2017

Fabricação do homem e da natureza

por Jean-Pierre Dupuy

Resumo

Sonha-se com a ciência antes de fazê-la. Implícitas às pesquisas científica ou tecnológica estão visões de mundo ou respostas às grandes questões sobre o ser, o tempo e o homem que o positivismo chama de “metafísicas” para melhor esvaziá-las.

Um dos méritos dos discursos visionários ou ideológicos que acompanham o desenvolvimento tecnológico é o de lembrar que os cientistas fazem metafísica, quase sempre sem o saber. Um papel modesto e, entretanto, essencial que pode e deve desempenhar o filósofo é o de evidenciar e sistematizar essa metafísica, para apreciar sua coerência e, sobretudo, submetê-la à crítica da sociedade. Inútil esperar uma democracia científica sem isso. É também assim que o filósofo poderá, talvez, responder à seguinte questão: a ciência e a técnica, que dominam nossas sociedades, podem ajudar a preencher o vazio de sentido que parece afetá-las? Ou, ao contrário, não seriam elas as principais responsáveis por este vazio?

Diante disso, pode-se recorrer a Descartes, para quem, através da ciência, cabe ao homem tornar-se mestre e possuidor da natureza, inclusive humana. No limite, a natureza torna-se artificial, o homem rebela-se contra o instituído, inclusive sua mortalidade e o fato de nascer do ventre de uma mulher.

A tecnociência pretende substituir a natureza e a vida. A evolução que, em essência, não é mais do que uma “bricolagem”, pode imobilizar-se diante de caminhos indesejáveis ou impasses. É por isso que o homem pode ser tentado a tomar seu lugar e tornar-se o designer dos processos biológicos e naturais. O homem pode, enfim, participar da fabricação da vida.


“ PELA PRIMEIRA VEZ DEUS TEM UM RIVAL!”

É assim que o grupo ETC, um lobby ambientalista sediado em Ottawa, saudou, para melhor criticar, o anúncio de uma façanha técnica que teria sido realizada pela equipe americana do J. Craig Venter Institute, em Maryland. De fato, esse anúncio era prematuro. Mas tal façanha será, de verdade, concluída nos próximos anos. Trata-se de sintetizar em laboratório um organismo dotado de um genoma artificial. Sabe-se atualmente, cada vez melhor, fabricar o DNA, e o momento em que será possível criar uma célula artificial graças ao DNA artificial está próximo. A disciplina que se coloca esse objetivo se chama biologia sintética.

Em junho de 2007 alguns dos principais pesquisadores desse domínio se reuniram na Universidade da Groenlândia para lançar um apelo ao mundo. Eis aqui um trecho:

O início do século XXI é um tempo de tremendas promessas e de tre- mendos perigos. Nós enfrentamos problemas assustadores de mudan- ças climáticas, energia, saúde e recursos hídricos. A biologia sintética oferece soluções para esses problemas: micro-organismos que conver- tem a matéria das plantas em combustíveis ou que sintetizam novas drogas ou apontam e destroem células suspeitas no corpo. Como com qualquer tecnologia poderosa, a promessa vem com risco. Nós precisa- mos desenvolver medidas protetoras contra acidentes e abusos da bio- logia sintética. Um conjunto das melhores práticas deve ser estabeleci- do para encorajar os bons usos da tecnologia e suprimir os negativos. Os riscos são reais, mas os benefícios potenciais são verdadeiramente extraordinários[1].

Este apelo é semelhante àquele que foi lançado em I975, em Asilomar, na Califórnia, pelos pioneiros das biotecnologias. Eles também insistiam tanto sobre o caráter extraordinário das investigações que estavam concluindo sobre os perigos que daí poderiam decorrer. Eles convidavam a sociedade a ficar preparada e davam a si mesmos regras de boa conduta. Alguns anos mais tarde essa tentativa de autorregulação da ciência voou pelos ares por si mesma. A dinâmica tecnológica e a avidez do mercado não podiam sofrer nenhuma limitação.

Trinta anos mais tarde, as coisas estão muito mais sérias. Porque o que nos está prometido sob o nome anódino de “biologia sintética” é nada menos do que a fabricação da vida. Os mais audaciosos pesquisadores não hesitam em se colocar o slogan making life from scratch”, que quer dizer: criar a vida a partir de nada, ex nihilo, ou, mais precisamente, a partir da matéria inerte. Sendo esta criação geralmente atribuída a Deus, ao menos por aqueles que Nele acreditam, compreende-se que a acusação inerente às críticas é: vocês se fazem de iguais a Deus.

Porém, a questão que se coloca é: trata-se verdadeiramente aqui da criação da vida? Para dizer isso é preciso supor que entre a não vida e a vida existe uma distinção absoluta, um limiar crítico: aquele que o transpusesse estaria quebrando um tabu, a exemplo do profeta Jeremias ou do rabino Rava na tradição judaica, quando eles se arriscam a criar um homem arti- ficial, um golem. Ora, certos cientistas nos advertem que o que há de mais interessante na biologia sintética é ela mostrar que não existe nenhum limiar desse tipo[2]. Entre o “pó da terra” e o homem acabado não existe nenhuma quebra de continuidade que poderia nos fazer dizer que Deus

tenha “soprado a alma da vida” no homem (para retomar os termos do Gênesis 2,7). Os mesmos cientistas acrescentam que, ainda que a biologia sintética se revelasse incapaz de fabricar uma célula artificial, restaria a ela o mérito de ter retirado toda a consistência da noção pré-científica de vida. Assim, uma vez mais, a ciência oscila entre duas atitudes opostas: de um lado, um orgulho desmesurado, uma vanglória às vezes indecente; de outro, quando se trata de silenciar as críticas, uma humildade aparente

que consiste em negar que se tenha feito alguma coisa extraordinária, alguma coisa que escape ao “business as usual” da ciência normal.

