e técnico e que, com voz neutra, tranquila, segura, dá ordens cujo caráter monstruoso é apagado pela legitimidade de sua fonte. Há mais de meio século, esse experimento tem suscitado evidentemente numerosos comentários. Foi inclusive parcialmente reproduzido em todo o mundo, sob diferentes formas. A última grande repetição ocorreu na França, mas com uma transformação importante: o quadro não era mais o de um experimento científico, mas o de um programa de tv intitulado Zône Xtrême (Zona extrema), no qual um animador substituía o experimentador científico e o indivíduo comum era encorajado por um público numeroso e ruidoso a enviar descargas elétricas a outro participante do jogo que uivava de dor. E o resultado foi assustador, pois ultrapassou os 80% de obediência incondicional, como se a autoridade midiática fosse inclusive superior à autoridade científica, como se o jogo televisionado fosse ainda mais coercitivo.

Ora, o problema que se coloca é primeiro compreender se, por seu experimento, Milgram não oferecia precisamente um exutório àquelas paixões de destruição de que falamos acima. Será que Milgram não dava finalmente às paixões sádicas uma possibilidade de se exprimirem? No entanto, em relação às fontes tradicionais da violência que repertoriamos no início, o experimento parece claramente introduzir uma dimensão nova. Com efeito, parece difícil explicar a aceitação de dar descargas elétricas muito fortes invocando a crueldade, a cólera ou o ódio, uma vez que, quando o sujeito está sozinho, ele se limita às descargas mais fracas e se detém aos primeiros protestos da vítima. Julgo impossível, também, considerar que estariam em ação aqui as paixões descritas por Hobbes: a cupidez (mesmo para ganhar quatro dólares), o desejo de glória ou a desconfiança. Deve haver, portanto, outro registro de explicação, perturbador, que mostre uma forma particular de monstruosidade: a síndrome da criança ajuizada que obedece cegamente às ordens, como se, mais uma vez, o homem pudesse às vezes revelar-se mais perigoso por sua docilidade do que por sua crueldade.

Os experimentos realizados por Milgram são rigorosamente contemporâneos do processo Eichmann, que foi, como sabem, um dos principais atores da solução final, pois orquestrou sua terrível logística com uma aplicação atroz. Os experimentos e o processo, com poucos meses de diferença, se desenrolam no mesmo momento. Enquanto Eichmann enfrentava seus juízes e invocava, para se defender, sua lealdade e seu senso do dever, americanos comuns aceitavam sem protesto, num laboratório da Universidade de Yale, enviar descargas de 450 volts, extremamente dolorosas, a um compatriota simpático.

O problema, então, é saber até que ponto o experimento de Milgram ilustra o conceito arendtiano de banalidade do mal, desenvolvido por ocasião desse processo. Seria possível considerar que, na raiz do comportamento atroz de Eichmann, houvesse um conformismo de idêntica natureza, um mesmo tipo de submissão à autoridade? Evidentemente não penso que se possa estabelecer uma estrita continuidade entre Eichmann e modestos empregados de New Haven. Seria ao mesmo tempo injusto, indecente e escandaloso. Eichmann era um autêntico criminoso e a própria Hannah Arendt jamais duvidou disso. Jamais pensou em escusar o comportamento dele, dizendo que afinal havia apenas se mostrado um funcionário consciencioso, exemplar e terrivelmente eficiente. Mas o que Arendt observa é que a máquina de morte da barbárie nazista foi ainda mais eficaz e terrível porque foi praticada por funcionários zelosos e não por sádicos cruéis. Essa possibilidade de articular uma submissão cega e quase doce a violências ignóbeis constitui talvez o sinal de identidade mais obscuro da barbárie moderna. Quando se pergunta a um indivíduo que infligiu sevícias terríveis a outro por que ele fez isso, talvez cause mais pavor e arrepio, em vez de um diabólico “porque sinto prazer”, ouvi-lo responder com a voz neutra e quase indiferente: “Bem, simplesmente porque me pediram para fazer”. É como se, para além da selvageria caótica das pulsões, descobríssemos a inumanidade fria dos automatismos integrados; ou melhor, como se, após a inumanidade do bestial, fizéssemos a experiência da inumanidade do maquínico.

Poderíamos então propor aqui a hipótese do que chamaríamos as duas modernidades. A primeira é a das Luzes: a afirmação de uma razão universal que seja capaz de nos emancipar dos obscurantismos, dos preconceitos, dos instintos mais vis e das pulsões mais animais. No entanto, esse acesso à razão supõe um processo de educação que passa pela obediência. Pode-se acrescentar que essa valorização da obediência foi desde sempre favorecida pelo dogma cristão que assimila o pecado original a um ato de desobediência. Essa primeira modernidade, portanto, afirma que é pela disciplina, pela obediência às leis da cidade e pelo controle das pulsões interiores que cada um pode ter acesso a uma humanidade plena e integral. A desobediência é vista então como a manifestação de uma animalidade rebelde que convém absolutamente domar. Desobedecer é sempre manifestar uma certa selvageria inumana. No quadro dessa primeira modernidade, a obediência é humanizante e a desobediência procede do que em nós é uma animalidade rebelde.

