2015

A razão e suas vicissitudes

por Luiz Alberto Oliveira

Resumo

Personagens da Ilíada, Heitor e Aquiles sabiam que morreriam na Guerra de Troia. Como tal destino poderia ser revertido, por que não o fizeram? Porque, para os guerreiros aristocratas de então, morrer em batalha era um destino menos temível do que morrer “akleos”, isto é, sem vir a ser cantado pelos poetas – anônimo.

Balistas, catapultas, aríetes; desde a invenção da pólvora, espingardas, metralhadoras, granadas, obuses… Ao longo da história, é evidente que as armas ganharam em alcance e abrangência. Automatizadas, elas esfriaram. Os soldados também. Não havia mais sentido na batalha corpo e corpo, homem a homem. O resultado de matar mais e de onde se quer seria o anonimato industrial. Porque unilateral, o extermínio.

O drone é o último elo dessa cadeia. Nunca assassino e vítima estiveram tão distantes. A dez, cem ou mil quilômetros de distância – de que isso importa se um campo de refugiados não é mais do que um ponto numa tela?

Mas isso não é especificidade da guerra. Vem de longe. A escala da desumanização é ampla. “Geoestratégica”, dizem os especialistas. E disso o Big Data é exemplar.

Mas o que é o Big Data?

Ele é o resultado da ligação de computadores possantes não só entre si como a sensores, câmeras, satélites, sites de busca, bancos de dados, redes sociais, com o objetivo de acumular gigantescos montantes de dados – ou bites – sobre qualquer assunto – tudo.

O projeto Handy (Human and Nature Dynamics) é um dos primeiros a voltar Big Datas para previsões em escala global. E uma delas é que as tendências humanas a acumular riqueza e consumir recursos naturais irresponsavelmente resultarão num cataclismo.

Seria esse o desenlace do período geológico em que o homem é o maior agente transformador da Terra, isto é, o Antropoceno?

Se é verdade que nunca houve tantos meios materiais para estabelecer uma comunidade planetária, é verdade também que o estado de destruição da Terra avança, irreversível.

Por isso, é urgente que o indivíduo pense politicamente, como espécie. Por enquanto, vigora a indiferença, a que o Antropoceno responde com indiferença também – uma indiferença avassaladora.


Duas vertentes de argumentação nos permitirão, talvez, abordar de modo adequado o tema: a primeira envolve a análise de certa mediação técnica contemporânea que, embora de todo racional, opera como uma paixão sobre o sujeito; a segunda, o exame de uma possível extensão dessa mediação passionalizante para a escala de toda a civilização.

A RAZÃO COMO PAIXÃO

Jean-Pierre Vernant, numa página notável- ”A bela morte e o cadáver ultrajado”[1] -, observa que, para os aristocratas guerreiros representados na Ilíada, não há valor mais significativo que a excelência em combate – kudos – eternizada pela voz de um poeta – kleos: “Não, não irei perecer akleios [ … ]”,diz a si mesmo Heitor, quando finalmente decide, sabendo-se já abandonado pelos deuses, confrontar o vingativo Aquiles. Com efeito, o poema de Homero nos revela a imbricação entre duas espécies de existência: a dos humanos comuns, mortais, e a dos deuses olímpicos, imortais. A guerra concreta, a violência física com que gregos e troianos mutuamente se acometem não é senão um reflexo de uma cisão anterior entre os deuses, sucedida quando o príncipe troiano Páris conferiu a Afrodite, em detrimento de Hera e Atena, o título de mais bela das divindades. Farto com a cizânia, Zeus, o soberano do Olimpo, convocou uma assembleia para que fosse decidido o destino do conflito, que já durava uma década sem que um adversário lograsse sobrepujar o outro. Perante ambos os partidos, realiza uma pesagem: num prato da balança está o valor de Heitor, o varão troiano; noutro, o de Aquiles, o herói grego. E, tal como estava prescrito desde sempre, tal como as Parcas, as fiandeiras da existência, tinham já medido, a balança pende contra Heitor. Zeus de imediato decreta que os deuses favoráveis aos troianos devem se abster de qualquer intervenção futura, ao passo que os favoráveis aos gregos têm campo livre para atuar.

Eis então o momento em que Aquiles, investido das novas armas que sua mãe, a titânide Tétis, obtivera do deus-artífice Hefesto, bate às portas de Troia para desafiar Heitor e assim vingar a morte de seu primo e companheiro Pátroclo. Ao sair a campo para enfrentá-lo, Heitor põe­se a correr, Aquiles o persegue, e sete voltas em torno das muralhas de Troia são completadas. É quando Atena, protetora dos gregos, intervém: revestindo-se com os traços de Deífobo, segundo melhor guerreiro de Troia e irmão de Heitor, exorta-o a interromper a carreira e promete apoiá-lo no combate. Decidido a enfrentar o inimigo, Heitor procede à troca protocolar de desafios e declaração de linhagens, pois tal era a tradição no enfrentamento entre nobres guerreiros de escol. Heitor atira sua lança, que é detida pelas sete camadas do escudo de Aquiles, forjado por Hefesto com a ajuda dos ciclopes. Mas, quando Heitor se volta para o aliado para pedir uma nova lança, vê o falso Deífobo desvanecer-se em névoa… Ele compreende de pronto que está condenado; os deuses que tanto o haviam honrado agora o abandonaram. É nesse momento, frente ao seu executor, que ele afirma que vai sim perecer, mas não sem glória. Aquiles desfere seu golpe. O dardo atravessa o escudo do rival, fere-o na garganta, e Heitor, príncipe valoroso, domador de cavalos, tomba no pó.

Vernant observa que, no protocolo de declarações, tanto ou mais que no desfecho sangrento em si, encontramos uma indicação para vislumbrar, não obstante o intervalo de milênios, a motivação que levava esses guerreiros formidáveis a buscar ativamente o enfrentamento mortal. O engajamento de todo o ser na luta era para esses heróis o mais alto signo de vitalidade, o metro absoluto em relação ao qual suas qualidades de homens e príncipes eram postas à prova e, afinal, medidas. Ao nominar-se e declarar suas estirpes, os duelantes trazem para o campo de batalha todo o peso de suas linhagens, os feitos lendários de seus ancestrais que lhes conferiram suas posições de realeza e prestígio e, sobretudo, abolem o anonimato, escapando da indistinção que confere à massa de soldados um lote comum: a efemeridade, a insignificância, o esquecimento. Assim, a realização do destino de herói requer dois elementos: o primeiro é o feito notável que o guerreiro, tomado pelo furor da batalha, é capaz de desempenhar na ação do combate, índice do valor individual que o fez capaz de sobrepujar um adversário tão temível quanto ele mesmo. Kudos é essa ação objetiva que conduz ao triunfo, é o valor em ato, demonstrado em combate. E kleos é o enaltecimento desse valor, cantado pelo poeta: ao converter-se em verso, em elemento de uma gesta, o fulgor momentâneo da vitória adquire a glória permanente da legenda; quando entoado pela voz do poeta, o feito abandona a crueza fugaz da concretude para alcançar a perenidade das coisas feitas de palavras – mais duradouras, diz Borges, que os mármores.

Dois aspectos nos serão importantes aqui. Primeiramente, o caráter intensamente individual do combate: Heitor, príncipe dos dardânios, apresenta-se perante Aquiles, príncipe dos mirmídones, e um procurará oferecer ao outro, ou dele receber, a graça suprema de uma medida de seu poder. O engajamento é rigorosamente pessoal, e seu desfecho mortífero inscreverá os nomes de ambos os combatentes, para sempre inseparáveis, na ordem semidivina dos acontecimentos que, poemizados, se tornam duráveis. Desde que nasceu, Aquiles sabe estar predestinado a escolher entre uma vida breve, mas gloriosa, e uma vida longa, mas anônima. Seu destino está entrelaçado com o de Heitor, Tétis adverte, e logo após matá-lo deverá ele também sucumbir. Mas, para o herói, importa sobretudo o que a forma individualizada de combate garante: uma morte perfeitamente nominada e, portanto, inesquecível.