Ora, essa falsa humildade me preocupa, e é sobre ela que eu gostaria aqui de trazer minha reflexão. Isso porque ela constitui, na verdade, o supremo orgulho.

Eu fico mais à vontade com uma ciência que se pretenda igual a Deus do que com uma ciência que priva de toda a substância uma das distinções mais essenciais à humanidade desde que ela existe: a distinção entre vida e aquilo que não é vida, ou, para chamar as coisas pelo seu nome, a distinção entre vida e morte.

Para me fazer compreender recorro a uma analogia que pode se revelar mais profunda do que aparenta. Com o terrorismo dos ataques suicidas, do tipo 11 de Setembro, a violência em escala mundial tomou um contorno radicalmente novo. O perseguidor tradicional expressava à sua maneira a prioridade da vida, pois ele matava para afirmar e fazer valer sua forma de vida. Porém, quando o perseguidor coloca as vestes da própria vítima e se mata para maximizar o número de assassinados em volta dele, toda distinção está perdida, toda dissuasão se torna impossível, todo controle da violência está fadado à impotência. Por sua vez, a ciência parece estar pronta a negar esta diferença primeira que é a vida. Desse modo, ela se revela culpada por uma extrema violência.

AS NANOTECNOLOGIAS E A CONVERGÊNCIA DAS TECNOLOGIAS AVANÇADAS

Os homens sonham em fazer ciência já mesmo antes de fazê-la. No fundo de todo programa de pesquisa cientifica ou tecnológica, nos ensinou o epistemólogo Karl Popper, encontramos visões de mundo, respostas às grandes questões sobre o ser, sobre o tempo ou sobre o homem que o positivismo nomeia “metafísicas” para melhor livrar-se delas, porque não há nada a dizer sobre elas. Mas elas são, na verdade, questões impossíveis de ser eliminadas. Popper se referia, a esse respeito, ao que ele denominou “programa metafísico de pesquisa”.

Os discursos visionários ou ideológicos que acompanham o desenvolvimento das tecnologias avançadas têm ao menos o mérito de nos lembrar que os cientistas fazem metafísica, mais frequentemente sem o saber. Um papel modesto e, não obstante, essencial que o filósofo pode e deve ter consiste em desvelar e em sistematizar essa metafísica implícita, para avaliar sua coerência e sobretudo submetê-la à crítica da Cidade. De nada adianta esperar uma democracia científica sem esse trabalho prévio. Mas é assim que o filósofo poderá, talvez, responder à seguinte questão: a ciência e a técnica que dominam nossas sociedades podem ajudá-las a preencher o vazio de sentido que parece afetá-las? Ou não seriam elas mesmas, ao contrário, as principais responsáveis por esse vazio?

Há alguns anos venho trabalhando como filósofo sobre a ética das nanotecnologias – a “nanoética”, como se a nomeia atualmente. Eu deveria primeiro apresentar brevemente as tecnologias em questão. Normalmente seriam necessárias horas para adquirir um conhecimento mínimo do domínio, mas vocês compreenderão rapidamente que os problemas filosóficos que se colocam sobre este assunto são fundamentais o bastante para serem expostos independentemente de uma análise fina das ciências e das técnicas em questão.

Em geral se faz remontar o projeto nanotecnológico a uma conferência dada pelo célebre físico americano Richard Feynman sob o título “There’s Plenty of Room at the Bottom” [Existe muito lugar lá embaixo]. Era I959, no California Institute of Technology, e Feynman conjecturava, então, que, brevemente, se tornaria possível manipular a matéria à escala molecular para fins humanos, operando átomo por átomo. O projeto de uma engenharia à escala do nanômetro foi assim lançado.

Eu lembro que, na ciência, nano significa I0-9 = I/I.000.000.000 (um bilionésimo). O prefixo “nano” vem da palavra grega vαvoς <nános>, que resultou, nas nossas línguas latinas, nas palavras que designam um anão. Um nanômetro é um bilionésimo do metro, ou ainda, um milionésimo de milímetro. Um fio de DNA tem alguns nanômetros de diâmetro; um átomo de silício está na escala de alguns décimos de nanômetros.

Nestes dois últimos decênios, descobertas científicas e ferramentas tecnológicas prodigiosas surgiram, o que parece mostrar que o projeto nanotecnológico está hoje ao alcance dos cientistas e dos engenheiros. Citarei aqui apenas três:

a) construção do microscópio de varredura por tunelamento[3], por dois físicos do centro de pesquisas da IBM de Zurique, que permite não somente “ver” numa escala atômica, mas também deslocar átomos “à vontade” (1982-1989).

Há várias imagens que mostram o que pode fazer um microscópio desse tipo. As construções atômicas que elas registram foram realizadas pelo microscópio. Por exemplo, um anel de átomos de couro sobre um fundo de átomos de ferro, uma espécie de Grand Canyon em couro em escala atômica etc. A primeira construção desse tipo, nunca antes feita, representa as letras IBM. Ela foi feita de 57 átomos de xenônio sobre um fundo de níquel.

