2017

A sociedade à prova de promessas: as aporias do estrangeiro

por Olgária Chain Féres Matos

Resumo

O Navio de Teseu é a conhecida lenda da Grécia antiga sobre o herói que partira de Atenas para combater o Minotauro. Quando de seu retorno, os cidadãos, em sua homenagem, conservaram a embarcação com tal cuidado e atenção que iam substituindo as peças gastas por outras, conforme surgissem danificações. Assim, o navio conservou, durante muitos séculos, um esplendor de novo; afinal, com o tempo, não lhe restava nenhuma peça antiga. Tal episódio foi utilizado na história da filosofia para figurar o que, na incessante mudança, pode permanecer o mesmo apesar das transformações, a identidade como fidelidade a si mesma. Eis o que permite a confiança em uma palavra empenhada, a priori de toda ação coletiva, primeira norma com a qual se tornam possíveis empreendimentos comuns: “A desconfiança generalizada é a guerra”.

Confiança incondicional, eis uma das aporias da promessa de que tratam Descartes e Derrida, pois ela é portadora de estabilidade em um horizonte de incertezas, descontinuidades e rupturas. Se a promessa se aproxima do juramento, uma promessa quebrada é como um perjuro. Circunstância das mais delicadas, porque a promessa é o que permite a transmissão de experiências e valores entre as gerações, as filiações, por evocar uma autoridade que, diferentemente do poder e da força, encontra sua legitimação no passado, sancionada pelo tempo, fiadora de confiança e proteção.


A ORIGEM, O ESTRANHO, A PROMESSA

O “Navio de Teseu” é a conhecida lenda da Grécia antiga sobre o herói que partira de Atenas para combater o Minotauro[1]. Quando de seu retorno e em sua homenagem, os cidadãos conservaram a embarcação com tal cuidado e atenção que iam substituindo as peças gastas por outras, conforme surgissem danificações. Assim, o navio conservou, durante muitos séculos, um esplendor de novo, do qual não restara, no entanto, nenhuma peça original. Tal episódio foi utilizado na história da filosofia para figurar o que, na incessante mudança, pode permanecer o mesmo apesar das transformações. Isto não quer dizer que não há identidade ou que há alguma identidade, como já o observava Platão no Teeteto quando ironizava os sofistas para os quais “tudo está em incessante mudança”.

Nessa linhagem, Plutarco argumentava que, se assim fosse, “quem fez um empréstimo ontem não deve mais nada hoje”, pois se tornou “outro”, ou, “se somos convidados para um jantar amanhã, iremos como ‘não convidados’, pois nossos anfitriões terão se tornado outros”[2], com isso compreendendo que o mobilismo total é incompatível com a vida social.

Não se trata aqui da identidade como origem, sempre idêntica a si mesma, pois a origem é, desde o início, imediatamente heterogênea:

O mais matinal da Frühe [matinal, precoce], em sua melhor promessa, teria em verdade um outro nascimento e uma outra essência, hete- rogênea na origem de todos os testamentos, de todas as promessas, de todos os acontecimentos, de todas as leis e marcas que são nossa própria memória. Heterogênea na origem: isto tem ao mesmo tempo e de uma só vez três sentidos: i. heterogêneo desde a origem, origina- riamente heterogêneo; 2. heterogêneo em relação ao que se denomina origem, algo diferente da origem e irredutível a ela; 3. heterogêneo […] porque está e muito embora esteja na origem […], eis a forma lógica da tensão que faz vibrar todo este pensamento[3].

Isso significa que a origem não coincide consigo mesma, que toda experiência originária contém um retardamento: “Tudo se passa como se eu estivesse sempre atrasado com respeito à origem, […] como se tudo já tivesse desaparecido. Toda experiência nunca é pontual, não está nunca na hora certa, ou, como diz Derrida citando Hamlet, o tempo está ‘fora dos gonzos’[4]”. O si-mesmo se constitui na duração e, assim, a consciência é sempre excedida pela heteronomia do tempo: “O eu não é um ser que permanece sempre o mesmo, mas o ser cuja existência consiste em reencontrar sua identidade através de tudo o que lhe ocorre[5]”. Porque a identidade é de natureza espiritual, Gilles Hanus refere-se ao débito declarado de Derrida com respeito a Lévinas em suas reflexões sobre lógos, identidade e tempo:

a razão [o lógos] é uma força unificadora, é a capacidade de colocar as coisas em uma relação. Ao um, o outro acrescenta o múltiplo, o que difere; se não houvesse o outro, só haveria o mesmo, o lógos apreen- dendo o ponto em que se cruzam; comunicá-los não é perder nem a identidade, nem a diferença, mas torná-las relativas; ligado ao outro, o um não é mais propriamente um; relativo ao um, o outro não é absolu- tamente outro, não é senão o outro do um. O lógos filosófico admite a diferença sem a suprimir, mas colocando-a em um todo superior, isto é, o diferente vem a ser o distinto; a in-intimidade [o estranhamento] só é momentânea, é o lapso de tempo que separa a experiência da novidade de sua integração em um quadro coerente[6].

Babelizando a origem, Derrida expõe sua crítica ao princípio de identidade, a desconstrução que se aproxima da análise que, etimologicamente, significa desfazer, um sinônimo virtual de des-construir que, como a dialética platônica, é crítica das oposições irredutíveis consideradas, no Timeu, “má divisão”, pois esta não se mantém ante a análise, a decomposições e reconfigurações. Assim, o estrangeiro, aquele que não é originário de um lugar, só difere do autóctone porque este o habita por uma residência mais antiga.

Eis por que Derrida desconstrói a ideia de razão tal como apresentada na História da loucura na época clássica, em que Foucault atribui a Descartes a exclusão da loucura da “cidadela bem fortificada da razão”, pelos excessos de uma imaginação desregrada que assombra o cogito sonolento e noturno. Com efeito, se a razão diz o claro e distinto, e a loucura, o obscuro e confuso, a razão só poderia ser racional se idêntica a si mesma. Para Derrida, diversamente, a loucura é uma das possibilidades do pensamento racional, é a extravagância que questiona a substancialidade do sujeito:

a audácia hiperbólica do cogito cartesiano, sua louca audácia – que talvez já não compreendemos muito bem como audácia porque, à diferença dos contemporâneos de Descartes, estamos demasiado con- fiantes, demasiado rendidos a seu esquema mais que a sua experiência aguda – consiste em voltar ao ponto originário que não pertence mais ao par razão e des-razão, a sua oposição ou alternativa […]. Pois não há alguma dúvida de que, para Descartes, é somente Deus quem prote- ge contra a loucura [Deus, em sua infinita perfeição, não se engana e garante que as verdades matemáticas permanecerão verdadeiras quer se esteja acordado, sonhando ou alucinando] à qual o cogito, em sua instância própria, não poderia senão abrir-se da maneira mais hospi- taleira. […] A leitura de Foucault me parece forte e iluminadora […] [no momento] mais álgido do cogito, em que a razão e a loucura ainda não se tinham separado, quando tomar o partido do cogito não é tomar o partido da razão como ordem racional, nem o da desordem e da loucura, mas recuperar a fonte a partir da qual podem determinar-se e dizer-se razão e loucura[7].

Rompendo com as hierarquias das oposições conceituais de razão e des-razão, nomeando a ambas simultaneamente, a diferença se desvincula da simples oposição, indicando o limiar de compartilhamento entre o eu e o eu como um outro, diversamente da dialética especulativa de negações e superações.

Nesse sentido, Derrida se refere a palavras que guardam sentidos discordantes, como pharmakon[8], remédio e veneno; suplemento[9], ao mesmo tempo o que acrescenta e o que substitui; khora[10], oscilando lugar e não lugar, o que dá forma mas não tem forma (forma amorfa), espaçamento, espaço e tempo[11]. No Timeu, Derrida salienta que o espaço é um dépaysement, está “fora dos gonzos”: “a khora é anacrônica, é a anacronia no ser, ou melhor, a anacronia do ser. Ela anacronisa o ser[12]”. E ainda a palavra latina finis, simultaneamente limite e território. Não por acaso, as análises de Derrida reconduzem ao ensaio “O sentido antitético das palavras primitivas”, em que Freud, baseando-se na obra do filólogo Karl Abel, indica como, em muitas línguas – o egípcio antigo, o sânscrito, o árabe e o latim –, os opostos são designados pela mesma palavra. Citando Abel, Freud anota:

na língua egípcia, esta relíquia única do mundo primordial, encontra-se um certo número de palavras com dois sentidos, sendo um exatamente o contrário do outro […], a palavra forte, significando tanto forte quan- to fraco; a palavra luz servindo tanto para designar a luz quanto a escuridão, um morador de Munique chamando cerveja a cerveja, enquanto um outro empregaria o mesmo termo para falar da água […]. Diante desses casos e muitos outros semelhantes, com acepção antagônica, não se pode duvidar que, em uma língua, existiram numerosas palavras designando, simultaneamente, uma coisa e seu contrário[13].

