2015

A guerra mecânica

por Marcelo Coelho

Resumo

A popularização da Primeira Grande Guerra acabou sendo ofuscada pela Segunda, apesar de sua terrível história que resultou em 10 milhões de mortos e um número enorme de combatentes mutilados e traumatizados. Ainda assim, suas complexas causas político-econômicas foram amplamente estudadas, mas em sendo a nossa proposta explorar o tema da violência, buscaremos antes compreender as “causas subjetivas, internas, psicológicas” do conflito, por isso, chamamos a atenção inicialmente para um sentimento comum pouco antes de sua deflagração: do ponto de vista estratégico, pode-se dizer que em julho de 1914 havia um sentimento de paranoia, principalmente em meio às lideranças militares. Os altos comandos das nações envolvidas viviam sob tensão constante da chegada iminente e inevitável do inimigo, de onde consideravam a possibilidade de anteciparem-se ao ataque, investindo primeiro, a fim de ganhar certa vantagem. “Os alemães, como se sabe, tinham desenvolvido por muitos anos um plano para o eventual conflito europeu, cientes de que teriam de enfrentar a França e a Rússia, aliados desde 1892.” No calor da batalha, havia sentimentos óbvios de uma paixão guerreira e de medo constante, principalmente entre os soldados (civis, em sua maioria e sem treinamento militar). Esses sentimentos contrastavam com aqueles dos estadistas, que manifestavam antes uma paixão fria, condizente com os cálculos que faziam na medida do desenrolar dos acontecimentos. Situações consideradas sob relativo controle, como teria sido o caso da utilização da Bélgica como ponte para os alemães chegarem à França – à revelia dos belgas –, logo sairiam de controle e o animal interior dos soldados – que inicialmente eram ocupantes mais ou menos integrados às populações –, se voltaria contra cidades inteiras com a aprovação dos superiores (caso de Louvain, que foi incendiada). Freud escreveu em 1915 sobre a guerra; não compreendia a violência de “indivíduos que, enquanto participantes da mais alta civilização humana, não julgaríamos capazes de tal comportamento”. Ele também expressou um sentimento de desilusão por causa da “baixa moralidade” dos Estados. Mas a visão de Freud mostra-se datada e mesmo equivocada, pois a violência sempre acompanhou a história do Ocidente. Os dois fatores de fato inéditos foram o grande poderio das armas, o que resultou numa “guerra mecânica”, e o número de combatentes envolvidos, amplificando as atrocidades e o número de mortes. Passado conflito, Paul Valéry enfatizou o papel dos Estados na Guerra, ao escrever em 1919 o seguinte: “[…] estamos muito menos diante da desrazão do indivíduo e muito mais diante da razão de Estado.” Nota-se que o poeta e filósofo alinhava-se mais com Alain e menos com Freud sobre a questão. Mars ou la guerre jugée, de Alain, é um relato terrível da mecânica da Segunda Guerra. Esse texto revela também autoridade porque o escritor foi um dos incontáveis soldados cujas vidas habitualmente não tinham valor para seus comandantes. Estes os reprimiam tão intensamente que “[…] a única via de escape se torna então a de ir ao encalço do inimigo; ele é quem pagará [pelas brutalidades sofridas].” Diríamos que o soldado não é um bárbaro que se revela na guerra, mas sim um homem – submetido a um sistema de barbárie civilizada.


Poucos eventos, ao longo do século XX, parecem adequar-se tão bem ao tema geral Mutações – que orienta esta e outras coleções de ensaios organizadas por Adauto Novaes – quanto a Primeira Guerra Mundial, cujo centenário se completou em 2014.

O conflito, de que resultaram pelo menos dez milhões de mortos, sem contar um imenso cortejo de mutilados, de cegos e enlouquecidos, marcou sem dúvida uma mutação nas formas conhecidas de violência entre os seres humanos. A guerra deixou de depender das investidas da infantaria e da cavalaria em campo aberto, para se tornar uma vasta empreitada técnico-industrial. Mobilizou e vitimou não apenas os corpos regulares do exército mas toda a população dos países nela envolvidos. Abalou violentamente a autoconfiança da sociedade europeia

– que se acreditava no rumo de um progresso civilizacional constante. Rompendo um quadro que durava dois mil anos, expulsou o centro do poder mundial para fora da Europa – na direção dos Estados Unidos e da Rússia. Representou, ademais, um fator decisivo na dissolução de hierarquias e modelos de poder originários dos séculos anteriores. Pois, quando a guerra começou, somente França e Portugal adotavam a forma republicana de governo. Quatro anos mais tarde, o império russo, o império austro-húngaro, o império otomano e o reich alemão estavam depositados no museu das velharias históricas. Também o papel das mulheres na sociedade, que vinha se modificando com o próprio desenvolvimento industrial, conheceu depois da Primeira Guerra uma mutação profunda. Podemos citar várias estatísticas sobre a incorporação da mão de obra feminina na força de trabalho; basta pensar, entretanto, no que era a moda feminina de 1910 e no que se transformou em 1920: talvez a mudança de vestuário mais radical que já se tenha registrado na história em tão pouco tempo.

Não obstante todas essas modificações, a Primeira Guerra acaba sendo relativamente esquecida, ou pelo menos não desperta grande interesse hoje em dia; tendemos a encará-la como pouco mais do que um prólogo para todos os horrores subsequentes. Naturalmente, o nazismo elevaria os padrões de violência pessoal e mundial para um grau de intensidade ainda mais inimaginável. Desse relativo esquecimento da Primeira Guerra surge uma consequência perigosa, aliás, que pretendo mencionar no final deste texto.