Meu colega da Universidade de Darmstadt, na Alemanha, Alfred Nordmann, comentou sobre essa construção: “Este foi um começo que antecipava o fim ou o objetivo final das nanotecnologias, a saber, inscrever diretamente e de modo arbitrário as intenções humanas em escala atômica ou molecular”. Não seria possível descrever melhor o sonho que anima o projeto nanotecnológico: refazer o mundo que nos foi dado, átomo por átomo, segundo o livre-arbítrio, para não dizer segundo os caprichos dos seres humanos;

b) a descoberta, que lhe valeu o Prêmio Nobel em 1996, que o químico americano Richard Smalley fez dos “fulerenos[4]”, estruturas compostas de sessenta átomos de carbono dispostos sobre uma esfera nanométrica segundo o modelo de uma bola de futebol; estruturas que, por sua vez, se compõem produzindo nanotubos de carbono, graças aos quais hoje já é possível construir materiais extremamente resistentes, leves e baratos. A produção desses materiais revolucionará toda uma série de indústrias e de transportes, até o transporte espacial.

De modo geral, as nanotecnologias visam fabricar materiais inteiramente novos que não existem na natureza. Além disso, sabe-se hoje que o mesmo corpo químico pode adquirir propriedades completamente novas quando se encontra em estado de nanopartículas. A indústria de cosméticos já obtém vantagens dessa descoberta inserindo nanopartículas nos produtos de beleza, protetores solares etc. Observe-se que não se sabe ainda nada do que advém dessas nanopartículas quando, ao atravessar a pele, entram no sistema sanguíneo.

c) na escala nanométrica, a física quântica substitui a física clássica. No mundo quântico se passam coisas estranhas, que seriam completamente inconcebíveis na nossa escala. No nosso mundo cotidiano, uma porta ou está aberta ou está fechada. Na escala nanométrica, devemos admitir que, enquanto não tivermos observado em que estado está a porta, ela está ao mesmo tempo aberta e fechada. É o que se chama princípio quântico de superposição dos estados.

Mesmo que, mais de cem anos depois que foi descoberto, os filósofos continuem a arrancar seus cabelos sobre o sentido que convém dar a esse princípio, hoje já se sabe aplicá-lo. Antecipa-se que os computadores de amanhã que utilizarão esse princípio farão nossos instrumentos de cálculo de hoje parecerem pobres anões.

Notemos de passagem, por este exemplo, que, frequentemente, a ciência nos permite agir sobre o mundo graças à técnica sem que saiba- mos verdadeiramente o que nós fazemos. Voltarei a esse ponto.

Imaginemos somente o que seria um acesso aos serviços oferecidos pela Web dez mil vezes mais rápido que hoje; a colocação em rede global das informações relativas às pessoas e às coisas por conexões possuindo uma capacidade muito forte e com um consumo de energia muito fraco, através de nós, distantes um metro uns dos outros, e não um quilômetro como hoje; capacidades enormes de cálculo e de tratamento de informação em dispositivos de muito pouco volume, como as armações de um par de óculos etc. Então, num universo caracterizado pela ubiquidade das técnicas de informação, todos os objetos constituindo nosso ambiente, inclusive as partes do nosso corpo, trocariam permanentemente informações uns com os outros. As consequências sociais seriam “extraordinárias”, todos os expertos estão de acordo. Elas colocariam problemas não menos extraordinários, ligados, particularmente, à proteção das liberdades e aos direitos fundamentais.

Hoje considera-se que as nanotecnologias serão o instrumento do que se chama convergência das tecnologias avançadas. A computação quântica de que acabo de falar é um exemplo da convergência entre nanotecnologias e tecnologias de informação. A biologia sintética, pela qual eu comecei, é o exemplo típico da convergência entre nanotecnologias e biotecnologias. Fala-se, a esse respeito, de nanobiotecnologias. É nelas que se encontram, sem dúvida, os projetos mais fascinantes e as ambições mais loucas.

As nanobiotecnologias têm como concepção servirem-se do ser vivo e de suas propriedades de auto-organização, de autorreplicação e de autocomplexificação para colocá-lo a serviço de fins humanos. Um primeiro tipo de démarche consiste em extrair do ser vivo as nanomáquinas que ele próprio soube engendrar com seus únicos recursos e, associando-as a suportes ou a sistemas artificiais, fazê-las trabalhar por nós. Pode-se, assim, tirar proveito das propriedades extraordinárias dos ácidos nucleicos e das proteínas, concebendo biochips e biocaptadores capazes de detectar a presença de genes mutantes, de micro-organismos ou de fragmentos de DNA, aproveitando as afinidades específicas destas moléculas com uma sonda fixada sobre o chip. Já se sabe confiar a tarefa de fabricar e acoplar nanocircuitos eletrônicos complexos à molécula de DNA, tirando partido das suas faculdades de autocombinação e autoacoplamento. Essa “bioeletrônica” poderia levar à concepção de computadores biológicos.