Assim também o Unheimliche[14], no qual heimlich é, ao mesmo tempo, o familiar e o estranho, o prefixo Un, como negação, não evocando uma distinção originária entre duas naturezas dissonantes, desde o início contrárias, mas que resultaria de um processo inconsciente que confere ao que é familiar, quando ele se apresenta novamente, uma aparência inversa. O não familiar não o é simplesmente por não ser familiar, mas por não o ser mais: “a inquietante estranheza é uma variante particular do sinistro que remonta àquilo que há muito é conhecido, há muito tempo familiar[15]”. Enquanto familiar “encoberto”, o Unheimliche se manifesta como uma especificação do heimlich que, não sendo oposição, é sua derivação, uma vez que não apenas o Unheimliche foi familiar, mas, por o ter sido, reverte a angústia em inquietante estranheza[16].

Da mesma forma, sentidos contraditórios se encontram na palavra hospitalidade, cujo radical hos encontra-se em hospes, hostis e hóstia – anfitrião, inimigo e o animal sacrificado como oferenda ritual. Hôte, em francês, significa tanto o anfitrião quanto o hóspede, como também a palavra alemã Gast, de tal maneira que anfitrião, hóspede e inimigo compõem um campo comum, sem uma clara distinção entre hóspede e anfitrião, aco- lhimento e rejeição, o hóspede podendo, por um excesso de proximidade, ameaçar o anfitrião fazendo dele um refém[17]. Por isso, Derrida escreve:

Acolher […], mas […] na angústia e no desejo de excluir o estrangei- ro, convidá-lo sem o aceitar, hospitalidade doméstica que acolhe sem acolher […] um estrangeiro que já se encontra [dentro da casa] [. ], a

proximidade absoluta de um estranho cuja […] potência [é] [. ] indeci-

dível [. ], uma a-identidade que ocupa, invisivelmente e sem fazer nada,

lugares que não são finalmente nem os nossos nem os seus[18].

Como conhecido e estranho, o outro, sem identidade definida, provoca o sentimento de um temor que faz tremer. Anota Derrida:

o tremor, pelo menos como sinal ou sintoma, [o] é [de] algo que já ocorreu; [é] o evento que faz alguém tremer [e] é o presságio de [algo que] continua a ameaçar. Sugere que a violência vai irromper novamente, que algum trauma insiste em se repetir [ ]. Frequentemente não conhecemos nem reconhecemos a origem [ ] do que está acontecen-

do conosco. Trememos com a estranha repetição que liga um passado irrefutável (um choque foi sentido, algum trauma já nos afetou) a um futuro que não pode ser antecipado, [e se] antecipado [é] imprevisível […], aproximado como não aproximável. Tremo diante do que excede meu ver e meu saber, embora diga respeito à minha parte mais íntima[19].

O tremor provém do sentimento do misterioso e desconcertante que se encontra em todas as variações da vida anímica, normais e patológicas, como as experiências de desrealizações dos traumas e do luto, quando o mais familiar parece irreal e o cotidiano se torna inexplicavelmente insólito; presente também nas despersonalizações e abalos da identidade, em que cada um se confronta com a falta de domínio de si, em um horizonte de risco e medo: “na despersonalização, o homem aparece a si mesmo como um estrangeiro por não poder mais ser apreendido em uma perspectiva de autorreconhecimento[20]”.

Despersonalizações, desrealizações e estranhamento referem-se a fantasmas que, como aparições, mesclam realidade e sobrerrealidade. O estranho é fantasmal como as sombras platônicas, identidades flutuantes e incertas, assombrações que são movimento de ir e vir, para além das delimitações dos corpos vivos, em uma extraterritorialidade que suscita conjurações, defesas e estratégias de enfrentamento contra o que nos assusta: “[o espectro] é fugidio e inexpugnável, ele vem do passado, [é] um chamamento, um despertar, uma dívida e talvez puro imaginário. Em todo caso, um objeto que perturba o pensamento, que torna frágil qualquer ‘objetualidade’ das coisas tranquilizadoras[21]”. Sem identidade definível, o espectro é paradoxal:

[ele] é o devir-corpo, uma certa forma fenomenal e carnal do espírito. Ele torna-se alguma “coisa” difícil de ser nomeada: nem alma nem corpo, um e outro. Pois a carne e a fenomenalidade, eis o que dá ao espírito sua aparição espectral, mas desaparece logo na aparição, na própria vinda do revenant ou no retorno do espectro. Há algo do desaparecido na própria aparição […] como reaparição do desaparecido. O espírito [Geist], o espectro [Gespenst], não são a mesma coisa […]; mas, sobre o que têm em comum, não se sabe o que é, o que é presentemente. […] Não se o sabe: não por ignorância, mas porque este não objeto, este presente não presente, este estar-aí de um ausente ou de um desapare- cido não provém mais do saber[22].

Razão pela qual no inimigo, declarado ou alucinado, receado ou rechaçado, projetam-se os fantasmas da comunidade, de seus temores e fobias identitárias:

de fato, a identificação do inimigo alimenta e fortalece um pacto de fidelidade entre os que se reconhecem – multiplicam-se as reivindica- ções de origem, de raízes comuns, até mesmo de consanguinidade –, [o que] se transforma em negação e subestima de tudo o que, no seio da comunidade, é considerado individual e particular. O que se diferencia é por si só suspeito […]. O fantasma da traição agita desde o início o sono dos irmãos prometidos[23].

Quanto ao inimigo pessoal, o meu inimigo, ao contrário do inimigo comum ao grupo, ele não representa a singularidade, mas a enfatiza na figura do duplo, de um próximo ou irmão. Nas palavras de Freud: “o duplo é uma formação que pertence aos tempos primitivos, ultrapassados, da vida psíquica […]; tornou-se uma imagem de pavor da mesma maneira que os deuses tornam-se demônios depois de sua religião ter ruído[24]”. Duplo, sósia ou estranho, eles ameaçam nossa identidade, como se viessem roubar nossa alma e nosso destino, a proximidade tornando-se ameaçadora quando se desfazem os laços da familiaridade, da confiança e da amizade. Refletindo sobre o sentido político da fraternidade, Derrida observa: “nunca houve nada de natural na figura do irmão, cujos traços muitas vezes foram calcados no rosto do amigo – ou do inimigo, do irmão-inimigo[25] […]. A relação com o irmão implica desde o princípio a ordem do juramento, do crédito, da crença e da fé[26]”. De onde a relação entre fraternidade, amizade e política, de um lado, hostilidade, inimizade e guerra, de outro.

Em Politiques de l’amitié, Derrida analisa a concepção política de Carl Schmitt, baseada na oposição radical entre amigo e inimigo, diferenciando a hostilidade da simples inimizade. Na oposição schmittiana entre amigo e inimigo, a hostilidade é absoluta – como nos escritos e práticas de Lênin, radicalizadas por Stálin e por Mao Tsé-tung –,é o ideário do irmão-inimigo como na concepção de guerra de classes, de religião ou de raças, em que não há oposição dialética dos termos, tampouco trânsitos, mas alteridade separada e irrecuperável à composição dos contrários. Por isso, para Derrida, o conflito entre amigo e inimigo de Schmitt é, melhor dizendo, confronto de inimigo e inimigo: “‘Partir do inimigo’ não é o contrário de ‘partir do amigo’. [….] Não há espaço, não há lugar […] [nem] para uma definição ou [nem] para uma distinção – sem a possibilidade real da guerra[27]”. Por isso, ao refletir sobre o amigo e o inimigo, já Platão diferenciava gregos e estrangeiros, gregos e bárbaros, o estrangeiro próximo (xenos ou hospis) – o estrangeiro do mesmo, o alius, com o qual se pode fazer a paz – e o estrangeiro distante, o heteros, a alteridade inconciliável, o distante mais que distante, com o qual a paz é impossível, pois é o estrangeiro mais que estrangeiro, o inimigo mais que inimigo[28]: “se o mais que estrangeiro não me reconhece como estrangeiro, ele não me reconhece [nem mesmo] como inimigo, ele só me percebe como mais que inimigo, como obstáculo a sua sobrevivência[29]”. Pois, se há os philoi, aqueles a quem se está vinculado por laços de proximidade e afeição – uma vez que philoi é, originariamente, um pronome possessivo que significa “os meus” –, também há o xenos, o estrangeiro-hóspede que se recebe como se fosse dos “meus” (ainda que por um tempo limitado), e aqueles que não se acolhem, os bárbaros, com os quais se pode estar em paz ou em guerra. Refletindo sobre o estrangeiro em Platão, Henri Joly observa:

Quer se trate do diferendo entre gregos e bárbaros ou de uma “gigan- tomaquia”, como no Sofista, entre uranianos e ctonianos, isto é, de uma antinomia entre as Ideias e os corpos, o ser e o movimento, cada caso verifica que uma discriminação não representa uma divisão e que a lin- guagem comum deve ser revista em proveito de uma nova linguagem. Esta nova linguagem, dialética, […] é uma linguagem analítica que só poderia ser falada por um outro: a linguagem do estrangeiro[30].

Nesse sentido, a dialética e a desconstrução revelam não a polissemia das palavras, mas disseminações que desfazem distinções extremas, figurando a vanidade da maior parte dos conflitos, porque o mais das vezes a violência começa por opiniões cabais.