Tentemos analisá-la, entretanto, do ângulo proposto no título do ciclo de conferências que deu origem a este livro – a saber, o das fontes passionais da violência. Sugere-se, como escreve Adauto Novaes em seu texto de apresentação, que, ademais das chamadas causas objetivas da violência – como interesses econômicos e políticos, por exemplo –, haveria a investigar também as fontes subjetivas, internas, psicológicas da violência. Nós, humanos, somos capazes de violência: paixões destrutivas existem em nós, nascem de nós. Impossível não reconhecer isso; alguma agressividade é necessária até para se comer um pudim de leite, e sem um mínimo de violência o habitante de uma ilha paradisíaca não conseguirá sequer quebrar um coco. Posso dizer, de mim mesmo, que já me vi tomado de fúria; não é menos verdadeiro que eu seja, quase todo o tempo, pacífico ao extremo, desfrutando da sorte de viver em constante estado de bom humor – o qual, tanto quanto o ódio ou a raiva, pode bem se tratar de uma paixão cultivável.

Deixando o plano da consideração pessoal, tentemos abordar a Primeira Guerra do prisma da violência interior. A menção a alguns episódios de combate talvez sirva para qualificar melhor esse tipo de experiência. Ao contrário do que parece, o ódio e o furor não eram constantes contra o inimigo, nem poderiam sê-lo no decorrer dos longos anos de conflito. Muitas paixões, e talvez nenhuma paixão, também cabiam no cotidiano da guerra.

Um primeiro episódio pode ser reconstituído a partir de um filme italiano, dirigido por Mario Monicelli em 1959, intitulado A grande guerra[1]. Dois malandros, vividos por Alberto Sordi e Vittorio Gassman, são alistados no exército, embora tentem escapar da guerra o tempo todo. De um ponto de partida bem pouco trágico, o filme apresenta situações que ilustram bem a aparição da violência no contexto da guerra.

Assim, vemos os dois amigos encarregados de fazer um reconhecimento do terreno, que é bastante montanhoso. Do alto da estrada, eles veem um soldado inimigo sozinho. É de manhã. O austríaco sai do seu abrigo e caminha até um pequeno fogareiro, onde há um bule de café. Ele assopra o fogo, tenta segurar o bule, que está muito quente, e procura um pano para não queimar a mão. Não sabe, obviamente, que está sendo observado.

Gassman e Sordi estão com os fuzis em punho: podem atirar. Eles se entreolham. “Atire você.” “Não, atire você.” Natural que estivessem hesitando. Aquilo não era um combate; seria um assassinato. Toda a humanidade do austríaco, fazendo seu café, estava diante dos olhos deles. Toda a sua inofensividade, toda a sua inocência, toda a sua insciência, por assim dizer, expunha-se aos olhos dos dois. Não era um inimigo, era uma pessoa. Os dois amigos estão paralisados, sem saber o que fazer. Atrás deles, entretanto, surge um grupo de outros cinco italianos, provavelmente liderados por um oficial. Esse grupo fuzila o austríaco na hora. Ele cai morto, e seu rosto atinge em cheio o fogareiro em brasa – como que mostrando, no filme, que não se pode olhar o rosto de ninguém. O oficial ainda repreende os nossos dois protagonistas, que não queriam matar o austríaco. “Se ele nos visse, iria correr até o acampamento, avisar seus companheiros, e todos nós estaríamos mortos agora.”

O importante a notar nesse episódio, justamente, é que não parece estar em jogo nenhuma paixão guerreira. Se algo se verifica aqui, é um sentimento interno de humanidade, uma moral que se recusa ao assassinato puro e simples. E também um cálculo estratégico, uma necessidade de prudência, de autopreservação: é arriscado, em qualquer circunstância, deixar o inimigo vivo.

Em ponto microscópico, esse caso reproduz o raciocínio de muitas lideranças militares que foram decisivas para o desencadeamento da Pri-meira Guerra. As discussões sobre a responsabilidade pelo conflito são infinitas, como se sabe, não cabendo desenvolver o ponto neste texto. Havia claramente, da parte de muitos envolvidos, o desejo de fazer uma guerra – espécie de antídoto contra a decadência e a falta de energia da civilização europeia. Havia igualmente o medo de que a guerra representasse o fim dessa mesma civilização. O ministro da Guerra alemão, von Moltke, aparentemente conciliava as duas opiniões em seu pensamento[2]; se a guerra era inevitável, e esse raciocínio era comum, o melhor era começá-la já, antes que um possível inimigo, como a Rússia, estivesse mais bem preparado que a Alemanha. Mate antes de ser morto, como diria o oficial italiano do filme de Monicelli. Não era outra a opinião do ministro da Guerra russo, Sukhomlinov, já em 1912: “Será mais vantajoso para nós começar a guerra o mais cedo possível”[3].

Podemos notar paixão guerreira na atitude de Sukhomlinov ou de Moltke? A subjetividade dos personagens está colocada, sem dúvida. Mas parece, ao mesmo tempo, uma atitude fria, estratégica: menos furor selvagem e mais razão de Estado. Mais um realismo do que um acesso impulsivo. “O que fazer? as coisas são assim mesmo”, dizem esses homens de Estado. Podem mesmo dizer, com variados graus de sinceridade ou de cinismo, “não queremos a guerra, mas o outro quer”: o clima, em julho de 1914, era certamente de paranoia. Mas em que medida podemos chamar a paranoia de paixão? A paranoia é cultivada, por certo; mas é um hábito intelectual, uma crença injustificada (ou pelo menos incapaz de refutação) na malignidade do inimigo. Nenhuma dessas atitudes, no contexto anterior à Primeira Guerra, parece necessariamente impulsiva, impensada ou passional. Sabemos que a paranoia envolve não apenas o medo mas também o medo de ter medo – e que este pode precipitar os homens à ação violenta. Será o ato de finalmente assinar uma declaração de guerra ou um chamado de mobilização geral – coisa que as lideranças europeias fizeram com diferentes graus de hesitação – algo qualificável como irrupção passional de violência? Como em tantos eventos do século XX, os efeitos de um acontecimento parecem ser desproporcionais às suas causas[4].