Uma outra démarche visa realizar funções biológicas associando o savoir-faire do gênio genético e o da nanofabricação. O artefato vem aqui a serviço do ser vivo para ajudá-lo a funcionar melhor. Essa démarche é de índole mais tradicional – sonha-se com marca-passos e próteses de todo tipo –, mas a escala nanométrica cria desafios consideráveis. Já se sabe fabricar glóbulos vermelhos artificiais muito mais eficazes no armazenamento de oxigênio nos nossos tecidos do que esses com que a natureza nos dotou. As perspectivas terapêuticas se anunciam “extraordinárias”. A cura do câncer e da Aids está, talvez, no horizonte, se se chegar a fabricar nanovesículas inteligentes que saberão detectar e isolar no organismo as células doentes e dirigir-lhes golpes mortais.

AVALIAÇÃO ÉTICA DOS SONHOS DA RAZÃO NANOTECNOLÓGICA

No meu trabalho sobre a ética das nanotecnologias defendi a tese de que essa ética não podia ser simplesmente consequencialista, no sentido de que ela só considerasse as consequências causais de técnicas já realizadas. Os sonhos que essas técnicas trazem e que seus desenvolvimentos ao mesmo tempo encarnam e reforçam devem também ser objeto de avaliação normativa. Essa posição, que diz respeito à ética das técnicas em geral, tem tão mais sentido no caso das nanotecnologias na medida em que estas, no essencial, só existem como projeto.

A história das ciências e das tecnologias demonstra que muitas vezes esses sonhos, que podem tomar a forma da ficção científica, têm um efeito causal sobre o mundo: podem transformar a condição humana mesmo se eles não se encarnam em técnicas. O objeto da avaliação técnica deve ser, portanto, não a técnica sozinha, mas esta estrutura de causa comum:

Sonhos da razão

Técnica

Aquele que crê que apenas a técnica tem um efeito sobre a condição humana deve começar a separar o tecnicamente realizável do não tecnicamente realizável. Observa-se, efetivamente, que os trabalhos já existentes em nanoética tomam um cuidado extremo em distinguir o que consideram ciência séria do que todos chamam “ficção científica”. O domínio desta última, porém, varia muito de um estudo para outro. O recente relatório da Royal Society britânica a esse respeito se permite tratar com desprezo o relatório da National Science Foundation americana com um pérfido “Perdoar-nos-ão por desdenhar a maior parte das contribuições, pois elas se baseiam menos na ciência e tecnologia sérias que na ficção científica[5]”.

Condição humana

A mudança de perspectiva que proponho tem como primeira implicação um “anything goes” [vale-tudo], conforme teria dito Feyerabend quanto ao que convém colocar na caixa “sonhos da razão”: o não sério não é menos importante que o sério quando se trata de alimentar o imaginário da ciência. A metafísica que sustenta a convergência das tecnologias avançadas está na caixa ao lado da ideologia de propaganda alimentada por um montão de livros (Ray Kurzweil[6], Eric Drexler[7] ou Damien Broderick[8]). Ali encontraremos a prática da língua, das artes, da literatura popular e ainda outras coisas.

Utilizei a expressão “sonhos da razão” de propósito. Faço referência à terrificante gravura de Goya, cujo título é El sueño de la razón produce monstruos[9]. Título ambíguo ao máximo, já que a palavra “sueño”, em espanhol, significa indiferentemente “sono” ou “sonho”. Em francês e em inglês a tradução é, frequentemente, “O sono da razão produz monstros” e compreende-se: “Quando a razão está dormindo, ou seja, colocada entre parênteses, a imaginação produz monstros”. Mas, um outro sentido não é menos possível: “Os sonhos da razão engendram monstros”. É a própria razão, não sua ausência, que tem essa capacidade de fazer advir, por seus sonhos, coisas monstruosas. Gosto muito dessa ambivalência fincada no coração das relações entre a ciência e o imaginário.

Eu me dediquei então à tarefa de analisar os sonhos da razão nanotecnológica, um pouco como faz o psicanalista.

A NATUREZA E A VIDA ARTIFICIAIS

No coração do programa metafísico de pesquisa que sustenta a convergência das tecnologias avançadas encontra-se um enorme paradoxo. A metafísica em questão se quer claramente monista: não diremos mais, hoje, que tudo no universo procede da mesma substância e, sim, que tudo está submetido aos mesmos princípios de organização – a natureza, a vida e o espírito. A palavra de ordem dessa metafísica é: “naturalizar o espírito”. Trata-se de dar novamente ao espírito (e à vida) seu lugar pleno e inteiro no seio do mundo natural. Ora, considera-se que os princípios de organização, comuns a tudo que existe no universo, são princípios mecanicistas. A máquina que trata a informação segundo regras fixas, ou seja, o algoritmo, constitui o modelo único de tudo o que existe. Cronologicamente, e talvez contrariamente a algumas ideias concebidas, o espírito foi primeiro assimilado a um algoritmo (ou máquina de Turing: modelo de McCulloch e Pitts, 1943); em seguida, foi a vez da vida, com o nascimento da biologia molecular (Max Delbrück e o grupo do phage, 1949); e mais tarde surgiu a tese segundo a qual as leis da física são computáveis.

A naturalização do espírito confunde-se, portanto, com a mecanização do espírito[10].