Porque a identidade não se dissolve na diferença, tampouco o diferente no idêntico, Derrida, francês nascido na Argélia, respondia, sobre sua nacionalidade – se judeu, argelino ou francês –, dizendo ser europeu “de part en part” (atravessado por algo mas que não concerne a totalidade de um ser) e “à part entière” (sem restrição, totalmente):

Eu sou europeu, sou sem dúvida um intelectual europeu, gosto sempre de lembrar […]. Mas não sou, nem me sinto de part en part [não me sinto totalmente europeu, só em parte] […]. O pertencimento à part entière [sem restrição] e o de part en part [não completamente] deveriam ser incompatíveis. Minha identidade cultural, aquela em nome da qual eu falo, não é somente europeia, não é idêntica a si mesma. […] Se, para concluir, eu declarasse que me sinto europeu entre outras coisas, seria com isso, nesta mesma declaração, mais ou menos europeu? Ambos, sem dúvida[31].

Ao mesmo tempo no centro e na margem, francês e estrangeiro, Derrida recusa todo pertencimento na forma do próprio, impaciente com toda identificação gregária e todo militantismo identitário em geral:

Derrida, nascido na Argélia, nela passou sua infância e adolescência. Enfrentou todas as tentações do refúgio comunitário e militante. Ele conta, no Cartão-postal, como (durante a ocupação alemã na França e as leis racistas de Vichy a partir de i940) foi excluído da escola pública [francesa], no dia de seu ingresso no ginásio, pelos dispositivos polí- ticos antijudaicos e como os professores excluídos do ensino público pelas mesmas razões haviam criado um liceu paralelo para os alunos judeus em Argel, que ele nunca quis frequentar. Depois, houve a inde- pendência da Argélia [em i962], particularmente difícil para uma famí- lia nela instalada há muitas décadas. Derrida poderia ter-se acomodado no comunitarismo judaico, ou no pied-noir (como eram designados os franceses nascidos na Argélia), ou, ao contrário, no militantismo anticolonialista. Se não fez nada disso é por sofrer tanto com o aprisionamento comunitário quanto com a exclusão, apoiando a independência ao mesmo tempo que confessa sua “nostalgéria”; mais uma vez não está nem bem dentro, nem fora, noções simultaneamente topográficas, lógicas e políticas[32].

Criticando os enraizamentos, Derrida considera, no entanto, também a necessidade de pertencimento. Por isso, ele se diz, ao mesmo tempo e sem restrição, europeu, mas não totalmente europeu, seu pertencimento assombrado pelo fantasma do estrangeiro: “ser franco-magrebino […] não é algo a mais, ou um acréscimo ou uma riqueza de identidades […]. Isto revelaria, melhor dizendo, uma perturbação na identidade[33]”.

É essa identidade antitética, constituída por diferentes genealogias, nosso “romance de formação”, a memória e a identidade que nos fazem herdeiros, que marcam nossa responsabilidade com a filiação e com a transmissão:

a herança é aquilo de que não podemos nos apropriar, o que me cabe e de que tenho a responsabilidade, o que me toca em herança, mas sobre o que não tenho um direito absoluto. Herdo algo que devo também transmitir. Quer se estranhe ou não, não há um direito de propriedade sobre uma herança. Eis o paradoxo. […] Responsável de mim diante do outro, eu sou primeiramente e também responsável pelo outro diante do outro[34].

A herança designa uma responsabilidade e uma dívida que garantem a projeção de si mesmo na promessa, o que permite a confiança em uma palavra empenhada, a priori de toda ação coletiva, com a qual se tornam possíveis empreendimentos comuns e um porvir que – diferentemente do futuro já delineado que prolonga um passado, ainda que o altere – é abertura a uma diferença que se projeta para o inesperado: “O que seria o porvir se a decisão fosse programável e se a outra, a incerteza, a certeza instável, se a insegurança do ‘talvez’, não fosse suspensa na abertura do que advém diretamente no evento?[35]”. A promessa antecipa um futuro, comportando sendo sempre o risco de não ser mantida: “Prometer algo a si mesmo ou a outros, é exprimir sua vontade de não mudar de vontade. No que eu prometi, eu me engajei, eu o quererei ainda e sempre enquanto não for realizado[36]”.

Uma promessa é, originariamente, promessa de manter, em qualquer circunstância, a palavra empenhada. Como memória da vontade, a promessa transforma a dimensão temporal em história, mas em um outro regis- tro que não o dos cronômetros. Como escreve Derrida:

“o pensamento da promessa ou do prometer […] abre […] no ‘presente’ […] um futuro não saturável, a antecipação de um porvir que nada poderia fechar[37]”. Porque o futuro é indeterminado e a realização de uma promessa sempre incerta, o que une quem promete àquele a quem promete é um vínculo ético que cria um nós baseado na confiança, anterior esta a qualquer laço social e, simultaneamente, sua condição[38].

Enigma da promessa:

“embora oferecendo alguma verificação, o futuro não pode ser confirmado,

nem desmentido. Isso porque, não obstante minha atenção e pontualidade,

o encontro marcado com o outro falha; e, mesmo chegando adiantado, estou inevitavelmente e sempre atrasado. É desse atraso irrecuperável que deriva

[…] a própria diacronia do tempo[39]”.

Do passado ao futuro há o entre que os põe em movimento, que faz passar de um ao outro e que proíbe tomá-los como entidades distintas, pois entre eles há o fantasma que perpassa as fronteiras, os revenants de todas as guerras, extermínios, violências e opressão.

Porque o futuro é contingente, o passado também o é, e entre eles se inscreve a promessa de um porvir que não tem o status da presença – porque ele é questão de chegar e não de partir, de repetição e não de inauguração –, para criar a comunidade que virá. Repetição e retorno do que foi uma primeira vez significa que a historicidade não é só a possibilidade de sua transmissão, mas também de seu nascimento, porque o que foi jamais voltará como tal; ele virá como “evento” em um horizonte de espera, sem previsão: “sem esta desolação – se propriamente se pudesse contar com aquele que vem – a esperança só seria o cálculo de um programa[40]”. Porque nada pode ser garantido com certeza, o tempo é sempre experimentado como já passado ou ainda por vir: “Repetição e primeira vez mas também repetição e última vez, pois a singularidade de toda primeira vez faz dela também uma última vez[41]”.

PROMESSA, O DIFÍCIL JURAMENTO

Ato de fé, então, a promessa excede sua realização, possuindo uma relação com o voto[42] no sentido da espera do que parece impossível, uma oferenda que envolve também o juramento. Este apoia, garante, reforça e soleniza uma promessa, um pacto, um engajamento, uma declaração. Benveniste[43] observa ser ele um rito oral, podendo ser completado por um gesto cerimonial que institui a relação entre a palavra pronunciada e a potência invocada, entre quem jura e o domínio do sagrado:

O juramento é um operador antropogenético pelo qual o ser vivo, que se descobre falante, decidiu responder por suas palavras […]. Algo como uma linguagem humana não pôde aparecer senão no momento em que o ser vivo que se encontrou cooriginariamente exposto à possi- bilidade da verdade quanto da mentira, engajou-se em responder sobre a vida de suas palavras, a testemunhar por elas[44].

Os helenistas enfatizam como o Ocidente herdou da Grécia a centralidade do juramento[45], juramento sempre feito tendo uma testemunha, Deus ou um objeto sacralizado: “define-se a promessa como um ato que estabelece uma relação dual entre um enunciador e um destinatário, enquanto o juramento instaura uma relação triangular entre um enunciador, um destinatário do engajamento e uma divindade garantidora do enunciado[46]”. Pois, se a promessa é uma palavra de homem a homem e porque as palavras se desmancham no ar, no juramento ela é dada a um terceiro, a Deus, que jamais poderia ser enganado: “a sinceridade perfei- ta no momento do compromisso, como fidelidade a um engajamento feito diante de Deus, é necessária para que o juramento seja autêntico e verdadeiro[47]”. É assim que, na Grécia, os efebos prestavam juramento:

Não desonrarei as armas sagradas que eu trago comigo, não abando- narei meu companheiro de combate; lutarei pela defesa do culto dos deuses e da cidade e transmitirei aos mais jovens uma pátria não mais diminuída, mas maior e poderosa, em toda a medida de minhas forças e com a ajuda de todos. Obedecerei aos magistrados, às leis estabele- cidas, às que forem instituídas; se alguém quiser derrubá-las, eu me oporei com todas as minhas forças e com a ajuda de todos. Venerarei o culto a meus pais. Tomo por testemunhas deste juramento Aglauros, Hestia, Enyó, Enyalios, Ares, Atena Areia, Zeus, Thalló, Auxó, Hege- monés, Héracles, as Fronteiras da pátria, o Trigo, a Cevada, as Vinhas, as Oliveiras, as Figueiras[48].

Ato verbal, sem ele as relações sociais não se estabeleceriam, mas, simultaneamente, o juramento se deve justamente à imperfeição dos homens que não podem com frequência cumpri-lo e pelo que são punidos[49]. Nesse sentido, é exemplar o episódio da renúncia de Aquiles à luta na Ilíada, jurando não mais responder ao comando do rei Agamemnon:

eu proclamo e faço um juramento, juro sobre este cetro, que de agora em diante não produzirá mais nem folhas nem ramos, que nunca mais verdejará depois que, separado do tronco nas montanhas, o ferro o despojou de seu caule; por este cetro que hoje seguram em suas mãos os juízes da Grécia, encarregados por Júpiter de fazer respeitar as leis; terrível juramento, pois espero que um dia todos os aqueus hão de desejar a presença de Aquiles e que você [Agamemnon], apesar de sua dor, não poderá socorrer, quando tombarem expirando sob os golpes do homicida Heitor. Então, em fúria, você rasgará o peito por ter ultra- jado o mais valoroso dos gregos[50].