Pois este é o segundo aspecto relevante: há, na palavra cantada do poeta, algo que escapa à dimensão costumeira da linguagem. O logos, o palavreado que usamos no cotidiano para nos comunicar, é um dizer equívoco, efêmero e quebradiço; desfaz-se em névoa a qualquer sopro do tempo. A enunciação do poeta, todavia, tem uma eficácia singular: opera não na dimensão horizontal das trocas da comunicação dos homens, mas é capaz de realizar uma conexão vertical, uma ponte ou passagem entre a transitoriedade humana e a perpetuidade divina. À diferença da palavra meramente precária que informa a algazarra inconsequente de nosso dia a dia, o logos do poeta tem uma produtividade objetiva: engendra duração, ordena o mundo, deságua o passado no coração do presente, transmuta o episódico em épico, transfigura o instante em eternidade. O termo grego poiesis, de que derivam poesia e poeta, significa precisamente fazer, isto é, produzir. O poeta é um produtor: ao nomear, produz tempo, produz mundo, produz ser.

Nos milênios que se seguiram, mudanças nos modos de realizar a guerra foram impondo transformações concomitantes nas personagens e personalidades guerreiras, embora por muito tempo ainda vigorasse a ressonância histórica dos nomes maiores: Alexandre, Júlio Cesar, Átila, Rolando, El Cid, Gengis Khan, Salahuddin, Bayard … A partir do Renascimento, porém, houve um processo de tecnificação acelerada da arte da guerra que resultou em mudança qualitativa em duas características essenciais do conflito bélico: seu distanciamento e sua abrangência. Se empreendermos uma espécie de fenomenologia da agressão, isto é, se classificarmos os gestos violentos por sua proximidade, o primeiro, o mais imediato de todos, é a agressão sexual: o estupro é a violência mais íntima e literalmente mais profunda que pode haver. A seguir, temos a luta corporal, o contato direto de um corpo com o outro. Depois, vêm as armas brancas, como punhais e adagas, tacapes e maças, espadas e machados, que ferem o adversário de perto. Surgem então as armas de projeção a distância: pedras, dardos, lanças, zarabatanas. Logo, as que têm o alcance aumentado por algum tipo de propulsão: a funda é um exemplo, mas o paradigma da arma de projétil é sem dúvida o arco – o tensionamento que os músculos do arqueiro impõem ao madeiro do arco (ou, mais tarde, às lâminas da besta) é convertido, quando a corda é solta, em impulso da flecha ou virote. Com a disseminação da pólvora, as armas de fogo vêm então potencializar a capacidade de impelir projéteis, tornando muito maiores o alcance, a precisão e a letalidade de arcabuzes, carabinas e fuzis, bem como a portabilidade de pistolas e revólveres. Contudo, todos esses equipamentos, mesmo os de alcance ampliado, são ainda singulares, ou seja, destinam-se a abater um único adversário por vez. Os ferimentos infligidos são sempre de um indivíduo contra o outro, tal como já ocorria na Ilíada; em contrapartida, o distanciamento entre os oponentes se acentuou cada vez mais.

Por outro lado, em paralelo ao aumento do alcance, observa-se uma expansão da abrangência dos instrumentos bélicos, isto é, de sua capacidade de atingir múltiplos alvos. As balistas e catapultas utilizadas na Antiguidade em cercos e grandes batalhas evoluíram para os formidáveis trébuchets medievais, capazes de demolir muralhas e produzir grandes estragos na soldadesca. A introdução da pólvora irá ampliar não só a propulsão mas também, na feição de petardos explosivos, a eficácia multiplamente letal de bombas, granadas e obuses, dando lugar, em substituição aos batalhões de arqueiros, aos artilheiros e granadeiros. A detonação de um único artefato pode doravante fazer saltar uma fortificação ou aniquilar uma multidão de adversários. Com o desenvolvimento dos rifles de repetição e, um pouco mais tarde, das metralhadoras, um combatente apenas concentra o poder de fogo de um esquadrão inteiro. Uma série de avanços técnicos sucessivos e cumulativos irão impor uma escalada cada vez mais rápida do alcance e da abrangência dos equipamentos, combinando de modo sempre mais efetivo esses dois atributos: temos o surgimento da artilharia, terrestre e embarcada; segue-se o aumento da mobilidade proporcionada pelos tanques, submarinos, aviões e destes passamos aos bombardeios aéreos, inaugurados na Grande Guerra; chegamos então aos tapetes de bombas, aos mísseis autopropulsados e às armas nucleares da Segunda Guerra; vem a era dos bombardeiros estratégicos e dos mísseis transcontinentais, cujo poderio passa a ameaçar a própria continuidade da civilização; desembocando, enfim, no armamento eletrônico, parcialmente autônomo e por vezes denominado “inteligente”, de nossos dias. Um dos aspectos marcantes desse processo de dissociação técnica entre ator e atuado, no campo de batalha, é a crescente impessoalidade da ação: o anonimato das vítimas tem como contrapartida a anomia do autor. O piloto de bombardeiro vê as pessoas em seu alvo como formigas, desembaraçadas de suas identidades humanas; quando libera a bomba atômica sobe Hiroshima e volatiliza, em frações de segundo, centenas de milhares de pessoas, é evidentemente impossível a Paul Tibbets vislumbrá-las sequer em conjunto, quanto mais individualmente, frente a frente. A violência tecnicamente ultracondensada da ação agressiva confere, perante seu autor, um absoluto anonimato a esse contingente dizimado em massa. Reciprocamente, o personagem decisivo desse evento militar, o nome que a história não esquecerá, não foi o de Tibbets ou outro tripulante qualquer do B-29 Enola Gay, mas Little Boy, a denominação em código da bomba de urânio enriquecido lançada sobre a cidade japonesa. Recentemente, esse aspecto unilateral ou impessoal do confronto foi ainda mais acentuado por uma inovação técnica significativa: a criação de artefatos bélicos com recursos cognitivos. Isto é, além da habilidade tradicional de produzir, transportar e distribuir violência, a moderna tecnificação eletrônica conferiu a esse tipo de “armamento inteligente” – que se perdoe o oximoro – a capacidade de operar, com crescente autonomia, no tempo e no espaço. Essa nova modalidade de armamento exibe diversas características curiosas. Uma da primeiras, e mais pregnantes, imagens que se tem dessas “armas espertas” em ação é a de navios estadunidenses no golfo Pérsico disparando mísseis de cruzeiro sobre a Bagdá de Saddam Hussein. A cena parece retirada de um videogame e, de fato, a coalescência das fontes das imagens na mesma mídia veiculadora torna indistinguíveis a notícia, apesar de sua natureza supostamente documental, e a ficção, os construtos da sequência de lances do jogo. Tudo o que vemos são disparos, traçados de luz que relampejam no céu noturno e então uma coleção de explosões. Surge em seguida, porém, uma visada radicalmente nova: estamos agora embarcados num míssil, nosso olhar se identifica com o “olho” da bomba, vemos um alvo que se aproxima, se aproxima … até que desaparece. A um estranho tipo de perpetrador da ação, que se autoaniquila no momento mesmo em que destrói o adversário, corresponde esse estranho espectador, que se autoabole no momento mesmo em que presencia. Esse ponto de vista “suicida”, de um olhar que busca o alvo e, ao alcançá-lo, se extingue nele, parece profundamente inumano:

não há experiência narrativa que o possa comunicar.

A artificialidade do acontecimento e a impessoalidade do outro irão convergir de forma extrema, na atualidade, com a introdução dos veículos voadores semiautônomos não tripulados: os drones. Controlados à distância por operadores, os drones concretizam de forma cabal o princípio teórico de que todo objeto técnico é, num certo sentido, uma prótese, ou seja, uma extensão das funções corporais humanas – quer se trate de ações mecânicas, de capacidades sensoriais e perceptivas ou até mesmo, como demonstram os sistemas computacionais contemporâneos, de faculdades cognitivas. Os drones são próteses peculiares, porém: não somente estendem ou magnificam as capacidades do operador mas o envolvem e incorporam – e, ao fazê-lo, modificam de modo irremediável sua própria humanidade. Vista desde muito alto, Dresden parece uma maquete, e seus habitantes são de tal modo insignificantes que nem mesmo três dias de incêndios bastam para iluminá-los, para torná-los visíveis para o piloto do Lancaster da RAF. Ainda assim, seu corpo está presente e investido, sua vida está em (remoto) risco, é seu rosto que se reflete nos mostradores dos instrumentos. O operador de drones, porém, é somente um elo na cadeia de atos técnicos de busca-identificação-autorização-eliminação. O paradoxo é que o alvo é (quase sempre) perfeitamente identificado, mas o executor é de todo impessoal: não há qualquer distinção, para ele, entre as telas dos games de treinamento e dos ataques de fato – exceto pelos frequentes “danos colaterais”. Esse tipo de dissociação entre o sujeito da violência e seu objeto, a dupla despersonalização aí implicada, remete a um perfil de psicopatia. Não lhe reconheço qualquer pessoalidade; atuo arbitrariamente sobre a matéria de seu corpo; sua aniquilação é o reflexo de minha ausência.

