2017

A traição da opulência ou o colapso da utopia econômica

por Jean-Pierre Dupuy

Resumo

essoas no mundo atual! A utopia do “fim da economia” daria então lugar à idealização do crescimento econômico durável e sustentável, para usar uma expressão da moda. Conforme previu Marx, todo crescimento envolve o metabolismo do homem e da natureza. Por si só, o crescimento econômico (vulgarmente associado ao crescimento do PIB) não tem fim ou finalidade, mas de acordo Elias Canetti, a massa necessita de direção, de algo que não tenha sido ainda atingido, de onde a força que sustenta esse ideal. Se retrocedemos ao século XVIII, vamos nos deparar com um pensamento corrente: a violência da política poderia ser suprimida pela economia, autorreguladora das relações humanas. Vamos aqui nos deter sobre algumas teorias, mas queremos destacar o a que foi desenvolvida por Adam Smith: a economia contém a violência nos dois sentidos da palavra, quer dizer, ela restringe, delimita sua expansão, mas, sendo assim, ela é feita também de violência (o que complementa o sentido da palavra conter). O filósofo prossegue descrevendo o ônus moral inerente às relações humanas a partir das relações de mercado: a discriminação dos pobres e a adulação dos ricos, alimentados em sua vaidade. O que podemos claramente observar hoje é que o liberalismo e o ultraliberalismo, em especial, não nos permitem falar de contenção da violência (primeiro conceito de Smith), restando apenas o segundo sentido acima: uma economia que tem dentro de si a violência, uma violência que não conhece fronteiras. Mas, precisamos reconhecer que, ao ser movida por interesses, a economia é eventualmente capaz de controlar ou mesmo de deter conflitos entre países, em nome de uma situação mais vantajosa para as partes. Isso foi o que inspirou Jean Monnet a redigir as bases da Comunidade Europeia em 1957. Qual seria a face arrogante da economia? Fazendo uso etimológico do adjetivo, nos apercebemos de que depois de ter dominado a política, ela quer ser mais do que realmente é, desejosa de ditar e explicar os meandros das relações humanas e deixando a antropologia à deriva.


[1]

O PROBLEMA ECONÔMICO E A UTOPIA DO CRESCIMENTO INDEFINIDO

Como muitos, eu acho a arrogância dos economistas insuportável, hoje mais do que nunca. É como se apenas eles tivessem o monopólio da reflexão sobre o que denominamos crise; é como se apenas eles, ladeados por políticos que nada mais são do que uma espécie de economistas aplicados, tivessem o direito de formular receitas para “sair da crise”; e isso exatamente quando sua miopia constitutiva sobre as questões humanas se coloca ativamente solidária às desordens do mundo.

O que está em questão no atual momento não é o capitalismo financeiro; não é o capitalismo tout court; não é o mercado, regulado ou não, especulativo tanto em alta quanto em baixa: é o lugar que a economia ocupa tanto nas nossas vidas individuais como no funcionamento das nossas sociedades. Esse lugar é imenso e consideramos isso banal. A economia tende a invadir o mundo e os nossos pensamentos. Então, não é ela que nos dará o sentido desse fenômeno massivo e extraordinário, pois que ela é ao mesmo tempo juiz e parte. Apenas um olhar distante que conseguisse se desprender da economia poderia se surpreender com o que é óbvio para o cidadão moderno, que se tornou integralmente, sem que nem mesmo pudesse perceber, um homo economicus.

Meu trabalho em filosofia da economia nestes trinta últimos anos se orientou pela convicção de que não somente se deve religá-la à religião se quisermos compreender o seu sentido, mas sobretudo de que a economia ocupa o lugar deixado vago pelo processo, de natureza eminentemente religiosa, de dessacralização do mundo, processo este que caracteriza a modernidade. É nessa perspectiva de longo alcance que é preciso inscrever o momento atual[2].

O que é a utopia econômica da qual eu falo no título? É a ideia de que, graças à economia, o problema econômico será um dia resolvido e então a economia se tornará inútil. A economia, pelo seu próprio movimento, será supérflua.

Encontramos a expressão “problema econômico” em um ensaio do economista inglês John Maynard Keynes datado do ano de 1930, no coração da maior crise que já conheceu o capitalismo mundial – a maior, com exceção provavelmente da crise atual. Esse ensaio se intitula: “Perspectivas econômicas para nossos netos”. E lá se pode ler o seguinte: “Eu prediria que daqui a cem anos o padrão de vida nos países avançados será entre quatro e oito vezes superior ao que é nos dias de hoje. Não haveria nenhuma surpresa nisso, mesmo à luz de nosso conhecimento presente. Não seria tolice contemplar a possibilidade de um progresso bem superior ainda”[3].