Como apoio ao juramento, Aquiles evoca em testemunho seu espectro refletido nas águas do Styx, imagem sacralizante, depositária da terrível potência que o juramento desperta em caso de perjúrio, incidindo sobre aquele que descumpre a palavra dada, expondo-se ao castigo de um poder vingador. Não por acaso, na Teogonia, Hesíodo coloca horkos (a divindade do juramento) entre os sinistros filhos da Noite, o pior dos flagelos para quem o viola, que “persegue transgressões de homens e de deuses e jamais repousa da terrível cólera até que seu olhar maligno recaia em quem erra[51]”. Operação simbólica, o horkos antecipa magicamente a sorte prometida ao perjuro[52], fazendo transparecer o poder do engajamento pronunciado.

O juramento introduz nos costumes – e em todas as partes em que ele impõe seus efeitos de constrangimento – uma garantia de segurança: “de início, juramento de fé de um homem a outro, do súdito ao príncipe, do esposo à esposa, nem todos são observados, mas um grande passo foi dado para o estabelecimento de uma ordem moral que só a lei não tinha como conseguir[53]”. Quem respeita o juramento é alguém de palavra, uma vez que ele não se fundamenta em nenhum documento escrito como prova do engajamento feito, e diante do qual todo escrito é supérfluo[54]. Porque o juramento é domínio do sagrado, ele subsidiará o jurídico, uma vez que, pronunciado, instaura um estado de direito, cria deveres como também os concede, tendo valor de lei[55].

Promessa e juramento[56] constituíram, para o Ocidente, a herança da civilização grega, formada pela fusão de tradições nórdicas e do Oriente que, depois de os exércitos romanos terem aniquilado a Grécia no século III a.C, renasceram no século XII, entre os cátaros. Refletindo sobre sua destruição por Simon de Monfort, chefe da Cruzada contra os albigenses que os perseguia como “heréticos”, Simone Weil se refere aos valores da cidade de Toulouse, em que as ideias de cátaros e católicos não se chocavam mas circulavam livremente:

[…] as ideias não são feitas para lutar. [Nessa região], católicos e cátaros, em vez de formarem grupos distintos, estavam tão bem misturados, que o choque de um terror inaudito não os pôde dissociar, [tendo a região alcançado] […] esse grau de liberdade espiritual […] por reunirem as riquezas espirituais de todas as partes do mundo, [congregadas] nas palavras “Prix” e “Parage”, às vezes “Prix” e “Merci”. Estas palavras, que hoje não têm equivalente, designam valores cavalheirescos que [se exercem] sem nenhuma distinção de classe […]. O que [os cátaros] queriam salvar à custa de suas vidas, era “Joie” [alegria] e “Parage” [autoridade legítima, confiança] […]. O espírito cavalheiresco fornecia o fator de coesão que o espírito cívico e não contém […], [prix, parage e merci. Significando uma “obediência” por respeito e delicadeza] […]. Nada mais comovente no poema do que o momento em que a cidade livre de Avignon se submete voluntariamente ao conde de Toulouse vencido, despojado de suas terras, sem nenhum recurso, quase reduzido à mendicância […]. Enumeram os direitos senhoriais que se comprometiam a cumprir e depois que todos prestaram juramento, dizem ao conde: ‘senhor legítimo e amado/ […]/daremos nossos bens/ para que recobreis vossa terra […]. Essa generosidade mostra a que ponto o espírito cavalheiresco havia impregnado toda a população das cidades […]. Já nas regiões de onde vinham os vencedores desta guerra, tudo era diferente; aí havia, não união, mas luta entre o espírito feudal e o es- pírito das cidades. Uma barreira moral separava nobres e plebeus. Daí devia resultar, uma vez enfraquecido o poder dos nobres […], a subida de uma classe totalmente ignorante dos valores cavalheirescos; um regime no qual a obediência era coisa comprada [política do favor] e vendida […], uma obediência despojada de todo sentimento de dever[57].

Nesse sentido, dever e dívida vinculam pessoas e povos, como laço estruturante, questionando toda crise antigenealógica que se designa como um ato autofundador, pois a dívida reenvia a nossa história ao núcleo em que se começa por receber, para poder dar depois, sentimento de reconhecimento e gratidão:

A dívida não é simplesmente um fato econômico (debitum, o que eu devo) ou social (obligatio, uma relação de obrigação), mas uma realidade antropológica fundamental que designa a situação primeira do homem em relação ao outro e ao tempo. A dívida é, com efeito, indissociável da questão das origens. Perguntar-se com Santo Agostinho “O que é que temos que não tenhamos recebido de vós?” é reconhecer que o homem não pode sozinho tornar-se criador de si mesmo […]. Esta dependência estrutural pode ser fonte de alienação, mas igualmente dar lugar à confiança (o crédito, o dom) e ao apoio (a responsabilidade e a solidariedade). O tratamento antropológico permite distinguir uma vertente negativa da dívida, fonte de alienação e culpabilidade, e uma vertente positiva no coração do processo de reconhecimento e de transmissão[58].

A dívida faz de nós herdeiros, guardando a memória de suas origens. Esta não é unitária, mas feita de rastros que não são nem passagem entre presença e ausência, nem a presença da ausência, nem uma dialética entre presença e ausência. O rastro é originário e não originário, é a não origem da origem: “é a origem absoluta do sentido em geral […]. Ele é a différance[59] que abre o aparecer e a significação[60]”.

A modernidade, em virtude do rompimento das heranças culturais, investe melancolicamente o tempo da origem, idealizado em pertencimentos identitários produzidos para operarem como tais, mas que cons- tituem uma memória sem experiência. A dívida com o passado, diferentemente, é uma homenagem àqueles que nos precederam, cuidaram de nós e nos transmitiram um bem, experiências, valores e filiações. Porque a dívida necessita da memória, ela, originariamente, se liga à confiança, permitindo o nascimento do homem responsável, aquele acredita no outro e com quem podemos contar. Por isso, Nietzsche associou dívida e faculdade de prometer à memória, ambas fundadas em uma confiança incondicional e na sinceridade da palavra empenhada[61].

Em meio a descontinuidades e rupturas, a dívida e a promessa cons- tituem puro dom. Derrida observa:

Para haver dom, é preciso não somente que o donatário ou o doador não perceba o dom como tal, que ele não tenha nem consciência, nem memória […]; é preciso também que o esqueça no próprio instante e que esse esquecimento seja tão radical que ultrapasse até mesmo a categoria psicanalítica do esquecimento […]. Falamos pois aqui de um esquecimento absoluto, de um esquecimento que dispensa […], que desvincula absolutamente, infinitamente mais que a desculpa, o perdão ou a absolvição. […] O dom é a condição do esquecimento […]. Por condição não entendemos “condição de possibilidade”, sistema de premissas ou até mesmo de causas. […] Não se trata, pois, de con- dições no sentido em que se colocam condições (pois esquecimento e dom, se os há, são neste sentido incondicionais), mas no sentido em que o esquecimento estaria na condição do dom e o dom na condição do esquecimento, poder-se-ia dizer[62].

O doar como pura gratuidade e no anonimato subverte a ordem da motivação, pois quem recebe o dom retribui com o reconhecimento da gratuidade do dom. Como no evangelho de São Mateus: “Quando fizerdes obras de bem, que vossa mão esquerda não saiba o que a direita faz, para que a vossa beneficência permaneça em segredo[63]”. Totalmente estranho ao horizonte da economia e dos juízos teóricos, o dom, a dívida e a promessa são um para além do princípio de realidade, um para além do princípio de razão, um incondicionado que escapa ao controle do evento que ele produz:

O dom seria o que não obedece ao princípio de razão: ele é, ele deve ser sem razão, sem por quê, sem fundamento. […] O dom não procede nem mesmo da razão prática. Ele deve permanecer estranho à moral, à vontade e, talvez, à liberdade, pelo menos a essa liberdade que se as- socia à vontade de um sujeito. […] É um dever além do dever. Se se dá porque é preciso dar, não se dá mais[64].

Pode-se dar com generosidade, mas não por generosidade.

A promessa é paradoxal, é um dom do tempo, é doar o tempo com a palavra que promete e, assim, só pode ser promessa se continuar a sê-lo:

[…] a língua ou a palavra promete, se promete, mas também ela se des- diz, ela se desfaz e se desarranja, sai dos trilhos ou delira, se deteriora, se corrompe imediatamente e mesmo essencialmente. Ela não pode não prometer; a partir do momento em que ela fala, é promessa, mas não pode não falhar – e isto se vincula à estrutura da promessa, como ao evento que ela não obstante institui. O Verwesen [corrupção] é uma Versprechen [promessa como um Ver, um “lapso” da palavra][65].

Quer dizer, essa promessa não promete, não põe nada adiante, ela fala: “Esta Sprache [fala] verspricht [promete “desfigurando” a palavra][66]”. A promessa promete mais, mais coisas, mais próxima de uma abertura para o porvir. Em latim, pro-mittere é a capacidade de se projetar, de se colocar adiante como o mesmo no futuro que, tornado presente, daria a reconhecer o mesmo naquele que, no passado, prometeu: “Fundacional em Derrida é este ‘como’ [que significa] que não há conhecimento enquanto tal, nenhuma verdade enquanto tal, nenhuma percepção enquanto tal. Fé, perjúrio e linguagem já estão na própria origem[67]”.