Dois aspectos são decisivos aqui: o operador é parte de um dispositivo efetuante, mas sua qualidade de agente é inteiramente realizada, ou seja, relativizada, pelo fato de pertencer a esse dispositivo – pois, sem ele, não é um combatente. Não está presente no campo, atua desde 1.001 quilômetros de distância. Por outro lado, se o operador adquire o caráter de peça da engrenagem atuante, a imagem que lhe é transmitida pelo veículo voador não tripulado e que lhe permite agir no local onde o combate efetivamente se realiza não é uma imagem como qualquer outra. Ela não está apenas representando alguma coisa; é um elemento igualmente necessário do processo de atuação. Há assim uma teleportação do caráter de agente, ou da capacidade de agir, que vai nas duas direções, entre a imagem e o operador.

Harun Farocki[2], cineasta e investigador da natureza das imagens, examinou a questão do estatuto peculiar das imagens engajadas por esse tipo de dispositivo bélico “inteligente”. Observou primeiramente a inumanidade do olhar suicida da bomba que busca o alvo, portanto detectou seu ineditismo no domínio das visualizações; em seguida identificou nas imagens remotas dos drones, que convertem o operador distante em combatente atuante, um poder de atualização ou concretização que faz delas imagens autenticamente efetivas. Não visam representar, interpor­

-se entre o presenciador e o presenciado, mas sim agir, ser parte de uma cadeia de ações, de um acontecimento. De um lado temos o esmaecimento ou, no limite, a anulação da pessoalidade do piloto, reduzido a mera engrenagem de um sistema que em muito o ultrapassa; de outro, a intensificação ou, no limite, a materialização da imagem produzida pelo drone, que acaba por adquirir uma efetividade, um poder de transfiguração, que recorda a palavra do poeta. Assim como a palavra do poeta instituía e transformava o mundo, não era somente elocucional, a imagem do drone é instituinte e transformadora, não é somente representacional. Farocki, numa série de obras notáveis, explora as dimensões inovadoras dessa classe de imagens eficazes que os drones e armas telecontroladas passaram a produzir e constata que seu caráter virtual, que lhes permite transportar – ou antes, teletransportar – modalidades diversas de cognição, dá lugar a características muito curiosas.

Consideremos, convida Farocki, o processo de treinamento de um piloto de VANT (veículo aéreo não tripulado). Além de sua posição específica no final da cadeia de comando, é preciso acostumá-lo à perspectiva aérea, à movimentação específica das câmeras no voo, à capacidade de detecção longínqua, a uma variedade de sensores e seus mapeamentos – assinaturas térmicas, radar, processamento facial etc. – e a várias outras possíveis instâncias dos processos de busca e identificação. Deve também adestrar-se numa série de habilidades psicológicas. Ele pode ser requisitado, por exemplo, para acompanhar durante vários dias um possível alvo, observando cada um de seus gestos, num contato duradouro que, não fosse a distância física, seria quase íntimo, quase voyeurista, enquanto aguarda a ordem de atuar. Mas, quando recebe o comando, deve acionar seu armamento sem pestanejar, eliminando fisicamente a vítima (e algum incauto circunstante, por vezes) de quem havia sido, não obstante, um acompanhante invisível por todo esse tempo. E, logo após a ação de destruir o inimigo indicado, é rendido em seu posto, sai da base de operações e está em Idaho, e não no Afeganistão, está a vinte minutos de casa, para onde volta para encontrar seus filhos. Essa relação de proximidade e distância mutuamente reversível num só momento entre inimigo e familiares é, evidentemente, original.

Outro aspecto a destacar no âmbito psicológico do conflito, anota Farocki, diz respeito ao uso do mesmo tipo de recursos de “realidade virtual” que servem ao funcionamento dos drones tanto em simulações de treinamento quanto na terapia de combatentes traumatizados. Quer se trate de habituar os soldados a cenários “realistas” de conflito e prepará-los para situações específicas de combate – armadilhas, atiradores ocultos, guerrilha urbana etc. – ou de permitir que eventos traumáticos sejam revividos sem que um perigo verdadeiro seja enfrentado, dispositivos de simulação transformam vivências antecipadas ou recordadas em episódios de um game, que pode ser continuamente reiniciado. Contudo, a sensibilidade experimentada de cineasta levou Farocki a se dar conta de uma diferença marcante: nos cenários virtuais de treinamento, os veícu­ los simulados têm sombra; nos cenários de tratamento, não têm – pois é dispendioso fazer sombras… Gasta-se mais para adestrar que para tratar – um signo exemplar, talvez, do espírito da guerra no capitalismo moderno. Em resumo, dois paradoxos muito significativos parecem presidir o conflito eletrônico contemporâneo. O primeiro diz respeito à assimetria da visibilidade dos combatentes: o alvo pode ser muito bem identificado, mas o executor é sempre impessoal. A contrapartida dessa ausência é a impossibilidade de o operador distinguir simulação de acontecimento; tudo se passa, sempre, diante de telas eletrônicas, tudo a que ele tem acesso é essa “realidade” construída, eficaz, e lhe é impossível determinar, sem comprovação posterior, se de fato houve uma explosão real despedaçando algum corpo de verdade, em algum lugar que existe, ou apenas uma encenação num game de treinamento.

Essa indistinção, digamos, ontológica foi explorada premonitoriamente num conto de ficção científica de Orson Scott Card de 1997, denominado “O jogo do exterminador”. A Terra está em guerra com uma espécie insetoide de um mundo distante, e o combate é travado por meio de frotas de naves telecomandadas, que se encontram a muitas unidades astronômicas de distância. Ora, os jovens são decerto os melhores candidatos a jogadores, e estabelece-se um processo mundial de recrutamento e seleção de jovens para treinamento no telecontrole das naves que estão na frente de batalha com o inimigo. Uma exaustiva série de testes de aptidão, de dificuldade crescente, é aplicada aos recrutas, até que o melhor time chega enfim às vésperas de se graduar: falta somente um teste a vencer, e estarão prontos para a guerra verdadeira. Com uma série de manobras ousadas, a equipe consegue triunfar e conquista a partida final. Recebem então a notícia de que a guerra já tinha sido vencida; o jogo derradeiro que tinham logrado vencer, ultrapassando as defesas e obstáculos mais difíceis, tinha ocorrido de fato e, sob seu comando, a frota telecomandada tinha já destruído o mundo insetoide. Não era mais um jogo, ou melhor, o jogo fora de verdade, e agora eram heróis… A ficção de Card soube antecipar, em algumas décadas, precisamente o tipo de vivência que os pilotos de drones podem hoje experimentar.

O segundo paradoxo é, naturalmente, a proximidade semivoyeurista entre o operador e o alvo. Farocki descreve um exemplo extremo: a experiência ensinou aos marines, no Iraque, que muitas vezes um ataque a bomba serve de prelúdio para outro – quando os circundantes se aproximam para auxiliar as vítimas do primeiro artefato, o segundo detona, atingindo exatamente os que acudiram para ajudar. O temor do ataque em segunda instância levou assim a uma experiência afetiva radicalmente nova para os teleoperadores dos drones: a de assistir inermes ao sofrimento. A dor dos populares despedaçados por um homem-bomba no mercado ou mesmo dos soldados atingidos numa emboscada deve ser somente testemunhada, abstendo-se os aliados de intervir, até a ameaça do segundo ataque ser afastada em definitivo. Tal impossibilidade perante o sofrimento do outro, correlata da alternância entre proximidade e distanciamento na relação entre alvo e agente, configura para Farocki uma figura próxima da psicopatia. Em qualquer outra situação corriqueira, um tal tipo de personalidade que age com violência sem se engajar, que se exime da solidariedade na dor, que assassina quem há pouco lhe era íntimo seria constituída como disfuncional. A dronotecnia e seus inéditos atributos parecem levar ao limite, quiçá até mesmo desfazer, de uma forma sem precedentes, o espírito dos homens em luta, uma certa relação ou grau mínimo de humanidade até então presente mesmo no coração violento da guerra.

Ora, os meios de se lograr essa abolição técnica da condição humana são de todo racionais. Caberia indagar, nesse caso, se a razão não atuaria ela mesma como fonte passional de violência.