Contra esse pano de fundo realista, que estabelece o pressuposto da inevitabilidade da guerra, há portanto a destacar um fator de ordem inversa: o impulso de decidir, o instinto ativista que parece tornar, para cada personagem do conflito, praticamente insuportável a situação da expectativa, da espera. “Agora ou nunca!”: as decisões de cada representante das nações envolvidas no conflito, tomadas a partir de um caos de informações desencontradas e em meio ao rumor constante da catástrofe, são extremamente bem descritas por Sean McMeekin em seu livro July 1914[5]. Há sem dúvida um componente de violência, ou pelo menos de impaciência destrutiva e de alívio, quando o imperador da Áustria ou o gabinete britânico finalmente se decidem pela mobilização. Dos acessos explosivos (e quase instantâneos arrependimentos) do kaiser Guilherme ii ao sistemático antipacifismo de um Churchill, lorde-geral do almirantado inglês, as variações subjetivas, os graus de desequilíbrio ou sanidade mental dos diversos personagens daquela conjuntura parecem engrenar-se uns aos outros num resultado cada vez mais previsível e fatal. Por mais extremada que seja a fraseologia de alguns personagens, ainda aqui podemos falar de violência apenas de forma metafórica. Violência retórica, violência simbólica, ódio, por vezes, ao estrangeiro, sem dúvida existiam; nada que se confunda, propriamente, com o desencadeamento de uma bestialidade interior, algo que pudéssemos atribuir às fontes passionais de uma violência, digamos, não apenas física mas pelo menos armada, assassina, destruidora de casas, cidades e vidas humanas.

Para buscar esse tipo de violência, que é característica de toda situação de guerra, iremos então recorrer a um segundo episódio, ou série de episódios, que ocorreu logo no início dos conflitos de 1914.

Os alemães, como se sabe, tinham desenvolvido por muitos anos um plano para o eventual conflito europeu, cientes de que teriam deenfrentar a França e a Rússia, aliados desde 1892. Não poderiam derrotá-los facilmente se os combatessem ao mesmo tempo. O chamado Plano Schlieffen estipulou, então, que tropas alemãs deveriam inicialmente atacar a França a toda velocidade, chegando a Paris depois de 15 dias – para só então, resolvida a questão no front ocidental, concentrarem-se na guerra com a Rússia. Dada essa necessidade estratégica vital, não seria sensato perder tempo tentando destruir as extensas fronteiras fortificadas que a França erigira para se proteger. O caminho mais curto para Paris seria passar pela Bélgica, país neutro, com poucas defesas. Assim, tomada a decisão de entrar em guerra (face à mobilização da Rússia na fronteira oriental), a Alemanha tinha de desencadear seu plano, pouco importando as razões subjetivas que pudesse invocar para invadir um país neutro. Com uma estupidez notável, a diplomacia alemã lançou um ultimato contra a Bélgica, garantindo que só usaria o país como um corredor, pagando por eventuais danos causados; chegou-se a prometer, em contatos que precederam em vários anos o início da guerra, que parte do território francês seria entregue aos belgas em caso de vitória. A Bélgica preferiu resistir a se tornar uma espécie de protetorado alemão; evidentemente, as tropas do kaiser invadiram a Bélgica do mesmo modo, ocupando rapidamente o que lhes interessava do território – como a cidade de Louvain, com seus tesouros de arte medieval e sua biblioteca universitária (esta, fundada em 1426, era uma das mais valiosas da Europa,

com 230 mil volumes).

O medo das tropas invasoras eram os franco-atiradores; na guerra com a França em 1870, diversos soldados alemães foram vitimados por cidadãos comuns, que se armavam e resistiam ao ocupante. Já em 5 de agosto de 1914, o primeiro dia da invasão da Bélgica, o exército alemão promoveu algumas execuções de civis, inclusive padres, por considerá-

-los capazes de liderar a resistência da população. A aldeia de Battice foi queimada. No mesmo dia, o general von Moltke reconhecia que seu avanço na Bélgica havia sido “certamente brutal, mas estamos lutando por nossas vidas e quem entra no nosso caminho tem de enfrentar as consequências”[6]. A resistência belga naturalmente aumentou a irritação dos alemães, que empreenderam o primeiro bombardeio aéreo de uma cidade europeia, com uma carga de bombas jogadas de zepelim sobre Liège, no dia 6 de agosto, matando nove civis.