Assim, quando se trata de uma promessa, a palavra não quer dizer muita coisa, não podendo ser o que ela promete, mantendo uma relação com a crença e com a espera, com ou sem esperança, mas em confiança. Nesse horizonte,

[…] toda falta, todo crime, tudo que houvesse a perdoar ou a pedir para ser perdoado é ou supõe algum perjúrio; toda falta, todo mal é antes de tudo um perjúrio, a saber, um descumprimento de alguma promessa (implícita ou explícita), o descumprimento de algum engajamento, de alguma responsabilidade diante de uma lei que se jurou respeitar […]. O perdão concerne sempre a um perjúrio – e devemos perguntar o que é então um perjúrio, uma abdicação, uma abjuração, um descumpri- mento da fé jurada, do juramento, da conjuração etc. E o que é jurar, fazer um juramento, dar sua palavra. […]. O perjúrio não é um aciden- te, um acontecimento que sobrevém ou não a uma promessa ou a um juramento prévio. O perjúrio já está antecipadamente inscrito, como seu destino, sua fatalidade, sua destinação inexpiável, na estrutura da promessa e do juramento, na palavra de honra, na justiça, no desejo de justiça (o que os gregos mais que pressentiram)[68].

Não por acaso, um dos aforismos antigos advertia ser a “promessa, causa de ruína[69]”. Nessa tradição, Jesus, no Sermão da Montanha, proclama: “Eu vos digo que de maneira nenhuma jureis; nem pelo céu, porque é o trono de Deus; nem pela terra, nem por Jerusalém, que é a cidade do grande Rei. Que vossa palavra seja sim ou não, o que passa disto vem do demônio[70]”. Que se pense, pois, no sacrifício de Ifigênia e nas exigências da deusa Ártemis a Agamemnon: “se desejais ventos favoráveis para retomar a esposa de vosso irmão dos troianos, deveis me dar o que tendes de mais precioso[71]”. Coberta de carinhos, quando criança nos braços paternos, sua primogênita é o preço a pagar – o que fará Lucrécio escrever em seu poema Da natureza das coisas: “A tão grandes males pode a religião persuadir[72]”, pois Ifigênia oferecida em sacrifício será vingada por sua mãe Clitemnestra, que assassina Agamemnon quando este retorna de Troia. Por isso, é preciso, por vezes, não cumprir uma promessa, em vez de cometer abomináveis crimes, pois, como escreveu Platão, “é arriscado formular votos quando falta a prudência, pois acontece o contrário do que se desejaria[73]”. Um princípio de prudência recomenda observar “exceções” legítimas, referidas a um domínio moral superior, porque uma promessa pode se tornar imoral segundo mudanças nas circunstâncias e no tempo.

A PROMESSA QUE PROMETE E NÃO PROMETE

Embora juramento e promessa sejam considerados, na tradição, meios para a virtude, eles revelam, no entanto, uma aporia, pois a virtude requer constância mas, ao mesmo tempo, liberdade de fazer ou de não fazer[74]. Tal circunstância se expressou, na modernidade, no double bind de Descartes quanto à valorização e à desvalorização da promessa. Assim, na terceira parte do Discurso do método, a primeira máxima de conduta a ser adotada enquanto não se alcançou uma verdade definitiva para a moral postula a firmeza nas decisões, mas também possibilidade de mudar de ideia: “a primeira [máxima] era a de obedecer às leis e aos costumes de meu país, retendo constantemente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde a infância, e governando-me, em tudo o mais, segundo as opiniões mais moderadas e as mais distanciadas do excesso[75]”. Trata-se, aqui, de uma teoria da resolução, da “firme e constante resolução”, fundamento da crítica à irresolução e à inconstância, próprias aos “espíritos fracos”. Em carta a Mersenne, citando as Metamorfoses de Ovídio, Descartes anota: “as palavras video meliora probaque, deteriora se- quor [vejo o melhor e o aprovo, mas sigo o pior] só serve aos espíritos fracos[76]”. E, quando considera o elã da alegria e seus bons eflúvios, Descartes anota: “Ouso até mesmo crer que a alegria interior tem uma certa força secreta para tornar a fortuna mais favorável. Não gostaria de escrever isto a pessoas que tivessem o espírito fraco, com medo de induzi-las a alguma superstição[77]”. Além disso, os espíritos fracos frequentemente se arrependem de coisas que fizeram sem saber com certeza se são prejudiciais, ao contrário das almas fortes que não se afligem porque são bem conduzidas pela razão. Nas Paixões da alma, Descartes escreve à princesa Elisabeth: “não tenho outro assunto, para vos entreter, a não ser falar dos meios que a filosofia nos fornece para adquirir esta soberana felicidade, que as almas vulgares esperam em vão da fortuna e que só poderíamos ter por nós mesmos[78]”. Ainda em carta à princesa, analisando Sobre a vida beata de Sêneca, Descartes reitera a fidelidade a si ou ao outro, explicando-a pelo fato de que “não nos seria possível subsistir sozinhos, pois somos uma das partes do universo, e mais particularmente ainda, uma das partes desta terra, uma das partes deste Estado, desta sociedade, desta família, à qual somos unidos pela morada, pelo juramento, pelo nascimento[79]”. Quem diz juramento, diz promessa, de modo que a fidelidade a uma promessa é o paradigma da virtude[80], como o afirma Descartes em carta a Chanut, referindo-se ao amor de Páris e de Helena; mesmo se indulgente com esse amor trágico, Descartes julga por fim que “os maiores e mais funestos desastres podem ser como a mistura de um amor mal temperado[81]”. Esse amor desregrado era antes de tudo um amor “infiel”, a fidelidade sendo um valor supremo, até mesmo para com amigos que são hostis. Com respeito a suas controvérsias com Roberval e Fermat, em carta declara que a fidelidade “é uma virtude que deve ser acalentada mais que qualquer outra”[82].

Ao mesmo tempo, porém, ainda na primeira máxima, Descartes desconfia das promessas pelas quais cerceamos parte de nossa liberdade:

[…] não que eu desaprovasse as leis que, para remediar a inconstância dos espíritos fracos, permitem, quando se alimenta algum bom propó- sito, ou mesmo para a segurança no comércio […], que se façam votos ou contratos que obriguem a perseverar neles; mas porque não via no mundo nada que permanecesse sempre no mesmo estado e porque, no meu caso particular, como prometia a mim mesmo aperfeiçoar cada vez mais meus juízos, e de modo algum torná-los piores, pensaria cometer grande falta contra o bom-senso se, pelo fato de ter aprovado então alguma coisa, me sentisse obrigado a tomá-la como boa depois, quando deixasse talvez de sê-lo, ou quando eu cessasse de considerá-la como tal[83].

Descartes chega mesmo a assimilar a promessa às imposturas e artifícios de alquimistas, astrólogos e feiticeiros[84].

Porque a vida moral oscila entre a inconstância e a irresolução, de um lado, entre a obstinação e a tenacidade, de outro, entre viver sem regras, abstendo-se de promessas, e viver prendendo-se resolutamente àquelas que nos fizemos, este entre dois percalços significa ou manter uma liberdade absoluta, que de direito permite a qualquer momento mudar de comportamento, sem se prender a promessa alguma – o que no limite a torna inútil – ou então Descartes afirma a virtude como uma fidelidade a uma regra de vida, a virtude não consistindo na natureza do caminho escolhido, mas em não mudar de direção, o que é permitido na primeira máxima e recusado na segunda:

Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e resoluto possí- vel em minhas ações, e em não seguir menos constantemente do que se fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas, sempre que eu me tivesse decidido a tanto. Imitando nisso os viajantes que, vendo-se extraviados em uma floresta, não devem errar volteando ora para um lado, ora para outro, nem menos ainda deter-se em um sítio, mas cami- nhar sempre o mais reto possível para um mesmo lado, e não mudá-lo por fracas razões[85].

Não mudar de rumo por fracas razões, porém, significa admitir fazê-lo por razões que não o fossem: “colocado diante do problema da fidelidade e da inconstância, Descartes valorizará a fidelidade às decisões quando tomadas, sem no entanto poder valorizar as próprias decisões, porque outras, no início, eram possíveis[86]”.

Com efeito, promessas, votos e contratos destinam-se a “espíritos fracos”, pois os espíritos fortes não farão nem promessas, nem votos, nem contrato sem, no entanto, serem irresolutos, pois se mantêm em suas firmes resoluções sem promessas, sem contratos, sem votos, sendo o simples fato de prometer em si mesmo suspeito, a começar pela dimensão do tempo que aliena quem promete e da própria impossibilidade de cumprimento do que se prometeu. Em carta à princesa Elisabeth, Descartes escreve: “[É preciso] ainda considerar que há um longo caminho para se chegar das promessas a seu efeito[87]”. E a Mersenne: “não ouvi mais falar daquele inglês que lhe disseram prometer mais que o razoável para secar os pântanos de seu país[88]”. Há, assim, em Descartes, um double bind, o de valorização das promessas como constância e resolução e sua desvalorização como fraqueza e impostura. Descartes, como Bartleby de Melville, “preferiria não”. Com efeito, a resposta de Bartleby ao notário, “I would prefer not to”, é uma resposta em suspenso entre o sim e o não, instituindo uma zona de indiscernibilidade e de indeterminação entre o que se prefere ou não, enunciado que é um quase sim e um quase não, nem afirmação nem negação[89]: “como Ulisses, antes de se prender ao mastro do navio para ouvir sem riscos o canto das sereias, havia ordenado a seus marinheiros não obedecer se depois desse ordens de soltá-lo, o viajante cartesiano perdido na floresta só poderia sair dela se ordenasse a suas pernas não mais obedecer à sua vontade, embora a vontade ordene[90]”.

