2015

A guerra de Troia não acontecerá: pathos antigo e tecnologia moderna

por Olgária Chain Féres Matos

Resumo

O tema da primeira narrativa épica ocidental – a Ilíada – é uma guerra, a de Tróia. Considerada a época em que a ela foi escrita, isto é, a Grécia antiga, isso não causa espanto, já que, nela, mesmo a guerra integrava a ordem cósmica. O jovem guerreiro que encontra a morte na ponta de uma lança não só se sacrifica em função da glória eterna como dos deuses.

Mesmo assim, Homero insiste no caráter “destruidor-de-homens” da guerra, no horror a que ela lança tanto vencidos quanto vencedores, “irmãos em uma mesma miséria”.

Até a Primeira Guerra Mundial, havia códigos militares a serem obedecidos, como o cavalheiresco, por exemplo. Já nela não se respeita sequer o direito do vencido. Em tempos de aceleração vertiginosa, presididos por uma técnica que desconhece objetivos, vige a guerra total.

Abandonada a “mimesis” da natureza, a essência mesma da técnica moderna era bélica. Descartes já tinha escrito que a “descoberta científica resulta de uma série de batalhas contra a natureza”. É isso. Em algum momento, em vez de controlar sua relação com a natureza, o homem passa a subjugá-la. Por isso, a metáfora do Deus relojoeiro serve tão bem à Modernidade. Ela autoriza a criação de uma subjetividade científica que decodifica e altera a ordem do cosmos. Deus não mais move o céu e outras estrelas; eles se movem maquinicamente. A “lux divina” e o “lumen naturale” coincidem.

Walter Benjamin resume assim a nova época: “E então massas humanas, gases, forças elétricas foram lançadas em campo aberto, correntes de alta frequência atravessaram a paisagem, novos astros ergueram-se no céu, espaço aéreo e profundezas marítimas ferveram de propulsores e, por toda parte, cavaram-se poços sacrificiais na Mãe Terra. Essa grande corte feita ao cosmos cumpriu-se pela primeira vez em escala planetária, ou seja, no espírito da técnica”.


Primeira obra escrita no Ocidente, a Ilíada o inaugura em uma guerra, a de Troia, narrada por Homero, um acontecimento determinante na reflexão sobre a violência, pois nela se encontra a verdade das guerras, todas terminam com um vencedor e um vencido, com rendições, armis­ tícios e tratados de paz. Contra conflitos e convenções que separam os homens convertendo-os em amigos e inimigos, Simone Weil, em 1937, escreve o ensaio “Não recomecemos a Guerra de Troia”[1], lembrando o Tratado de Versalhes ao final da Primeira Guerra Mundial, ou a humilha­ ção de Versalhes para a Alemanha derrotada. Indenizações exorbitantes, desmilitarização da Alemanha, perda de territórios, questões de fronteiras materiais e simbólicas, a França republicana e a Alemanha imperial, entre outras questões, se encontrariam nas origens da Segunda Guerra Mundial[2]. Contra a escolha da violência na solução de conflitos, Walter Benjamin lembra Paul Scheebart que, pacifista, põe em questão a própria noção de guerra mundial, uma vez que mundo são todos os mundos, bem mais amplo o universo que este planeta na periferia do sistema astral, em que a vida é passageira e as coisas são mortais. No horizonte da finitude de tudo o que é temporal, Scheebart, em 1914, escreve: “Protesto antes de mais nada contra a expressão ‘guerra mundial’. Tenho certeza de que nenhum astro, por mais próximo que esteja, iria se enxerir nisso em que estamos envolvidos. Tudo leva a crer que uma profunda paz reina no universo estelar”[3]. Política da revanche e da vingança, nossa cultura nos faz herdeiros da arrogância do vencedor e do desprezo ao vencido, tributária de um imenso espaço concedido à violência através de tradições bélicas e heroicas, consideradas a virtude dos corajosos que superaram o medo arriscando a vida para defender alguma causa socialmente valorizada, como a justiça e a liberdade. Nesse sentido, a não violência[4] é a fraqueza dos covardes. Em seu ensaio ”A Ilíada ou o poema da força”, escrito nos anos da Segunda Guerra Mundial, Simone Weil observa que o culto da violência requer que a vitória seja sempre apresentada com a aura da glória, esquecendo “que nada está ao abrigo do acaso” e que a não violência necessita que os homens “deixem de admirar a força, odiar os inimigos e desprezar os infelizes”[5].

Diferenciam-se, no entanto, a violência antiga e a moderna, como o observa Walter Benjamin, ao se referir à Primeira Guerra Mundial: “Na época de Homero, a humanidade oferecia-se em espetáculo aos deuses olímpicos; agora, ela se transforma em espetáculo para si mesma”[6]. Se

é certo que o guerreiro antigo, por suas façanhas, tinha a morte que o atingia no fulgor dos anos compensada pela glória imorredoura, se essa eternidade se encontra na juventude inalterável das representações de guerreiros que sorriem mesmo quando arrancam do peito o dardo que os fere[7], a guerra antiga era um acontecimento em que concorriam as forças do cosmos, os deuses e os homens[8], face a um poder superior denominado destino, à mercê do qual estavam os próprios deuses, e ao qual o homem se inclinava. Por isso, a Guerra de Troia foi apresentada de maneira monumental por Homero, mas tratada como um acontecimento cheio de danos: a guerra é combate “afainado de penas”, “multilacrimoso”, “destruidor-de-homens”. E Ares, o deus da guerra, das batalhas sangrentas e das lutas finais, jamais objeto de louvor, é “funesto aos mortais”. O próprio Zeus dirige-se a Ares, dizendo: “Ó duas-caras, fica longe de mim com teus queixumes/ Mais que nenhum deus, és para mim odioso”[9]. Se no ideário heroico o guerreiro ilustre terá distinções militares, o renome e a fama imperecíveis, no plano do divino ele traz sempre consigo o atributo da vulnerabilidade, pois, por mais grandiosas que as coisas sejam, tudo desaparece um dia. Pela miséria comum a toda a condição humana, vencedores e vencidos são tanto separados pela luta que os divide quanto unidos pelo sofrimento que ela causa: “Vencedores e vencidos são irmãos em uma mesma miséria”[10] No episódio em que Aquiles ataca um dos filhos de Príamo, o adolescente Licaone, o poeta lamenta: ”Aquiles feriu de morte o jovem que ele enviou contra a vontade dormir no Hades na morte, embora Licaone não quisesse descer para lá”[11]. A morte por meio da violência não pertence à finitude essencial de todas as criaturas e, não sendo um acontecimento da natureza, é a mais injusta de todas[12]• Aniquilamento artificial, na guerra a morte vem do próprio homem, mas por um jogo pendular que castiga o abuso da força de quem excede os limites de seu uso. Pois aqueles que a exercem têm tão somente a embriagadora sensação de avançar sem resistências, até o instante em que experimentam a mesma condição de desventura que infligiram aos outros. Na Ilíada, todos os heróis querem parecer fortes e valorosos, mas a violência mostra-lhes sua fraqueza essencial, voltando-se contra quem a invoca: “na realidade, o homem se limita a sofrer a força e nunca a domina, seja qual for a situação. Ninguém é seu possuidor”[13].

Na guerra antiga, o herói expiava sua hybris, a violência praticada, diante dos deuses. Em Os trabalhos e os dias, Hesíodo aproxima hybris e hyper, nomeando Monotios, irmão de Prometeu e Epimeteu, hiperglorioso e hybriotés – cheio de hybris -, fulminado por Zeus por sua presunção e virilidade hiperarmada (enoren hyperopeos)[14]. Já a guerra moderna é a forma em que “a humanidade se transforma em espetáculo para si mesma. Sua autoalienação atingiu o ponto que lhe permite viver sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem”[15]. Se a destruição de Troia foi determinada pela hybris guerreira e pelo temor da vingança futura de algum sobrevivente, os heróis gregos eram punidos pelos deuses por seus excessos. Os crimes de guerra contemporâneos são os da hybris, mas uma hybris menos os deuses, pois são crimes sem culpa e sem temor da punição.

Circunstância sem exemplo no passado, agora é a guerra da técnica que impõe maneiras de viver, de agir e de pensar. Em seu ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, de 1936, Benjamin apresenta uma concepção antropológica da técnica[16] na qual se vinculam guerra, técnica e aura[17], referindo-se ao elemento inédito da violência moderna:

“[com a utilização dos gases letais, a guerra] encontrou uma forma nova de liquidar a aura”[18]. Para Benjamin, a aura, o elemento contemplativo e rememorativo das coisas não se restringe a objetos religiosos ou artísticos, podendo surgir em qualquer um deles como um sopro fugidio, como a graça, a charis que os toca ou envolve com uma auréola, conferindo-lhes uma alma, uma transcendência, o invisível da visibilidade, algo próximo da experiência de forças de ultrapassamento que caracterizam o sublime[19]. O espetáculo antigo, que se oferecia a um olhar especulativo e contemplativo[20], se perverte em pseudoaura na modernidade, como reação distorcida decorrente do declínio histórico dagenuínaaura, sob a pregnância de forças de sua liquidação. A pseudoaura é produzida pela técnica e seus efeitos auráticos em escala de massa, simulados pela indústria e pelo fascismo. Benjamin atribui esse fenômeno ao colapso geral da educação e ao advento de um sistema de comunicação pela propaganda e pela publicidade, a aura assimilando-se assim a um culto fetichista da aparência, às fantasmagorias de entretenimentos espetaculares e à exposição de mercadorias no mercado mundial. Foram as reminiscências da genuína aura, aquela perdida, que ressurgiram na política nacional-populista e fascista, convertidas em aura da destruição, que foi sacralizada nas tempestades de aço dos aviões bombardeiros exaltados por Jünger no espetáculo das explo­ sões e incêndios, nas ruínas e corpos de homens e animais despedaçados e como prodígios da técnica no futurismo italiano[21].

A Primeira Guerra Mundial foi a eclosão de uma modernidade em que o tempo se acelera sob o primado da excitação permanente e crescente, impulsionada pelas inovações técnicas. Diferenciando a técnica antiga da moderna[22]. Benjamin observa que a primeira, fechada no círculo da natureza, se ligava a esta pelo mimetismo, confundindo-se com ela, e tinha o homem como centro, nela engajado por inteiro pela empatia ritual e violenta. Essa primeira técnica buscava, por meio de sacrifícios, obter os favores dos deuses para dominar a natureza e trazer a chuva esperada. Com a segunda, o homem se separa da natureza, mas a uma distância que permite uma comunicação pela mímesis. Próxima à concepção grega, a mímesis auxilia a natureza a se naturalizar, a se completar, sendo, assim, aberta ao novo, experimental e emancipadora das condições dolorosas do trabalho forçado e das forças naturais, técnica que reconcilia trabalho e natureza em uma relação que não seria mais de dominação e exploração. A segunda técnica é a do revolvimento (Umwiiltzung)[23], ou seja, ela revolve as relações e a consciência, de modo que as forças sociais elementares sejam subjugadas para o estabelecimento de um jogo harmonioso entre as forças naturais e o homem: “a técnica era a força[…] que poderia ter feito aceder a natureza à linguagem” e, no entanto, “ela modelou […] a face apocalíptica da natureza, reduzindo-a ao silêncio”[24]. No pensamento de Benjamin, a segunda técnica, não fechada como a primeira no ciclo da natureza e na repetição dos ritos, seria experimental e liberadora das virtualidades da natureza. Referindo-se à utopia de Fourier, Benjamin observa:

Segundo [ele], o trabalho social bem organizado teria entre seus efeitos que quatro luas iluminariam a noite, que o gelo se retiraria dos polos, que a água do mar deixaria de ser salgada e que os animais predatórios entrariam a serviço do homem. Essas fantasias ilustram um tipo de trabalho que, longe de explorar a natureza, libera as criações que dormem, como virtualidades, em seu ventre[25].

Comentando o ensaio de Benjamin, Márcio Seligmann-Silva anota:

A primeira técnica tinha o ser humano em seu centro e tinha como sua imagem paroxística o próprio sacrifício humano; já a segunda técnica tende a dispensar o trabalho humano. [Esta] se baseia na repetição lúdica e teria sua origem no jogo, visto por Benjamin como primeira modalidade de tomada de distância da natureza. Esta segunda técnica não visa domínio sobre a natureza, mas sim jogar com ela. O jogo aproxima mas também mantém a distância. A primeira técnica seria mais séria e a segunda lúdica[26].