O CÁLCULO E SEUS DESCAMINHOS

A impessoalidade crescente da ação bélica, propiciada pelas armas eletrônicas – ou antes, cibernéticas – da atualidade, pode talvez ser entendida como sintoma de uma desumanização em escala mais ampla, que poderíamos denominar geoestratégica. Dito de outro modo: seria legítimo encarar esses possíveis novos modos de desumanização, de reformatação da condição humana, trazidos à prática pelos meios recentes de intervir ciberneticamente em conflitos distantes, como sintoma de um campo de transformações mais amplas, de amplitude e consequência mais vastas? Essa linha de indagação requer que consideremos em mais detalhe a natureza e os atributos dos dispositivos cibernéticos autônomos, capazes de gerar e operar virtualidades eficazes, aptas a implementar funcionalidades práticas, dispositivos para os quais os telearmamentos analisados acima podem servir como paradigma inicial ou provisório; devemos então nos interrogar sobre a escala de atuação que esse gênero de dispositivo pode vir a alcançar. Trata-se de avaliar se já não poderíamos vislumbrar na atividade atual de um sem-número de dispositivos cognitivo-conceituais

especialmente os algoritmos de processamento maciço de dados que hoje definem, instantânea e autonomamente, os estados e humores do “mercado” – uma despersonalização, uma indiferença, rigorosamente simétricas às dos armamentos teleguiados, todavia com consequências que alcançam um contingente cada vez maior de indivíduos e populações. Com efeito, um dos contextos mais ricos em inovações de grande significado nas últimas décadas é sem dúvida o domínio de acumulação digital de dados que passou a ser comumente chamado de Big Data. Trata-se de uma denominação aparentemente neutra para um campo de possibilidades quase ilimitadas, cujo objetivo aparentemente absurdo parece ser o de recolher, armazenar e explorar informação sobre tudo. Repetindo: tudo. A partir do surgimento da internet e da multiplicação de servidores computadorizados cada vez mais possantes, avançados e interligados, instaurou-se um processo cumulativo de armazenamento eletrônico de dados que, incorporando as mais variadas fontes de registro – sensores e câmeras, satélites, algoritmos de busca, bancos de dados de toda sorte, computadores pessoais e redes sociais, imagens, notícias, em suma, todos os fluxos de bits digitalizados que têm se tornado disponíveis-, tornou possível mensurar os aspectos mais variados da existência material, ambiental e humana nos planos individual, coletivo, nacional, econômico, social, psicológico etc. Essa capacidade de quantificar e metrificar setores tão amplos de atuação da sociedade contemporânea acaba por envolver as dimensões básicas de nossa experiência corporal, afetiva e cultural numa outra camada, abstrata e imaterial, mas inquestionavelmente efetiva, de dados na forma de bits.

O engajamento com diferentes instâncias cibernéticas pertinentes a essa proliferação abrangente de fluxos de dados vem acrescentar às práticas e concepções de cada um de nós, queira-se ou não, modalidades inovadoras de cognição, comunicação e ação que passaram a fazer parte significativa, e cada vez mais profunda, do estar no mundo de todas as populações associadas, direta ou indiretamente, à cultura hipertecnificada implantada pelo capitalismo planetário atual. Talvez o exemplo mais evidente do alcance e abrangência sem precedentes exibidos pelos dispositivos tecnocientíficos desenvolvidos e operados pelo sistema capitalista global sejam os famosos algoritmos de “mercado”. Consideremos, por exemplo, o funcionamento dos entrepostos de mercadorias de Chicago onde se concentra a distribuição dos grãos produzidos nas férteis planícies do Meio-Oeste estadunidense – no início do século XX. De posse de informações sobre, digamos, a carga de tabaco que chegou aos armazéns, os comerciantes podiam avaliar o valor dessa carga se vendida em Nova York ou São Francisco. Toda a operação do sistema de comércio se fundava nessa previsão de remuneração – bancos realizavam empréstimos às empresas, empreendedores planejavam suas próximas iniciativas, negócios bem-sucedidos lastreavam a emissão de títulos e bônus etc. Em breve, a organização do sistema de custos e lucros, financiamentos e investimentos que consubstanciava o comércio de mercadorias passou a girar em torno de centros agregados de informação e avaliação, as bolsas. A regulagem da distribuição de capital e recursos ampliou-se de empresas individuais para grupos e setores e, à medida que o sistema foi se expandindo, integrando e sofisticando, para economias inteiras.

Todo esse sistema se baseia, desde a origem, na transformação de informação em valor. Porém, com a crescente telematização da operação das empresas e dos pregões de compra e venda de mercadorias, a quantidade de dados sobre os fluxos de comércio multiplicou-se muitas vezes; em paralelo, os processos de decisão precisaram ser cada vez mais acelerados. Já por volta da década de 1980, tornou-se necessário recorrer a processos automatizados e computadorizados para dar conta da massa de informações necessária para o planejamento econômico e o controle executivo. Logo ficou claro que as equipes tradicionais de analistas e corretores precisariam ser subsidiadas por dispositivos técnicos capazes de incrementar o ritmo das trocas e reduzir os prazos de tomada de decisão – que se tornaram fatores cruciais no ambiente ultracompetitivo em que circulam volumes enormes de capitais internacionalizados e manejados de um continente para outro num átimo. Assim, físicos que trabalhavam em aceleradores de partículas de laboratórios de altas energias, habituados a lidar com quantidades astronômicas de dados, e programadores especializados em modelos matemáticos de simulação preditiva foram convocados para desenvolver a infraestrutura cibernética indispensável para o funcionamento eficaz do sistema integrado mundial das bolsas – ou, o que vem a ser a totalização de todo o processo, da bolsa. Pois não há mais separação real entre o pregão de Tóquio e o de São Paulo ou qualquer outra praça. Esse é um dos significados mais profundos do termo “globalização”.

De fato, a disseminação das telecomunicações eletrônicas ao redor de todo o planeta determinou uma profunda mudança na natureza do espaço e do tempo tal como experienciados pelas civilizações anteriores: a transmissão instantânea – isto é, sem qualquer retardo significativo – de sinais permite que doravante todos os locais se intersecionem virtualmente com qualquer outro local, ou seja, em cada local cabem agora todos os locais. Essa abolição da distância geográfica pela constituição de uma ágora comum é concomitante à instauração de um momento presente autenticamente planetário: um agora imóvel, mundialmente compartilhado, referente absoluto sobre o qual se precipitam e se fundem as durações de todo acontecimento. É no âmbito de um tal colapso da geografia numa ágora e da cronografia num agora, compartidos em escala global, que transcorrem hoje os fluxos de informação e têm lugar as tomadas de decisões. Para que um tal sistema hipercomplexo de interações desterritorializadas e instantaneizadas possa ser operado, é preciso exponencializar a autonomização, quer dizer, a inteligência, de seus processos constitutivos. Cada novidade recebida pelos bancos de informações precisa ser correlacionada com outras variações e variáveis e ter estimado seu potencial de engendrar consequências, imediatas e de longo prazo.

Ora, o entendimento humano desarmado é incapaz de lidar com fluxos de signos de tal grandeza e intensidade. Somente recursos de inteligência artificial, encarnados em algoritmos matemáticos de extrema sofisticação, podem identificar informações relevantes e acionar as res­ postas apropriadas numa fração de segundo, o suficiente para superar outros competidores igualmente vorazes na corrida pelo lucro. Sem a atuação desses dispositivos de exploração e aproveitamento dos vastos oceanos de Big Data, não poderia funcionar o sistema que nós, um tanto curiosamente – em vista das modestas origens do conceito, nas trocas pessoais entre produtores nas antigas feiras -, persistimos em chamar de “mercado”. Pois, no âmbito do capitalismo ultraconectado e megadinâmico de hoje, do qual se tornou o epígono (e, talvez, a nêmesis), o “mercado” atua como uma entidade desenraizada e assíncrona, capaz de ações globais e instantâneas, implementadas a partir de decisões tomadas por meios de cognição inumanos. Analistas (e acionistas) reagem às opções decididas por algoritmos otimizadores de oportunidades, tornando-se, qual os pilotos de telearmamentos, elementos de uma cadeia causal que em muito os ultrapassa.