Essa predição, de modo geral, se realizou nos 85 anos que nos separam desse ensaio. Por outro lado, o que hoje nos parece completamente datada é a seguinte passagem:

No longo prazo tudo isso significa que a humanidade está em via de resolver o problema econômico. Podemos alcançar rapidamente, talvez mais rapidamente do que somos capazes de ter consciência, um ponto onde as necessidades serão satisfeitas, no sentido de que vamos preferir consagrar nossas novas energias a objetivos não econômicos. […] Isto significa que o problema econômico não é – se nos voltamos para o futuro – o problema permanente da espécie humana. Pela primeira vez, desde sua criação, o homem será confrontado com o seu problema verdadeiro e permanente: que uso fazer de sua liberdade, uma vez liberado das preocupações econômicas[4].

O problema econômico é então a saída da escassez e a conquista de um regime permanente de abundância em que as necessidades de cada ser humano serão plenamente satisfeitas. Todos os grandes economistas, de um modo ou de outro, acreditaram nessa possibilidade: Adam Smith, David Ricardo, Karl Marx, Keynes e muitos outros. Hoje quem acredita nisso? Tudo se passa como se o crescimento econômico, longe de acabar com a escassez, em paralelo a fez aumentar. Então é preciso mais crescimento para compensar os estragos causados pelo crescimento. Nossa utopia hoje não é a abundância, mas sim o sonho de um crescimento infinito – um crescimento durável ou sustentável, segundo o vocabulário da moda.

Até há pouco tempo, digamos, até o primeiro choque de petróleo de 1973 e o fim do que na Europa e nos Estados Unidos foi denominado os “trinta gloriosos”, essa utopia parecia tão natural que se esquecia do seu caráter de novidade radical. O que mudou não foi que renunciamos à utopia do crescimento, mas o fato de que mais e mais vozes se levantaram para dizer que essa utopia nos leva à catástrofe: catástrofe ecológica, social, política, mesmo metafísica.

Escutem como os políticos, seja no meu país, nos Estados Unidos ou no Brasil, falam gramaticalmente do crescimento. Em princípio, todo crescimento é crescimento de alguma coisa. Sem menção a seu objeto, o substantivo não tem sentido, contrariamente a palavras como república, amor ou liberdade. Mas o “crescimento”, segundo os políticos, não tem objeto. No momento em que escrevo estas linhas, no dia 16 de agosto de 2015, leio na Folha de S.Paulo, na seção Mercado, que “Crescimento é centro de nova fala de Levy” – Levy é ministro da Fazenda do governo brasileiro. Crescimento sim, mas crescimento de quê? Chamarei esse crescimento tout court de Crescimento com “C” maiúsculo.

Dirão que tergiverso e que o uso do qual eu falo se refere apenas a uma omissão que todo mundo compreende. O Crescimento é o crescimento do PIB, o produto interno bruto. Sem dúvida. Mas quantos de nós refletimos sobre o fato de que, nesse caso, não se fala de uma variável de estoque como o crescimento de uma árvore ou de uma criança, mas de uma variável de fluxo, como o fluir de um rio ou a velocidade de uma corrente de ar. Uma criança que cresce permanece ela mesma enquanto, ao mesmo tempo, se torna mais forte[5].

O crescimento econômico é a aceleração de um ciclo de produções e de consumo (ler consumição) sempre recomeçado. A todo momento nada permanece das épocas anteriores, nem o pão que comi, nem os quilômetros que percorri, nem o trabalho que fiz. Tudo foi devorado no que Marx denominou o grande metabolismo do homem com a natureza. Mas o Crescimento não é também o crescimento do capital? E isso não é uma variável de estoque? Tomamos consciência de que estamos destruindo a parte desse estoque que nos é dada pela natureza e que essa perda é irremediável porque nada do que possamos fabricar e acumular a preencherá.

O Crescimento não tem objeto e também não tem fim. Ele não tem prazo determinado, como indica o fato de que o designamos por uma porcentagem e não por uma grandeza, o que é suficiente para distingui-lo radicalmente do crescimento de uma criança. Imaginem o diálogo seguinte entre duas mães na saída da escola no dia da volta às aulas. Uma exclama: “Seu filho cresceu!”. “Sim”, responde a outra, “ele cresceu 3% desde o ano passado.” Por que isso nos faz rir? O Crescimento medido em porcentagem supõe que a quantidade a ser medida cresça quanto mais ele já esteja forte, e isso sem limite. Esse não é evidentemente o caso com o tamanho de uma criança. Mas se supõe que poderia acontecer com o crescimento do PIB.

O Crescimento não tem fim também no sentido de que não tem finalidade. Reconhecemos nele finalidades mas perdemos sucessivamente a fé nelas. Primeiro foi a felicidade, depois o emprego. Trata-se hoje de pagar a dívida. Mergulhamos no derrisório.

O Crescimento não tem objeto nem fim, nem finalidade. Isto quer dizer que não tem sentido? Ao contrário, ele é apenas isto: sentido, direção. Mas não se deve zombar disso porque essa função é, ou talvez terá sido, essencial.