A segunda técnica, porém, como a primeira, é também ela habitada pelo sacrifício que se corporificou nos aviões bombardeiros por controle remoto. Para Benjamin, toda técnica de produção ou reprodução é violenta, pois ambas são impulsionadas pelo desejo de poder sobre os homens e sobre toda a natureza, quando o homem deveria, diversamente, dominar as relações entre a técnica e a natureza. Reconhecendo aqui a matriz da violência que se estenderá a tudo o que é vivo, Benjamin, nas Passagens, cita Nietzsche: “Nem sempre a exploração da natureza foi vista como fundamento do trabalho humano. Com razão, Nietzsche achou significativo o fato de Descartes ter sido o primeiro físico filósofo a comparar as ‘descobertas de um cientista a uma sequência de batalhas que se trava contra a natureza'”[27]. Não por acaso, para Descartes, a natureza é criação contínua de um Deus relojoeiro que pode ser dominada pela ciência e pela técnica. A concepção de um Deus relojoeiro instala o homem em uma subjetividade científica que torna possível a modernidade segundo uma mutação. Pois o cosmos que fora feito à imagem da divindade que criou a máquina do mundo, o Deus relojoeiro que põe em movimento perfeito o céu e outras estrelas, foi substituído por um cosmos que se assemelha não mais a Deus, mas a uma máquina criada pelo homem. Colocando-se no lugar de Deus, o homem pode conhecer o universo tal qual o intelecto divino o criara no passado medieval: a lux divina e o lumen naturale coincidindo, a luz natural é capaz do mesmo conhecimento que a lux divina.

Com a guerra da técnica, a natureza inteira foi reduzida à condição de coisa, transformada em natureza morta, pois, na guerra, os homens são sacrificados à técnica: “E então, povos e gerações lhe escapam tão pouco como se patenteou da maneira mais terrível na última guerra [a Primeira Guerra], que foi um ensaio de novos, inauditos esponsais com as potências cósmicas”[28]. Para Benjamin, a relação do homem com o cosmos antigo não era de conflito, a antiguidade sendo detentora de uma sabedoria hoje perdida, quando se mostrava reverência pela natureza e todas as riquezas que se retiravam dela, restituindo-lhe uma parte antes de se apropriar delas:

Essa reverência se manifesta no antigo uso da libatio. Aliás, é talvez essa mesma antiquíssima experiência ética que se conserva, transformada, na proibição de juntar as espigas esquecidas ou recolher os cachos de

uva caídos, uma vez que estes fazem proveito à terra ou aos antepassados dispensadores de bênçãos. Segundo o uso ateniense, o recolher de migalhas durante a refeição era interdito, porque pertenciam aos heróis. Uma vez degenerada a sociedade, sob desgraça e avidez, a tal ponto que ela só pode ainda receber os dons da natureza pela rapina, que ela arranca os frutos imaturos para poder trazê-los vantajosamente ao mercado e que ela tem de esvaziar toda bandeja somente para ficar saciada, sua terra empobrecerá e o campo trará más colheitas[29].

Com o fim da experiência antiga e das relações dionisíacas com o cosmos pela embriaguez, a comunhão com ele retorna pervertida em novas núpcias através da violência das explosões técnicas na guerra. Eis assim a primeira técnica na segunda, a mítica sacrificial no conflito de 1914-1918, que exigiu novos sacrifícios de sangue:

E então massas humanas, gases, forças elétricas foram lançadas ao campo aberto, correntes de alta frequência atravessaram a paisagem, novos astros ergueram-se no céu, espaço aéreo e profundezas marítimas ferveram de propulsores e, por toda parte, cavaram-se poços sacrificiais na Mãe Terra. Essa grande corte feita ao cosmos cumpriu-se pela primeira vez em escala planetária, ou seja, no espírito da técnica[30].

Hybris da modernidade, a razão instrumental faz do mundo uma máquina que tende a só seguir sua própria regra maquínica, a funcionalidade de seu próprio funcionamento, porque seus conhecimentos são sem objetivo final.

Se a dominação da natureza caracteriza o ponto de vista da primeira técnica, na segunda a técnica se vincula à noção de progresso, encobridora da violência, como o Jugendstil. Benjamin o analisa em termos de uma filosofia da história, como uma tentativa de regressão de uma burguesia que se expressa na recusa da técnica em vez de se preocupar com sua assimilação social, o pensamento burguês retornando a um pseudonatural e ao biológico:

[o Jugendstil] é o estilo pelo qual a velha burguesia mascara o pressen­ timento de sua própria fraqueza, entregando-se em todos os domínios a uma exaltação cósmica e, embriagada de futuro, abusa da palavra “juventude” como uma fórmula de invocação […]. Já se disse dos ornamentos torturados que cobriam nessa época as fachadas e os móveis, que eles eram uma tentativa de volta para trás que reintroduziria nas artes aplicadas formas surgidas na origem na técnica. O Jugendstil é, com efeito e à sua revelia, uma grande tentativa de regressão. Em sua linguagem de formas se exprime o desejo de escapar ao que o espera e o sentimento que se manifesta diante desta visão. O “movimento espiritual” [do círculo de poetas em torno de Stefan George] que visava uma regeneração da vida humana, sem se preocupar com a vida pú­ blica, também ele resulta em uma involução que transformou as contradições sociais nestas crispações e nestas tensões trágicas e sem saída características da vida em conventículos […]. A imagem de mundo de George é a assustadora constância com a qual o poeta, em cada uma de suas experiências profundas da natureza, considera o próprio caos como a força fundamental de tudo o que ocorre[31].

Enfatizando a tentativa de George de associar o sagrado antigo e a guerra moderna, Benjamin, em ensaio de 1914-1915 dedicado aos poemas de Holderlin, “Dichtermut” (Coragem de poeta) e “Blodigkeit” (Timidez), procura liberar o povo dos Hinos de Holderlin e suas traduções de Píndaro da apropriação por George, que os ligava a um retorno dos deuses gregos e ao helenismo eterno próprio da poesia alemã. No círculo de George, o povo de Holderlin torna-se sinônimo da Alemanha secreta, e esta, uma metáfora do Estado. Em um artigo posterior, “História literária e ciência da literatura”, Benjamin anotou que a história literária praticada no círculo de George “associava um espírito antifilológico à manifestação das divindades do panteão alexandrino”, e nas obras dessa escola “se emparelhavam Virtus e Genius, Kairos e Daimon, Fortuna e Psyché, combinação que só tem por função exorcizar a história”[32]. O círculo de George concebia a literatura alemã como um bosque sagrado com seus templos devotados aos poetas imortais, ideal pretensamente idílico que é tão somente o outro lado do apelo a uma guerra sagrada em nome de uma Alemanha mística. Razão pela qual Benjamin indica a proximidade entre a Alemanha secreta de George e os soldados nazistas[33], tornando manifesta a dimensão política do exorcismo da história e do apelo à salvação do alemão. Holderlin, ao contrário dos poetas do círculo,

não era da têmpera daqueles que ressuscitam, e o país onde os profetas têm visões de campos de cadáveres não é o seu. Esta terra não poderá voltar a ser a Alemanha antes de ser purificada, e ela não poderá ser purificada em nome da Alemanha e sobretudo não desta Alemanha secreta que não é senão […J um arsenal em que o manto mágico se ergue ao lado do Capacete de Aço [organização paramilitar do nazismo][34].

Benjamin alerta para a linguagem de seita do círculo de George, que quer apropriar-se do passado não como objeto de estudo ou reflexão, mas como origem elevada e paradigma, as runas de aço de Jünger reunindo-se à organização paramilitar dos Capacetes de Aço e de todos os ruidosos mo­ vimentos do tipo neonibelungos, movimentos conservadores ou neoconservadores que prepararam o nazismo[35]. Benjamin os compreende como uma “guerra santa dos alemães contra o seu século”[36]. A guerra em nome do espírito alemão o reveste de uma pseudoaura, porque produzida como história, mas história historicista na qual o passado só permanece como vestígio e em um sentido específico – são rastros produzidos para evocar uma história e não reminiscências deixadas pela história. O nacional-socialismo, com sua arquitetura neoclássica fantasmática e que se pretendia grega, transforma as massas urbanas em descendentes de um passado imemorial que precederia seu surgimento atual. Essas massas, cuja origem se encontra ligada à produção industrial e ao mercado, convertem-se em povo alemão que atribui aos outros povos, também fantasmados, a causa das dificuldades sociais resultantes das crises da economia de mercado. Porque se deve legitimar a Alemanha unificada no século XIX por Bismarck, artistas voltam-se para a heroicização da nação e aos primeiros anos do século I. Com a expansão romana sob Júlio César, o império chegava ao Reno, até que o chefe da tribo germânica Arminius (Hermann) venceu o general romano Varius na floresta de Teutoburger. Seu herdeiro moderno é o nacionalismo. A heroicização da nação alemã, do guerreiro e do mito do combate dissimula a realidade da violência e a legitima:

a memória da guerra foi […] remodelada como uma experiência sagrada provedora de uma nova religião, que colocava à disposição um catálogo de santos, mártires e lugares de culto como uma herança a ser preservada […]. O culto do soldado morto no campo de batalha tornou-se o núcleo da religião do nacionalismo que surgiu depois da guerra[…]. A guerra foi sacralizada ao mesmo tempo que banalizada no teatro popular e no turismo nos campos de batalha[37].

Por isso, nos poemas de George, Benjamin discerne analogias entre a transfiguração das massas urbanas em povo mítico e a história produzida para ser uma memória oficial, assim reconhecendo uma forma específica de violência que a poesia da decadência e o poeta como criador onipotente, por um lado, e a identidade entre poesia e vida, por outro, contêm. Em seu “Olhar retrospectivo sobre Stefan George”, Benjamin apresenta o poeta como um profeta:

isto não significa que George tenha previsto os acontecimentos históricos, e muito menos o que os impulsionara. Uma tal tarefa é do político, não do profeta[…]. A noite do mundo cuja aproximação escurecia seus dias chegou em 1914 [… ]. George, a quem a rigorosa disciplina pessoal e a intuição inata das potências noturnas deram a presciência da catástrofe, […] tinha uma imagem da natureza como um ser demoníaco […] que ele não poderia jamais domar[…], contra a qual ele vive em luta, da qual ele necessita se defender e se proteger. […] A natureza lhe parece “degradada”, tendo alcançado o limite absoluto da desdivinização […]. A noite que, com a guerra, não fez senão concentrar sobre a cabeça [de seus seguidores] o que fervia há tempos em seu coração[…], lhes apareceu como o arquétipo de toda violência da natureza[38].

E a profecia de George se expressava na ideia de fim do mundo, que se inaugura em 1914 com a Primeira Guerra Mundial: “Stefan George se situa ao fim de um movimento intelectual que começara com Baudelaire”[39]. Com efeito, Baudelaire tematizou também ele o fim do mundo, mas não como um profeta: “Eu que sinto por vezes em mim o ridículo de um profeta”, escreve no seu “Projéteis”[40]. Ao contrário do apocalipse do fim do mundo de George, o de Baudelaire é o da derrisão; o profeta moderno é o da poesia plutocrata que só dá o alarme do fim do mundo, não oferece nenhuma visão e só faz pose de profeta, é só um poseur. E o profeta é ridículo também, porque o fim do mundo já aconteceu. “A profecia”, escreve Benjamin, “é um acontecimento do mundo moral. O que o profeta prediz são os castigos”[41]. Em seu ensaio “A felicidade do homem antigo”, Benjamin identifica a culpa do herói antigo na hybris, a louca soberba de se acreditar maior que seus deuses, de esquecer que toda vitória é passageira e pela qual ele será punido:

Para o grego, hybris é a tentativa de se exibir a si mesmo[…] como sujeito e proprietário da felicidade, hybris é a crença que a felicidade seja outra coisa que não um dom dos deuses que podem retirá-lo a qualquer momento, como a cada momento podem infligir ao vencedor uma imensa desventura (que se pense no retorno de Agamêmnon) […]. Nenhum [herói] pode se vangloriar dos próprios méritos na luta, nem o melhor [deles] pode enfrentar aquele que os deuses enviaram contra ele e que, mais forte, o põe por terra, jogando-o no pó[42].

Agamêmnon de Ésquilo narra os sofrimentos dos guerreiros, a morte das vítimas, a brutalidade do combate, a impiedade ligada ao júbilo da vitória e o retorno vitorioso de Agamêmnon logo convertido, pela vingança de Clitemnestra, em morte. O que os deuses punem é a hamartia, o erro, consequência da cegueira humana, das paixões que obscurecem a consci­ ência e que, por sua potência, arrastam os homens para a catástrofe e as guerras: “[o destino] é o conjunto de relações que inscrevem o vivente no horizonte da culpa”[43]. A hybris é a arrogância que leva ao ultrapassamento de limites: “O que os deuses castigam é o orgulho desmedido (hybris), a pretensão de um homem ser mais que um homem. A narração histórica reencontra as lições da tragédia”[44]. Na Grécia antiga, a hybris era considerada um crime, porque é um sentimento violento impulsionado pelas paixões, a mais determinante delas sendo o orgulho, falta fundamental porque significa perda da moderação, da sobriedade, do pan metron Ariston (a medida em tudo), do “nunca em demasia” próprios da temperança, do “domínio racional sobre os desejos”[45]. Essa ponderação é o tempo para deliberar e a melhor maneira de lidar com os futuros contingentes. Mas, assim como o futuro é contingente, o passado também o é; ele guarda acontecimentos singulares, virtualidades não realizadas que o historiador benjaminiano reavê[46].