O desenvolvimento desse tipo de agentes cognitivos artificiais extremamente poderosos terá, como é evidente, muitas outras consequências. Uma das mais notáveis diz respeito à inauguração de uma nova modalidade de ciência da história. Tradicionalmente, domínios de saber afeitos aos acontecimentos humanos, marcados, como se sabe, por acidentes naturais de toda ordem – geológicos, climáticos, ecológicos, biológicos – e pela imprevisível confusão característica dos negócios humanos – envolvendo fatores que vão do livre-arbítrio individual aos furores passionais de cônjuges e amantes, sem esquecer o puro e simples arrebatamento da loucura -, não se harmonizariam com modelagens preditivas de índole matemática, típicas das ciências modernas da natureza. De fato, a história não poderia ser nem mesmo retrovista! Pode-se decerto elencar forças e atores que participaram de dada sequência de eventos históricos, mas não haveria nenhuma maneira de proceder a uma história analítica, que, a partir da identificação de padrões consistentes, permitisse obter a segurança de que, caso se repetissem certos fatores condicionantes essenciais, a mesma cadeia de eventos se reproduziria. Esse entendimento tradicional, fundado numa dicotomia radical entre as ordens dos fenômenos naturais e das vicissitudes humanas, começou a ser superado com o desenvolvimento da chamada Big History. O ponto de partida dessa concepção inovadora foi a constatação de que a história humana se assenta em, ou antes, exprime, toda uma estrutura hierárquica de domínios evolutivos: o surgimento do Homo sapiens, e toda sua trajetória de vida, não é senão uma minúscula, e muito recente, ramificação da muitíssimo vasta árvore da vida – o conjunto da vida biológica, regida pela evolução por seleção natural -, que por sua vez se enraíza no processo de formação de nosso planeta, a Terra, e de nosso sistema estelar, que por sua vez são somente fragmentos de um processo ainda mais imenso, o da constituição da Via Láctea, o conjunto de estrelas a que pertence o Sistema Solar, cuja formação remete à evolução do próprio cosmo, a totalidade inacabada que é a expressão mais abran­ gente do existir material. Quando o conceito de evolução – de variação temporal de formas – é aplicado a essa sequência de sistemas de sistemas, a distinção ortodoxa entre história (e todas as demais humanidades) e na­ tureza se esmaece e parece mesmo, em certos casos, se dissipar.

Ainda mais significativa que a conclusão de que, do ponto de vista dos saberes contemporâneos sobre os sistemas complexos, o domínio dos afazeres humanos não se distingue de modo especial dos processos evolutivos materiais mais básicos que o sustentam, foi a extensão da aplicação das técnicas de tratamento de dados quantitativos, das ciências naturais, onde já têm sido empregadas com imenso sucesso há tempos, para a descrição, mesmo que tentativa e exploratória, de processos dinâmicos exibidos por acontecimentos históricos. Através de modelagens de jogos entre predador e presa, por exemplo, é possível detectar padrões gerais de comportamento que definirão a continuidade ou a extinção de uma certa espécie num dado ecossistema. Ora, segue o argumento, se a elaboração de “trajetórias existenciais” desse tipo tem sido muito útil para a compreensão dos múltiplos aspectos que interferem no estado vital dos biornas, o mesmo instrumental de acúmulo e tratamento de enormes bases de dados de toda espécie – culturais, sociológicos, econômicos, ecológicos, climáticos – sobre uma determinada conjuntura histórica permitiria, por meio de sofisticados algoritmos de modelagem, estabelecer correlações entre essa situação particular e eventos similares ocorridos em outros locais, em outras épocas, com outras populações. Essas abordagens baseadas em Big Data poderiam servir para a definição da trajetória evolutiva de, digamos, uma civilização. E, tal como sucede em outras áreas dedicadas ao estudo do comportamento de sistemas complexos como o clima, essa projeção poderia ter sua eficiência descritiva aferida por comparação com casos reais. O registro histórico torna-se assim o contexto para a aferição de modelos descritivos dinâmicos, ou seja, a história pode ser entendida como um laboratório de “experimentos naturais” – perspectiva sem precedentes até décadas recentes.

Alguns autores sugeriram um nome específico para essa forma inovadora de abordar os temas históricos: “cliodinâmica”, a partir de Clio, musa da história, e do foco no dinamismo de sistemas de muitas variáveis que, ao atuarem num dado contexto, podem transformar suas próprias confi­ gurações e engendrar comportamentos inesperados. O mesmo tipo de recursos conceituais usados para descrever a prosperidade ou o declínio de uma certa espécie perante as circunstâncias ambientais vigentes em seu ecossistema seria transladado para o domínio das transformações experimentadas por certa classe de sistemas – as civilizações – no âmbito de um dado conjunto de circunstâncias históricas. Em ambos os casos, padrões de evolução dinâmica dos sistemas em estudo podem ser estabelecidos pela comparação de intercorrências similares em diferentes conjunturas. Pode-se constatar, por exemplo, que, em civilizações não primitivas tão distintas entre si quanto o Império Han da China, o Império Romano, a França medieval, a Inglaterra em industrialização, a Alemanha dos kai­ sers, o aumento da população foi regularmente seguido por um período de turbulência sociopolítica. É tentador supor que essa cadeia comum de eventos tem uma mesma causa: um desequilíbrio nas relações de poder entre elites e plebeus comuns. Talvez, com numerosos candidatos ambicionando ascender à elite, a unidade do poder vigente seja tensionada e possa se fraturar. Diferentes analistas podem elaborar hipóteses distintas para dar conta do padrão observado, mas o que importa é a identificação do padrão, o discernimento de regularidades sistêmicas em meio a uma massa de dados referentes aos aspectos mais variados e inusitados que se possa imaginar.

As abordagens cliodinâmicas, com efeito, caracteristicamente procuram incorporar fatores diversificados – climáticos, geológicos, sanitários, epidemiológicos, ecológicos – ao conjunto das chamadas “condições históricas” pelas quais as vicissitudes de uma dada sociedade num dado período de seu percurso seriam compreendidas. Por meio de extensas bases de dados, técnicas estatísticas avançadas e modelagens computacionais poderosas oferecem uma visada científica de processos históricos sem paralelo até muito recentemente. Consideremos um exemplo específico e muito instrutivo: o projeto HANDY[3] (Human and Nature Dynamics). Trata-se de uma extensão dos tradicionais modelos de relação predador-presa num dado território, em que se pode controlar variáveis como taxas de natalidade, fertilidade e mortalidade das espécies analisadas, para assim traçar seus percursos existenciais, necessariamente interligados. O algoritmo desenvolvido para o modelo HANDY procura descrever a interação de um certo tipo de sistema – uma civilização – com seu ambiente pelo uso de quatro fatores: a abundância de recursos naturais e sua taxa de consumo, o crescimento da população, a riqueza acumulada (isto é, natureza transformada em recursos) e a proporção de desigualdade na distribuição desses recursos na sociedade, entre elite e plebeus.

O ponto de partida para o HANDY foram, como vimos, os modelos biológico-ecológicos predador-presa. Podemos pensar na população humana como o “predador”, enquanto a natureza (os recursos naturais do meio ambiente) pode ser vista como a “presa”, consumida por essa po­ pulação de seres humanos. Genericamente, os recursos naturais existem em três formas: fontes não renováveis (combustíveis fósseis, depósitos minerais etc.), estoques que se regeneram (florestas, solos, rebanhos, cardumes, animais de caça, aquíferos etc.) e fluxos renováveis (ventos, sol, chuvas, rios etc.). Em modelos biológicos, a chamada “capacidade de carga” define um limite de sustentabilidade, essencialmente ligado ao tamanho da população da espécie em questão e a suas taxas de consumo, que os processos regenerativos do ambiente natural podem suportar. Quando a “predação” econômica supera a capacidade de carga, situações emergenciais de fome ou sede ou o recurso à migração podem trazer

a população de volta a um nível tolerável. No contexto das sociedades humanas, contudo, a população não necessariamente começa a diminuir após ultrapassar o limite de capacidade de carga ecológica porque, ao contrário dos animais, os seres humanos podem acumular grandes ex­ cedentes de recursos naturais transformados (ou seja, riqueza) e depois sacar esses recursos quando a produção deixa de atender às necessidades de consumo. A introdução desse hiato proporciona às sociedades um dinamismo muito mais complexo que o dos sistemas naturais, o que por sua vez implica alterações de fundo na elaboração do modelo dinâmico, seus comportamentos e resultados. Assim, o HANDY adiciona o componente do excedente acumulado de recursos sob a forma de riqueza para levar em conta essa resiliência suplementar dos sistemas humanos. Mas, empiricamente, há inúmeros casos históricos em que esse superávit acumulado não é isonomicamente distribuído em toda a sociedade, mas sim apropriado e controlado por uma elite. É o conjunto da população que produz a riqueza, mas as elites se definem precisamente pela apropriação de uma fração dessa riqueza desproporcional em relação a seu contingente numérico, e geralmente bem acima dos níveis gerais de subsistência. É com base nessa observação empírica, lastreada por casos históricos, que o HANDY separa a população em “elite” e “plebeus”, introduzindo uma variável específica para a desigualdade entre os dois setores.