CONCLUSÃO DERRIDIANA: A HIPÉRBOLE MESSIÂNICA

Porque uma promessa deve e não deve ser mantida, Derrida escreve: “[A promessa] deve ser sempre, simultaneamente, infinita e finita em seu princípio: infinita porque ela deve poder se lançar além de todo programa possível, pois se se promete apenas o calculável e o certo não se promete mais nada; finita, porque se se promete o infinito, não se promete mais nada de apresentável e portanto não se promete mais[91]”. Uma promessa é uma obrigação que se refere ao possível: “Para ser promessa, é preciso que seja mantida sem a segurança de sê-lo; deve poder ser descumprida, possivelmente insustentável para permanecer o que ela terá sido, a saber, uma promessa. […]. A estrutura da promessa torna assim precária a diferença entre o finito e o infinito[92]”. Dado o rompimento com a linearidade temporal, uma promessa não comporta nada de planejado ou de predição; sempre uma margem de incerteza existe na antecipação, mesmo havendo nela algum cálculo do que foi ou poderia ser prometido[93].

Esquecer uma promessa é trair a memória, mas esse “esquecimento” também questiona o registro tão somente intelectual do pensamento, no sentido em que Nietzsche observa: “Pode-se prometer atos, mas não sentimentos, pois estes são involuntários. Neste sentido, não se pode prometer amar[94]. Eis assim que, para Derrida, a promessa é hiperbólica como a justiça, o perdão, a hospitalidade. Ela é puro dom que não espera retribuição: “[A hospitalidade] não é o direito, ela é aquilo que excede e funda os direitos do homem, não é nem mesmo a justiça distributiva, nem tampouco no sentido tradicional do termo ‘o respeito do outro’ como sujeito humano; é a experiência do outro como outro, o fato que deixo o outro ser outro, o que supõe um dom sem restituição, sem reapropriação e sem jurisdição[95]”. Política da amizade, a hospitalidade é amizade mais que amizade, uma phylia sem oikeiotes, uma amizade sem “lar designável”, sem a recusa daquele que não se considera “da família”, que não se assemelha a nós. Derrida escreve:

“Não sou da família” quer dizer em geral: não me defino com base em meu pertencimento à família, à sociedade civil, ao Estado; não me defino a partir das formas elementares do parentesco, mas, mais que isso, quando se diz “não sou da famíla”, não se descreve simplesmente um fato, um modo de ser, se diz “não quero ser da família”. “Não sou da família” é um performativo, um empenho que além de reivindicar a inassimilabilidade diz também que o desejo de pertencer a uma co- munidade qualquer, o próprio desejo de pertencimento, pressupõe que não se pertença [a ela][96].

Porque a hospitalidade é sempre mais (e menos) que hospitalidade, ela comporta sua própria excedência, como a tenda de Abraão ao lado do carvalho em Manre, na Terra Santa, aberta em seus quatro lados, para que o visitante inesperado pudesse entrar de qualquer parte que chegasse, porque a arquitetura da hospitalidade não teme os ventos, nela a paz é oferecida antes de qualquer chegada: “Hospitalidade sem condições é aquela que se deixa atravessar por aquilo que vem e de quem vem, do que chega ou de quem chega, do outro por vir; uma certa renúncia incondicional à soberania é requerida a priori[97]”. E nas palavras do poeta Edmond Jabès ao estrangeiro: “‘Entra’ – dizia –. Este lugar está todo a sua disposição’. Se você é meu amigo, entre em minha casa sem bater à porta. Se você ignora quem sou, deve saber que eu contava os dias que faltavam para sua chegada. Você, meu irmão de eleição, vulnerável estrangeiro[98]”. Esse lugar de hospitalidade contém a ideia da khora como um lugar outro, sem localização, sem época, um outro ter lugar, um espaçamento que dá lugar sem dar nada: “sem pertencer, sem fazer parte, sem ser parte, essa localização daria lugar[99]”. Essa atopia, nem dentro, nem fora do lugar, é a constituição de um espaço quase transcendental, o “quase” indicando a indecidibilidade, a aporia. A hospitalidade como uma promessa refere-se, pois, ao “por vir” que não indica nem pertencimento nem não pertencimento, nem sua realização nem sua não realização. Ela é a promessa que abriga uma justiça para além do direito, que não comporta nem cálculo nem aplicabilidade, pois os momentos cruciais de decisão entre o justo e o injusto nunca poderiam ser assegurados por uma regra; além disso, “uma decisão justa é sempre requerida imediatamente”, porque a justiça não espera, não permite o compasso de espera. E, como decisão tomada, ela é contingente, necessita ser sempre renovada.

Promessa e hospitalidade, como confiança incondicional em um horizonte de incertezas, são imoderadas, sem justa medida:

No interior da hospitalidade absoluta, improvável e necessária, que não pede ao outro traduzir-se para nós, […] que o deixa ser como outro, [se encontra] a justiça, nada mais que isso, porque acolhe o apelo único […] [de quem] não fala nossa língua, não conhece nossas regras […]. É nesse excesso, nesse passo além e sem volta, sem restituição, sem reapropria- ção e sem jurisdição, sem nem ao menos espera de gratidão, [que] está a […] justiça, o seu ser devida e, ao mesmo tempo, seu ultrapassar a pura e simples prestação de contas com respeito ao oferecimento e ao dom[100].

Porque a promessa é dom do tempo, os valores de uma civilização medem-se, por fim, por sua capacidade de espera e pela qualidade dessa esperança: “o acolhimento desse dom [da promessa, da hospitalidade] como tal é imediatamente compaixão pela humanidade, amor pelo estrangeiro […]. A terra rejeitará o anfitrião incapaz de hospitalidade[101]”.

A hospitalidade é o inquietante do evento único e inesperado, que se abre ao arrivant, ao estranho que chega sem ter avisado e que pode ser o por vir, o “Messias”: “não esqueçais a hospitalidade, por meio dela, de fato, alguns, sem o saberem, hospedaram anjos[102]”.