Gostaria de citar o notável trabalho de um jovem intelectual, filósofo e economista, Jérôme Batout. Sob a direção do filósofo francês Marcel Gauchet, ele dedicou sua tese às questões que estou abordando aqui. Nos seus termos, um momento-chave da história moderna foi quando passamos da vontade de abundância à vontade de crescimento. A conquista da abundância tem, em princípio, um termo que é o equivalente econômico ao do fim da história. Já disse que tanto o marxismo como o liberalismo sonharam com esse momento em que todas as necessidades humanas estariam satisfeitas. Essa crença há muito tempo deu lugar a outra crença, que aceita que a ideia mesma de fim é desprovida de sentido: é a fé no Crescimento.

Marcel Gauchet analisou o papel político da religião. É o papel de permitir às sociedades humanas se gerarem a partir de uma exterioridade que elas mesmas engendraram[6]. A saída da religião, analisa Jérôme Batout, foi acompanhada de uma entrada na economia. Por sua vez, a economia produziu durante algum tempo uma forma de exterioridade reguladora. A crise atual é menos uma crise econômica do que uma crise da economia: a economia não desempenha mais o papel político que a dessacralização do mundo a ela atribuiu. Explica-se, portanto, o papel exorbitante assumido pela finança. Etimologicamente, finança quer dizer “fim”: em francês arcaico, finer significa “pagar”, estar quite. Hoje a finança “se infinisa”, escreve Jérôme Batout: “ela é uma finança que não visa mais a nenhum fim”[7].

Victor Hugo deu uma definição admirável do ser humano: este é, disse ele a um dos seus personagens, “um verme da terra apaixonado por uma estrela”[8]. A economia, em princípio, se dirige ao verme da terra, à sua finitude, às suas limitadas necessidades. Mas, com o Crescimento, a economia se tornou a estrela que só é nossa guia porque recua à medida que avançamos. Na verdade, o Crescimento tem todas as características de pânico. Elias Canetti dizia, na sua obra-prima Massa e poder: “a massa necessita de uma direção”, de um objetivo que seja dado “fora de cada indivíduo”, “idêntico para todos”: pouco importa o que seja, “desde que não tenha ainda sido atingido”[9]. O Crescimento sem objeto e sem fim preencheu muito bem esse programa durante muitos anos.

Hoje a estrela se apagou. A etimologia nos ajuda a descrever o estado que resulta disso: é um des-astre. Os advogados do Decrescimento, por quem eu tenho respeito, não percebem bem o tamanho do dilema em que nos encontramos. Não se priva um dependente químico da sua droga de um dia para outro. Não se renuncia à sua fé sem sofrimento. Sem sagrado nem Crescimento, quem ou o que poderá satisfazer o desejo da estrela e do infinito que reside em cada um de nós?

A ECONOMIA COMO SAÍDA DA VIOLÊNCIA

Mas é preciso tomar as coisas no seu começo e tentar compreender como a economia conseguiu conquistar, nas nossas vidas e sociedades, o papel dominante que ela tem e que faz com que o poder político esteja hoje de joelhos diante dela. É que – e isto é um segundo aspecto da utopia econômica – nasceu no século XVIII uma tradição de pensamento segundo a qual a economia seria, por excelência, a solução para o problema político que é o problema da violência. E que então a economia, sozinha, seria a nova política.

Não acredito ser necessário muito tempo no Brasil para apresentar a tese de que a economia é violência. É suficiente olhar em volta. Essa tese é de fato muito antiga. Nós a encontramos desde o início do século XVIII exposta no tratado de um certo Bernard de Mandeville sob o título A fábula das abelhas (1714). O subtítulo é mais explícito: Vícios privados, benefícios públicos, ou seja, são os vícios privados que criam a prosperidade pública. A fábula se passa no reino das abelhas, mas ela evidentemente diz respeito aos humanos. Sua mensagem foi um escândalo. Ela dizia: para assegurar a felicidade coletiva, que inclui a paz, a justiça e a abundância, é preciso libertar as paixões más que a Igreja condena, a saber, a inveja, o ciúme e a raiva, que são os motores do que hoje denominamos o espírito de concorrência.

Devemos sublinhar que Mandeville não tencionava criticar os primórdios da economia industrial e capitalista. Ao contrário, ele a elogiava, mostrando sua necessidade histórica. Mas o que ele então sublinhava eram as condições de sua possibilidade, a principal delas sendo a eclosão dessa violência que Karl Marx dirá, bem mais tarde, ser a parteira da história.

A fábula das abelhas foi claramente criticada por Adam Smith, mas sua lição foi retomada por Karl Marx. Não há necessidade de desenvolver aqui as teses desse autor sobre a alienação e a exploração, porque quero falar é do destino de uma ideia exatamente oposta, que nasceu no mesmo século XVIII e que está bem viva hoje. É a ideia de que a economia foi o melhor meio que os homens encontraram para conter sua própria violência, numa sociedade em que a religião não desempenha mais esse papel.