Como outros modelos econômico-ecológicos, o HANDY busca descrever o comportamento dinâmico de uma dada sociedade a partir da escolha de conjuntos de parâmetros descritivos, tanto da configuração do sistema numa ocasião determinada (tamanho da população, dimensões do território etc.) quanto das taxas de mudança vigentes (natalidade, mortalidade etc.), com vistas a desenvolver um perfil evolutivo – uma “trajetória existencial” – para essa sociedade. Assim como os ecossiste­ mas, as sociedades podem prosperar, estagnar, decair, recuperar-se ou extinguir-se (nas palavras de Valéry: “Nós, as civilizações, sabemos agora que somos mortais”[4]). De acordo com o tipo de distribuição de riqueza, o HANDY examina três modalidades de sociedade: igualitária (sem elites), equitativa (há elites administrativas ou funcionais, mas sua participação na riqueza é proporcional à dos plebeus) e desigual. A evolução dinâmica do modelo resultará, em longo prazo, em três estados possíveis: estabilidade, colapso reversível (após uma situação de crise, a estabilidade é recuperada), colapso irreversível.

As sociedades igualitárias teriam correspondente nos grupos de caçadores-coletores da Pré-História, bem como em algumas comunidades de povos ditos “primitivos”. Sabemos, pelo registro histórico, que esse tipo de organização pôde manter-se estável por milênios, e seu colapso costuma estar associado a algum tipo de variação ambiental imprevisível, um cataclismo exterior ao grupo, que rompe suas condições de continuidade, ou então, mais recentemente, pelo contato usualmente devastador com um grupo estrangeiro mais “moderno”. As sociedades equitativas, por sua vez, podem ser representadas pelas primeiras povoações agrícolas, em que a separação entre classes não é nítida e a distribuição dos bens e recursos entre produtores e administradores é fortemente isonômica. O esgotamento de recursos naturais cruciais – água, solo fértil, rebanhos saudáveis – pode causar a disrupção dessas sociedades, assim como a cobiça de invasores mais bem armados. As sociedades desiguais, por fim, exibem uma marcante assimetria de poder entre uma elite regente, que açambarca a maior parte dos recursos e deles usufrui de modo desproporcional, e uma maioria de plebeus, que realiza a maior parte da produção, mas tem acesso somente a uma fração dela. As sociedades históricas, desde a consolidação do Estado, organizam-se numa estrutura de classes profundamente desigual, e essa disparidade multiplicou-se a partir do advento do capitalismo.

Montado o “motor” algorítmico do HANDY e definidos os campos de parâmetros relevantes, os pesquisadores passaram a rodar simulações correspondentes a vários exemplos históricos: as cidades maias, no Yucatán; as povoações da ilha de Páscoa; as antigas cidades-Estado gregas; as colônias vikings na Groenlândia; os impérios Han, na China, e Gupta, na Índia; entre vários outros. Essas modelagens permitiram, dentre uma variedade de fatores (ecológicos, ambientais, econômicos, sociais), a identificação de certos conjuntos de valores dos parâmetros que são, presumivelmente, decisivos para a definição da trajetória evolutiva das sociedades a longo prazo, ou seja, na determinação de tendências rumo à continuidade, ao colapso reversível ou ao colapso definitivo. Quando articulados por um quantificador biológico, o tamanho da população, dois aspectos se revelaram preponderantes: no plano ambiental, o consumo excessivo de recursos ou, como chamamos hoje, a “pegada” ecológica; no plano socioeconômico, uma concentração disparatada da riqueza em favor da elite. Isto é, não obstante a diversidade de conjunturas históricas, geográficas e culturais dos exemplos examinados, foi possível identificar nessas simulações uma determinação comum bem definida: grandes populações, consumindo vorazmente seus recursos, numa estrutura social marcadamente desigual, parecem tender ao colapso. Como é evidente, esse tipo de “experimento histórico natural” é somente retrospectivo – trata-se de reproduzir a trajetória seguida por civilizações passadas, e os ajustes de parâmetros foram realizados sob essa perspectiva. Mas é ine­ vitável que consideremos a indagação: o que essas modelagens sugerem acerca do desenrolar futuro de nossa civilização?

Uma observação preliminar, necessária antes de se empreender qualquer tentativa de prospecção, é a de que a civilização humana, hoje, se planetarizou. O simples fato de podermos designar uma “civilização humana” pressupõe uma integração intercontinental inexistente até a Revolução Industrial – basta recordar a “diplomacia das canhoneiras” do comodoro Perry na baía de Tóquio, em 1853. Ou seja, o império chinês podia prosperar, enquanto os maias declinavam; a cultura mexica podia expandir-se e dominar os povos vizinhos, enquanto a peste negra assolava a Europa medieval. Mas na atualidade não é possível examinar o desenvolvimento de uma nação, ou mesmo de um continente inteiro, isoladamente. A possibilidade – e o desafio – que se apresenta agora é a de modelar a evolução dinâmica de toda a humanidade. O agente a ser considerado será a espécie humana, seu contexto ambiental será o planeta inteiro, e seu percurso, nada menos que a própria história. Trata-se, em suma, de lançar mão de modalidades de cálculo que permitam definir tendências e explorar padrões estatísticos abrangendo o conjunto da atividade humana, realizar sondagens e extrapolações em escala planetária e tomar como cenários de análise e modelagem a evolução da civilização inteira. Por demasiado ambicioso que seja (ou não), um tal projeto de inves­ tigação terá como ponto de partida precisamente a constatação de que, se a marca diferencial da atualidade é a interligação global do conjunto da ação humana, então vivemos hoje num mundo distinto daquele de nossos antepassados, mesmo muito próximos. Como corolário inevitável, nossos descendentes, mesmo os muito longínquos, viverão neste planeta transformado por nossa própria atividade. Houve sem dúvida, no passado, ocasiões em que ações empreendidas por umas poucas gerações tiveram consequências para muitas outras no futuro – como foi o caso do surgimento da cidade, a maior invenção humana para Lewis Mumford[5]• Nenhuma ocasião, porém, em que essas atividades lograssem alcançar, durante essas mesmas poucas gerações, a escala de todo o planeta e envolvessem a humanidade como um todo. Para dar conta da peculiaridade deste novo mundo em que vivemos e viveremos, Paul Crutzen, Prêmio Nobel de Química de 1995, sugeriu o conceito de Antropoceno. Conjunção de anthropos (homem) e cenos (período), o significado do termo é, literalmente, a Era do Humano. A proposta visa assinalar a ocasião em que a humanidade, pelo uso de suas ciências, veio a adquirir o entendimento de que o conjunto de suas ações, ou seja, a variedade das atividades humanas tomadas como um todo, tornou-se uma força transformadora de abrangência planetária e de duração geológica. De fato, não há mais recanto na superfície da Terra que não esteja sendo afetado, direta ou indiretamente, pela presença humana. Em termos biogeográficos, nos tornamos uma espécie cosmopolita – signo de sucesso biológico que compartilhamos com alguns gêneros de baratas, não por acaso denominados de Periplaneta (recordemos que a ordem Blattaria tem cerca de 200 milhões de anos de evolução, o gênero Homo pouco mais de um centésimo disso, e a civilização humana existe somente desde meio centésimo deste último prazo; em termos evolutivos, estarmos empatados com as baratas é, por certo, uma honrosa conquista). Por sua vez, em maio de 1945 dois cientistas do Projeto Manhattan apostaram quanto a se a detonação de Trinity, a primeira arma nuclear do mundo, no campo de testes de Alamogordo, no Novo México, produziria uma chama quente o bastante para incendiar a atmosfera (e, por conseguinte, incinerar a superfície do planeta; um deles, ao que consta, perdeu a aposta). Os elementos radioativos encontrados na Terra – assim como os demais elementos da tabela periódica – foram produzidos em explosões de estrelas de grandes dimensões, anteriores à formação do próprio Sistema Solar. Esses materiais encontram-se dispersos na crosta terrestre e, pelo calor que geram quando se cindem, ajudam a manter fluido o núcleo metálico do planeta. Para obter combustível nuclear para reatores (ou explosivo para bombas), é preciso coletar o minério bruto, refiná-lo e condensá-lo no teor apropriado, para em seguida usiná-lo e enfim fabricar os componentes de uma reação em cadeia controlada (reatores) ou exponencial (bombas). Ou seja, a concentração de materiais físseis (com a possível, mas controversa, exceção de um “reator nuclear natural” em Oklo, no Gabão) é essencialmente artificial, uma produção humana. Ora, o plutônio, por exemplo, material físsil empregado como explosivo nuclear nesse teste e, meses mais tarde, no artefato lançado sobre Nagasaki, tem uma vida média de cerca de 24 mil anos. Isso significa que, se temos agora uma amostra com cem átomos de Pu239′ em 24 mil anos teremos 50 (pois metade da amostra terá se transformado, por de­ caimento, em outras substâncias), em 48 mil anos teremos 25 e assim por diante. A detonação em Alamogordo, bem como as que ocorreram nas quatro décadas seguintes (a França realizou testes no Pacífico em 1990!), lançaram na atmosfera terrestre sucessivas levas de isótopos de estrôncio e outros elementos radioativos que os ventos distribuíram e depositaram por todo o globo. Esses materiais poderão ser detectados por centenas de milhares de anos, ou seja, durante um prazo equivalente ao da existência do próprio Homo sapiens.