Nesse horizonte, A Guerra de Troia não acontecerá, de Giraudoux, apre­senta Heitor desejoso de evitar o combate em Troia e o enfrentamento violento da guerra. Antecipando-se a Ulisses, embaixador dos gregos, Heitor procura persuadi-lo a receber Helena de volta, restituindo-lhe pacificamente o que ele viera recuperar pela força, esperando, assim, a contrapartida da paz. Heitor lhe pergunta: “Você quer a guerra?”, e Ulisses responde: “Eu não. Mas estou menos seguro das intenções dela”[47]. Tudo se passa aqui como se a guerra fosse dotada de intenção, autônoma com respeito àqueles mesmos que irão fazê-la. A hybris guerreira é a violência que atinge uma cidade considerada inimiga, oprimindo-a até a destruição, com uma virulência destruidora que não respeita as regras da medida, necessárias a qualquer relação. Na Odisseia, a pirataria e a pilhagem dos companheiros de Ulisses em Creta contrastam com a atitude do rei do Egito que, depois de sua vitória, recebeu o inimigo suplicante, em respeito, como hóspede[48]. Respeitar é respectare, voltar a olhar, olhar com cuidado, cuidar. Não por acaso, a Grécia dos trágicos conferiu centralidade às leis não escritas, apresentadas por Eurípides e Sófocles, em particular, como algo sagrado, pois não são “de ontem, nem de hoje”, ninguém sabe quando surgiram; elas “vêm de Zeus” e por isso são imperecíveis:

elas se manifestam sempre que se trata de um dever de humanidade com as vítimas: os suplicantes, aqueles que se refugiam em um santuário, homens que, em combate, se rendem, pessoas com funções de embaixadores e principalmente aqueles que querem enterrar seus mortos. Eis as regras em um mundo sem regras, em plena guerra, que recusa certas violências e as condena com veemência. Certamente essas regras foram frequentemente violadas[…]. Mas foi por ocasião delas que apareceram escritos eloquentes, destinados a lembrar sua existência e defendê-las. Elas definem um dever de humanidade e a solidariedade humana[49].

A compaixão na guerra são “momentos luminosos, breves e divinos em que os homens recuperam uma alma”[50].

O ideário do dever de respeito ao vencido[51] desaparece depois da Primeira Guerra Mundial, que representou o fim da guerra clássica com suas leis cavalheirescas[52], destinadas a canalizar o exercício da violência, e o início da guerra total, a que destrui o inimigo graças a uma potência de armas mecanizadas sem precedentes no passado. A guerra da técnica dissolveu um sistema de valores vigentes até a belle époque e produziu o sentimento de desamparo transcendental: “uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado a cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano”[53]. Referindo-se à utilização pela Alemanha do gás Ziklon, a primeira arma química de destruição em massa da história, Walter Benjamin indica a progressão da violência a partir das trincheiras da Primeira Guerra e do bombardeamento de populações civis desarmadas, com a utilização de gases letais que transformaram o mundo todo em trincheira. Sobre as armas químicas, Benjamin observa:

No momento atual, conhecem-se 17, dentre as quais o gás mostarda e a lewisita são os [gases] mais importantes. As máscaras de gás são inúteis contra eles[…]. Nas regiões atacadas com o gás mostarda, mesmo muitos meses depois, dar um passo no chão, tocar em uma maçaneta de porta ou uma faca de cortar pão pode ser mortal. Os estrategistas militares pensam utilizar esta arma […] cercando os centros estrategicamente importantes com uma parede de gás mostarda ou difenilamina doroarsina. Em seu interior, tudo perece. Não se pode atravessá-la. Assim, chega-se a tratar as casas, cidades, paisagens de tal modo que [durante muito tempo] nenhuma vida animal ou vegetal possa nascer. É óbvio que, na guerra de gases [como também no terrorismo], a distinção entre população civil e militar desaparece[54].

Não por acaso, de Homero à contemporaneidade, Benjamin compreende a história do mundo como a “história do sofrimento do mundo”, pois a política e as formas artísticas secretamente ou não correspondem a uma dor histórica, como se, a distância da ideologia de esquerda ou de direita, não houvesse nada de justo ou injusto, de verdadeiro ou falso, porque tudo é coberto de um véu de sofrimento. Foi esse pathos que criou um patrimônio durável da humanidade, destruído agora pela violência a que não sobreviveu a cultura, pois a guerra moderna instituiu o reino da violência pura. A despeito das incontáveis narrativas de guerra publicadas[55], Benjamin soube diagnosticar uma verdadeira crise da narração como crise da própria história, abandono em um mundo desfeito pela guerra; e contra todo patriotismo e todo heroísmo, ele preferiu evocar a tragédia histórica como tragédia da cultura que se extinguiu. Esta não diz respeito apenas à devastação e aos destroços deixados pela guerra, mas a uma guerra paralela à das armas, aquela da pobreza da experiência e a das fronteiras do pensamento, aquele entrincheiramento em fronts historiográficos, em pontos de vista excludentes, da política do amigo e inimigo, como Benjamin o reconheceu nas narrativas de Jünger e em sua glorificação dos guerreiros de todos os tempos e da guerra como experiência interior, enaltecendo-a como o advento de um mundo novo, o da técnica e de sua energia que conduzem a uma mobilização total no espírito do heroísmo[56]. As terríveis novidades técnicas manifestam, através dos bombardeios aéreos e armas químicas, as regressões da sociedade: “[a guerra], tão nova tecnicamente, criava um estado de psicose em que a arma química – as nuvens de gás – tornava-se um fantasma tão inapreensível quanto implacável”[57]. Quando os Estados em guerra, com suas estratégias econômicas e militares, se valem da técnica como instrumento do assassinato em massa, eles estão em guerra contra sua própria cultura, quando deveriam estar em guerra contra sua própria incultura. Nesse sentido, desde 1909 e pouco antes de escrever Os últimos dias da humanidade, em 1933, Karl Kraus associou progresso e apocalipse: “Con­ tra a política do inimigo dirigida por todos os nacionalismos europeus prontos para ‘fechar suas fronteiras’, ele encarnava na época[…] a via de uma verdadeira cosmopolítica, bem decidido a ·prescindir de qualquer direito de alfândega”‘[58]. A esse alargamento das fronteiras respondiam os obstáculos que se opunham à possibilidade da experiência em uma guerra marcada pelo impensável. Pois a guerra moderna se faz com uma mistura mortífera de pathos antigo e técnica moderna.

A guerra da técnica, desauratizadora de todos os valores, promoveu uma forma de violência antes desconhecida, a dos crimes sem culpa, cuja análise se encontra, em particular, nas Considerações atuais sobre a guerra e a morte, de Freud:

Quando a luta cruel desta guerra [a Primeira Guerra Mundial] tiver en­ contrado o seu desfecho, cada um dos combatentes vitoriosos regressará apressadamente a seu lar, reencontrará sua mulher e filhos sem que o perturbe o pensamento dos inimigos que ele matou no combate corpo a corpo ou com as armas de longo alcance[59].

Essa forma de barbárie é o simétrico oposto do homem dito primitivo ou do guerreiro antigo, conforme observa Freud:

o selvagem não é de modo algum um assassino sem remorsos. Quando regressa vencedor da luta não lhe é lícito pisar a sua aldeia nem tocar sua mulher, antes de ter resgatado seus homicídios guerreiros com penitências, por vezes longas e penosas […], o homem primitivo dando provas de delicadeza moral que se perdeu entre os civilizados[60].

Sobre a culpa e o horror ao derramamento de sangue, pense-se nas hesitações de Hamlet na tragédia de Shakespeare e no significado do ser ou não ser, eis a questão, compreendidos por Peter Brooks a partir da ênfase nos dizeres do espírito do pai de Hamlet que lhe pede vingança. Diversamente de elas significarem um retardamento na ação que prejudicariam o andamento da peça, elas expressam o sentido do ” ser ou não ser, eis a questão”. Analisando este verso, enfatiza os dizeres do espírito do pai de Hamlet que lhe pede vingança: “Vinga-me, mas não manches com isso teu espírito”, o que pode significar: “Vai, vinga-me e não penses mais nisso”. O que o pai ordena, porém, a um jovem tão sensível, é algo impossível de ser feito, pois nenhum ser humano pode decidir-se a matar um outro homem sem manchar com isso seu espírito. Quem é puro de pensamento e de alma não pode matar. Como viver com esse mandamento contraditório? Longe de ser fraco e desorientado, as dúvidas de Hamlet levam ao sentido próprio da pergunta ser ou não ser, porque se trata ao mesmo tempo de matar sem se corromper e conservar um espírito sem manchas sendo um assassino – toda a angústia de Hamlet se encontra nisso. Ser ou não ser quer dizer ser ou não ser um assassino[61]. Assim, a obrigação de luto para aquele que matou um adversário não é simples superstição ou tradição de um tempo passado, mas a percepção da violência que mata como uma responsabilidade e uma infelicidade, como um drama sempre patético, uma forma de derrota que deve ser elaborada no luto.

Primitiva ou antiga, a guerra não desresponsabiliza os que combatem. Eis por que Agamêmnon, que provocara a cólera de Aquiles por ter se apropriado de Briseida, espólio de guerra de Aquiles, reflete sobre as

 

causas que o levaram a agir mal, relacionando-as com a áte, a ruína e a perdição:

muitas vezes os acaios tal coisa a mim me disseram, reprovando-me – porém eu mesmo não sou culpado

mas antes Zeus, a Porção [as Parcas] e a Erínia que anda na névoa que me lançaram, na Ágora, a selvagem perdição,

naquele dia em que eu próprio roubei de Aquiles seu prêmio.

O que eu podia fazer? É o deus que tudo realiza. Velha filha de Zeus é perdição, que a todos perde, destruidora. Seus pés são macios, pois não se aproximam do chão: caminha por sobre as cabeças dos varões, a prejudicar os homens[62].

Agamêmnon atribui seu desatino à velha áte, expressando assim a dificuldade dos homens de poderem escapar dela, áte que os enleia em erros (hamartia) e enganos (apate). A velha áte o é, não em um sentido temporal, mas ontológico; ela está próxima das origens, de Zeus, de seu poder e autoridade. Porque caminha na névoa, na noite ou na escuridão, ela induz à má percepção ou ao obscurecimento da razão; por isso caminham juntos apate e áte, engano e perdição. Sob o desvario de áte “o mal parece ser o bem/para aquele cujo espírito/ o deus conduz à ruína”. Porém, mesmo dizendo que os deuses causaram sua perdição – Zeus, as Parcas, a Erínia -, o herói antigo não se exime da responsabilidade que é sua, revelando uma dupla causalidade, uma motivação cindida, ao mesmo tempo humana e divina. Por isso, n’ A República de Platão, a Parca Lachesis, que apresenta diversas formas de vida a serem escolhidas pelas almas na reencarnação, exclama:

Declaração da virgem Lachesis, filha da Necessidade. Almas efêmeras, ides recomeçar uma nova carreira e reentrar em um corpo mortal. Não vos escolherá um gênio [daimon], mas vós mesmas escolhereis vosso próprio daimon. A que for designada pela sorte será a primeira a escolher seu destino, e a escolha será irrevogável. A virtude não tem senhor: adere a quem a honra e foge do que a menospreza. Cada qual responde por sua escolha. Quanto ao Deus, ele é inocente[63].

O que dá as bases e o fundamento da cultura da violência não é a violência, mas sua justificação, encobridora do crime porque a legitima como o direito de quem a venera como a virtude do homem forte. Contra isso, os gregos já haviam escrito suas tragédias, como Ésquilo, que compõe Os persas em pleno narcisismo da vitória grega na batalha de Salamina, mas escolhendo narrar os acontecimentos do ponto de vista dos vencidos. Longas lamentações das mulheres, listas de nomes de tantos guerreiros que partiram e jamais irão voltar. E a descrição do ataque:

Impossível evitar o combate. Já as proas de bronze se chocavam; um navio grego iniciando a abordagem despedaça o equipamento de um barco fenício; a seguir a confusão. Nossa frota aguenta o primeiro encontro; porém, os navios numerosos demais, compridos no estreito, manobram dificilmente sem se poder prestar socorro, entrechocando-se os esporões de ferro. Os gregos, peritos nas manobras, atacam-nos por todos os lados, afundando-os; o mar desaparece sob os destroços e os mortos; as praias e os rochedos cobrem-se de cadáveres. Em breve toda a frota dos bárbaros põe-se desordenadamente em fuga. Nossos infelizes marinheiros, como atuns dispersos do cardume, ou peixes despejados da rede, são abatidos a golpes de remos e fragmentos de carcaças. Gritos e gemidos ecoam pelo mar aberto, até que a noite escura nos furta o olhar do vencedor e tudo detém. Não! dez dias inteiros não bastariam a pormenorizar tal perda. Saibam apenas que jamais tantos homens pereceram em um dia[64].