É mais uma vez a literatura de propaganda que o diz melhor, na medida em que, em sua grande ingenuidade filosófica, ela não se embaraça em prudências retóricas. O futurólogo americano Damien Broderick fez um resumo surpreendente da história da evolução biológica nos termos que se seguem. Uma vez mais, cada uma das palavras empregadas é reveladora:

Algoritmos genéticos em número astronômico titubeavam na superfí- cie da Terra e sob o mar, em níveis muito profundos, durante milhares de anos, duplicando-se, mudando, sendo selecionados em função do sucesso de suas expressões, isto é, dos seres biológicos que eles fabri- cavam e que se entregavam em uma competição para sobreviver no mundo macroscópico. Finalmente, toda a ecologia dos seres viventes no planeta acumulou e representa uma quantidade colossal de infor- mação comprimida, esquemática[11].

As células eucariontes e procariontes, pelas quais a vida começou, estão assimiladas a produções do espírito humano – os algoritmos genéticos – que só apareceram nas últimas décadas do século XX. Esses seres são um condensado de informação, o blueprint para a fabricação dos próprios seres vivos. O monismo materialista da ciência moderna transformou-se repentinamente em um monismo espiritualista. Se o espírito forma uma unidade com a natureza, isso ocorre porque a natureza é interpretada como se fosse uma produção do espírito. A reviravolta faz pensar no célebre clown suíço Grock. Magnífico concertista, ele se aproximava de seu Steinway e descobria que seu banco estava muito distante do piano. Começava então a arrastar o piano com muito esforço para aproximá-lo do banco. O piano é a natureza, e o banco, o espírito. É a recomposição da natureza em termos que poderiam levar a crer que o espírito é o criador da natureza que permite dizer que aproximamos o espírito da natureza. Uma expressão em forma de oximoro resume de modo satisfatório tudo isso: a natureza tornou-se natureza artificial.

Há um vídeo que ilustra isso de modo surpreendente. Foi realizado por estudantes de biologia da Universidade de Harvard e representa em imagens de síntese o funcionamento de uma célula. Tudo o que vemos corresponde rigorosamente aos nossos conhecimentos científicos sobre o metabolismo celular, sobre os mecanismos de autorreplicação do DNA, a transcrição do RNA, os motores moleculares, a fabricação das proteínas etc. Não é a ciência que nos interessa aqui, mas o modo pelo qual as imagens a representam.

É uma usina nanotecnológica o que o vídeo mostra, um processo de fabricação da vida. Mas essa usina é inacreditavelmente barroca, para não dizer rococó. Parece haver ali um excesso de complicações, uma extravagância de formas que lembram as esculturas do Aleijadinho em Congonhas do Campo. Costuma-se dizer que tal prodígio não pode ser resultado do acaso. Mas também se diz que um Criador dotado de um mínimo de racionalidade, que este Criador se chame Deus ou Evolução biológica, teria feito muito mais simples. A representação que está no vídeo é, então, um golpe terrível lançado tanto contra o criacionismo como contra a teoria darwiniana da seleção natural.

A etapa seguinte consiste, evidentemente, em perguntar se o espírito humano não poderia substituir a natureza para completar, mais eficaz e inteligentemente, sua obra criadora. Broderick interroga de modo retórico: “Não podemos pensar que os nanossistemas concebidos pelo espírito humano colocarão em curto-circuito toda essa errática darwiniana para se precipitarem em direção ao sucesso do design?[12]”.

Em uma perspectiva de estudos culturais comparados, é fascinante ver a ciência americana, que foi obrigada a entrar em uma luta acirrada para retirar do ensino público todo e qualquer traço de criacionismo, mesmo em suas metamorfoses mais recentes (como o intelligent design), reencontrar, pelo viés do programa nanotecnológico, a problemática do design, agora, simplesmente, com o homem no papel do demiurgo.

As tecnologias convergentes pretendem substituir a natureza e a vida e se tornar os engenheiros da evolução. Evolução que, até agora, consistiu fundamentalmente em uma simples “bricolagem”. Ela pode imobilizar-se em caminhos indesejáveis ou em impasses. É por isso que o homem pode ser tentado a tomar seu lugar e se tornar o designer dos processos biológicos e naturais. O homem pode participar da fabricação da vida.

A REBELIÃO CONTRA O DADO

Em I958, em sua obra maior, A condição humana, a grande filósofa americana de origem judaico-alemã Hannah Arendt, que tinha sido aluna de Heidegger em Freiburg, profetizava:

O mundo – artifício humano – separa a existência do homem de todo ambiente meramente animal; mas a vida em si permanece fora desse mundo artificial, e, através da vida, o homem permanece ligado a to- dos os outros organismos vivos. Recentemente a ciência vem se esfor- çando por tornar “artificial” a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. […] Esse homem futuro, que segundo os cientistas será produzido em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada – um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo[13].

Que previsão extraordinária! Estamos a menos de cinquenta anos dessa profecia, e as nanobiotecnologias já estão começando a trabalhar nesse programa de artificialização da vida e do humano. Uma vez mais se

revela que as ideias e os sonhos precedem as realizações e que a filosofia vem antes da ciência. Podemos verificar que o “sonho da razão” nanotecnológica é acabar com cada uma das dimensões que constituem o dado da condição humana.

Eu me limito aqui à finitude da vida humana, no duplo sentido de que ela é mortal e se origina em um nascimento, e ao fato de que cada vida é única, dado que ela constitui um ponto de vista singular sobre o mundo.

Vencer a morte

Sobre a questão da rebelião contra a condição do homem como mortal, me contentarei em repetir o que expus no ano passado no mesmo ciclo de conferências, na minha comunicação intitulada “A catástrofe, o império da técnica e o desaparecimento da natureza”.