Como é bem sabido, os processos ambientais em grande escala, sejam tectônicos, geológicos ou climáticos, são muito morosos, vastos e poderosos, se comparados com os feitos usuais do engenho humano, e incidiram episódica, mas crucialmente, em diversos momentos da história: a erupção de um supervulcão em Toba, na Indonésia, há 75 mil anos, que teria praticamente dizimado nossos ancestrais (fazendo com que todos sejamos hoje descendentes de um número muito reduzido de ancestrais); a detonação de um vulcão submarino em Santorini, no Mediterrâneo, causando um tsunami de grandes proporções que devastou a próspera civilização minoica, há 12 mil anos; o terremoto de 1775 com epicentro ao largo de Lisboa, que matou um terço da população da cidade, desarticulando o império ultramarino português e afetando profundamente os destinos do Brasil colônia. Não faltam exemplos de incursões abruptas, e via de regra brutais, da geologia na história. Mas o reconhecimento de que entramos no Antropoceno diz respeito ao processo inverso – a história começa a fazer-se geologia. Estudiosos do futuro que porventura se debrucem sobre o período iniciado com a Revolução Industrial – a partir de meados do século XVIII entrou em cena um novo agente, capaz de produzir efeitos de grande abrangência e alcance duradouro.

Observarão, para além dos depósitos mais ou menos uniformes de radionuclídeos de origem artificial por todo o orbe, que os padrões de sedimentação de todas as grandes bacias hidrográficas, em todos os continentes, foram modificados num mesmo século. Que agente titânico seria esse, capaz de intervir em tantos e tão grandes corpos de água, ao redor de todo o globo, num prazo tão curto? Dinamismo de placas tectônicas? Vulcanismos em série? Não, a causa foi o conjunto da atividade humana. Medirão as variações da composição de gases da atmosfera, examinando gotículas de ar aprisionadas nos gelos polares ou avaliando os registros do crescimento das árvores de acordo com a espessura dos anéis de seus troncos, e verificarão, entre outras mudanças significativas, um crescimento cada vez mais acelerado da proporção de gás carbônico – como se houvesse um incêndio constante, ardendo sem parar, por séculos. Esse incêndio não é senão o resultado do aumento incessante do consumo de combustíveis fósseis desde a Era Moderna, cuja consequência é a própria atmosfera passando a funcionar com outra química (variações na camada de ozônio, por exemplo) e com outra física (vide o aumento do efeito estufa, que provoca o aquecimento global). Aferirão também que o regime de comportamento do clima, em escala global, experimentou mudanças importantes e muito rápidas, consubstanciadas na crescente extremização do ciclo hídrico (o volume médio das chuvas muda lentamente, mas a partir de um momento distribui-se em períodos de estiagem prolongada e outros de precipitação concentrada) e no aumento significativo de eventos radicais, como furacões, secas e enchentes. Constatarão, por fim, que um grande número de biornas, nos mais variados habitat terrestres e também nos oceanos, tem passado por situações de estresse vital em virtude, sobretudo, da crescente ocupação de territórios e demanda de recursos por populações humanas sempre maiores, tendo aumentado a taxa de desaparição de espécies de diversas ordens e a realocação de inúmeras outras, em função também das alterações climáticas.

O registro fóssil indica que, ao longo da extensa presença da vida na Terra, ocorreram cinco grandes extinções, em que diversos fatores, alguns bem conhecidos, outros não, fizeram com que um largo número de espécies desaparecesse num prazo muito breve. Há estudiosos que temem já estar em curso uma sexta extinção – alguns estimam uma perda de cerca de 30% da biodiversidade atual até o final do presente século -, mas, caso venha a ocorrer, sua causa será bem identificada.

Timothy Morton[6] observa que as ciências contemporâneas têm revelado uma classe de eventos de grande porte e longa duração que, à diferença das imensidões do espaço e do tempo cósmicos, sucedem muito próximo de nós, nos envolvem, penetram e constituem. O aquecimento global é um exemplo desse tipo de hiperobjeto – a percepção desarmada e o senso comum cotidiano não nos permitem apreender seus contornos, extensão ou modos de funcionamento, e não obstante ele está aqui, estamos envolvidos nele, embebidos dele. O significado mais profundo da descoberta de que vivemos entre hiperobjetos, argumenta Morton, é a abolição definitiva das antigas fronteiras ontológicas que pretendiam distinguir seres da natureza de entes da cultura. Toda a vida na Terra está entrando no Antropoceno, inseparável de nós. Em consequência de termos nos convertido numa força natural, nossa atividade passa a ter como contexto e horizonte imediatos as demais forças naturais. Dito de outro modo: o Antropoceno implica que a civilização humana e seu regime dominante de produção econômica, isto é, de transformação material, o “mercado” capitalista global, terão doravante de confrontar-se com a circulação dos ventos na alta atmosfera, a taxa de refletividade dos oceanos, os ciclos dos nutrientes nos solos, o reabastecimento dos aquíferos, a polinização das flores, a multiplicação dos patógenos. As leis inflexíveis do “mercado” confrontam as leis incontrastáveis da física, da química, da biologia. A economia converge com a ecologia – se não como projeto racional, então como paixão avassaladora.

O desafio seria assim o de elaborar modelagens prospectivas que nos permitissem avaliar possíveis trajetórias existenciais futuras do peculiar sistema complexo “Terra Civilis”, agora que a ação humana tornou-se componente significativo do metabolismo material, energético e fundonal do planeta (o ativista Bill McKibben sugere, para melhor designarmos o estado de coisas global nos tempos do Antropoceno, trocarmos o nome do astro em que viveremos para algo como “Teerra”[7]). Se a inspiração do projeto HANDY puder nos servir de diretriz, isto é, se admitirmos que índices elevados de população, consumo e desigualdade são signos perigosos de percursos insustentáveis, as perspectivas não parecem exatamente animadoras. Somos hoje, na segunda década do século XXI, cerca de 7 bilhões de almas; as projeções da ONU indicam que por volta de 2050 deveremos ser ro bilhões de habitantes, sendo os 3 bilhões suplementares nascidos principalmente num cinturão tropical de países pobres – se não houver medidas redistributivas, a tendência será decerto a de um aumento ainda maior da desigualdade. Mas, segundo relatório da Oxfam, a distribuição desigual de recursos na atualidade já é simplesmente assombrosa: os oitenta indivíduos mais ricos do mundo hoje detêm mais valores que metade da humanidade, 3,5 bilhões de pessoas. E, em particular, o principal vetor de transformação ambiental na atualidade, a mudança do clima global, deverá gerar crescentes e profundos impactos no sustento e nos modos de vida de legiões desses despossuídos.