Mesmo não sendo pacifista, Ésquilo soube conjugar uma eventual necessidade da guerra – e mesmo uma nobreza que a ela se associasse[65]

– com o sentimento agudo de seus horrores[66], como um apelo de não violência. E isso porque a violência (bia) é a ilimitação, o arbítrio e a desmedida que afetam a todos por seus efeitos de reversibilidade. Nesse sentido, Simone Weil escreve que a sujeição e a morte do vencido têm o efeito da desumanização tanto para o vencedor quanto para o vencido, privados ambos, pela relação de forças, de sua alma, isto é, da faculdade de pensar, da capacidade de respeitar e de amar. Se Homero trata o amigo e o inimigo com a mesma compaixão, sem neutralizar com isso sua oposição, é porque “a infelicidade dos inimigos talvez seja sentida mais dolorosamente – essa ideia ilustra[…] a graça suprema da guerra, quando ela agracia suas vítimas”, e propõe uma paz “sem vencedores nem vencidos”[67], para pôr um fim aos massacres antes que um dos adversários tenha conseguido alcançar seus objetivos guerreiros. Por isso, Sócrates, n’ A República, criticava o sofista que quer persuadir da necessidade das guerras, confundindo o que o filósofo separa: a necessidade e o bem. Não caberia aqui a ideia de que os fins justificam os meios, porque afirmá-la significa que os fins justificam todos os meios. Quem quer fins justos, deve querer meios justos, coerentes com seus fins[68].

A violência que mata é sempre uma derrota e um drama do absurdo. Delírio contínuo, ela é a ininterrupta transgressão de limites, evocada pelos gregos com todos os seus nomes: mênis, cholós, thymós, hybris. Funesto destino, a exemplaridade da Guerra de Troia dá a conhecer que ela não foi o combate por uma mulher ou por uma cidade, mas por algo que escapa a qualquer lógica:

Gregos e troianos se mataram durante dez anos, por causa de Helena[ …]. Sua pessoa era tão evidentemente desproporcional em relação àquela gigantesca batalha que, aos olhos de todos, ela só representava o símbolo da verdadeira causa; mas esta ninguém a definia e ela não poderia ser definida porque não existia[69].

E, em As suplicantes, Eurípides escreve:

Sabemos bem que a paz deve ser mais forte que a guerra, a paz amada das Musas[…]. Mas a seus bens nós preferimos a guerra e a submissão do fraco ao forte, do Estado ao Estado e do homem ao homem[…]. Miseráveis mortais, por que correr para as armas e vos entrematar? Basta, chega de combates! Ficai em vossas casas em paz, deixai em paz os outros! A existência é tão breve. Tentai viver sem transtornos e longe das desgraças[70].

A realização dos desígnios divinos como necessidade só se efetiva com a parte de liberdade que cabe a cada um. Que as guerras se façam pela honra de uma nação, em nome de uma religião, por fronteiras, razões militares ou econômicas; elas são sempre o resultado da arrogância[71] e da vontade de poder que os homens acabam por não mais dominar. Por isso o destino tem um significado diverso da fatalidade que se abate sem que se saiba nem como nem por quê. Uma guerra só acontece se o destino assim o quiser.

Na peça A Guerra de Troia não acontecerá, Andrômaca exclama: “Eu não sei o que é o destino”, ao que Cassandra, a profetiza irmã de Heitor, responde: “Eu vou dizer: o destino é simplesmente a forma acelerada do tempo”[72]. Ao desmitificar a ideia de fatalidade, mas sem minimizar sua força, Cassandra associa o destino ao tempo que corre mais depressa que o pensamento dos homens, levando-os em direções que escapam à sua decisão e vontade. A forma acelerada do tempo produz, intensificando-a, uma crise das mediações entre as partes em disputa, fazendo do confronto dos rivais uma troca imediata, de tal modo que o estreitamento do tempo das negociações resulta na “troca de insultos, golpes e vingança”: “Por isso mesmo as culturas tradicionais não valorizam a reciprocidade imediata demais”[73]. Para que a passagem ao ato possa ceder aos acordos pacíficos, é preciso a desaceleração do tempo das decisões e inversões na orientação temporal, pois, na pressa, cada um não faz mais do que reagir a um mal que o outro lhe causou. Porque a vingança olha sempre para trás, o resultado é uma corrida para frente. Assim, só há destino quando, dominados por paixões que obscurecem escolhas prudentes, os homens se perdem, e a má sorte e o erro se convertem em fatalidade: “o destino trágico vem à luz nos grandes momentos de passividade [do herói]: na decisão trágica [de aceitar a violência e a guerra], no momento retardatário [de visão do erro], na catástrofe”[74]. O destino é a lei do que é inapreensível e, dessa forma, se ninguém escapa ao destino é porque ninguém pode conhecê-lo. E, assim, quando as escolhas são inoportunas, elas causam infortúnio. Porque o destino impõe expiar as transgressões da medida humana, a hybris do herói resulta em uma imortalidade irônica, uma vez que a glória o privou da vida: ”A felicidade do homem antigo se realiza na celebração da vitória: na glória de sua cidade, no orgulho de seu distrito e de sua familia, na alegria dos deuses e no sono que o transporta ao céu dos heróis”[75]. Nesse sentido, a morte confere aura ao herói fazendo dele a mediação entre o profano e o Absoluto.

Não por acaso, Baudelaire compreende a modernidade como o desaparecimento do Absoluto ou dos vestígios do pecado original, sua maneira de fazer do presente o tempo da perda da experiência da transcendência, da aura da cultura e da auréola do poeta, sua substituição pelo nervosismo do mundo moderno. Razão pela qual Baudelaire observa que nas grandes cidades o homem é um caleidoscópio dotado de consciência, impulsionado por estímulos nervosos, cada vez mais intensos e violentos. Analisando as pinturas de batalha de Horace Vernet, Baudelaire escreve: “Confesso que o que mais me mortifica nesses espetáculos não é a profusão de ferimentos, a abundância hedionda de membros mutilados, mas sobretudo a imobilidade na violência e a espantosa e fria máscara de um furor paralisado”[76]. Vernet, por ser um militar que pretende praticar a pintura, só consegue borrar pinceladas militares:

O Sr. Horace Vernet é um militar que faz pintura. – Eu odeio essa arte improvisada ao rufar dos tambores, estas telas borradas num golpe, esta pintura fabricada com tiros de pistola, assim como odeio o exército e as forças armadas, e tudo que carrega armas barulhentas para um lugar pacífico. Essa imensa popularidade que, aliás, não durará mais tempo que a guerra e diminuirá à medida que os povos tiverem outras alegrias – essa popularidade, repito, essa vox populi, vox dei é para mim uma opressão[77].

A violência se instala no âmbito do empobrecimento do mundo e da cultura. Como escreveu Baudelaire: “O mundo vai se acabar, não por uma guerra, mas pelo aviltamento dos corações”[78], de que a guerra moderna é a consequência. Em “As armas do futuro”, de 1925, Benjamin escreve:

A próxima guerra terá um front fantasmal. Um front que alcançará rapidamente todas as metrópoles, todas as ruas, todas as portas. Essa guerra, a guerra das bombas aéreas de gás, será, verdadeiramente, uma loteria de “cortar a respiração”, em um sentido que até então não se conferira a esta expressão […]. Contra os ataques aéreos com gás, nenhuma defesa é possível[…]. A que se assemelham esses gases tóxicos cuja utilização pressupõe o fim dos sentimentos humanos?[79]

Eis por que a Primeira Guerra é analisada por Benjamin como a época do aniquilamento da espiritualidade e da capacidade de pensar. Em suas Passagens, Benjamin cita Turgot: “Não é o erro que se opõe ao progresso da verdade, mas a indolência, a teimosia, o espírito de rotina. […] Na Grécia […], os espíritos estavam sempre em atividade, as luzes do pensamento cresciam a cada dia”[80]. Nesse sentido, a incapacidade de pensar por si mesmo, o bloqueio do pensamento reflexivo, é hoje mais ameaçador do que a energia atômica ou a manipulação genética. Pensar é ser capaz de duvidar, pois o dogmatismo é o contrário do pensamento livre. Assim, o discurso guerreiro mais sóbrio e frio pode não passar de violência diferida, como ilustra o episódio dos embaixadores atenienses que se dirigem aos melianos que desejavam permanecer neutros no ataque ateniense a Esparta na guerra do Peloponeso: “Palavras de morte pronunciadas com toda tranquilidade (kath’hesychían)”, sem emoção ou furor, sem impaciência. “Tão somente aquele que está absolutamente seguro de estar com a verdade, absolutamente seguro de que sua ação se apoia em um fundamento inconcussum, inabalável, ‘procede’ assim”[81]. Aqui é a hybris que raciocina, é o logos que pretende ter valor de verdade incontestável, é a delirante pretensão de uma noção de justiça ser a única possível; os atenienses coagem os melianos ao combate, pois se consideram superiores a todos os limites. Ofuscados por sua hybris, “avançam para massacrar os melianos com ‘orgulhosa segurança e certeza’, mas também com o desprezo que nasce da absoluta confiança em sua própria superioridade”[82]. Diante da violência, a não violência – sem desconhecer que ela não poderia ser absoluta – não deixa de ser radical, pois é a exigência filosófica para a qual “quem quer os fins quer os meios, quem quer a justiça quer meios justos, quem quer a paz quer meios pacíficos, coerentes com seus fins”.

Em 1957, ao receber o Prêmio Nobel, Camus fez a declaração que provoca ainda hoje polêmica: “Eu acredito na justiça, mas defenderei minha mãe antes da justiça”. À época da Guerra da Argélia, então território francês, essa declaração foi tomada por seus detratores como defesa dos privilégios franceses contra a causa argelina e sua opressão. No horizonte da ocupação francesa na Argélia e do terrorismo da Frente de Libertação Nacional, porém, a ideia de justiça se encontrava por demais politizada e enraizada no desejo de conquista, de um lado, e no de vingança, de outro. Mas o que uma mãe tem a ver com a justiça? Camus declara:

Eu sempre condenei o terror. Tenho que condenar também um terrorismo que se exerce cegamente nas ruas de Argel e que um dia poderá atingir minha mãe […]. Eu acredito na justiça, mas defenderei minha mãe antes da justiça […]. Neste momento bombas são lançadas nos bondes de Argel. Minha mãe pode estar num de seus compartimentos. Se é isso justiça, eu prefiro minha mãe[83].

A esse respeito, David Carroll escreve:

Ao defender sua própria mãe antes da justiça ou ao preferi-la e o que ela representa na luta pela justiça que exigiria ou justificaria o sacrifício de sua vida e da vida de outros inocentes civis, ao argumentar que sua vida tem um valor indiscutível e que uma mãe não deveria nunca ser sacrificada por nenhuma causa[…] isso significava que os inocentes não devem ser implicados em um conflito armado. Não se pode jamais justificar matar uma mãe[84].

Para Camus, em sua mãe encontram-se todas as mães e irmãos e outros irmãos e primos: “àqueles que continuam a pensar heroicamente que um irmão deve morrer mais que os princípios, eu me limitarei a admirá-los de longe. Eu não sou dessa raça”[85]. Camus afirma que a luta, por mais legítima que seja, não pode ser ilimitada e que o limite com o qual todos deveriam estar de acordo seria a segurança de uma mãe. Se uma mãe não conta, o que poderá realmente contar? O fato de se estar disposto a sacrificar a própria mãe impedirá que se detenha o ciclo cada vez mais violento do terrorismo e do contraterrorismo de tornar absoluto.

A violência é anti-intelectual; por isso o general Franco, nos anos da guerra civil espanhola, declarava que, quando ouvia falar em cultura,

sacava o seu revólver. E, em Auschwitz, as palavras de um soldado da ss, em resposta à pergunta de Primo Levi de por que lhe era recusado saciar a sede com a neve do chão, contêm a essência da crueldade: “Hier ist kein warum”. A violência é “sem porquê”, uma vez que violência e crueldade obedecem, sempre, ao que é cego à reflexão e ao pensamento. Na cultura da violência, a não violência é julgada através do prisma da ideologia da violência; àquele que é morto em uma luta tendo optado pela não violência é creditada a ineficácia da não violência, enquanto o fracasso da violência é considerado não um argumento que prova sua ineficácia, mas um indicador de que a vitória exige mais violência, como se tão somente a violência desse a vitória. A não violência não nega o conflito, mas sim a violência e a arrogância de enfrentamentos unilaterais em desproporção de forças. Assim, a verdadeira oposição à paz não é o polemos – a luta que se realiza nos limites de uma inimizade natural[86] -, mas a hybris, a violência que ultrapassa todas as outras, que vai além de toda medida (hyper = super = superbus)[87].