O extraordinário é que os argumentos colocados para justificar essa tese foram, em grande parte, os mesmos que os críticos da economia usaram para condená-la. É mérito do historiador do pensamento econômico Albert Hirschman tê-lo mostrado, no seu livro The Passions and the Interests[10]. Hirschman relata a emergência, o destino e o declínio de uma ideia: a de que o comportamento econômico, compreendido como a busca privada do maior ganho material, é um remédio para as paixões que levam os homens à desmesura, à discórdia e à destruição mútua. Numa sociedade em crise, devastada por guerras e que não reconhece mais na religião uma instância reguladora externa, a ideia de que a economia poderia refrear as paixões teria nascido da busca de um substituto do sagrado capaz de disciplinar os comportamentos individuais e de evitar a decomposição coletiva. A ironia da história é grande. Como escreveu Hirschman, “o capitalismo, julgava-se, deveria precisamente realizar isso que em breve ia ser denunciado como sua pior característica”[11]. A unidimensionalização dos seres reduzidos a sua capacidade de cálculo econômico, o isolamento dos indivíduos e o empobrecimento das relações, a previsibilidade dos comportamentos, em suma, tudo isso que descrevemos nos dias atuais como a alienação das pessoas na sociedade capitalista era então pensado, concebido, como algo que daria fim à luta mortífera e derrisória dos homens por grandeza, poder e reconhecimento. A indiferença recíproca e o retraimento egoísta no domínio privado, eis o remédio que se imaginava para o contágio das paixões violentas. Os autores que Hirschman mobiliza para apoiar sua tese são Montesquieu e alguns membros das Luzes escocesas, como James Stuart e David Hume.

No século XX essa tese serviu para colocar os fundamentos do que é hoje a União Europeia. A ideia de Jean Monnet, inscrita no tratado de Roma de 1957, era a de que, para impedir uma quarta guerra assassina entre a França e a Alemanha, que poderia conduzir ao suicídio da cultura europeia, era preciso fazer o desvio pela economia e criar entre esses dois países laços comerciais tão fortes que nenhum dos dois sucumbiria à tentação de rompê-los. A economia e seu comércio doce, como dizia Montesquieu, era, de alguma maneira, uma espécie de artimanha política.

Essa tese continua atual. Recentemente eu lia que, para se desprender da armadilha do passado e sair da prisão do ressentimento, da raiva e da vingança que tútsis e hutus lutam por extirpar, depois da horrível guerra civil que aconteceu nos anos 1980, Ruanda aposta tudo no crescimento econômico, esse famoso Crescimento que vai em busca de uma estrela marchando em direção ao futuro.

É preciso colocar a questão: A economia é a violência, como afirma uma tradição que vai de Marx à atual crítica ao capitalismo? A economia é o remédio contra a violência, como pensava Montesquieu e ainda pensa a tradição liberal? A economia é um remédio ou um veneno?

A ECONOMIA CONTÉM A VIOLÊNCIA

Eu vos proponho um quebra-cabeça. Existe uma obra escrita por um não economista cuja leitura é indispensável para quem quer compreender as condições de nascimento da teoria econômica e cujo capítulo central, o pivô em torno do qual o argumento se organiza, tem o título, na tradução portuguesa, “Sobre a mentira a si mesmo”. A leitura desse capítulo nos convence de que o comportamento dito econômico nada tem de econômico no sentido comum do termo. Se nós, modernos, corremos atrás da riqueza material sem jamais ficarmos satisfeitos, é certamente porque aquilo que buscamos através dela não é a satisfação de necessidades materiais: estas poderiam ser preenchidas com uma quantidade finita de recursos. O não limite da nossa busca revela que seu objeto é infinito como só pode sê-lo tratando-se de uma entidade imaterial. Queremos sempre mais. A teoria econômica não é a gestão racional dos recursos raros, como ela às vezes gosta de se autodefinir, apelando à etimologia: a economia, como o nomos do oikos, diz respeito às convenções que regulam a gestão das coisas domésticas. Não, explica o autor de quem falo; a economia é movida pelo desejo – e mais especialmente o desejo de ser reconhecido pelos outros, de ser admirado por eles, ainda que essa admiração se encontre matizada pela inveja. E disso nunca temos o suficiente.

Entretanto, acrescenta nosso pensador, o sistema só funciona porque os agentes permanecem na opacidade das suas próprias motivações e das motivações dos outros. Eles acreditam que a riqueza lhes trará esse bem-estar material que eles, erroneamente, acreditam ser necessário à sua felicidade. Mas é porque se enganam atribuindo à riqueza virtudes que ela não tem que, cobiçando-a, finalmente não se enganam. A riqueza tem mesmo essas virtudes que atribuímos a ela, mas é precisamente porque nós a ela lhes atribuímos. A riqueza atrai sobre aquele que a possui o olhar de cobiça dos outros. Pouco importa que os outros cobicem o que não merece ser cobiçado; o que importa é esse olhar de cobiça em si mesmo. É desse olhar que, sem o saber, cada um é ávido. A economia é finalmente um jogo de faz de conta, um teatro no qual cada um é ao mesmo tempo tolo e cúmplice da tolice. É uma imensa mentira a si mesmo coletiva.