A ciber-pós-humanidade que se prepara poderá aceder à imortalidade quando se souber transferir o conteúdo informacional do cérebro, “portanto” o espírito e a personalidade de cada um, para as memórias dos computadores do futuro. Um dos inúmeros ideólogos do programa nanotecnológico americano, Ray Kurzweil, publicou recentemente uma obra edificante, Fantastic Voyage, cujo subtítulo resume bem a sua propos- ta: Live long enough to live forever [Viva o bastante para viver para sempre][14]. O projeto consiste em manter-se vivo o tempo suficiente para alcançar uma época em que as técnicas de “interfaçage” [sic] do ser vivo e da má- quina nos permitam estender ao infinito as nossas capacidades físicas e mentais e, de fato, vencer a morte. Kurzweil não esconde a sua filosofia: “Encaro a doença e a morte, em qualquer idade em que se produzam, como calamidades e problemas a resolver”.

Assim, o remédio nanobiotecnológico para o escândalo da finitude é radical: ponhamos fim, através das nossas técnicas, à finitude. O efeito secundário deste remédio, mesmo que ele estivesse condenado a ficar no mundo dos sonhos (ou dos pesadelos), é terrível. Até aqui, a humanidade tinha encontrado um meio ao mesmo tempo simples e incrivelmente sutil de lidar com a própria finitude: dando-lhe um sentido. O fato de uma vida ter um início e um fim é precisamente o que faz dela uma história: a morte transforma qualquer vida em destino etc. Mas como se pode dar sentido àquilo que se busca extirpar?

Talvez ganhemos a imortalidade, mas perderemos então o sentido da vida. Hannah Arendt expressou de maneira muito profunda o que seria esse mercado do diabo:

O perigo maior e o mais atroz para o pensamento do homem consisti- ria em que aquilo que um dia ele pensou seja anulado pela descoberta de um fato qualquer que até o momento permaneceu desconhecido; por exemplo, pode acontecer que chegue um dia em que os homens se tornem imortais, e tudo aquilo que já pensamos em relação à morte e sua profundidade se tornaria então simplesmente risível. Seria possível dizer que este preço é elevado demais como contrapartida pela supres- são da morte[15].

A vergonha de ter nascido

A rebelião contra a finitude do homem não se volta apenas contra a mortalidade; de modo mais sutil, menos visível, porém mais fundamental, ela se volta para o fato de que somos seres engendrados, e não fabricados, que nasceram no mundo sem nenhuma razão.

“Os seres humanos têm vergonha de terem sido engendrados e não fabricados”: sob o nome de “vergonha prometeica” (prometheische Scham), essa revolta contra o dado da condição humana foi identificada por Günther Anders em I956 em seu grande livro Die Antiquiertheit des Menschen [A obsolescência do homem][16]. Anders, primeiro marido de Hannah Arendt, era de origem judaico-alemã, como ela, e também foi aluno de Heidegger. O leitor francês não pode deixar de evocar aqui a lembrança de uma outra emoção filosófica: a náusea sartriana, ou seja, o sentimento de abandono que se apodera do homem quando ele reconhece que não há fundamento para seu ser. O homem é essencialmente liberdade, mas esta liberdade absoluta tropeça no obstáculo de sua própria contingência. Nossa liberdade nos permite escolher de tudo, menos não sermos livres. Descobrimos que fomos jogados (a Geworfenheit heideggeriana) no mundo e nos sentimos abandonados. Sartre utilizava uma fórmula que ficou célebre por dizer assim: o homem está “condenado a ser livre”. Ele reconheceu dever essa fórmula a Günther Anders.

A liberdade não cessa de “nadificar”, quer dizer anular, tudo o que a ela resiste. O homem fará, então, tudo o que lhe é possível fazer para se tornar seu próprio fabricador e dever somente a ele mesmo sua própria liberdade. Mas este self-made man metafísico[17], se ele fosse possível, teria paradoxalmente perdido sua liberdade, logo não seria mais um homem, pois que a liberdade implica necessariamente não coincidir com ela mes- ma. A vergonha prometeica conduz inexoravelmente à obsolescência do homem.

Se Sartre e Anders tivessem podido viver até a virada do século XXI, eles teriam encontrado uma esplêndida confirmação de suas análises no projeto prometeico da convergência nanobiotecnológica. A visão metafísica deste programa coloca o homem na posição do deus fabricador do mundo, o demiurgo, e, ao mesmo tempo, o condena a considerar a si mesmo ultrapassado. Donde este espantoso paradoxo da coincidência dos opostos: o orgulho e a desmesura de um certo humanismo científico conduzem diretamente à obsolescência do homem. Nessa perspectiva ampla é preciso recolocar as questões específicas ditas “éticas” relativas à engenharia do homem pelo homem.

ANFITRIÃO E O GOLEM

Eu gostaria de terminar contando duas histórias muito belas que ilustram certos pontos que apresentei bem melhor do que uma análise filosófica árida o faria.

A primeira história ilustra o tema que já anunciei sobre o caráter único de cada vida humana. É uma história verdadeira que me foi contada pelo saudoso Heinz von Foerster, judeu vienense emigrante nos Estados Unidos e que fundou a cibernética de segunda ordem, depois de ter sido o secretário das conferências Macy, berço da primeira cibernética.