Nesse universo guerreiro e viril, Hobbes inova, evocando o irrenun­ ciável direito à vida que inclui o direito de não matar. Em seu Leviatã lê-se: “Nenhum homem está obrigado, pelas palavras [do pacto social], quer a matar-se a si mesmo ou a outrem”[88]. Assim, se o soberano mandar-me ferir alguém, não estou obrigado a fazê-lo:

Há homens de coragem feminina de quem não se pode exigir – como tampouco das mulheres – o serviço militar[…]. Não apenas não é vergonhoso temer, como um direito ao medo decorre do direito à vida[…]. O fundamental em Hobbes é recortar [ao súdito] um espaço sem ho­ micídio, de aversão ao sangue, de paz. O mesmo homem que não quer ser morto pode não querer matar. Há homens cujo caráter repugna ao sangue. Para eles – de compleição feminina – se constrói o Estada[89].

Benjamin, por sua vez, procura uma relação com o mundo natural e humano que seja de não dominação e de não violência[90]:

Existiriam ligações entre as experiências da aura e as da astrologia? Haveria seres vivos e coisas na Terra cujo olhar nos é enviado pelas estrelas? Cujo olhar não se abre verdadeiramente senão no céu? As estrelas, com seu olhar distante, são elas o fenômeno originário da aura? Poder-se-ia pensar que o olhar foi o primeiro mentor da faculdade mimética? Que a primeira assimilação acontece sob o olhar? Pode-se por fim fechar o círculo supondo que as constelações têm relação com o nascimento do ornamento? Que o ornamento contém o olhar das estrelas?[91]

Nem proximidade com a natureza dominada por ritos e mitos, nem distância que a domina pela técnica, mas um mundo comum de semelhanças, correspondências e afinidades com o qual se comunica através de sua aura. A aura benjaminiana contém a charis, a graça que, quando toca os humanos, torna-os mais belos e melhores e, assim, ela é útil à felicidade dos homens: “O ornamento é um modelo para a faculdade mimética. Essa abstração é a grande escola da empatia (Einfühlung)”[92]. Empatia, aura e amor se encontram nos ornamentos, cuja origem divina já fora compreendida pelos gregos na noção de graça (charis), própria do ouro e do dourado, atributos de Afrodite, a “deusa do amor. Afrodite é dita áurea. No Hino homérico a Afrodite a deusa é adornada de ouro, mas no sentido em que dela mesma emana o brilho”[93]. Para Adorno, o amor é uma relação não instrumental, uma finalidade sem fim, o além dos fins; é relação sem violência e sem dominação: “Só se é amado onde podemos nos mostrar fracos sem provocar a força”[94].

Eros é o oposto da violência guerreira, da hybris e do hyper que evocam o peso e o esmagamento por derrota militar, como abrimos – poderoso, forte – é sempre utilizado em um contexto de guerra, atribuído a guerreiros em armas, à destruição e a massacres de ações militares. Sua contrapartida, Benjamin a encontra em Safo, o feminino ligado à não violência. Benjamin volta à Grécia clássica, quando a relação com o corpo era determinada pela habilidade e destreza pessoais como condições da excelência guerreira masculina. Nos escritos de Benjamin a conversação feminina opõe-se ao diálogo masculino; Safo e suas amigas, a Sócrates e seus discípulos. Sócrates, como os homens em geral, usa as palavras como se fossem armas com as quais constrói um mundo lógico e racional. Seu discurso violenta o feminino, exila o sagrado, cuja guardiã é a mulher:

Dois homens, um ao lado do outro, são sempre turbulentos […]. As palavras de mesmo sentido se unem e se afirmam em sua atração secreta, gerando uma ambiguidade sem alma, mal dissimulada em sua dialética[…] [Entre mulheres, ao contrário,] o silêncio se ergue, majestoso, sobre o seu falar. A linguagem não confina a alma das mulheres […]: ela gira em volta delas, tocando-as […]. As mulheres que falam são possuídas por uma linguagem delirante […] o delírio amoroso, o entusiasmo, en-theos, o divino que ingressa no humano], elas se calam, e o que ouvem são palavras não pronunciadas. Elas aproximam seus corpos, ousam se olhar. A reciprocidade do olhar revitaliza a respira­ ção, enquanto as palavras se dissipam no espaço. O silêncio e a volúpia

– eternamente separados no discurso – se uniram e se identificaram […]. Irradiou-se a essência[95].

Para Benjamin, as mulheres são as guardiãs dessa grandeza e dessa experiência banida do mundo moderno pela linguagem lógica e viril do pensamento técnico[96].

O amor em vez da violência foi eternizado na lírica de Safo de Mitilene: “[…] agora traz-me Anactória à lembrança, a que está ausente,/ seu adorável caminhar quisera ver,/ e o brilho luminoso de seu rosto,/ a ver dos lídios as carruagens e a armada infantaria”[97].

  1. Simone Weil, “Ne recommençons pas la Guerra de Troie”, Nouveaux Cahiers, Paris, 1937. [Todas as citações, cujas reterências bibliográficas estão em outro idioma, não havendo nota em contrário, foram traduzidas pela autora do ensaio.]
  2. Sobre a continuidade da Primeira Guerra na segunda, cf. Bruno Cabanes, “Le vrai échec du Traité de Versailles” (O verdadeiro fracasso do Tratado de Versalhes), L’Histoire, junho de 2009, n. 343; Wolf Eribruch, Das Versailler Diktat: vorgeschichte, Vollstandiger Vertragstext, gegenvorschliige der deutschen Regie­ rung (O opróbrio de Versalhes: história prévia, texto completo do tratado, contrapropostas do governo alemão), Kiel: Arndt-Verlag, 1999; Elias Canetti, Massa e poder, São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  3. Paul Scheebart apud Walter Benjamin, Écrits français (Escritos franceses), Paris: Gallimard, 1991, p. 252.
  4. Foi Gandhi quem pela primeira vez traduziu por não violência o sânscrito ahimsa, em que o a é o privativo de himsa, o desejo de violência. Isso significa que nossa primeira relação com o outro frequentemente é de hostilidade, pois sua presença em nosso campo existencial nos incomoda, nos desorganiza e perturba quando se supõe que ele quer tomar nosso lugar ou de fato se dispõe a tanto. Gandhi indica assim a consciência de uma inclinação à violência que deve ser controlada, contida, recalcada ou subli­ mada, para que, de destrutiva, essa tendência se converta em uma energia apta à vida em comum: “A não violência perfeita é a total ausência de malevolência com respeito a tudo que é vivo”. Por isso, para Gandhi, é preciso uma atenção ainda não enunciada para com os animais, aos quais se deve respeito – uma exigência de humanidade que, para ele, requer uma revolução cultural. O respeito à vaca sagrada não deve ser subestimado ou ironizado porque ele simboliza a atenção a todo ser privado de palavra e mudo. Essa consideração a tudo o que vive é a bondade que nos convida a dominar a predisposição à violência, para dar provas de respeito ao outro, homem ou animal, para transformar a hostilidade em hospitalidade. O jainismo ensina a compaixão por todas as criaturas e o dever de não violência. Cf Elisabeth Fontainay; Le silence des bêtes (O silêncio dos bichos), Paris: Fayard, 1998; e Jacques Derrida, L’animal que dane je suis (O animal que sou então), Paris: Galilée, 2006.
  5. Simone Weil, ”A Ilíada ou o poema da força”, em: A condição operária e outros ensaios, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 407.
  6. Walter Benjamin, ”A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, em: Obras escolhidas,

    vol. 1, São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 196.

  7. Conforme vemos nas representações da guerra nos episódios da Ilíada e nos vasos gregos antigos expostos no Museu do Louvre.
  8. Cf.Jean-Pierre Vernant, “A bela morte e o cadáver ultrajado”, Discurso, São Paulo:1978, n. 9.
  9. Homero, Ilíada, v. II, canto v, versos 890-891, São Paulo: ARX, 2008.
  10. Simone Weil, op. cit., p. 393.
  11. Homero, Ilíada, v. II, canto XXI, versos 45-48, op. cit., p. 325.
  12. Cf. o capítulo xm do Leviatã de Thomas Hobbes (São Paulo: Martins Fontes, 1996) sobre a consciência da morte menos como finitude e mais como aquela que advém de um perigo, fazendo o homem descobrir, quando ela está ameaçada, o valor inestimável da vida.
  13. Simone Weil, Cahiers, vol. III, Paris: Plon, 1974, p. 198.
  14. Os radicais epi e bri significam o peso, o esmagamento por derrota militar. Obrimos é pesado, poderoso, forte, utilizado em um contexto de guerra, atribuído a guerreiros e suas armas, à destruição e massacres, a ações militares contra uma cidade ou a genocídio: ”A hybris é uma violência, sem dúvida uma ofensa que priva a vítima de sua honra, mas também em um sentido essencialmente físico corresponde a estupro, violências e ultraje. O aspecto social sempre esteve presente nela, enquanto o psicológico só se desenvolveu tardiamente na história da língua, embora seja o sentido enfatizado nas análises de Aristóteles”. Cf. Jean-Marie Mathieu, “Hybris-demesure? Philologie et traduction”, Kreton, 2004, n. 20, pp. 1-2.
  15. Walter Benjamin, ”A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, op. cit., p. 196. A autodestruição se relaciona à barbárie, diferenciando-se da ideia de decadência. No ”Arquivo N” de suas Passagens (Belo Horizonte/São Paulo: UFMG/IOESP, 2006), Benjamin critica o dualismo decadência/civilização. Com efeito, não se trata da alternância entre ambas, pois decadência não significa um declínio geral da civilização em todos os seus ordenamentos. Nela, as crises são localizadas e o crepúsculo de uma cultura é correlativo ao auge de uma outra; a capacidade de transformação do homem não sendo afetada, decadência e florescimento se relacionam como potências de diversificação de formas de vida. O diagnóstico do presente é, diferentemente, a catástrofe irracional em que toda cultura se encontra em desequilíbrio, tendo-se perdido o domínio sobre os fins do conhecimento, dos usos do tempo e da própria vida, sob o impulso da aceleração do tempo e do fetichismo das inovações e das avaliações de tudo, da atividade empresarial ao mundo do trabalho, do lazer à vida do espírito, a modernidade e a ciência desconhecendo para onde vão e que tipo de homem pretendem criar. A barbárie não é o início de uma civilização nem o seu apogeu. Ela chega posteriormente à cultura que ela destituiu e que perdeu seu fondamento. Segundo Benjamin, uma civilização é repleta de experiências, enquanto a barbárie representa a exaustão que anula a faculdade da experiência e a capacidade de pensar.
  16. O ensaio “A obra de arte…”, em sua versão de 1936, foi redigido em alemão e francês. Sua primeira versão alemã é de 1935 e nela não há a referência a duas técnicas como na versão de 1936, referência que, por sugestão de Adorno, foi retirada na versão final alemã de 1939. Sobre essa questão, cf. Walter Benjamin, A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, segunda versão (1936), trad. Francisco d’Ambrosio Pinheiro Machado, São Paulo: Zouk, 2013; e A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, tradução e seleção das variantes de Gabriel Valladão Silva, organização, ensaio bibliográfico, prefácio, revisão técnica e seleção dos fragmentos de Márcio Seligmann-Silva, Porto Alegre: L&PM, 2014. Cf., sobre a questão da técnica como violência, Heidegger, Introdução a metafísica, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1966.
  17. Sobre o conceito de aura, cf., entre outros, Miriam Bratu Hansen, “Benjamin’s Aura” (A aura de Benjamin), Criticai Inquiry (Investigação crítica), 2008, v. 34, n. 2; e Taísa Palhares, Aura: a crise da arte em Walter Benjamin, São Paulo: Barracuda, 2006.
  18. Walter Benjamin, “A obra de arte…” op. cit., p. 196. Para Benjamin, a primeira formulação da perda da aura foi de Baudelaire, para quem o moderno nasce de um trauma, o do capitalismo do século XIX nos anos 1830. “Tal é a experiência vivida que Baudelaire erigiu à posição de uma sabedoria. Ele indicou o preço que é preciso pagar para aceder à sensação da modernidade: a destruição da aura na experiência do choque” (Walter Benjamin, Sobre alguns temas em Baudelaire, São Paulo: Abril, 1975, p. 62). O choque é a ruptura iniciada pela Revolução Francesa, que dividiu a história em dois tempos: o antigo regime e o tempo novo inaugurado pelo Ano I da república. O que foi, desapareceu por completo, porque suprimiu simultaneamente o rei e Deus, sem tempo para o luto, do que resultou o spleen baudelairiano, sofrimento cristalizado e tempo imobilizado que não passam e dos quais se perde a origem. Do trauma da perda da identidade anterior decorre que nada, pensamento teórico, modos de vida ou valores, tem permanência ou duração.
  19. Sobre o sentimento do belo e do sublime, cf. Immanuel Kant, Crítica da faculdade do juízo, Rio de Janeiro: Forense, 2002.
  20. Espetáculo e especulação possuem raiz comum. São inspeção, vista penetrante, de in-spectare, olhar interior, e specio, ver. Spectare é operação do olhar, de que deriva re-spectare, olhar de novo, com cuidado, manter uma certa distância para cuidar. Espetáculo é a palavra latina que traduz o grego teo-orein, o olhar de deus, olhar com cuidado. Cf. Joan Corominas, Breve diccionario crítico etimológico castellano e hispánico (Mini dicionário crítico etimológico castelhano e hispânico), Barcelona: Gredos, 1989.
  21. Cf. Walter Benjamin, “Teorias sobre o fascismo alemão”, em: Obras escolhidas, v. 1, op. cit.
  22. Ver nota 15.
  23. A tradução de Umwdltzung por revolvimento por Francisco Pinheiro Machado é de grande importância para a compreensão da ideia de revolução no pensamento de Benjamin e para a de suas relações com o pensamento de Marx. Assim, o proletariado não poderia ser revolucionário enquanto for “massa” compacta, de onde a importância de “deixar passar o ar”. Nesse sentido, ao traduzir o ensaio, Pinheiro Machado observa: “Não cabe detalhar as diterenças entre as versões, mas vale destacar alguns trechos relevantes que aparecem somente na segunda versão, a saber: uma teoria da mimese na arte pautada na relação entre aparência [Schein] e jogo [Spiel];e uma teoria do afrouxamento [Aujlockerung] da massa proletária compacta, que a transformaria em classe com consciência revolucionária[…]. Umwdltzung, que é formado a partir do verbo umwdltzen [revirar, revolver], na forma substantivada significa revolução, num sentido mais neutro, ou a transformação radical, por isso, optou-se aqui pelo termo correspondente em português, ‘revolvimento’. O termo Revolution foi traduzido por ‘revolução’, e revolutiondr por ‘revolucionário”‘. (Cf Walter Benjamin, A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, Porto Alegre: Zouk, 2012, p. 10, nota 11.)
  24. Walter Benjamin, “Teorias do fascismo alemão”, op. cit., p. 70.
  25. Idem, “Sobre o conceito de história”, em: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 228.
  26. Idem, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Porto Alegre: L&PM, 2004, p. 33.
  27. Idem, Passagens, Belo Horizonte/São Paulo: UFMG/IOESP, 2006, p. 415.
  28. Idem, “A caminho do planetário”, em: Obras escolhidas, v. 2, São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 68.
  29. Idem, “Panorama imperial”, em: Obras escolhidas, v. 2, op. cit., p. 26.
  30. Idem, “A caminho do planetário”, op. cit., pp. 68-9.
  31. Idem, “Rückblick auf Stefan George” (Olhar retrospectivo sobre Stefan George), em: Gesammelte Schrif ten, vol. III, Frankfurt: Suhrkamp, 1991, p. 394. Sobre o alcance epistemológico e crítico do pensamento de Benjamin sobre o ]ugendstil, cf Ernani Chaves, “Der zweite Versuch der Kunst, sich mit der Technik auseinanderzusetzen: Walter Benjamin e o Jugendstil” (A segunda tentativa da arte de conciliar-se com a técnica), Arte.filosofia, Ouro Preto: abril de 2009, n.6.
  32. Idem, “História da literatura e ciência da literatura”, em: Gesammelte Schriften, vol. III, op. cit., p. 289.
  33. Cf. Walter Benjamin, ‘Wider ein Meisterwerk”, (Contra uma obra-prima), em: Gesammelte Schriften,