A segunda modernidade, não mais a das Luzes, mas a da Revolução Industrial, apresenta outra figura da razão. Não mais a razão como exigência de universal, valor de justiça e de tolerância, mas a racionalidade fria das máquinas, a adaptação dos meios aos fins, o cálculo, a busca da eficácia máxima. É no quadro dessa segunda modernidade que se pôde assistir a esta mudança: a obediência adquire uma forma inumana, monstruosa, mecânica. O século xx produziu monstros de obediência ou criminosos de escritório: Eichmann na Alemanha, Duch no Camboja. E é somente então, nos sistemas de terror, que a humanidade de um indivíduo se manifesta pela desobediência.

Vou começar a apresentar aqui elementos de conclusão, lendo uma citação de Tácito que, como sabem, descreveu em seus Anais os horrores cometidos pelos imperadores romanos, particularmente Nero e Tibério. Isso permitirá ao mesmo tempo ultrapassar o quadro da modernidade técnica e perguntar se o problema não é simplesmente a dissociação entre responsabilidade e obediência. Essa dissociação é por certo acentuada pela técnica, mas no fundo todo regime despótico a mantém. Tácito escreve então, a propósito de certo número de ignomínias praticadas: “alguns quiseram; um pequeno número fez; todos deixaram que fosse feito”. O que essa frase concisa e terrível de Tácito descreve é a engrenagem infernal pela qual um punhado de dirigentes pouco escrupulosos, dispondo do poder, encontrarão sempre executantes dóceis e cegos para pôr em prática, na indiferença geral, políticas criminosas ou, de modo mais simples ainda, socialmente injustas.

No entanto, invoquei no meu título a ética da obediência. Pois seria muito fácil e mesmo irresponsável fazer brutalmente da desobediência uma virtude em si. A desobediência sistemática é certamente tão irresponsável quanto a obediência cega. O verdadeiro problema não é a oposição entre obediência e desobediência, que é sempre uma oposição abstrata, mas entre registros de obediência, entre uma obediência ativa e uma obediência passiva.

O desafio ético seria fazer valer no núcleo da obediência política uma estrutura de comando para si mesmo. De fato, convém não esquecer que uma verdadeira ética da obediência é aquela que diria mais ou menos o seguinte: “Não esqueças nunca que, mesmo quando obedeces, é a ti mesmo que ordenas obedecer”. Esse paradigma de uma obediência voluntária, responsabilizadora, que afirma a indissociabilidade do autor e do agente, está no centro da ética política grega e há expressões claras dela em Sócrates ou em Aristóteles. A ética política grega afirma claramente a diferença entre um homem livre e um escravo como a de dois regimes de obediência. O escravo executa, obedece pela simples razão de que lhe deram uma ordem. Já o homem livre obedece porque decidiu obedecer, porque ordenou a si mesmo obedecer. Ou seja, no fundamento de sua obediência há uma decisão livre e responsável. O problema, portanto, mais uma vez, não é a oposição entre obedecer e desobedecer, mas entre obediência passiva, automática, e obediência ativa e livre.

Ora, o que Milgram e Arendt procuram descrever e denunciar é precisamente a separação da responsabilidade e da obediência. No núcleo da docilidade administrativa, no centro da submissão maquínica, haveria este enunciado: “Não sou responsável, já que apenas obedeço”. É o que Milgram chama o estado de agente, é o que Arendt chama a ausência de pensamento ou ainda a estupidez. A estupidez de Eichmann, denunciada por Arendt, não é exatamente uma falta de inteligência, não é uma burrice. É a capacidade de fazer coisas sem pensar nelas, de calcular as cotas de indivíduos que se deve fazer entrar em vagões sem pensar que se trata de enviar inocentes para morrer em condições atrozes, em nome de uma política ignóbil, como se não houvesse a menor diferença entre seres humanos e mercadorias inertes, pois o que importa é sempre um cálculo de quantidades. A estupidez é a capacidade de se refugiar por trás da submissão, de tomá-la como desculpa, e de pensar que ser consciencioso nos livra da tarefa de ter uma consciência. Ora, a estupidez é culpável. Cada um é responsável por sua estupidez, no sentido em que aceita, por conforto, num dado momento, parar de pensar e continuar a calcular.

Mas, de certa maneira, é menos inquietante pensar que Arendt estava errada e que Eichmann era antes de tudo um antissemita cheio de ódio e sedento de sangue. Mais uma vez, não se discute que Eichmann foi um antissemita notório. Só que é preciso compreender que a tese da crueldade bestial e do ódio visceral não tem exatamente o mesmo custo político que a do conformismo zeloso. Sim, Eichmann era um monstro, mas sua monstruosidade foi também a de uma modernidade que organiza sistematicamente a separação da obediência e da responsabilidade. Para nós, hoje, no momento em que vivemos cercados de máquinas para pensar e decidir em nosso lugar, trata-se de lembrar sempre que o sentido primeiro da democracia é construir, defender e supor um sujeito político cuja obediência é precisamente responsável.