Quem é então esse autor, e qual é a sua obra? Teríamos do que nos desculpar ao responder Alexis de Tocqueville, ele que escreveu, no saboroso capítulo do segundo volume de A democracia na América intitulado “Por que os americanos se mostram tão inquietos no meio do seu bem-estar?”: “para eles, o materialismo praticamente não existe, apesar de a paixão pelo bem-estar material ser geral”[12]. Entretanto, estaríamos enganados de século e de língua.

Meu quebra-cabeça é uma armadilha porque o autor em questão é conhecido não somente como economista mas como o pai fundador da disciplina. Trata-se de Adam Smith, a respeito de quem as piores bobagens foram escritas durante séculos. Contudo, na época em que redige A teoria dos sentimentos morais, publicado em 1759, Adam Smith ainda não era o economista que se tornará célebre ao escrever A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas, de 1776. É um representante eminente do que denominamos as Luzes escocesas, um filósofo da moral praticante em Glasgow, e sua Teoria, que ele considerará sempre como a matriz da Investigação, representa a síntese de suas reflexões em matéria de filosofia da sociedade. Sim, para Adam Smith a riqueza é o que atrai o olhar dos outros e isso porque eles a desejam. E, finalmente, se a desejam é para serem eles mesmos vistos. O pobre sofre menos de sua indigência material do que do fato de que ninguém lhe dá atenção.

Todos sofremos do que os psiquiatras denominam narcisismo perverso. Damos muita importância a um estatuto que não podemos apreender diretamente. Só temos acesso aos signos desse estatuto, em particular àqueles que nos reenviam os outros, pelos olhares destes, do mesmo modo que os gregos só podiam conhecer o estado de seu daimon pelos olhos do outro. Estamos prontos a pagar muito caro para que esses signos nos sejam favoráveis. Um exemplo? Quantos homens não estão dispostos a comprar julgamento positivo dos seus pares? Isso não é completamente irracional? Para que serve ser aprovado sabendo que não se merece? E, se sabemos que merecemos, pouco nos importa que os outros não o saibam. “Quando um homem comprou todos os seus juízes, a decisão mais unânime da corte é impotente para assegurá-lo sobre seu direito; e se ele iniciou seu processo com o único objetivo de ter esta segurança, em nenhuma hipótese ele os teria comprado.” Esta observação aparentemente de bom-senso vem da pena de Adam Smith. É compreendendo que sua surpresa vem de uma enorme ingenuidade que Smith se torna economista e escreve A riqueza das nações. Ele compreendeu por que os homens compram aqueles que os julgam. É que, quando o “tribunal superior” da consciência é mudo, ou incerto, somente o público pode nos assegurar o nosso valor.

Quando eu era um jovem filósofo em busca do meu caminho, na Paris dos anos 1970, tinha um colega cujo objetivo era tornar-se célebre o mais rápido possível. Não direi seu nome, mas ele efetivamente tornou-se célebre. Escreveu um livro de crítica de economia e encontrou uma maneira de fazer com que um bom número de exemplares fosse comprado assim que o livro foi lançado. No final das duas primeiras semanas, o livro apareceu nas listas de best-sellers que as revistas publicam regularmente. E como as pessoas compram os livros que os outros compram, o sucesso do livro foi considerável. A carreira desse homem estava lançada. Posso lhes assegurar que naquela época não era o dinheiro que o motivava principalmente. O que ele queria era ser reconhecido como um grande pensador. Não podia então ignorar, por conseguinte, que tinha comprado seu público pelo preço de um investimento inicial?

Encontramos na Teoria dos sentimentos morais a narrativa de uma luta entre o homem interior (the man within, o “espectador imparcial”) e o espectador em carne e osso (the man without), aprisionado aos seus desejos e às suas paixões. É a luta entre o ideal de uma consciência definitivamente liberada de suas origens sociais e a realidade da opinião pública com sua versatilidade. É preciso ler o capítulo surpreendente que Smith consagra ao desejo de ser aprovado pelos outros e à relação que esse desejo tem com o desejo de ser digno de tal aprovação – quer dizer, de poder aprovar-se a si mesmo. Ele queria muito mostrar que, embora a aprovação de si mesmo tenha suas raízes na aprovação que nos manifestam os outros, ela adquire certa autonomia, uma independência relativa, e que o julgamento moral se eleva acima do julgamento dos espectadores comuns. Mas é em vão. E finalmente é a riqueza econômica que surge como o objeto para o qual todos os desejos convergem porque, atraindo sobre nós o olhar do outro, esse outro que está exatamente na mesma posição que estamos em relação a ela, é ela o signo dessa qualidade de ser que todos queremos possuir sem jamais estarmos certos de que a possuímos.

Se, contrariamente ao seu sentido inicial, em que se pode entrever a avareza lendária dos escoceses – “fazer economias” –, a economia tem como horizonte o crescimento indefinido, é porque ela se move menos pelas necessidades do que pelo desejo. Com raras exceções, a história do pensamento econômico depois de Adam Smith repousa sobre o esquecimento, ou o recalcamento, dessa ideia fundamental.