    vol. III, op. cit. “O escritor como guia na literatura clássica alemã”, ensaio sobre Max Kommerell de 1928.

  34. Ibidem, p. 259.
  35. Cf. Ibidem.
  36. Ibidem, p. 221.
  37. L. G. Moses, Fallen Soldiers: Reshaping Memory of Wor!d Wars (Soldados caídos: remodelando a história das guerras mundiais), Oxford: Oxford University Press, 1990, p. 41.
  38. Walter Benjamin, “Olhar retrospectivo sobre Stefan George”, op. cit., pp. 392-3.
  39. Ibidem, p. 399.
  40. Charles Baudelaire, “Projéteis”, em: Poesia e prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 517.
  41. Walter Benjamin, “Olhar retrospectivo sobre Stefan George”, op. cit., p. 393.
  42. Idem, “Das Glück des antiken Menschen” (A felicidade do homem antigo), em: Gesammelte Schriften,

    vol.II, Frankfurt: Suhrkamp, 1999, p. 128.

  43. Idem, “Trauerspiel und Tragodie” (Trauerspiel e tragédia), em: Gesammelte Schriften, vol. II, op. cit., 1999,

    p. 135.

  44. François Châtelet, Les Idéologies (As ideologias), Paris: Hachette, 1981, pp. 134-5.
  45. Walter Benjamin, “Les Affinités électives de Goethe” (As afinidades eletivas de Goethe), CEuvres, Paris: Gallimard, 2000, p. 296.
  46. Idem, ”Arquivo N”, em: Passagens, op. cit. Cf. também Clemens-Carl Haerle, “Walter Benjamin: sur le

    concept d’histoire” (Walter Benjamin: sobre o conceito de história), Cahier du College International de Philosophie, Paris: nov. 1987, n. 4.

  47. Jean Giraudoux, La Guerre de Troie n’aura pas lieu, Paris: Librairie Générale Française, 1991, p. 55.
  48. Homero, Odisseia, livro XIV, versos 247-85 e 276-84, São Paulo: Editora 34, 2011.
  49. Jacqueline de Romilly; La Grece antique contre la violence (A Grécia antiga contra a violência), Paris: Éditions de Fallois, 2000, pp. 48-9.
  50. Simone Weil, “A Ilíada, ou o poema da força”, op. cit., p. 399.
  51. Na linhagem grega e de Montaigne, vencer um vencido não é coragem, mas covardia. O homem corajoso e virtuoso, ao contrário, perdoa o inimigo que ele venceu, enquanto o covarde o massacra quando ele está sem defesa. (Cf. Michel de Montaigne, “A covardia é a mãe da crueldade”, em: Ensaios, São Paulo: Companhia das Letras, 2010.) O sentimento de compaixão é o sentimento de humanidade. Victor Hugo, em seu poema “Depois da Batalha”, escreve sobre um episódio da conquista da Espanha por Napoleão:”Meu pai, aquele herói de sorriso sempre aberto/ Seguido de um hussardo que estimava decerto/ Mais que aos outros por ser bravo na luta/ Percorria a cavalo após uma disputa/ O campo do combate envolto pelo noturno breu/ Nisto um ruído a escuridão rompeu/ Era um belo espanhol do exército vencido/ Que, à beira do caminho, exânirne, fremido/ Gemia agonizante, exausto e sem socorro/ E que a custo dizia: ‘Água, água! Que eu morro!’/ Meu pai, contristado, estende a seu hussardo então/ O recipiente de rum pendurado no arção e diz-lhe/ ‘Tome lá, dê-a ao pobre maltratado’/ De repente, no instante em que o hussardo, curvado, o ia socorrer/ Ele, um tipo de mouro que ainda agarrava a arma, arremessa um disparo à fronte de meu pai exclamando: ‘caramba!’/ Tão perto lhe silva o tiro que descamba o chapéu/ E o cavalo acua e se retrai: ‘Vá, dê-lhe de beber, embora’, diz meu pai.” (Trad. de Silva Ramos, modificada).
  52. Nesse sentido, o filme A grande ilusão, de Jean Renoir (França, 1937), é exemplar do fim de uma era, a do combate baseado em valores opostos à crueldade guerreira. Em meio à Primeira Guerra Mundial, todos os personagens, sobretudo os alemães, parecem fazer a guerra contrafeitos. O capitão prussiano von Raufl:enstein abate o avião do capitão francês de Boeldieu, que é convidado à mesa do vencedor antes de se tornar prisioneiro. Valores sociais e militares comuns aproximam os militares que se admi­ ram e se respeitam reciprocamente. Durante uma tentativa de fuga de seus soldados, o capitão francês é rerido por Raufl:enstein e morrerá amparado por ele. A morte do primeiro é, ao mesmo tempo, o desconsolo do segundo. A honra cavalheiresca, a do combate singular, tributária da tradição grega e dos romances de cavalaria, baseava-se no consentimento do adversário, maneira leal e aristocrática de guerrear que não resistiu à introdução da artilharia, no século XV, substituindo as armas brancas. Assim tiveram início os primeiros episódios de carnificina nos campos de batalha, provando que os meios técnicos acabam por escapar aos que os utilizam, dissipando qualquer ideal ético. Na cena final, em que soldados alemães na fronteira entre a França ocupada e a Suíça localizam os fugitivos franceses e se posicionam para os disparos, o comandante alemão suspende a ação dizendo a seus comandados, em um ato de clemência: “Não atirem; eles já estão na Suíça”. Em Em busca do tempo perdido, Proust reconstitui instantâneos da vida social antes e durante a eclosão da Primeira Guerra Mundial, apresentando o espírito da guerra no âmbito da honra cavalheiresca. Desrealizando a violência da guerra bem como nomeando-a, a “Cavalgada das valquírias” evocada por Saint-Loup na Recherche condensa o discurso político e ideológico da belle époque com a sublimação das feridas do combate. Ao perceber uma cicatriz na testa de Saint-Loup, que estava de passagem por Paris em 1916, o narrador anota que ela lhe parece “mais augusta e misteriosa[…] que a marca deixada na terra pelos pés de um gigante”. O próprio Saint­Loup descreve os aviões em sua elevação ao céu, aludindo à Bíblia e ao ”Apocalipse” de João: ”Admito que seja deslumbrante vê-los subir, formar uma ‘constelação’, obedecendo a leis tão precisas como as que regem os astros, pois o que aprecias como se fosse um espetáculo é na verdade a reunião das esquadrilhas, sua obediência às ordens, sua partida para a caça etc. Mas não preferes o momento em que, definitivamente incorporados às estrelas, delas se destacam para lançar-se à perseguição, ou para voltar ao soar o toque de recolher, fazendo tal movimento no céu que até os astros parecem mudar de lugar?” (Marcel Proust, O tempo redescoberto, São Paulo: Globo, 1988, p. 59.) Assimilando os aviões às estrelas, a imagem do Apocalipse não é apenas sinônimo de fim do mundo no combate aéreo entre dragões e anjos mas também da queda das estrelas que, no “Evangelho”, sobrevém depois da abertura do sétimo selo. Mas, se a guerra é uma luta também simbólica que produz estereótipos nacionais para desvalorizar a cultura do inimigo e se legitimar segundo uma identidade nacional, Saint-Loup é, na visão do narrador, um patriota singular, patriota não nacionalista, que se rejubila com Wagner no céu de Paris e morre heroicamente no campo de batalha. Nesse horizonte bélico, a desvalorização de todos os valores é o prenúncio do desaparecimento, simultaneamente, da delicadeza e das formas tradicionais de convivência – a sprezzatura que permitia as relações sociais no refinamento dos costumes e da vida em comum não se encontrará mais: “Eu jamais fizera diferença entre os operários, os burgueses e os grão-senhores, e teria tomado indiferentemente a uns e outros como amigos. Com certa preferência pelos operários, e depois pelos grão-senhores não por gosto, mas por saber que se pode exigir destes mais polidez para com os operários do que da parte do burgueses, ou porque os grão-senhores não desdenham os operários como o fazem os burgueses, ou então porque são de bom grado atenciosos para com qualquer pessoa, como as mulheres bonitas se sentem felizes em dar um sorriso que sabem acolhido com tanta alegria” (Marcel Proust, Sodoma e Gomorra, São Paulo: Globo, 2008, p. 490). Em O caminho de Guermantes (São Paulo: Globo, 1990), o narrador se refere à maneira com que a princesa de Parma recebe homenagens, a elegância e a graça com as quais levanta aqueles que se ajoelham reverentes diante dela, nessa dialética aristocrática e cortês da deferência e da amabilidade, em vias de desaparecer na nova sociedade, a da democratização da morte.
  53. Walter Benjamin, “Experiência e pobreza”, em: Obras escolhidas, vol. 1, op. cit., p.115.
  54. Idem, Gesammelte Schriften, vol. VII, Frankfurt: Suhrkamp, 1991, pp. 473 e 475. Sobre a decisão inglesa de destruir 131 cidades alemãs em 1943, durante a Segunda Guerra, e a descrição dos incêndios, visíveis a 70 km de distância, e dos corpos de pessoas e animais transformados em chamas vivas e destroçados em todas as direções, cf. W G. Sebald, Luftkrieg und Literatur, Munique/Viena: Carl Hanser-Verlag, 2001. Edição brasileira: Guerra aérea e literatura, São Paulo, Companhia das Letras, 2011.
  55. Considere-se o número prodigioso de publicações, testemunhos, reflexões e narrativas consagradas à guerra já no próprio tempo em que ela acontecia, a ponto de se falar, na época, de “tempestades de papel” como o avesso das “tempestades de aço” de Jünger. Livros, jornais, cartazes, panfletos, cartas, mas também quadros, medalhas, cartões-postais, fotografias, música e cinema atestam uma intensa atividade de representação do período. Calcula-se em 50 mil o número de poemas sobre guerra que eram endereçados todas as manhãs aos jornais alemães. Ao final do primeiro ano do confüto, duzentos volumes de Kriegslyrik haviam sido publicados na Alemanha. Cf. Nicolas Detering, Michael Fischer e Aibe-Marlene Gerdes (orgs.), Populdre Kriegslyrik im Ersten Weltkrieg (Letras de músicas populares da Primeira Guerra Mundial), Munster: Waxmann Verlag GmbH, 2013.
  56. Ideias semelhantes se encontram em Carl Schmitt, em particular, em sua obra O conceito do político (Petrópolis: Vozes, 1992), e no livro de Oswald Spengler intitulado O homem e a técnica (Lisboa: Editora Guimarães, 1993).
  57. Walter Benjamin, “Les Armes de demain. Batailles au chloracétophénol, au chlorure de diphenylarsine et au sulfure d’éthyle dichloré” (As armas do futuro. Batalhas de cloroacetotenona, de cloreto de diíenilarsina e de sulteto de etila diclorado), Romantisme et critique de la civilisation (Romantismo e crítica da civilização), Paris: Payot, 2010.
  58. Georges Didi-Hubermann, “Échantillonner le chaos: Aby Warburg et l’Atlas photographique de la Grande Guerre” (Dar amostra do caos: Aby Warburg e o Atlas fotográfico da Grande Guerra), Études Philosophiques (Estudos filosóficos), maio 2011, n. 27.
  59. Sigmund Freud, Considerações atuais sobre a guerra e a morte, Covilhã: Universidade da Beira Interior,