A destruição de Louvain aconteceria cerca de vinte dias depois. Quando os alemães entraram na cidade, rumores e realidades sobre franco-atiradores eram de conhecimento de toda a tropa. Os primeiros momentos, entretanto, foram tranquilíssimos, como narra Barbara Tuchman. Os soldados do kaiser eram bem-educados, compravam cartões-postais nas lojinhas (a cidade era muito turística). No dia seguinte, um soldado alemão foi atingido na perna, não se sabe direito por quem. O prefeito e um auxiliar foram presos como reféns. No dia 25 de agosto, tropas alemãs que estavam combatendo mais à frente recuaram em desordem até a fronteira da cidade: correram boatos de que os ingleses e os franceses já estavam no contra-ataque. Alguns soldados alemães dentro da cidade foram atingidos, novamente não se sabe se por franco-atiradores belgas ou por fogo amigo no meio da multidão. O general von Luttwitz, no dia 26 de agosto, informou então um diplomata americano e um espanhol, em Bruxelas, que “algo terrível aconteceu em Louvain”. O filho do prefeito, disse ele, “matou um general nosso”. “Teremos então, evidentemente, de destruir a cidade”, acrescentou. Louvain inteira foi incendiada por soldados bêbados e ensandecidos. A biblioteca não foi poupada. O ministério das relações exteriores da Alemanha, depois que a notícia correu o mundo, afirmou que “a total responsabilidade pelo acontecido recai sobre o governo belga”[7].

Irrupção de barbárie, como se vê. O animal interior que existe em cada ser humano foi despertado. Pelo pânico, pelo álcool, pelo simples desejo de destruição, a maldade interna de cada pessoa encontrou-se à solta naqueles dias de terror; autorizada, o que é pior, pelos escalões superiores. Essa, naturalmente, é a reação que temos ao ler um relato desses.

Seria precipitado, contudo, identificar o fenômeno da guerra, em seu conjunto, com o tipo de emoções desencadeadas num episódio como o de Louvain. Uma guerra não se resume a tais eventos, e em especial a Primeira Guerra não se resumiu a isso. Casos semelhantes e diferentes, ocorridos entre 1914 e 1918, podem ser rememorados; mas será mais interessante, a partir daqui, interromper a narração dos fatos e passar rapidamente à teorização que possam sugerir. Em especial, a ideia do animal interior, da besta reprimida que todos guardamos em nosso íntimo.

Um texto de Freud, escrito no começo de 1915, exemplifica bem essa teoria. Intitulado “Reflexões para os tempos de guerra e morte”[8], aborda, antes de tudo, o desencanto, a desilusão provocada pelo início da guerra europeia, “mais sanguinária e mais destrutiva do que qualquer guerra de outras eras, devido à perfeição enormemente aumentada das armas de ataque e defesa”, mas também “tão cruel, tão encarniçada e tão implacável quanto qualquer outra que a tenha precedido”[9].

Todavia, não se justifica, diz Freud, que fiquemos desapontados.

Rigorosamente falando, [o desapontamento] é a destruição de uma ilusão. Ilusões são bem-vindas para nós porque nos poupam da dor e nos permitem desfrutar de prazer em seu lugar. Temos assim de aceitar sem reclamar quando às vezes colidem numa porção de realidade contra a qual se fazem em pedaços[10].

Ele prossegue:

Duas coisas nesta guerra despertaram nosso sentimento de desilusão: a baixa moralidade revelada externamente por Estados que, em suas relações internas [com a própria população], se intitulam guardiães dos padrões morais, e a brutalidade demonstrada por indivíduos que, enquanto participantes da mais alta civilização humana, não julgaríamos capazes de tal comportamento[11].

Freud passa imediatamente a analisar o segundo aspecto do problema, mais psicológico, deixando de lado a questão da moralidade dos Estados em suas relações uns com os outros. Analisando o problema a partir do indivíduo, ele se pergunta de que modo as pessoas atingem um plano comparativamente alto de moralidade.

Uma primeira resposta, diz Freud, seria a de que já nasceram assim, são boas e nobres por nascimento. Ele descarta a possibilidade como sequer merecedora de análise. Temos impulsos, diz ele, que não são necessariamente ruins ou bons. Alguns, como o egoísmo e a crueldade, são rejeitados pelo sistema social e têm de passar por uma transformação. A sociedade ensina o indivíduo que, para ser amado, ele deve renunciar a uma série de vantagens que o seu comportamento egoísta poderia trazer.

A civilização, diz ele, se baseia na renúncia à gratificação dos impulsos e exige isso de todo indivíduo que entra nela. O meio oferece não apenas amor a quem renuncia a seus impulsos mas também prêmios e punições. Assim, uma pessoa pode decidir-se por uma conduta civilizada sem que tenha mudado suas inclinações egoístas. Vale destacar um trecho importante do estudo de Freud:

A sociedade civilizada, que exige uma boa conduta e não se preocupa com a base instintual dessa conduta, conquistou assim a obediência de muitas pessoas que, para tanto, deixam de seguir suas próprias naturezas. Estimulada por esse êxito, a sociedade se permitiu o engano de tornar maximamente rigoroso o padrão moral e assim forçou seus membros a um alheamento ainda maior de sua disposição instintual. Consequentemente, eles estão sujeitos a uma incessante supressão do instinto, e a tensão resultante disso se trai nos mais notáveis fenômenos de reação e compensação[12].

À medida que vamos lendo essa passagem, nossa tendência é concordar com o pensamento de Freud – com o qual, de resto, estamos acostumados. Tornou-se lugar-comum no nosso tempo (tão rousseauniano, em alguns aspectos, e tão antirrousseauniano em outros) a ideia que praticamente inverte o famoso adágio a ele atribuído. Aceita-se praticamente sem discussão a tese, com efeito, de que o homem nasce mau, e à sociedade cabe reprimi-lo.