  1. Lembre-se que o Minotauro é um monstro aterrorizador porque sem identidade definida, nem homem, nem touro, simultaneamente homem e animal. Nesse âmbito, Adorno e Horkheimer observaram que o mundo dos seres metamórficos é sem conceito, e o do homem requer o princípio de identidade porque a indeterminação das coisas e o inexplicável ameaçam o homem em seus fins de sobrevivência e autoconservação. Assim, mito e ciência têm uma raiz comum no medo do desconhecido, do amorfo, do indiferenciado: “a transformação das pessoas em animais como castigo é um tema constante dos contos infantis de todas as nações. Estar encantado no corpo de um animal equivale a uma condenação. Para as crianças e os diferentes povos, a ideia de semelhantes metamorfoses é imediatamente compreensível e familiar. Também a crença na transmigração das almas, nas mais antigas culturas, considera a figura animal como um castigo e um tormento. A muda ferocidade no olhar do tigre dá testemunho do mesmo horror que as pessoas receavam nessa transformação. Todo animal recorda uma desgraça infinita ocorrida em tempos primitivos”. Max Horkheimer; Theodor Adorno, Dialética do esclarecimento, Rio de Janeiro: Zahar, 1985, pp. 230-1.
  2. Cf. Platão, Teeteto, Belém: Editora da UFPA, 2001, parágrafo 152 2 ss; Plutarco, Dialogues pythiques, Paris: Flammarion, 2006; Guy Soury, “Le Problème de la providence et le de sera numinis vindicta de Plutarue”, in: Revue des Études Grecques, vol. 58, n° 274, 1945, pp. 171-2. Cf. Michel de Montaigne, Ensaios, São Paulo: Abril Cultural, i973, livro II, cap. XII.
  3. Jacques Derrida, De l´Esprit: Heidegger et la question, Paris: Galilée, i997, pp. 176-7. [Ed. bras.: Do espírito: Heidegger e a questão, Campinas: Papirus, 1990.]
  4. Cf. Leonard Lawlor, “Jacques Derrida”, Stanford Encyclopaedia of Philosophy, disponível em : <http:// plato.stanford.edu/entries/derrida/>, acesso em: abril de 2017.
  5. Cf. Emmanuel Lévinas, Totalité et infini: essai sur l’extériorité, Paris: Livre de Poche, pp. 12 e 25.
  6. Gilles Hanus indica o débito declarado de Derrida com respeito a Lévinas e às questões do uno e do múltiplo na palestra “L’in-intimité. Réflexions sur l’étrangété”, proferida em 14/8/2015 no ciclo Banquet d´été promovido pela La Maison du Banquet et des générations – Centre de rencontres et d’ètudes autour du livre et de la pensée (Lagrasse), disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qAN- 2JrBEE4>, acesso em: 29/03/2017
  7. Jacques Derrida, “Cogito et histoire de la folie”, in: J. Derrida, L’Écriture et la différence, Paris: Seuil, 1967, pp. 90-1. [Ed. bras.: A escritura e a diferença, São Paulo: Perspectiva, 2009.] É Descartes também quem, na terceira “Meditação metafísica”, indica um além do “penso, logo existo”, pois, se a consciência produz ideias que, como criação humana, são factícias, a de infinito e de um Deus infinito escapam ao poder constituinte do sujeito, manifestando uma ruptura na consciência – diz-se ruptura e não um recalque no inconsciente, porque ela é o despertar do sono dogmático de a consciência ser uma unidade homogênea.
  8. Cf. J. Derrida, A farmácia de Platão, São Paulo: Iluminuras, 2005.
  9. Idem, Gramatologia, São Paulo: Perspectiva, 2013.
  10. Cf. Olgária Matos, “Utopia e ponto de fuga: fronteira e espaço sideral”, in: Adauto Novaes (org.), Mutações: o novo espírito utópico, São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2016.
  11. Cf. J. Derrida, Positions: Scène, actes, figures de la dissémination, Paris: Minuit, 1972.
  12. Idem, Khora, Paris: Galilée, 1993, p. 25.
  13. Sigmund Freud, “Des sens opposés dans les mots primitifs”, in: S. Freud, Essays de psychanalyse appli- quée, Paris: Gallimard, 1971, p. 10; cf. também a carta de Freud a Ferenczi de 22 de outubro de 1909, apud Jean-Baptiste Brenet, Averroes, Paris: Les Belles Lettres, 2015, p. 15.
  14. Cf. em particular, Jacques Derrida, Spectres de Marx, Paris: Galilée, 1993. [Ed. bras.: Espectros de Marx, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.]
  15. Sigmund Freud, “L’inquietante étrangeté”, in: S. Freud, Essays de psychanalyse appliquée, op. cit., p. 23.
  16. Freud considera como fenômenos derivados das experiências do Unheimliche o animismo, a magia, a feitiçaria, as forças ocultas, a onipotência do pensamento, a repetição inconsciente, o retorno dos mortos. Cf. S. Freud, “O estranho”; “Um distúrbio da memória na Acrópole”, in: S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, vol. XVII, 1976.
  17. Emmanuel Lévinas, referindo-se ao Livro de Isaías, parafraseia o capítulo 58 que trata da hospitalidade a pobres e escravos que devem ser libertos, escrevendo que, enquanto os convidamos a fazer como se estivessem em casa, já estamos temerosos de que sujem nosso tapete. Cf. L. Ghidini, Dialogo com Emmanuel Lévinas, Brescia: Morcelliana, 1987, p. 103.
  18. J. Derrida, Spectres de Marx, op. cit., p. 273.
  19. Idem, “Donner la mort”, in: J. Derrida, L’Éthique du don. Jacques Derrida et la pensée du don, Paris: Métalié, 1992.
  20. G. Hanus, op. cit.
  21. Guy Petitdemange, “De la hantise: le Marx de Derrida”, Cités, nº 30, 2007, p. 22. Quando recebemos o estrangeiro estranhando-o, nós o fazemos reconhecendo que também ele nos estranha, mas logo se esquece sua condição e o outro passa a nos perturbar quando se aproxima demais de nós, ameaçando meu espaço em minha casa. Cf. L. Ghidini, op. cit.; e J. Derrida; Anne Dufourmantelle, De l’hospitalité, Paris: Calmman-Lévy, 1997. [Ed. bras.: Da hospitalidade, São Paulo: Escuta, 2008.]
  22. J. Derrida, Spectres de Marx, op. cit., p. 25.
  23. Sandro Tarter, Evento e ospitalità: Lévinas, Derrida e la questione straniera, Assisi: Cittadella, 2004, p. 234.
  24. S. Freud, “L´inquietante étrangété”, op. cit., p. 20.
  25. Derrida refere-se a Caim e Abel, podendo-se supor que, mortalmente ferido, Abel não pôde nem mes- mo olhar para trás, nem saber que foi um consanguíneo que lhe preparou a cilada, sem o direito a uma só palavra, sem a qual não há reconhecimento e reciprocidade.
  26. J. Derrida, Politiques de l’amitié, Paris: Galilée, pp. 183-4.
  27. Ibidem, p. 175.
  28. Para os gregos, o estrangeiro-estranho é o bárbaro hostil que invade a Grécia, de quem se espera que não venha, fazendo-se de tudo para que não venha, pois os gregos não se sentem obrigados a acolhê-lo amavelmente. Mesmo assim, há bárbaros com os quais os gregos estabelecem uma relação de ambivalência, de admiração e rejeição, como os persas, os egípcios e os citas.
  29. Cf. Jean-Claude Milner, “Les noms de l’étranger”, palestra proferida em 10/8/2015 no ciclo Banquet d´été promovido pela La Maison du Banquet et des générations – Centre de rencontres et d’ètudes autour du livre et de la pensée (Lagrasse), disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=4D gYbvzt3PQ>, acesso em: abril de 2017
  30. Henri Joly, La question des étrangers, Paris: Vrin, 1993, pp. 63-4.
  31. J. Derrida, L’Autre cap, Paris : Minuit, 1991, p. 80.
  32. Yves Charles Zarka, “Le Souvenir vorace et vociférent, Cités, nº 30, 2007, p. 13.
  33. J. Derrida, Le monolinguisme de l’autre ou la prothèse d’origine, Paris: Galilée, 1996, p. 32. [Ed. bras.: O monolinguismo do outro ou a prótese de origem, Belo Horizonte: Chão da Feira, 2016.]
  34. Idem, “Cette ‘vérité folle’: le juste mot d’amitié’”, in: J. Derrida, Politiques de l’amitié, op. cit., pp. 87-8. Cf. também J. Derrida; Bernard Stiegler, Ecografie della televisione, Milano: Raffaello Cortina, i997, p. 124.
  35. Idem, Politiques de l’amitié, op. cit., pp. 46-7.
  36. Marc Crépon; Marc de Launay, “Avant-propos”, in: Marc Crépon; Marc de Launay (eds.), La philosophie au risque de la promesse, Paris : Bayard, 2004, p. 19.
  37. J. Derrida, “Avances”, in: Serge Margel, Le tombeau du dieu artisan, Paris: Minuit, 1995, p. 40.
  38. A promessa se inscreve primeiramente na dimensão não política da existência, como o noivado, que é uma promessa de casamento – de que a palavra francesa fiançailles preserva a “fé” e a “confiança”. No registro do direito, fala-se em “promessa de compra e venda”, que não é a venda realizada e que pode ser revista em certas condições. O direito implica um contrato que não é mantido, mas respeitado; ele obriga com a força de lei, enquanto uma promessa é o que obriga a si mesmo. Buscando a etimologia de fides, Cícero a identifica no imperativo da tradição do flat quod dictum est, “que seja feito o que foi dito”. Já para Santo Agostinho, fides é fé. A etimologia, não conhecida com precisão, se aproxima, no entanto, da pistis grega. Mas foedus – tratado – e fides – crença no que foi dito – têm a mesma origem. Cf. J.P Vernant, As origens do pensamento grego, São Paulo: Difel, 2002.
  39. Sandro Tarter, op. cit., p. 71.
  40. J. Derrida, Spectres de Marx, op. cit., p. 267.
  41. Ibidem, p. 31.
  42. Sobre a história da palavra voto em suas raízes grega e latina, cf. C. Spicq, Lexique théologique du Nou- veau Testament, Paris: Éditions du Cerf, 1991.
  43. Émile Benveniste, Dictionnaire des institutions indo-européennes, Paris: Minuit.
  44. Giorgio Agamben, Le sacrement du langage: Archéologie du serment, Paris : Vrin, 2009, pp. 107 e 109.
  45. Cf. Alan Sommerstein et al., Oath and Swearing in Ancient Greece, Indiana: University of Notre Dame, 20i4. A tradição filosófica atesta a onipresença do juramento na cidade grega, tanto na vida política, como na religiosa, na judiciária e na comercial. Cf. Alan Sommerstein et al., The Oath in Archaic and Classical Greece, Exeter: Bristol Phoenix Press, 2011.
  46. Cf. Mireille Lignereux, Promesses et serments dans quelques textes d’ancien français (XIIe et XIIIe siècles), thèse sous la direction de Michèle Perret, Université de Paris-Nanterre, 2001.
  47. Raymond-Théodore Troplong, De l’influence du Christianisme sur le droit civil des romains, Paris: Victor Lecou, 1836.
  48. Licurgo, Contre Léocrate, Paris: Les Belles Lettres, 2010, v. 77, 2; cf. Pierre Vidal-Naquet, Le chasseur noir,

    Paris: La Découverte, 1972.