    2009, p. 26.

  60. Ibidem, p. 27.
  61. Cf. Peter Brooks, The Quality of Mercy: Rejlections on Shakespeare (A qualidade da misericórdia: reflexões sobre Shakespeare), London: Nick Hern Books, 2013; e Michael Edwards, Shakespeare et l’ceuvre de la tragédie (Shakespeare e a obra da tragédia), Paris: Belin, 2005. Trata-se de uma questão das mais contemporâneas para os chefes de Estado, generais e terroristas. É que o tempo está fora do eixo, os gonzos não funcionam mais, as portas não se abrem mais com eles. À semelhança do mundo novo a que pertence Shakespeare, das conquistas europeias no Renascimento, do fim do mundo finito de Ptolomeu e do novo cosmos infinito, a modernidade está também fora do eixo na violência das guerras, nos terrorismos, nos esportes, na criminalidade, nas mídias e entretenimentos, bem como nas técnicas e na ciência (eugenia, energia nuclear etc.). Refletindo sobre a Primeira Guerra Mundial, o filme Agonia e glória (EUA, 1980), de Samuel Fuller, põe em cena um sargento americano atormentado pela culpa de ter matado um soldado alemão sem saber que a guerra havia terminado. Em diálogo com o sacerdote que quer serenar seu espírito, este lhe diz que ele não deveria sentir-se culpado porque desconhecia o fim da guerra. Ao que o sargento exclama: “Eu não sabia que a guerra havia terminado, mas ele, ele sabia”. Para sua consciência moral, o seu crime é sem remissão. Não foi responsável, mas nem por isso se sente menos culpado de um crime que cometeu sem saber que o estava cometendo.
  62. Homero, Ilíada, vol. 11, canto XIX, versos 84-94, op. cit., p. 27.
  63. Platão, A república, São Paulo: Edipro, 2000, pp. 415-6. Em Ifigênia em Áulis, Eurípides retrata o absurdo da violência do sacrifício iminente da jovem, preconizado pelo adivinho Calcas e pela disposição dos exércitos instigados à violência e à guerra por Ulisses em suas arengas aos soldados, indicando sua rivalidade em relação a Agamêmnon e a vileza que a guerra propicia. Simone Weil observa que o que mais atrai nas guerras é a licenciosidade e a impunidade.
  64. Ésquilo, Os persas, versos 350-432, Coimbra: Almedina, 2005, p. 189.
  65. Lembre-se aqui do diálogo entre Aquiles e Briseida. Depois de Aquiles ter assassinado os troianos e degolado aqueles que combatiam para salvá-la do guerreiro, que a toma como trunfo de guerra, Briseida contempla com horror os cadáveres, dizendo ser ele uma máquina de matar e que sente piedade por esses jovens que morreram por suas mãos. Ao que Aquiles responde: “Esses homens pelos quais tu tens compaixão morreram para te proteger. Eles merecem mais do que a tua piedade”. (Agradeço a Lúcio Féres da Silva Telles pela lembrança dessa passagem, que condensa várias remissões a episódios da Guerra de Troia.) Sobre isso e sobre a fortuna literária da personagem, cf. Sergio Poli, “La Carriére littéraire d’une femme de fiction: le cas Briséis” (A carreira literária de uma mulher da ficção: o caso Briseida), Femmes de parole, paroles des femmes. Hommage à Giorgio Piagg, disponível em: <www.publifa­ rum.farum.it/ no3.php>, acesso em: 16 abr. 2015.
  66. Cf.Jacqueline de Romilly, op. cit.
  67. Simone Weil, “A Ilíada ou o poema da força”, op. cit., pp. 403-SS.
  68. Na tradição grega, em particular no pensamento de Platão e Aristóteles, a guerra civil é o mal por excelência da vida política, porque ela implica a dissolução da pólis. Já a tradição moderna, a de Maquiavel e Marx, considerará a guerra civil o conflito armado que eclode em uma cidade como fonte de toda decisão e origem de toda constituição: ”Ambos iriam inverter o paradoxo platônico (para eles a stasis não é a negação, mas, ao contrário, produção da politeia) […], taxando de irrealismo esta busca por um ‘estado’ político fundado sobre a mesotés, a mediedade, pretendendo demonstrar a vanidade […] da politeia platônica.Jamais a ‘constituição’ platônica deduzira abstratamente do Princípio a utopia de uma pólis-toda-uma, mas ela se pergunta em que condições é pensável uma pólis cuja multiplicidade não seja sempre também uma guerra civil potencial. A resposta pode suscitar ‘uma saraivada de gargalhadas’ (República, v, 473C78), ela pode parecer como uma espécie de petteía, de uma partida de gamão, que se joga não mais com peões, mas com discursos (v1, 487C2-3), mas é precisamente sua distância, sua distância tragicômica com respeito a todo ‘estado’ real, que permite apreender a aporia deste estado” (cf. Massimo Cacciari, Déclinaisons de l’Europe (Declinações da Europa), Paris: l’Éclat, 1996, pp. 44-5). Lembre-se também de Weber, que compreende a violência como uma necessidade incontornável da política: “aquele que quer fazer política se compromete com potências diabólicas que espreitam sempre toda violência” (cf. Max Weber, ”A política como vocação”, em: Ciência e política: duas vocações, São Paulo: Cultrix, 2004). Daí decorrem as duas éticas, a da responsabilidade e a da convicção; a primeira se atém às “consequências previsíveis dos atos”, a segunda só suscita a responsabilidade de “velar pela chama da pura doutrina para que ela não se apague”. A escolha da não violência, diversamente, não se empenha em manter viva a doutrina da não violência, mas em buscar a justiça por meios coerentes com ela.
  69. Simone Weil, “Ne Recommençons pas la Guerre de Troie” (Não recomecemos a Guerra de Troia), em: Écrits politiques et historiques, CEuvres completes II (Escritos políticos e históricos, obras completas II), Paris: Gallimard, 1989, p. 50. Na tragédia de Eurípides, Helena, a rainha nunca estivera em Troia, pois se refugiara no Egito, e, assim, os gregos que combateram e se mataram na guerra o fizeram por nada.
  70. Eurípides, As suplicantes, versos 481-SS e 950-SS, Coimbra: Festea, 2006. Cf. “Exhortation pour la paix” (Exortação à paz), composto por Pierre Ronsard em 1558.
  71. Não possuindo um significado unívoco, o orgulho desdobra-se em arrogância, prepotência, pretensão, vaidade, soberba, preconceito, racismo, fanatismo, presunção, arrivismo, sectarismo, narcisismo, megalomania, onipotência, vitória, ambição, sucesso, pedantismo, honra, alto sentimento de si, vontade de se fazer valer, luta pelo reconhecimento imposto à força, desprezo, dominação, desejo de poder, sentimento de superioridade, prestígio, notoriedade, certezas impostas aos outros. O arrogante pensa ter sempre razão. Quer impor suas ideias, seu modo de pensar e de agir como algo a ser adotado por todos. A etimologia revela a arrogância como desejo de elevar-se acima dos outros: o alemão Überheblich significa ser arrogante com alguém, elevar-se acima; o inglês haughtiness é desprezo. Do latim rogum, fogueira, a arrogância é o fogo do inferno, e ele é o pecado do orgulho que se origina em Lúcifer por não aceitar sua condição de criatura e querer fazer-se igual a Deus. Satã, invejoso da felicidade dos pais primordiais no paraíso terrestre, engana-os para desviá-los de Deus, acenando-lhes a igualdade com o Criador. Cf Roland Barthes, Le Neutre (O neutro), Paris: Seuil, 2002; e Santo Tomás, Suma teológica, São Paulo: Loyola, 2002-2003.
  72. Jean Giraudoux, La Guerre de Troie n ‘aura pas lieu, Paris: Pléiade, 1982, p. 482.
  73. René Girard, Le Bouc émissaire (O bode expiatório), Paris: Grasset, 1982, p. 23.
  74. Walter Benjamin, “Trauserspiel und Tragodie”, op. cit., p. 137.
  75. Idem, “Das Glück des antiken Menschen”, op. cit., p. 129.
  76. Charles Baudelaire, “Horace Vernet, salão de 1846”, em: Poesia e prosa, Rio deJaneiro: Nova Aguilar, p. 711.
  77. Ibidem.
  78. Ibidem.
  79. Walter Benjamin, “Les Armes de demain. Batailles au chloracétophénol, au chlorure de diphenylarsine et au sulfure d’éthyle dichloré”, op. cit., pp. 107-11.
  80. Idem, ”.Arquivo N”, op. cit., pp. 519-20. No fragmento sobre Turgot, Benjamin cita-o indicando que na Grécia cada cidadão era um cidadão armado: “O progresso mesmo das artes mais pacíficas entre os povos antigos da Grécia e suas repúblicas era entremeado de guerras contínuas. Estavam ali como os judeus, construindo os muros de Jerusalém com uma mão e combatendo com a outra” (Ibidem, pp. 519- 20 ). Desde a Antiguidade, passando pela Idade Média e o Renascimento até o Iluminismo, houve um processo de abrandamento dos costumes, com a substituição da violência privada e da vingança pela ideia de justiça, para que a sociedade progressivamente se desarmasse e o Estado se tornasse o detentor do exercício legítimo da violência, o que desaparece na modernidade, em que a violência abrange toda a sociedade.
  81. Massimo Cacciari, op. cit., p. 48.
  82. Ibidem, p. 50.
  83. Albert Camus apud David Carroll, “Justice maintenant” (Justiça atualmente), em: Synergies inde, Sylvains-les-Moulins: Gerflint, 2010, n. 5, pp. 61-72. Cf. também David Carroll, Albert Camus, the Algerian: Colonialism, Terrorism, Justice (Albert Camus, o argelino: colonialismo, terrorismo, justiça), New York: Columbia Universiry Press, 2007.
  84. David Carroll, ‘Justice maintenant”, op. cit., pp. 61-72.
  85. Ibidem. Cf. também entrevista concedida pelo escritor israelense Amós Oz em 13 de março de 2014 a Jana Beris, correspondente do jornal colombiano El Tiempo: “Se você está se perguntando se sou pró­

    -Palestina, pois lhe direi que não. Sou pró-paz. Creio que o conflito entre os israelenses e os palestinos é uma tragédia. Os palestinos não têm outra terra que não seja esta e nós não temos outra terra que não seja esta. Eles dizem que a terra é sua terra e têm razão. Nós dizemos que é nossa terra e temos razão. O choque entre duas justiças é trágico. Pode terminar em um meio-termo ou em uma catás­ trofe. Um meio-termo não é justo. Sempre tem algo de injusto. Um meio-termo nunca é o ideal nem faz ninguém feliz. Mas sempre acreditei e continuo acreditando que os palestinos devem ter tudo que nós temos: um Estado independente, um governo independente, com capital em Jerusalém, como nós. Acredito na solução de dois Estados que vivem um ao lado do outro, talvez não com um grande amor entre eles, mas sim com uma boa vizinhança”. E quando a jornalista pergunta a ele se não é tarde demais para conseguir a paz, Amós responde: “Não. Não há nada irreversível, salvo a morte. Não é tarde para uma solução política, já que de fato não há nenhuma alternativa. Os palestinos não podem ir embora porque não têm para onde ir. Os judeus israelenses tampouco podem ir-se para ou­ tro lugar porque não têm para onde ir. Não podem converter-se em uma grande família feliz porque não são nem uma família nem são felizes. São duas famílias intelizes. Há que dividir a casa em duas partes menores. É a solução. Não há outra. Quanto tempo levará? Não sei, não sou profeta. Mas estou convencido de que não há outra solução”. Disponível em: <www.eltiempo.com/ entretenimiento / musica-y-libros / entrevista-con-el-escritor-israeli-amos-oz /13646295>. Acesso em: out. 2014.