Cumpre, todavia, interromper o raciocínio de Freud – de forma um tanto precipitada, talvez – para voltar à sua frase inicial, que merece ser relida. “A sociedade civilizada, que exige uma boa conduta do indivíduo […]”, dizia Freud em 1915. Assinalemos, ainda que se trate de uma obviedade, a situação real em que se inseria essa inocente asserção do criador da psicanálise. Seria possível dizer, em 1915, que a sociedade civilizada exigia uma boa conduta do indivíduo? Se, com exceção da Inglaterra, o serviço militar obrigatório levava, depois de algum precário treinamento, milhões de soldados a caminho de matar seus semelhantes, não seria mais correto dizer exatamente o oposto, que a sociedade estava exigindo do indivíduo uma conduta bárbara, selvagem?

A pergunta não deriva de um mero jogo mental. Podemos concordar plenamente com a ideia de que o ser humano tem impulsos egoístas e cruéis. Pessoalmente, poucos terão problemas em admitir que seu impulso egoísta pode levar, em situações extremas, ao roubo, à traição, à violência, certamente à mentira. Mas dificilmente será impulso egoísta o que leva um cidadão a entrar numa guerra e arriscar a vida para defender um trecho de trincheira. Ao contrário. Seu egoísmo o levaria antes a ficar em casa, a fugir, a emigrar, do que a vestir um uniforme. Em 1915, a sociedade europeia não estava reprimindo nenhum instinto selvagem de seus cidadãos. Estava, isso sim, proibindo-os de ter instintos pacíficos – e egoístas. Quem se recusasse a se alistar poderia ser fuzilado. O lado do dever, da moralidade, não se opunha à guerra. Estavam-se obrigando as pessoas à barbárie – e, sem dúvida, estimulando seu comportamento guerreiro. Em outra inversão das supostas teorias de Rousseau, portanto, o raciocínio de Freud nos leva a uma conclusão paradoxal: é como se a teoria freudiana dissesse que a sociedade é boa, e o homem a estraga; e que a selvageria irrompe na guerra porque o indivíduo não consegue corresponder às exigências da sociedade civilizada. Cabe perguntar: com que direito se poderia falar de sociedade civilizada, quando um sistema longamente planejado de massacre – e de educação para a guerra – vinha sendo construído nos principais países europeus? Nesse sentido, o termo “civilização” indica, justamente, quanto era insuficiente confiar na eclosão de impulsos selvagens reprimidos para levar adiante um esforço bélico de tais proporções.

Voltemos ao caso de Louvain. Certamente, soldados bêbados puseram fogo na cidade, entrando numa orgia de destruição. O que os teria levado a isso? Segundo Freud, deu-se a libertação de instintos selvagens mal e mal reprimidos por uma civilização exigente demais em sua alta expectativa ética. É possível pensar de modo bastante diferente. Uma sociedade civilizada de menos, uma sociedade nas mãos de comandantes militares com históricos de vida certamente embrutecedores, impôs sobre pessoas normais, nem muito pacíficas nem muito guerreiras, uma pressão insuportável – em termos de risco de vida, de obediência, de privação, de medo. Ordenou, em seguida, que uma cidade ocupada fosse destruída – e esta é a frase do general alemão em Bruxelas: “evidentemente, a cidade terá de ser destruída”. E os soldados, não apenas obedecendo a ordens mas também se vingando delas, se entregaram a essa tarefa.

A presença de paixões destrutivas, no caso de Louvain, é incontestável. Na maioria das vezes, a barbárie e a destrutividade da Primeira Guerra se caracterizaram, entretanto, precisamente pela dispensa de um espírito de saque ou de ódio. Tratava-se de seguir ordens, acompanhando um movimento estratégico de tropas decidido totalmente a frio, pela mais pura (e desumana) lógica militar. O animal interior, a besta que temos dentro de nós, pode fazer muitas coisas terríveis, sabemos disso. Mas a fabricação de dezenas de milhões de armamentos, a organização de milhões de soldados, o transporte de artilharia pesada, a elaboração de planos de guerra, a distribuição de mapas, de botas, de mochilas e baionetas, a publicação de jornais, de panfletos e notícias são um fenômeno muito diferente do tumulto e do caos de um batalhão de soldados bêbados numa cidade sitiada. Em Louvain, as feras estavam soltas – e talvez seja a esse tipo de acontecimentos que Freud estivesse se referindo quando falou em desilusão[13]. Eventos como aquele podem ser atribuídos, em parte, à quebra ou ao enlouquecimento da disciplina militar. Foram também consequência de um pensamento em que tudo passava a ser válido – quebra de tratados, invasão de países neutros, bombardeamento da população civil. Se havia paixão nisso, tratava-se de paixão muito fria e pouco subjetiva – algo como um argumento em torno das necessidades da sobrevivência nacional. Em suma, estamos muito menos diante da desrazão do indivíduo e muito mais diante da razão de Estado.

Ganha especial pertinência, assim, o que dizia o poeta Paul Valéry no ensaio “A crise do espírito”, escrito em 1919. Todos os horrores da Primeira Guerra, observa, “não teriam sido possíveis sem tantas virtudes: o trabalho mais consciencioso, a instrução mais sólida, a disciplina e a aplicação mais sérias foram adaptadas aos piores fins, e as grandes qualidades do povo alemão foram capazes de criar mais males do que todos os vícios que a ociosidade engendra”[14]. Saber e dever, sugere Valéry, teriam então se tornado suspeitos.

Eis a mutação crucial imposta à prática da guerra e da violência entre os homens a partir de 1914 – e que passa despercebida quando se tenta aplicar o modelo freudiano, do selvagem interior, à realidade que se desenrolava então. Diferentemente dos conflitos do século anterior, o de 1914 foi já plenamente industrializado. Os países não dependiam do ataque de cavalaria, da investida de milhares de soldados de infantaria correndo uns em direção aos outros. Essa imagem aventurosa terá seduzido muitos jovens que se alistaram pensando na rápida resolução do confronto.