Quanto à ideia de que a economia é a solução para o problema político de fazer com que uma multidão de pessoas e de classes sociais com interesses divergentes vivam em paz e na prosperidade, a posição de Adam Smith é paradoxal, o que explica por que seus sucessores, que se acreditam seus herdeiros sem nunca terem feito o esforço de lê-lo, nada aprenderam de sua lição. Sim, diz Adam Smith, a economia é capaz de se autorregular de maneira tal que as paixões dos homens, em lugar de entrarem em conflito, se neutralizam mutuamente para o maior bem de todos – o que parece dar razão não somente a Montesquieu como também a Mandeville, aliás tão criticado. Mas há um preço a pagar por isso: é o que, na linguagem inglesa do século XVIII, Smith denomina corrupção dos sentimentos morais. Essa corrupção resulta de “nossa inclinação a venerar os grandes [ou seja, os ricos e os poderosos] como se respeitam os virtuosos e nossa propensão a negligenciar os indigentes da mesma maneira que se desvia o olhar do vício”.

Essa economistificação[13] da moral e da política é sem dúvida necessária para a permanência da ordem social, mas representa, ao mesmo tempo, uma ameaça constante de desagregação desta. Nossas línguas latinas (inclusive a inglesa, que é metade latina) permitem expressar esse paradoxo de maneira muito reunida, jogando com o duplo sentido do verbo conter. Conter é ter em si, mas é também fazer uma barreira, impor um obstáculo. O pensamento de Smith nessa matéria pode então dizer-se assim: a economia contém a violência, no duplo sentido do verbo. A economia é violenta, mas essa violência é o meio de manter a violência sob controle. É dar razão ao mesmo tempo a Montesquieu e a Marx (que, claro, não existia ainda!).

Para ilustrar o fato de que o pensamento liberal eliminou completamente a dimensão paradoxal do pensamento de Smith, nada melhor que a seguinte citação do Prêmio Nobel de Economia, Milton Friedman, líder da Escola de Chicago. Ao definir o que, segundo ele, faz a superioridade política do mercado sobre qualquer outra forma de organização da sociedade, é esse traço que ele coloca em epígrafe:

Os preços que emergem das transações voluntárias entre compradores e vendedores – em suma, no mercado livre – são capazes de coordenar a atividade de milhões de pessoas, onde cada uma só conhece seu próprio interesse, de tal maneira que a situação de todos ficará melhor […]. O sistema de preços cumpre essa tarefa na ausência de uma direção central sem que seja necessário que as pessoas se falem ou se amem[14].

Em outros termos, para que os egoísmos calculistas, racionais e interessados se harmonizem, é necessário apenas um mecanismo, um gigantesco autômato que funciona tanto melhor quanto mais escapa a toda consciência, a toda vontade e sobretudo a toda intersubjetividade. Estamos muito longe de Adam Smith, para quem o desenvolvimento da economia pressupõe, ao contrário, laços fortes entre os homens, como vimos. Essa utopia de uma sociedade onde os homens não teriam necessidade nem de se falar nem de se amar para viverem juntos, onde a indiferença mútua e o isolamento de cada um constituiriam as melhores garantias do bem comum, é tão monstruosa que se diz que apenas um forte motivo pôde fazê-la existir e ser levada a sério por tantas grandes mentes. Tenho a minha hipótese. O mundo da concorrência econômica é extremamente duro porque cada um ali deve lutar para sobreviver. Que lhes poupem pelo menos das tormentas do pensamento competitivo quando este toma a forma devastadora das paixões más, a inveja, o ciúme, o ressentimento, que Bernard de Mandeville queria, ao contrário, liberar. O meio de fazer isso: separar completamente os homens uns dos outros. Eles se farão a guerra sem jamais se encontrar.

A ECONOMIA E A CORRUPÇÃO

Haveria mil maneiras de analisar o fracasso completo da utopia econômica e as consequências catastróficas desse fracasso. Dada a imensa importância política que a questão da corrupção tem hoje no Brasil, é através desse viés que vou abordar a questão. Evidentemente, para mim, um convidado estrangeiro, não é questão de discutir a política brasileira e menos ainda de dar lições de moral acusando este ou aquele. Quero permanecer em uma análise global, estrutural, se é possível dizer, que se apoia no que acabamos de analisar.

Se a economia, mais precisamente, se o problema econômico e a utopia econômica que ele causou invadiram nosso mundo, é porque responderam a um desafio bem real e, para dizer a verdade, inédito na história da humanidade: como fazer conviver os seres humanos na ausência desse cimento social antes representado, mas hoje não mais, pela religião. Em uma frase: a economia floresceu sobre as ruínas do sagrado.

O problema é que a economia passou a ocupar todo o espaço e por isso mesmo condenou a si mesma. Esse é o sentido da crise atual que, retomando a frase de Jérôme Batout, nem é tanto mais uma crise econômica, e sim mais uma crise da economia. Com efeito, a economia só pôde se desenvolver como o fez apoiando-se em um resto de transcendência que, na ausência do religioso, só poderia vir do Estado ou do domínio político. Isso foi magnificamente demonstrado por Karl Polanyi[15], mas já Adam Smith, que estava longe de ser o ultraliberal que as pessoas se divertem em descrever, estava bem convencido disso. Ora, a economia ofertou-se o político como se ofertou todo o resto. A economia comprou a exterioridade de que precisava. Ao mesmo tempo, privou-se de toda exterioridade. Ela reduziu o político ao seu nível. É a pior corrupção que se pode imaginar. Não faço aqui nenhuma lição de moral. Não há nenhuma necessidade de fazê-lo. É suficiente observar que todo mundo perde: a economia que desse modo se suicida, levando na sua morte o político que ela colonizou e contaminou.