  86. Cf. Platão, op. cit., 470c.
  87. Cf. Massimo Cacciari, op. cit.
  88. Thomas Hobbes, Leviatã, v. 2, São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 133.
  89. Renato Janine Ribeiro, Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo, São Paulo: Brasiliense, 1984, pp. 89 e 91. Isso não significa que em uma sociedade não haja o conflito. Ao contrário, o conflito tem uma função positiva e construtiva; pode ser o meio para a criação de relações de justiça e de respeito recíproco, de confiança e talvez de benevolência.
  90. A dominação da natureza para fins de controle produtivo e de poder sobre ela através da ciência é violência que se expande por todo o universo orgânico e inorgânico. Assim, os escritos benjaminianos sobre a violência devem ser circunscritos aos períodos em que foram elaborados. Em primeiro lugar, os ensaios do final da Primeira Guerra Mundial: “Para uma crítica da violência” e “Fragmento teológico-político”, de 1921; no início da Segunda, em 1940, as teses “Sobre o conceito de história”. Estas não apresentam um sentido unívoco porque é a própria possibilidade da história que está em questão. Em carta a Gretel Adorno, de abril de 1940, Benjamin escreve: “Nada está mais longe de meu pensamento […] que a ideia de publicar estas notas”; segundo ele, elas correriam o risco “de abrir comportas a mal-entendidos entusiastas” (Walter Benjamin, Gesammelte Schriften, vol. I-III, Frankfurt: Suhrkamp, 1972, p. I.227). De resto, o próprio filósofo as compara a uma central de energia (Kraftwerk), uma central nuclear em que a fusão não está inteiramente sob controle, que transborda a função que poderia desempenhar se tivesse sido ajustada disciplinadamente no quadro preciso de um dos projetos aos quais tais notas são de um modo ou de outro associadas. A esse respeito, Gérard Raulet escreve: “Em abril de 1940 nada era claro, nem quanto à mensagem, nem quanto ao ‘estatuto’ das ‘teses’, e é evidentemente dessa nebulosidade que elas retiram sua aura mítica. Já que é assim, eu adotaria com facilidade a postura da ‘barbárie positiva’ que parece fornecer a chave do ‘último Benjamin’: tratemos, pois, as ‘teses’ por sua qualidade estética e não mais tentando a todo preço fixar seu conteúdo ideológico. Tratemo-las como monumentos mais que como documentos. Pois pode muito bem ser que sua ‘mensagem’ não esteja em seu conteúdo ideológico” (Gérard Raulet, ”Archéologie d’un mythe: Les theses ‘Sur le concept d’histoire'” (Arqueologia de um mito: as teses “sobre o conceito de história”), L’Herne, Cahier Benjamin, Paris: out. 2013, pp. 256-7). Em carta a Scholem, Benjamin escreve seu projeto de escrever um livro sobre a não violência. O Messias chega discretamente, por uma porta estreita, e basta deslocar um pouquinho a xícara, a cortina de renda etc. Ver ainda seus escritos sobre Kafka e os animais, e sobre Karl Kraus. Para Walter Benjamin, existe o acordo não violento em que a cultura do coração concede à humanidade meios para o entendimento: cortesia, amor à paz e confiança são seus pressupostos subjetivos (cf. Walter Benjamin, “Para uma crítica da violência”, em: Escritos sobre mito e linguagem, São Paulo: Livraria Duas Cidades/Editora 34, 2011.). Ver ainda Michel Li:iwy, Walter Benjamin: aviso de incêndio, São Paulo: Boitempo, 2005.
  91. Walter Benjamin, “L’Ornement est une modele pour la faculté mimétique…” (O ornamento é um modelo para a faculdade mimética), L’Herne, Cahier Benjamin, Paris: out. 2013, p. 126. Pode-se compreender o sentido do ornamento em suas relações com a aura e a graça, tanto entre osgregos quanto em Baudelaire.Jean-Pierre Vernant observa: “Para os gregos, a cháris não emana apenas da mulher ou de todo ser humano cuja beleza jovem faz ‘brilhar’ o corpo (especialmente os olhos) com um esplendor que provoca o amor; emana também das bijuterias cinzeladas, das joias trabalhadas e de certos tecidos preciosos; o cintilamento do metal, o reflexo das pedras nas águas diversas, a policromia da tecelagem, a variedade dos desenhos que figuram, sob forma mais ou menos estilizada, uma decoração vegetal e animal que evoca muito diretamente as forças da vida, tudo concorre para fazer do trabalho de ourivesaria e do produto da tecelagem uma espécie de concentração de luz viva de onde irradia a cháris” (Jean-Pierre Vernant, As origens do pensamento grego, São Paulo: Ditel, 1973, pp. 272-3). E também Baudelaire: “Sou levado a olhar os enfeites como um dos sinais da nobreza primitiva da alma humana. As raças que nossa civilização, confusa e pervertida, trata com desenvoltura de selvagens, com um orgulho e uma fatuidade inteiramente risíveis, compreendem, tanto quanto a criança, a alta espiritualidade da toalete. O selvagem e a criança testemunham, por sua ingênua aspiração do que é brilhante, das plumagens coloridas, dos tecidos salpicados de cores, da majestade superlativa das formas artificiais, sua aversão pelo real e provam, por assim dizer, à sua revelia, a imaterialidade da alma” (Charles Baudelaire, “Le Peintre de la vie moderne” (O pintor da vida moderna), em: CEuvres completes (Obras completas), vol. 2, Paris: Robert Laftont, 1980, pp. 715-6).
  92. Cf. Walter Benjamin, “Fragment”, Ms 931, Gesammelte Schriften, vol. V, 1983. Em Atenas, a arte oferecia aos cidadãos mais modestos, nos grandes monumentos que adornavam a cidade, o luxo público, o que lhes faltava em termos de beleza: “a vida cotidiana, que contava tanto para os gregos, devia ter formas, abertas a todos, de beleza e graça”. Era Afrodite, a “deusa dos sorrisos”, quem presidia a assembleia do povo. Cf. Christian Meier, Política e graça, Brasília: UnB, 1997, p. 13.
  93. Cf. Adélia Bezerra de Meneses, “Garota de Mitilene”, Estudos avançados, São Paulo: usP, 2012, vol. 26, nº 76, p. 303: “[Há] uma ênfase na luminosidade da deusa ou daqueles que são por ela tocados. Ouro e brilho são elementos ligados à sedução erótica; e Afrodite é a grande sedutora a que homens e deuses sucumbem. Diga-se, no entanto, que essa ligação do amor com o ouro é uma tradição poética da Antiguidade não apenas grega, mas também semítica – ou melhor, oriental (plausível sobretudo levando-se em conta a proximidade de Lesbos com a costa oriental, especialmente a Lídia). Não por acaso o Amado do ‘Cântico dos Cânticos’ bíblico, numa de suas descrições, é de ouro: ‘Sua cabeça é ouro puro, uma copa de palmeiras seus cabelos[…]; Seus braços são torneados em ouro/incrustado com pedras de Társis. […] Suas pernas, colunas de mármore/firmadas em base de ouro puro”‘.
  94. Theodor Adorno, Mínima Moralia, Gesammelte Schriften, vol. rv, Frankfurt: Suhrkamp-Verlag, 1996, p. 218. A qualidade de uma vida é função da capacidade de “amar”. Em suas Mínima Moralia, Adorno evoca a relação não instrumental, uma “finalidade sem fim”, o” além dos fins” que é o amor: “Só se é amado onde podemos nos mostrar fracos sem provocar a força” (Minima Moralia, Gesammelte Schriften, vol. rv, p 218). Estabelecendo uma relação entre as duas guerras mundiais, Adorno considera a perda da delicadeza e o fim da aura da cultura: “pois a formação cultural[…] é justamente aquilo para o qual não há usos adequados; ela deve ser obtida mediante esforços e interesse espontâneo, o que não se garante mediante cursos, mesmo os de Studium generale. Ou melhor, não se logra mediante esforços, mas segundo a receptividade, a capacidade de permitir que o espiritual chegue até nós, recebendo-o ativamente na própria consciência, em vez de submeter-se a ele como mero aprendizado, como um clichê. Se não temesse incorrer em sentimentalismos, diria que para a formação cultural é requerido o amor; [falta de cultura] é, por certo, defeito na capacidade de amar” (Theodor Adorno, “Filosofia e mestres”, em: Intervenciones: nueve modelos de crítica (Intervenções: nove modelos de crítica), Caracas: Monte Ávila, 1969, p. 37).
  95. Cf. Walter Benjamin, “Sokrate”, em: Gesammelte Schriften, vol. II, I, 1989, p. 232.
  96. Lembre-se aqui do feminino ligado à não violência em Lisístrata ou a greve do sexo, a recusa das mulheres gregas a procriarem para interromper a lógica viril da guerra: “Não é de maneira alguma útil fazer a guerra, afirma Lisístrata, aquela que dissolve os exércitos – uma vez que se poderia ser feliz. A paz como tempo último, a idade de ouro em que o lobo viverá com o cordeiro e que só os deuses poderiam nos dar, não seria mais uma ideologia de adivinhos embromadores? Não cabe a nós mesmos fazermos a paz e eliminar os horrores da guerra?” (cf. Massimo Cacciari, op. cit., p. 79). Cf. também Pierre Clastres e suas análises das tribos ditas primitivas, em que as mulheres também se recusaram a ter filhos: ”A mulher é um ser-para-a-vida e o homem guerreiro um ser-para-a-morte” (Pierre Clastres, “Infortúnio do guerreiro selvagem”, em: Arqueologia da violência e outros ensaios, São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 236). Na história moderna, lembre-se de Simone Weil, que vai à Espanha em apoio aos republicanos na guerra civil, mas recusa-se a pegar em armas, e Joana d’Are, que troca a espada pela bandeira da França. E também do imaginário do feminino como não violência na sociedade andrógina de Herbert Marcuse: ”A mulher é o futuro do homem” (cf. “Marxisme et Féminisme” (Marxismo e feminismo), em: Actuels, Paris: Alilée, 1976). Desenvolvida, a afirmação decorre do poeta Louis Aragon: “O futuro do homem é a mulher/Ela é a cor de sua alma/Ela é seu rumor e seu ruído” (Cf. Louis Aragon, Le Fou d’Elsa (O tolo de Elsa), Paris: Gallimard, 2002, p. 196). E Benjamin, ao comparar Safo e Sócrates em sua Metafísica da juventude, opõe a delicadeza da poesia e da dança à violência do logos masculino. Cf. também Olgaria Matos, “O amor em três tempos”, em: Discretas esperanças: reflexões filosóficas sobre o mundo contemporâneo, São Paulo: Nova Alexandria, 2006.
  97. Paulo Martins, “Ode a Anactória”, em: Antologia dos poetas gregos e latinos, São Paulo: Edusp, 2010, p. 9. Na tradução de jaa Torrano lê-se: “Eros faz nosso pensamento revirar-se leve/ e faz-me lembrar agora Anactória longe/ Quisera eu ver o encanto de seu andar/ e a luz brilhante de seu rosto/ não carros de Lídios ou guerreiros com armas” (Ibidem, p. 9).

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