Um dos paradoxos da Primeira Guerra, entretanto, é que o conflito pressupunha, na estratégia de seus condutores, avanços rápidos e agressivos – mas se deu num momento em que as armas de defesa estavam mais desenvolvidas do que as armas de ataque. A metralhadora fixa, apoiada num tripé, varria as tropas de ataque, fileira após fileira, à medida que tentavam se aproximar das forças inimigas. Em princípio, todo ataque era uma corrida em direção à morte, com mínimas chances de sucesso. Percebeu-se rapidamente que a única possibilidade de evitar o mero suicídio coletivo estava na cuidadosa preparação prévia do ataque por meio de constantes fogos de artilharia pesada. Canhões cada vez maiores, colocados muito atrás da linha de conflito, disparavam seus tiros na direção da trincheira inimiga, forçando a retirada dos soldados ou exterminando-os, para que só depois disso a força atacante começasse a avançar. Cabe lembrar que, como os canhões eram cada vez mais pesados, tornava-se dificílimo o seu deslocamento, retardando naturalmente o ritmo do agressor. Os próprios tiros da artilharia, que iam sendo trocados dos dois lados, terminavam escavando o chão em crateras gigantescas – que se enchiam de água, lama e sangue. Ali se afogavam os soldados que não tinham sido metralhados ou atingidos pelos canhões. Nessa lama os próprios canhões não tinham como se deslocar; tecnicamente, por assim dizer, o resultado era o impasse. Acrescente-se outra invenção defensiva de extrema importância: os fios de arame farpado – imensos novelos que tornavam intransponíveis as extensões da terra de ninguém. A cada tentativa de invadir a trincheira inimiga, era necessário mandar soldados com alicates especiais para abrir o arame farpado durante a noite – expondo-os, naturalmente, às balas dos vigias. Essa breve descrição das dificuldades típicas do front permite perceber de que modo a Primeira Guerra envolveu uma atitude, de parte dos combatentes, que nem de longe se assemelha à do selvagem desembestado[15]. Ao contrário, a rotina durante a guerra era, por longos períodos, muito semelhante à do trabalhador braçal. Impunha-se cavar trincheiras, construir postos de observação, cimentar abrigos, refazer pontes destruídas, voltar um ou dois quilômetros para trás, ir um quilômetro para a frente, deslocar-se lateralmente, instalar equipamentos telefônicos… Durante parte do tempo, seguia-se a organização de um trabalho industrial. Guerreava-se com máquinas, não com lanças e tacapes. Na outra parte do tempo, havia também períodos de imobilidade assustadores, em que se impunha esperar o fim dos ataques da artilharia inimiga, com os estilhaços de ferro, de madeira, de ossos humanos voando acima do precário abrigo em que cada um cuidava de se proteger.

Trata-se de realidade totalmente diversa daquela em que um grupode soldados bêbados barbariza uma aldeia ocupada. É também compreensível que, depois de semanas ou meses nesse tipo de vida, uma pessoa dê livre curso à sede de destruição e saque indisciplinado. Ainda assim, parece evidente que a guerra não nasce da liberação de instintos egoístas reprimidos pela vida civilizada, como queria Freud, e sim exatamente do contrário: a guerra industrial, a guerra do século XX, surge da mais fria disciplina, da mais calculada organização, que se volta contra os instintos ou os sentimentos comuns, nem bons nem maus, de uma população recrutada compulsoriamente.

Há paixões envolvidas nessa guerra? Certamente sim, paixões nacionalistas acumuladas ao longo de anos, ódios raciais estimulados pela propaganda e, principalmente, a paixão fria dos governantes que consideram, antes de tudo, que não pode ser de outro modo: fundamentam-se na certeza de que a guerra é inevitável, tem de acontecer e pode mesmo ser a salvação frente a alguma coisa pior.

Para analisar a origem dessas paixões, será necessário então abandonar o modelo freudiano e seguir outro autor, o filósofo francês Émile-Auguste Chartier, conhecido pelo pseudônimo de Alain. Pacifista, ele foi voluntário na Primeira Guerra, já com 46 anos, em obediência a um juramento que tinha feito muitos anos antes. Tendo sido dispensado do serviço militar na juventude, em circunstâncias que julgara injustas para com seus colegas, Alain prometeu a si mesmo alistar-se caso algum confronto eclodisse. A experiência de soldado em 1914 serviu-lhe para que escrevesse Mars ou la guerre jugée (Marte ou a guerra julgada), livro composto, como todos os de sua autoria, de capítulos muito curtos e extremamente densos. Alain aborda desde a atração estética dos desfiles militares até o efeito da privação de sono e de comida no espírito do soldado.

Acima de tudo, o que Alain vê no empreendimento guerreiro é o fenômeno que, depois de Foucault, se costuma identificar como de presença dos micropoderes. Os poderes do cabo, do sargento, do suboficial e assim por diante se organizam numa estrutura cujo sentido – e cujos prazeres – são de ordem ditatorial. O comandante tem poder de vida e morte sobre o comandado. Não poderia ser diferente: a punição para quem não quer enfrentar o inimigo só pode ser o pelotão de fuzilamento – uma morte mais certa do que a que lhe está reservada no campo de batalha. O desprezo do chefe pelo soldado também faz parte dessa estrutura: só quando se considera o comandado uma peça no jogo é que é possível não se importar em perder 15 mil vidas numa investida só. O funcionamento do exército se baseia, assim, no empenho de transformar o ser humano em coisa, em máquina, em robô, em animal amestrado. O próprio general, o próprio chefe de Estado, aliás, se veem como participantes involuntários de um acontecimento que não têm como dominar: o choque das civilizações, a competição das raças, a disputa das nações. Na guerra mecânica, tudo se maquiniza. Não há espaço, aqui, para o homem – nem mesmo, se quisermos, para o animal interior que existe dentro dele.