De fato, para diversos pensadores o cenário é bem pouco animador. James Lovelock[8], o notável climatologista britânico, formulou nos anos 1980 a famosa hipótese Gaia, segundo a qual a Terra se comporta como um único organismo, cujo habitat é a luz e a gravidade do Sol. Segundo a proposta, o funcionamento conjunto dos seres vivos operando ao longo dos éons da evolução não somente se adaptaria continuamente às condições físicas do planeta como também levaria a modificações do próprio suporte físico da vida, influenciando em fatores que abrangem desde os regimes do clima, passando pela composição da atmosfera, até a formação das plataformas continentais sedimentares na orla dos continentes. Ainda que a comparação do sistema Terra com um único organismo não tenha sido aceita, o conceito de um dinamismo mútuo entre os biornas e seus ambientes, na escala de todo o globo, abriu caminho para um entendimento mais aperfeiçoado do comportamento complexo do planeta vivo. Ora, já há alguns anos Lovelock definiu seu ponto de vista: a crise climática é irreversível e não existe reforma do setor produtivo ou milagre tecnológico que a possa evitar; problemas de abastecimento de alimentos e de água se tornarão críticos em breve, levando diversas regiões a experimentar convulsões sociopolíticas profundas; é provável, em consequência, a deflagração de conflitos armados em escala regional e global, inclusive com o emprego de armas nucleares; sua previsão é que, ao cabo de décadas de turbulência, a humanidade enfim se reassentará num planeta castigado, reduzida a cerca de 500 milhões de habitantes – um quatorze avos do contingente atual, o mesmo que existia por volta do ano 1000.

Não é indispensável conformar-se com as tintas dramáticas do cenário que Lovelock nos augura. O ativista Paul Gilding[9] defende que, num prazo curto – sua aposta é o ano de 2018, curiosamente, ou não, um século exato após o fim da Grande Guerra-, o entendimento sobre o real significado de estarmos no Antropoceno, até aqui praticamente restrito às academias de ciências e a uns poucos círculos ilustrados, será disseminado para as lideranças políticas e empresariais e para a população em geral, na maioria dos países. Os próprios mandatários do sistema capitalista compreenderão que a continuidade do business as usual será a garantia final de que, em breve, deixará de haver o usual e, quem sabe, pouco restará até mesmo do business. Para os que vislumbram na crise global uma oportunidade de grandes lucros – sim, há agências financeiras que preveem vantagens estupendas para quem investir na derrocada da civilização -, Gilding apresenta o cristalino exemplo dos colonizadores vikings da Groenlândia: com o esfriamento do clima, os camponeses pereceram de fome, e os nobres abastados, que ainda tinham alimentos estocados, demoraram um pouco mais para morrer de desnutrição. O atual regime de funcionamento da produção econômica sob a regência de um capitalismo financeirizado, oligopolizado e globalizado não é sustentável, e esse não é um fato que advirá em 200 anos: não é sustentável agora. Será necessário um autêntico choque de realidade para que as forças políticas e sociais superem a inércia habitual, choque que provavelmente será ministrado por um rosário de desastres e catástrofes que apontarão clara e insofis­ mavelmente o custo exorbitante de não se fazer nada. Num prazo muito breve, a imensa capacidade produtiva da tecnociência contemporânea será direcionada para preparar e conduzir a inevitável transição para um novo estado de coisas civilizacional, a par do esforço para a manutenção da própria sociedade. Gilding toma como exemplo concreto de uma tal reorganização em grande escala e da incrível rapidez de setores produtivos inteiros o esforço bélico dos EUA quando de sua entrada na Segunda Guerra Mundial: em três meses, as fábricas de automóveis haviam trocado a produção de carros pela de tanques; nos estaleiros, navios que demoravam 12 semanas para ser construídos passaram a ser aparelhados em um dia. Mudanças de tal amplitude, em tal brevidade, nunca são perfeitamente eficientes nem completamente indolores, mas Gilding acredita que um esforço coletivo mundial, motivado pela premência e pelos enormes riscos da situação, poderia pavimentar o caminho para uma adaptação da humanidade como um todo a esse novo estado de coisas do qual ela mesma foi causadora, de modo que, apesar de percalços e turbulências, cheguemos ao final do século XXI numa trajetória estável.

O conceito de Antropoceno nos induz a refletir a partir de um novo ponto de vista: se nos tornamos uma espécie planetária, se o que está em jogo são os modos e as consequências das práticas produtivas do conjunto da humanidade, a começar pelo consumo total de recursos e pela geração total de resíduos, então os destinos da espécie e do planeta estão inextricavelmente coligados. O crescimento exponencial do conhecimento que hoje logramos – superado somente pelo desenvolvimento ainda mais acelerado de suas consequências práticas, isto é, dos avanços técnicos – é rigorosamente paralelo e síncrono ao desequilíbrio igualmente exponencial que estamos impondo a uma variedade de ciclos vitais que sustentam nossa existência e a de inúmeras outras formas de vida. É pelo emprego da razão que podemos identificar fatores que, com muito grande probabilidade, participarão da construção da continuidade estável da civilização ou de sua derrapagem rumo ao colapso. Hoje, pela primeira vez na história, mais da metade da humanidade é letrada – e, dessa me­ tade, mais da metade são mulheres; se recordarmos que, no começo do século passado, o percentual de alfabetização feminina era próximo de um traço, podemos concluir que, em pouco mais de quatro gerações, uma colossal redistribuição de poder cognitivo foi alcançada. Pela primeira vez, a maior parte da humanidade pode ter acesso às formas mais duradouras e elevadas das diferentes culturas humanas, pode usufruir do repertório comum de sabedorias legado por nossos ancestrais, pode comunicar-se e refletir em conjunto sobre os aspectos essenciais da manutenção de nossa existência e da construção de nosso porvir. Nunca dantes houve os meios objetivos, materiais, para que se concretizasse uma comunidade humana verdadeiramente planetária. Nunca essa comunidade foi tão necessária.

Mas não temos ilusões, a esta altura, de que discernimento científico e poderio técnico impliquem lucidez ética. A grande aceleração das últimas seis décadas, quando o Antropoceno efetivamente se consolidou numa realidade irreversível, foi a ocasião de triunfos científicos e técnicos indiscutíveis, expressões incomparáveis da imaginação criadora do Homo sapiens e, no entanto, o emprego generalizado de instrumentos e procedimentos racionais nos levou aos grandes desafios da atualidade: as mudanças ambientais, a população imensa, a desigualdade intolerável. Há setores ativos e empreendedores da sociedade contemporânea, operando desde o coração mesmo do capitalismo, que parecem dispostos a encarar o grosso da humanidade e o corpo do planeta com uma impessoalidade análoga à dos pilotos de drone em relação a seus indivíduos-alvo. Basta considerar por um momento uma conjuntura global em que uma população cada vez mais numerosa passa a ser vista como obstáculo para a manutenção ou extensão do status quo civilizacional, profundamente desigual e injusto; mais que apenas inconveniente, porém, essa vasta maioria de despossuídos poderia não ser mais considerada, a longo prazo, necessária. Justificar-se-ia, em boa razão, o câmbio de atributos para essa gente toda: de excessiva para excedente. Já se vê a que conclusão esse raciocínio especulativo irá conduzir.. . O horizonte de abrangência de diversas capacidades técnicas presentemente em desenvolvimento parece suficientemente amplo para incluir todo o globo e, por conseguinte, toda a humanidade: terraformação, administração de populações, inteligência artificial, biologia sintética … Dados os meios de intervenção em tal escala, pode-se avaliar as medidas estratégicas requeridas para que se logre alcançar este ou aquele desígnio “racional”. Mais uma vez, os alvos poderão ser perfeitamente identificados e os perpetradores, inteiramente impessoais. De diferente, somente a dimensão aterradora – a da própria espécie. A mera consideração dessas possibilidades sugere a reavaliação urgente dos quadros habituais de debate e ação política.

Pois o fato decisivo é que somos hoje demandados, como pessoas, como cidadãos, como agentes políticos, como seres humanos, a participar do ingresso neste novo e desconhecido hiperobjeto, o Antropoceno. Podemos, se quisermos, tentar ser indiferentes a ele, mas ele decerto não será indiferente a nós. Somos assim convocados a elaborar e praticar novas formas de cidadania, de ação política e de postura ética, invenções que nos permitam tripular a nave chamada Civilização rumo à superação dos estreitos turbulentos que se avizinham. Se lograrmos estabilizar nosso percurso, nossos descendentes verão descortinar-se à sua frente rotas de aventura que nem sequer podemos imaginar, e então estaremos justificados, teremos florescido. E os habitantes desse amanhã nos louvarão por termos sido uma ponte, um meio, um modo para a vida prosperar, e seus poetas nos celebrarão com saudade.

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