Começo com uma anedota que revela o inconsciente da maioria dos economistas com relação à corrupção dos sentimentos morais da qual falava Adam Smith. Ela se passa há muitos anos em Paris, durante um jantar que organizei em homenagem a Ivan Illich em uma de suas visitas à capital francesa. Ivan Illich é esse grande crítico da sociedade industrial do qual já tive ocasião de falar nos ciclos anteriores da Artepensamento. Estava presente entre outros a editora inglesa de Illich, Marion B., e um economista francês de excelente reputação, que chamarei de Jean-Michel. No fim do jantar, Marion tira de sua bolsa um maço de cigarros e começa a fumar – isso era uma coisa que, nessa época, se podia fazer num restaurante. Seu vizinho, Jean-Michel, lhe pede um cigarro, pedido que Marion graciosamente atende. Jean-Michel coloca então na frente dela, sobre a mesa, uma moeda de vinte centavos de francos. Marion não entende. Foi preciso que Jean-Michel lhe explicasse que tudo é redutível a uma troca de mercadorias, mesmo quando se trata de uma doação solicitada, para que Marion compreendesse que Jean-Michel estava comprando dela o cigarro que ela lhe dera, não sem ter inicialmente calculado o preço justo do cigarro unitário. A editora de Illich ficou vermelha de raiva, tomada que foi por uma cólera que o economista visivelmente não compreendeu. Acrescento que Jean-Michel era e permanece ainda hoje um homem gentil e cortês, reservado e modesto na vida normal.

De fato, atrás de seu ato havia uma arrogância extraordinária. A palavra arrogância vem do verbo latino ad-rogare, quer dizer “pedir mais” – ou seja, mais do que lhe é devido. Insistindo em pagar o que lhe tinha sido dado, Jean-Michel traduzia em ato a pretensão da economia de dar conta de todas as condutas humanas, mesmo as que se referem a uma esfera antropológica distinta. Esse desprezo pelas diferenças de especificidades tem um nome: obscenidade. É porque a economia é arrogante que ela é obscena.

Na troca monetária, mercadoria contra dinheiro, o pagamento nos deixa quites com toda obrigação posterior. Frequentemente, jamais voltamos a ver o comerciante que nos vendeu o bem em questão. Nós não lhe devemos mais nada e ele também não nos deve mais nada. A troca de dons, ao contrário, é uma maneira de sustentar o laço social. Eis por que o contradom, o dom que se faz em troca de um primeiro dom já recebido, nunca deve ser feito em dinheiro: isso significaria recusar a oferta de cordialidade que nos foi proposta. A economia acredita que todas as relações humanas estão submetidas à sua lógica e ela é incapaz de compreender o que estou explicando.

Esse tema sobre o poder que o dinheiro tem de corromper qualquer bem e qualquer valor está no coração do best-seller mundial do filósofo de Harvard, Michael Sandel, O que o dinheiro não compra [Civilização Brasileira, 2012], do qual recentemente editei e prefaciei a versão francesa[16].

Encontramos nesse livro uma ilustração impressionante que, aliás, já tinha sido objeto de numerosos comentários de parte dos economistas. Trata-se de creches israelitas. Na hora acertada, os pais vêm buscar seus filhos, mas alguns chegam tarde, obrigando os auxiliares a fazer horas extras. Pode-se supor que alguns pais sentem certa culpa nisso, mas suas obrigações são tantas que os atrasos continuam. As creches decidem então cobrar uma multa aos pais retardatários. Que aconteceu? Aumentou o número de pais que chegavam tarde e os atrasos foram, em média,

mais significativos.

A multa parecia a priori uma maneira mais eficaz do que a consciência pesada para fazer os pais sentirem o que seus atrasos custavam em termos de tempo aos auxiliares. Aconteceu que a multa foi entendida como um preço a pagar pelo serviço prestado a mais pelos auxiliares. E valia a pena pagar esse preço pelo serviço em questão. A multa era para ser uma sanção moral. O simples fato de que ser paga em dinheiro a reduzia a uma troca de outro tipo, não era mais um mal contra um mal, mas um bem contra um bem, análogo à compra de um serviço no mercado.

A reação dos economistas a essa análise é ainda mais reveladora do que o caso em si. Com economistas refiro-me não apenas aos profissionais e práticos dessa disciplina, mas também a todo cidadão comum cujo espírito foi contaminado pelo modo de pensar econômico, o que infelizmente engloba muitas pessoas. Essa reação é a seguinte: deve-se aumentar o valor da multa o suficiente para fazer com que os pais se esforcem para chegar na hora.