Não é o caso de resumir, em poucas linhas, toda a argumentação de Alain, feita de iluminações breves e sucessivas; será todavia sugestivo destacar um dos capítulos iniciais de seu livro, que serve como exemplo da originalidade e, mais do que isso, da humanidade do autor. O capítulo se intitula “La forge” (A forja).

É bastante natural refletir do seguinte modo: “sejamos indulgentes [com os soldados da tropa]; eles sofreram demais, e sofrerão ainda”. Mas esse raciocínio se revela sempre ruim, porque a menor nesga de liberdade é um convite à reflexão. O ponto de vista do homem prático é mais justo: “sejamos muito severos, pois eles sofreram bastante; eles não nos perdoarão nunca, se tiverem tempo de pensar”. Então caem as marteladas sobre o ponto sensível; a menor liberdade é acuada. Os exercícios, as punições, tudo, até as concessões e os favores do chefe aos comandados têm por fim abolir a própria ideia de um direito e o menor movimento de esperança. Assim, quando queremos utilizar a força de um gás, nós o comprimimos. Com toda aquela força de jovens assim comprimida e contrariada continuamente, sem descanso, pela ação de um sistema perfeito, a única via de escape se torna então a de ir ao encalço do inimigo; ele é quem pagará [pelas brutalidades sofridas].

Mas nem tudo é sombrio nessa epopeia. O homem não é tão simples. Quando ele se choca muitas vezes contra as grades, aprende a tocar nelas o menos possível; e como é a sua liberdade que está sendo contrariada, ele encontra em si mesmo bons motivos para desistir de ser livre. [Assim, depois do ataque], quem escapou dos perigos, quem se vingou no inimigo como pôde, quem teve motivos para se espantar com a própria coragem terminará – com as cerimônias, medalhas e comemorações bem-feitas – adorando o sistema e o chefe, por um rápido momento, e em seguida pela lembrança. Assim, os sobreviventes acabam elogiando a guerra mais do que gostariam[16].

Note-se, nesse trecho, a variedade de raciocínios e acontecimentos internos que Alain examina. Há uma economia que envolve raiva e orgulho, vontade de liberdade e acomodação aos fatos, senso de justiça, desejo de reparação, medo, gratidão pelo opressor, esquecimento do perigo, alívio por ter sobrevivido… É uma breve amostra do que são capazes as ciências do homem (mesmo sem o recurso, certamente bem-vindo, da estatística, da enquete e da experimentação) quando confiadas a um espírito agudo e sem preconceitos sobre a própria espécie. Estamos em meio a um jogo, em todo caso, muito mais complexo do que o que se prevê na oposição bárbaro/civilizado, violento/pacífico. Diríamos que o soldado não é um bárbaro que se revela na guerra, mas sim um homem – submetido a um sistema de barbárie civilizada.

Um segundo trecho do livro completa esse rápido esquema explicativo. A guerra, diz Alain, é paixão nos diversos sentidos dessa bela palavra. Trata-se de algo que se padece, que se sofre em passividade, e também um estado anímico que nos transtorna interiormente. Do mesmo modo que a cólera, a melancolia, a amargura eram sentimentos vistos pela medicina antiga como resultados do desequilíbrio de humores internos, de refluxos de bile ou paralisias na circulação sanguínea, a guerra deve ser vista em seu transcurso próprio, que é também mecânico. Quem a viu de perto não se deixa contaminar pela imagem épica, diz Alain.

O real da coisa é muito próximo de um ofício. Rapidamente o desabrochar das virtudes imaginárias [solidariedade, patriotismo, por exemplo] se estigmatiza pela ação de toda essa máquina rude, na qual o homem faz papel de coisa. Tudo se passa como numa fábrica, onde o objetivo é produzir, sem nunca perguntar por quê, e onde todos perdem a noção

do objeto que está sendo produzido, pela divisão do trabalho. Nos primeiros atos de guerra, os fins transcendentes perecem imediatamente, como se fossem estranhos a essa mecânica, ajustada para funcionar sem eles, e mesmo sem o recurso à coragem. Os meios materiais regulam tudo de tal maneira, que a chegada de munição desperta a energia do combatente, e a falta de comida impõe uma indiferença filosófica. Tudo é exterior, e a alma se fortalece ou debilita conforme o fluxo e o refluxo dos víveres[17].

Desse modo, o soldado se infantiliza, estando completamente dependente de circunstâncias exteriores. Não adianta muito, acrescenta Alain, mandar livros de patriotismo nos momentos de desânimo. O moral do soldado se restabelece também de modo mecânico, material. “E assim se prolonga, pela estrutura própria do exército enfileirado, esse massacre mecânico, em que a força moral não é empregada para decidir nada, mas apenas, e sempre, para suportar.”[18]

O que se descreve aqui é uma guerra, é um massacre, mas também uma rotina, uma disciplina, uma ordem, que reproduz as próprias regras do trabalho industrial. Já seria suficientemente terrível se a Segunda Guerra não tivesse trazido novos horrores a esse relato; o nazismo e os campos de extermínio ainda não estavam visíveis naqueles horizontes cortados de lança-chamas e disparos de gás letal.