A história se passa em Viena, no fim do ano de 1945, e coloca em cena outro judeu vienense, o psiquiatra Viktor Frankl, célebre autor de Man’s Search for Meaning [Em busca de sentido]. Frankl, que voltava do campo de Auschwitz-Birkenau, tendo sobrevivido miraculosamente, tinha descoberto que sua mulher, seus pais, seu irmão e outros membros de sua família foram todos exterminados, e decidiu retomar sua prática.

Eis a história tal como me foi contada por meu amigo Heinz[18]:

Numerosas histórias horríveis se passaram no interior dos campos de extermínio. Um homem e sua esposa foram detidos em campos se- parados e eles se encontraram em Viena, miraculosamente reunidos. Sua felicidade não durou mais do que seis meses. A mulher morreu de uma doença contraída no campo. O homem afundou-se moralmente. Seu desespero era total. Nenhum de seus amigos conseguiu fazê-lo sair desse desespero, nem mesmo com observações do gênero: “Pense então que sua mulher poderia ter morrido antes mesmo que vocês se reencontrassem!”. Finalmente, esse homem foi persuadido a consultar Viktor Frankl, conhecido pelo reconforto que levava àqueles que esca- param da catástrofe.

O homem e Frankl se encontraram muitas vezes, conversaram durante horas, e, finalmente, um dia, Frankl se dirigiu ao homem nos seguintes termos: “Imaginemos que Deus me dê o poder de criar uma mulher exatamente como a sua: ela se lembraria de cada uma das suas conversas, ela não teria esquecido de nenhuma das suas brincadeiras, não haveria nenhum detalhe do qual ela não tivesse guardado a lem- brança. O senhor não poderia distinguir de forma alguma esta mulher daquela que o senhor perdeu. O senhor gostaria que eu a fizesse surgir do nada?”. O homem ficou em silêncio por um momento, depois se levantou e disse: “Não, obrigado, doutor!”. Eles se cumprimentaram com um aperto de mãos, o homem partiu e começou uma nova vida.

Heinz quis compreender como essa mudança tão espetacular pôde se produzir. Viktor Frankl esclareceu-o nos seguintes termos: “Veja, Heinz, nós nos vemos através do olhar do outro. Quando essa mulher morreu, seu marido tornou-se cego. Mas quando ele viu que estava cego, começou a ver[19]!

Eis pelo menos a lição que Von Foerster tirou dessa história de um modo tipicamente cibernético. Mas eu acredito que uma outra lição pode também ser tirada, lição que prolonga a primeira. O que esse homem viu que ele não via antes? A experiência de pensamento [Gedankenexperiment] à qual Frankl submeteu seu paciente faz eco a um dos mais famosos mitos gregos, o mito de Anfitrião. Para seduzir a mulher de Anfitrião, Alcmena, e passar uma noite de amor com ela, Zeus toma a forma de Anfitrião:

Ao longo dessa noite, Alcmena ama um homem cujas qualidades são em todos os pontos idênticas às de seu marido, todos os dois podendo ser objeto de uma só e única descrição. Todas as razões que Alcmena tem para amar Anfitrião, ela as tem para amar Zeus, que tem a aparência de Anfitrião, pois que Zeus e Anfitrião só se distinguem nume- ricamente: eles são dois em lugar de um. Entretanto, é Anfitrião que Alcmena ama, e não aquele que tomou sua forma. Se quisermos dar conta da emoção do amor através de proposições que a justifiquem ou por qualidades atribuídas aos objetos amados, que explicação racional dar desta “qualquer coisa” que Anfitrião possui e Zeus não e que ex- plica que o amor de Alcmena se endereça somente ao primeiro e não ao segundo[20]?

Quando se ama um ser, não se ama uma lista de características, ainda que tais características pudessem ser tão exaustivas que seriam suficientes para distinguir o ser em questão de todos os outros. A simulação mais perfeita deixa ainda escapar alguma coisa, e é esta alguma coisa que é a essência do amor, esta pobre palavra que diz tudo e não explica nada. Eu tenho um forte receio de que a ontologia espontânea daqueles que querem ser os fabricadores ou os recriadores do mundo não conheça dos seres nada além das listas de características. Se o sonho nanotecnológico viesse a se encarnar no mundo, aquilo que ainda hoje chamamos de amor se tornaria incompreensível.

A segunda história é um relato talmúdico do século XIII, que chegou às minhas mãos por intermédio do biofísico francês Henri Atlan. Esse relato coloca em cena o profeta Jeremias no momento em que ele acaba de finalizar a criação de um golem. O relato não apresenta de modo nenhum essa criação como um ato de revolta contra Deus, mas, ao contrário, como o coroamento de um longo caminho de ascensão em direção à santidade e ao conhecimento, os dois juntando-se na perspectiva de uma imitatio Dei:

Com efeito, como saber que o iniciado conseguiu decifrar e compreen- der as leis da criação do mundo senão verificando se seu saber é eficaz naquilo que lhe permite, a ele próprio, criar um mundo? Como saber se seu conhecimento da natureza humana está correto senão verificando se ele lhe permite criar um homem[21]?