  49. Juramento, serment, no antigo francês se diz sairement, procedente da tradição oral do latim clássico sacramentum, derivado de sacrare – consagrar a uma divindade; sacrare, por sua vez, procede de sacer – antigo sacros, o sacrum designando o que pertence ao mundo divino, oposto ao profano, isto é, ao que está colocado fora do templo, o que é próprio à vida comum. A passagem do profano ao sacro se faz por meio de ritos, sacer sendo o contrário do religiosus, referindo-se ao que não pode ser tocado sem macular ou ser maculado, de onde o duplo sentido de sagrado e maldito. O culpado destinado aos deuses dos ínferos é sacer, e por isso seu sentido de criminoso. A dimensão sagrada faz pesar sobre a obrigação contratada pelo juramento uma força de constrangimento bem superior à da promessa.
  50. Homero, Ilíada, verso 225-ss.
  51. Hesíodo, Teogonia, São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 94.
  52. No pacto homérico entre aqueus e troianos, figuras de cera são atiradas ao fogo, enquanto os comba- tentes pronunciam: “se eu faltar ao juramento, que igualmente meu cérebro também derreta” (Émile Benveniste, “L’Expression de serment dans la Grèce Ancienne”, Revue de l’histoire des réligions, vol. 134, nº 1, 1947, pp. 81-94). Benveniste não adota a etimologia que os antigos atribuíam a horkos como fecha- mento, mas que tem esse sentido, na medida em que, pelo juramento, “fecha-se” de alguma forma os comportamentos futuros, a liberdade ficando assim restringida e “fechada” no que se jurou.
  53. Na tradição cristã, quem cometesse um perjúrio deveria cumprir sete anos de penitência, sendo-lhe vedado jurar no futuro. Cf. R. Fossier, La socíeté médievale, Paris: Armand Colin, 1991, pp. 63-4. Também Cyrille Vogel analisa o papel da Igreja na instauração do juramento como componente regulador da sociedade face à corrupção do corpo político romano e, em particular, dos cônsules. Cf. C. Vogel, Le pécheur et la pénitence au Moyen Âge, Paris: Éditions du Cerf, 1969.
  54. Cf. R.-T. Troplong, op. cit.
  55. Juramento e promessa, que dizem respeito ao dever ser, fixam ou postulam o que é permitido e o que não o é em um campo definido. Cf. Jean-Joseph Thonissen, L’Organisation judiciaire: le droit pénal et la procedure pénale de la loi salique, Paris: Imprimérie Nationale, 1882, que analisa a lei sálica como o código germânico mais antigo, sendo “uma manifestação das ideias jurídicas de um período de transição entre o reino da violência desordenada e o advento do regime legal” (Prefácio, p. 11).
  56. Aproximam-se promessa e juramento, apesar de a promessa ser menos constrangedora que o juramento. Também se diferenciam temporalmente; um juramento pode ser feito tendo em vista o passado ou o futuro, a promessa só diz respeito ao futuro.
  57. Simone Weil, “A agonia de uma civilização vista através de um poema épico”, in: S. Weil, A condição operária e outros estudos sobre a opressão, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, pp. 269-73.
  58. Nathalie Sarthou-Lajus, Éloge de la dette, Paris: PUF, 2012, pp. 10-1.
  59. Différance designa uma diferença na qual se inscreve o tempo, a diferença e o diferir. Cf. Jacques Derrida, L’Écriture et la différence, op. cit.
  60. J. Derrida, De la grammatologie, Paris: Minuit, 1967, p. 95.
  61. Na Genealogia da moral (São Paulo: Cia das Letras, 1987), Nietzsche reconstitui a gênese do sentimento de dívida a partir da memória que permitiu o nascimento do homem responsável. Sua perversão advém quando a dívida se torna ilimitada, interiorizando-se como sentimento de uma infinita culpabilidade. Se a memória é a base do juramento, Don Juan é incapaz de manter uma promessa porque não guarda a memória do juramento.
  62. J. Derrida, Donner le temps, Paris: Galilée, 1991, pp. 29-32.
  63. Mateus, 6,3, apud João Leonel, Mateus, o evangelho, São Paulo: Paulus, 2013.
  64. J. Derrida, Donner le temps, op. cit., pp. 197-8.
  65. Ibidem, p. 146
  66. Ibidem, p. 145.
  67. Leonard Lawlor, op. cit.
  68. J. Derrida, Pardonner: l’impardonable et l’imprescriptible, Paris: L’Herne, 2004, pp. 87-8.
  69. Teógnis apud Victor Brochard, Les sceptiques grecs, Paris: Imprimerie Nationale, 1987,
  70. Mateus, 5,33-7, apud João Leonel, Mateus, o evangelho, São Paulo: Paulus, 2013.
  71. Eurípides, Ifigênia em Áulis, São Paulo: Zahar, 1993, versos 89-93.
  72. Lucrécio, Da natureza das Coisas, trad. Agostinho da Silva, ed. Abril Cultural, 1980, p. 101.
  73. Platão, Les lois, Paris: Les Belles Lettres, 1975, 688b. Cf. também Cícero, Dos deveres, livro III, São Paulo: Saraiva, 1985, cap. XXV.
  74. Cf. Aristóteles, Metafísica, livro IX, e as noções de potência (dynamis) e ato (energeia), cada potência sendo “potência de ser e de não ser”, de fazer ou não fazer. E Giorgio Agamben observa: “Na potência, a sensação é anestesia, o pensamento não pensamento, a obra, inoperosidade” (G. Agamben, Le feu et le récit, Paris: Payot & Rivages, 2015.
  75. René Descartes, Discurso do método, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 49.
  76. Idem, Oeuvres complètes, publiées par Charles Adam et Paul Tannery, tome I, Paris: Vrin, 1996, p. 366.
  77. Ibidem, tome IV, p. 529.
  78. Ibidem, tome IV, p. 252.
  79. Idem, “Lettre à Elisabeth”, 15 septembre 1645, in: R. Descartes, Oeuvres complètes, op. cit., tome VI, p. 293.
  80. Em sua correspondência, Descartes volta diversas vezes a essa questão, como em carta a Huygens de agosto de 1640, em que trata de sua fidelidade em questões de desejo e de estima, como a que devota à ama de sua infância.
  81. R. Descartes, “Lettre à Chanut”, i février 1647, in: R. Descartes, Oeuvres complètes, op. cit., tome IV, p. 617.
  82. Idem, “Lettre à l’inconnu”, in: R. Descartes, Oeuvres complètes, op. cit., tome II, p. 12.
  83. Idem, Discurso do método, op. cit., parte III, p. 50.
  84. Ibidem, parte I.
  85. Ibidem, p. 50.
  86. Charles Ramond, “Pourquoi Descartes se défiait-il des promesses?”, Analytica, vol. 3, n. 2, Rio de Janei- ro: UFRJ, 2009, p. 40. Cf. Alain Boyer, Chose promise: étude sur la promesse à partir de Hobbes et de quelques autres, Paris: PUF, 2014, pp. 111-ss.
  87. R. Descartes, “Lettre à Elisabeth”, 22 février 1649, in: R. Descartes, Oeuvres complètes, op. cit., tome v,

    p. 284.

  88. Idem, “Lettre à Mersenne, ii mars 1640, in: R. Descartes, Oeuvres complètes, op cit.
  89. No que se refere à personagem de Bartleby, Giorgio Agamben escreve: “Bartleby não consente, nem tampouco recusa, e nada lhe é mais estranho do que o pathos heroico da negação” (G. Agamben, Bartleby ou la création, Paris: Circé, 1998, p. 44).
  90. Charles Ramond, op. cit., pp. 39-40. Nesse sentido, Alain Boyer anota a respeito de Descartes: “Parece-me que o que Descartes quer dizer é que ele recusa todo engajamento que obrigue a nunca mudar de opinião, aconteça o que acontecer, na conquista da verdade, […] seja porque o mundo muda o tempo todo, seja porque ele mesmo mudou de ideia e progrediu” (A. Boyer, op. cit., p. 113).
  91. J. Derrida, “Avances”, op. cit., p. 26.
  92. Ibidem.
  93. Tal imprevisibilidade pode transformar-se em risco ético, quando se confunde ser e dever ser, quando, por usura, se converte uma promessa em programa político, em promessa de salvação religiosa, de revolução, de novos tempos, promessa do homem novo, com seus fantasmas, expurgos, perseguições e violenta repressão.
  94. Friedrich Nietzsche, “História dos sentimentos morais”, in: F. Nietzsche, Humano, demasiado humano,

    São Paulo: Cia. das Letras, 2005.

  95. J. Derrida, L’Éthique du don, op. cit., p. 178.
  96. Sandro Tarter, op. cit. J. Derrida, Politiques de l’amitié, op cit.
  97. J. Derrida, Voyous, Paris: Galilée, 2003, p. 13.
  98. Edmond Jabès, Le livre de l’hospitalité, Paris: Gallimard, 1991.
  99. J. Derrida, Khôra, Paris: Galilée, pp. 14-5.
  100. Sandro Tarter, op. cit., p. 90. Dom e perdão não são concedidos mediante um pedido, pois em ambos não há nenhuma espera de reconhecimento. Dom e pardon se aproximam, uma vez que perdão é, etimologicamente, “per-dom”, “por-dom”, através do dom, para além do próprio dom. É apaziguamento por esquecimento da ofensa, esquecimento, não psicológico, mas ético e metafísico. Cf. J. Derrida, “Fé e saber”, in: J. Derrida; Gianni Vattimo, A religião, São Paulo: Estação Liberdade, 2004.
  101. J. Derrida, L’Éthique du don, op. cit.
  102. Hebreus,13,2, Bíblia de Jerusalém, São Paulo: Paulus, 1981.

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