Responsabilizar o sujeito político é lembrar-lhe que ele nunca pode se manter completamente isento do sistema do qual participa e das violências sociais e econômicas que esse sistema produz. Cabe lembrar aqui a enorme provocação que representou, na literatura política, o texto de La Boétie sobre a servidão voluntária. La Boétie opera o que poderíamos chamar de uma revolução copernicana na ordem da política. Copérnico demonstrou que não é o Sol que gira ao redor da Terra, mas o inverso. Kant, na Crítica da razão pura, afirma que é preciso aceitar uma revolução semelhante em epistemologia: o ponto fixo não é um objeto de conhecimento que um sujeito se esforçaria por analisar, mas um sujeito armado de suas categorias que desdobra em torno dele fenômenos a conhecer. Podemos dizer que La Boétie, por sua vez, causou uma revolução copernicana na política ao dizer mais ou menos o seguinte: não é o poder que cria a obediência, é a obediência que engendra o poder.

Penso que deveríamos voltar agora, mais precisamente, ao problema da violência e das paixões violentas. No fundo, após ter distinguido num primeiro momento a violência instrumental, que se alimenta das paixões do medo, da vaidade e da cupidez, e a violência intransitiva, que se alimenta da cólera, do ódio e da crueldade, o que tentei, tomando como ponto de apoio os experimentos de Milgram, foi esboçar o plano de uma violência que poderíamos chamar de anônima, que se alimenta de docilidade, obediência e submissão. O problema que essa referência a uma violência anônima coloca é que ela testemunha essencialmente a capacidade de cada um de obedecer cegamente quando se vê diante de uma autoridade legítima. O fato de se tratar de sofrimentos infligidos a um semelhante estava ali, sobretudo, para sublinhar a docilidade de cada um. Para estabelecer a extensão de nossa docilidade, era preciso demonstrar que essa submissão à autoridade podia se revelar majoritariamente mais forte, mais insistente que o sentimento geralmente aceito como o mais imediato, o mais natural, o mais humano: a compaixão, a piedade, a repugnância a fazer sofrer um semelhante. Ao mesmo tempo, parece-me que um limite do experimento de Milgram é que o dispositivo técnico simples (ouço uma resposta errada e aperto um botão) faz aparecer uma obediência automática, passiva, indiferente. Mas o título do ciclo de conferências proposto por Adauto Novaes me faz pensar que talvez eu tenha me adiantado muito ao afirmar que falaria das raízes não passionais da violência. Creio que a verdadeira crítica que se poderia fazer tanto a Milgram quanto a Arendt é a de não terem levado em conta uma lição que constitui o núcleo do texto de La Boétie de que lhes falei, uma de suas provocações mais ardentes: a paixão de obedecer. De fato, será evidente que, ao falar de obediência, deixamos o registro do passional? Freud certamente também se aproximou dessa paixão em seu texto sobre a psicologia das massas e a identificação com o líder. Penso que se pode efetivamente falar de uma paixão de obedecer – e aqui me afasto das conclusões do texto de Freud –, uma paixão que se alimentaria do medo da responsabilidade. Amo tanto mais a obediência quanto mais tenho medo da liberdade. E estou mais disposto a fazer violência a outro na medida em que, ao obedecer, efetuo dentro de mim a separação entre o corpo e a alma: não sou eu quem decide o que meus braços executam, não sou o autor, mas apenas o agente de execução passivo. A diferença da alma e do corpo não é somente um enigma metafísico, é também uma desculpa política.

Com isso quero dizer que, ao evocar a obediência esta noite com vocês, descrevi afinal uma paixão, mas uma paixão que nos torna menos diretamente autores das violências do que cúmplices delas. E essa cumplicidade reside inteiramente numa visão falseada da obediência, que nos mantém nas complacências do não comprometimento e nas delícias da submissão. A ética da obediência é aquela, mais uma vez, que nos repetiria incansavelmente: “Quando obedeces a outro, não esqueças jamais que antes de tudo, primordialmente, é a ti mesmo que ordenas obedecer”. Não há outra definição, tampouco outra honra, para o sujeito político.

Notas

  1. A tradução do presente ensaio, incluindo as citações de obras feitas pelo autor, é de Paulo Neves.
  2. John Paul Scott, Aggression, Chicago: University of Chicago Press, 1975.
  3. Louis Mairet, Carnet d’un combattant (11 février 1915-16 avril 1917) (Caderno de um combatente [11 de fevereiro 1915-16 de abril de 1917]), Paris: Éditions Georges Crès.

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