Talvez estivessem, entretanto; e em mais de um sentido. Quando pensamos numa companhia de soldados estacionada diante do front, submetida a todo tipo de privações, à disciplina mais arbitrária, sem rota de fuga possível, carregando pedras e abrindo buracos, por vezes com as próprias mãos, no terreno endurecido pela neve, esperando apenas o momento de se dirigir para a morte inevitável, em levas e levas, como numa implacável fábrica de cadáveres – já não estamos nos aproximando do que seriam os campos nazistas? Soldados alemães, sobrevivendo à guerra, mas tendo-a perdido, talvez tenham inconscientemente reconstituído, num teatro macabro, a mesma experiência – voltando-a contra inocentes, contra velhos, mulheres e crianças. A experiência de ser derrotado no front não seria vingada apenas no desencadeamento de uma nova guerra contra os inimigos; teria de ser refeita, com crueldade inimaginavelmente maior, e sem nenhuma sombra de lógica, num meticuloso ritual de sadismo e de expiação.

Notas

  1. La grande guerra, Mario Monicelli, Itália: Dino de Laurentis Cinematografica, 1959, 137 min, mono, pb, 35 mm.
  2. A próxima guerra, dizia ele em 1906, “não será resolvida numa batalha singular, mas numa longa e cansativa disputa […] que vai exaurir totalmente o nosso povo, mesmo se sairmos vitoriosos”. Já em maio de 1914, diante da aceleração dos entendimentos navais entre a Inglaterra e a Rússia, Moltke afirmava que “qualquer adiamento [da guerra] terá o efeito de diminuir nossas chances de sucesso”. Cf. Barbara Tuchman, The Guns of August, Toronto/New York: Bantam Books, 1980, pp. 38-ss. Edição brasileira: Canhões de agosto, Rio de Janeiro: Objetiva, 1994. [A tradução desse trecho e de outros citados ao longo do texto, extraídos de diferentes obras, foi feita por mim a partir do original em língua estrangeira.]
  3. Christopher Clark, The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914, New York: Harper & Collins, 2013,

    p. 220. Edição brasileira: Os sonâmbulos: como eclodiu a Primeira Guerra Mundial, São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

  4. Agradeço a sugestão de Renato Lessa quanto a este ponto.
  5. Sean McMeekin, July 1914: Countdown to War ( Julho de 1914: contagem regressiva para a guerra), New York: Basic Books, 2013.
  6. Barbara Tuchman, op. cit., pp. 199-ss.
  7. Ibidem, pp. 347 ss.
  8. Sigmund Freud, em: A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos, Rio de Janeiro: Imago, 1996.
  9. Ibidem, pp. 288-ss.
  10. Ibidem, p. 290.
  11. Ibidem.
  12. Ibidem, p. 293.
  13. É indisfarçável, aliás, a satisfação de Freud ao se dizer desiludido. No segundo texto de suas “Reflexões”, o autor descreve o que seria a concepção do homem primitivo a respeito da morte: incapaz de concebê-la para si próprio e facilmente disposto a assassinar qualquer estranho. Essa atitude primitiva persiste em nosso inconsciente, diz Freud; seria chegado o momento em que nós, civilizados, não mais devemos negá-la. A guerra “compele-nos mais uma vez a sermos heróis que não podem crer em sua própria morte; estigmatiza os estranhos, cuja morte deve ser provocada ou desejada […]. A guerra, entretanto, não pode ser abolida; enquanto as condições de existência entre as nações continuarem tão diferentes e sua repulsa mútua tão violenta, sempre haverá guerras. É então que surge a pergunta: não somos nós que devemos ceder, que devemos nos adaptar à guerra? Não devemos confessar que em nossa atitude civilizada para com a morte estamos mais uma vez vivendo psicologicamente acima de nossos meios e não devemos, antes, voltar atrás e reconhecer a verdade? […] Isso dificilmente parece um progresso no sentido de uma realização mais elevada, mas antes, sob certos aspectos, um passo atrás – uma regressão; mas tem a vantagem de levar mais em conta a verdade e de novamente tornar a vida mais tolerável para nós” (op. cit., pp. 309-10). Ou seja, dada a falsidade da civilização, melhor admitirmos nosso primitivismo. A aceitação dos fatos como naturais dispensaria, em última análise, maiores esforços de explicar o surgimento da barbárie em 1914; não por acaso, o início das hostilidades austríacas contra a Sérvia recebera de Freud o seguinte comentário: “Pela primeira vez em trinta anos, tenho a sensação de ser um austríaco, gostando de dar a este não muito auspicioso império uma outra chance. Toda minha libido está dedicada à Áustria-Hungria” (Christopher Clark, op. cit., p. 470).
  14. Paul Valéry, “La crise de l’esprit”, em: Variété i: Essais quasi politiques (Variedade i: ensaios quase políti-

    cos), Paris: Gallimard, 1957, p. 989.

  15. Mesmo de parte de um notório entusiasta da guerra, Ernst Jünger, os momentos de verdadeira volúpia assassina se concentram apenas num embate decisivo, dentre os muitos confrontos de que participou (cf. Ernst Jünger, “A grande batalha”, Tempestades de aço, São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp. 269-ss.).
  16. Alain, “Mars ou la guerre jugée”, em: Les passions et la sagesse (As paixões e a sabedoria), Paris: Gallimard, 1960, p. 558.
  17. Ibidem, p. 568.
  18. Ibidem, p. 569.

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