O critério de verdade do saber do sábio, como hoje o critério de verdade científica, é, segundo a expressão famosa do filósofo napolitano do século XVIII Giambattista Vico, o verum factum: nós só conhecemos verdadeiramente aquilo que somos capazes de fazer ou de refazer. O caso de Warren McCulloch, o verdadeiro fundador da cibernética, muito mais que Norbert Wiener, é esclarecedor[22]. Neuropsiquiatra, McCulloch foi ao longo dos anos decepcionando-se progressivamente com os métodos das neurociências. Ele voltou-se para a lógica e para aquilo que ainda não se chamava inteligência artificial[23]. O neurofisiologista Jerome Lettvin descreveu nestes termos a evolução intelectual de McCulloch, que ele admirava profundamente:

Ele se dedicava à tarefa de saber como o cérebro funciona nos mesmos termos em que o criador de uma máquina conhece suas engrenagens. A chave de um saber não está na observação, mas na fabricação de modelos que são, em seguida, confrontados com os dados. Contudo, a poiesis deve vir inicialmente. E McCulloch preferia arriscar-se no fracas- so em sua tentativa de criar um cérebro a encontrar o êxito no melhoramento da descrição dos cérebros existentes[24].

Retomemos Jeremias e seu homem artificial. Contrariamente a outros golems, esse fala. De modo completamente natural, ele se dirige primeiramente a seu criador e lhe diz, fazendo apelo à sua consciência: “Você se dá conta da confusão que acabou de introduzir no mundo? A partir de hoje, quando encontrarmos um homem ou uma mulher na rua, não saberemos mais se se trata de uma criatura de Deus ou sua!”. Revela-se que Jeremias não havia pensado nisso. Muito perturbado, ele pede conselho a seu golem para reparar o que fez. E o homem artificial lhe responde: “Você só tem de me desfazer assim como me fez”. Jeremias assim o faz e disso tira a seguinte lição: não devemos renunciar a atingir o conhecimento perfeito que nos torna capazes de criar um homem, mas logo que o alcançarmos devemos nos abster de fazê-lo. Atlan conclui: “Grande lição ele nos dá para meditar[25]”. É isso que me permito convidar- nos a fazer, antes que seja tarde demais.

Tradução de Ana Maria Szapiro

  1. The Ilulissat Statement, Kavli Futures Symposium “The merging of bio and nano: towards cyborg cells”, 11-15 de junho de 2007, Ilulissat, Groenlândia.
  2. Cf. Philip Ball, “What is life? A silly question”, Nature, julho de 2007.
  3. Scanning Tunnelling Microscope [STM]. A “varredura por tunelamento” é um efeito quântico, pelo qual elétrons atravessam o vazio que separa o microscópio de uma superfície para observação da ponta de platina ou de tungstênio – o que seria inconcebível na física clássica.
  4. Chamadas também de buckyballs, estas duas denominações se referem ao visionário Buckminster Fuller e a suas cúpulas geodésicas.
  5. The Royal Society, Nanosciences and nanotechnologies: opportunities and uncertainties, RS Policy document 19/04, julho de 2004, p. 55.
  6. Ray Kurzweil, The Age of Spiritual Machines, Nova York: Texere Publishing, 2001.
  7. Eric Drexler, Engines of Creation, Nova York: Anchor Books, 1986.
  8. Damien Broderick, The Spike, Nova York: Forge, 2001.
  9. Cf. <http://www.bne.es/productos/Goya/c75.html>.
  10. Cf. Jean-Pierre Dupuy, The Mechanization of the Mind, Princeton: Princeton University Press, 2000.
  11. Grifo do autor. Damien Broderick, The Spike, op. cit., p. 16.
  12. Ibidem, p. 118.
  13. Hannah Arendt, Human Condition, Chicago: The University of Chicago Press, 1958, pp. 2-3.
  14. Escrito em colaboração com Terry Grossman, Iowa, Rodale, 2004.
  15. Hannah Arendt, Journal de pensée, 1950-

    1973

  16. Munique, C. H. Beck, 1956.
  17. L’homme n’est rien d’autre que ce qu’il se fait lui-même. Tel est le premier principe de l’existentialisme.” (O homem não é nada mais do que isto que ele mesmo se faz. Tal é o primeiro princípio do existencialismo.) Jean-Paul Sartre, L’Existentialisme est un humanisme, Paris: Nagel, 1944.
  18. Arquivos Von Foerster em Viena.
  19. Tradução do alemão: “Wir sehen uns mit den Augen des anderen. […] Als er aber erkannte, daß er blind war, da konnte er sehen!”.
  20. Monique Canto-Sperber (org.), verbete: “Amour” do Dictionnaire d’Ethique et de philosophie morale, 4a ed., Paris:

    PUF, 2004.

  21. Henri Atlan, Les Etincelles de hasard, Tome 1: Connaissance spermatique, Paris: Seuil, 1999, p. 45.
  22. Ver Jean-Pierre Dupuy, The Mechanization of the Mind, op. cit.
  23. Os estudantes ou discípulos que o cercavam no MIT chamavam-se Seymour Papert e Marvin Minsky. Este último, Minsky, iria formar, mais tarde, Eric Drexler, que criou o conceito de nanotecnologia.
  24. Jerome Lettvin, “Warren and Walter”, inédito; arquivos pessoais de Heinz von Foerster. Citado em Jean-Pierre Dupuy, The Mechanization of the Mind, op. cit., p. 137.
  25. Relato narrado em Les Etincelles de hasard, op. cit., p. 49.

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