Os economistas raciocinam assim: a multa, como todo preço, deve assegurar o equilíbrio entre a oferta e a demanda. Ora, a oferta aqui é nula: os auxiliares não recebem evidentemente o montante da multa, não têm nenhum estímulo para esperar pelos pais. Se o fazem é porque são movidos por essa estranha motivação que se chama dever. A multa deve então ser suficientemente pesada de modo que os pais não se atrasem mais.

Há alguma coisa que esse belo raciocínio esquece e faz dele um modo obsceno de pensar. A ausência de multa não é multa zero. A prova está em que, quando as creches israelitas renunciaram a recorrer à multa, os pais persistiram nos atrasos. O mal estava feito: a preço zero do serviço prestado, a ele valia a pena recorrer. Antes de instituir a multa, estávamos em outro contexto antropológico, onde a ideia de troca de mercadorias entre creches e pais não estava presente na cabeça de ninguém.

Um pressuposto da ideologia econômica é que o bem e o mal são da mesma natureza, apenas com sinais opostos. Segundo a lógica dos vasos comunicantes, isso quer dizer que um bem é um mal menor e que um bem menor é um mal. Um custo é uma perda a ganhar e um ganho é um custo menor. Essa equivalência não ocorre nas ciências normativas, seja se tratando da ética, da política ou do direito. Quando essas disciplinas se deixam invadir pela lógica econômica, simplesmente perdem sua alma.

Michael Sandel teve ocasião de tomar posição contra a ideia de que se poderá lutar contra a mudança climática com impostos ecológicos ou estabelecendo um preço para o carbono. É preciso que aquele que faz o mal, contribuindo para a destruição do meio ambiente, tome consciência de que faz o mal. Se o fazemos pagar com dinheiro vai se produzir o contrário. Não apenas ele não se sente culpado como, mais do que isso, estende o domínio dos seus direitos. O sistema “cap-and-trade”, instituído pelo Protocolo de Kyoto, que dá o direito de poluir para além de sua cota, mediando esse direito com compensações financeiras em favor daqueles que poluem menos, resulta em que ninguém percebe mais o que está em jogo: a preservação de uma vida humana decente na Terra.

Os exemplos que proliferam no livro de Sandel e que tornam sua leitura agradável e muitas vezes engraçada trazem uma lição: mostram por que um mercado que ultrapassou seus limites nos revolta. É que ele contradiz uma hipótese da teoria econômica que permaneceu sempre implícita, a saber, que a troca de mercadorias não afeta a natureza do bem trocado. Pouco importa que ele esteja fora do mercado ou que tenha se transformado em mercadoria, um bem ou um serviço dado permanece o mesmo. O mercado seria axiologicamente neutro. Os casos relatados evidentemente violam essa hipótese. Existem bens e serviços que são corrompidos quando se tornam mercadorias.

Nos Estados Unidos, cada vez mais se pode comprar o direito de passar antes dos outros nas diversas filas da vida moderna, tanto para uma consulta médica como numa autoestrada. É chocante? Isto choca os brasileiros ricos que têm acesso a essa instituição que se chama despachante? Na França, as pessoas acham bem normal que os pais (ou hoje, as comunas) deem dinheiro às crianças se elas estão indo bem na escola. Nos Estados Unidos, são as escolas que pagam os alunos se eles tiram boas notas ou simplesmente se leem os livros do programa. Qual é a diferença? Talvez a leitura seja apresentada aos alunos como um trabalho enfadonho que merece remuneração e não como uma fonte de desenvolvimento. Se você tem boa saúde, venderá mais facilmente sua força de trabalho. Apesar da crítica marxista sobre a exploração e a alienação, a maior parte das pessoas aceita a existência de um mercado de trabalho. Nos Estados Unidos e em outros lugares, os empregadores e as companhias de seguro ligadas a uma empresa pagam aos trabalhadores que se esforçam e conseguem melhorar sua saúde, sobretudo em matéria de obesidade e de tabagismo. Isto nos parece barroco. Por quê? Talvez porque esse estímulo monetário incita os trabalhadores a fazer o que deveriam fazer de qualquer maneira por respeito a si mesmos e à sua saúde, mas o fazem por uma razão ruim.

A arrogância da economia, desconhecendo limites, não podia deixar de abordar o domínio da gratuidade. Ela desenvolveu técnicas engenhosas para dar um valor de mercado não apenas a tudo que não o tem, mas também àquilo que não pode tê-lo sob pena de se corromper. Por exemplo, valoriza-se todo serviço não mercantil por um preço que um sujeito consente implicitamente em pagar para adquiri-lo ainda que, se efetivamente o pagasse, o serviço em questão estaria desnaturado.

Na última divulgação de seu relatório anual, o Instituto Francês de Estatística e Estudos Econômicos, denominado Insee, anuncia uma ótima novidade: os franceses são muito mais ricos do que pensam. Em 2009, Nicolas Sarkozy, na época presidente da República, criou uma comissão e confiou sua presidência a dois Prêmios Nobel de Economia, os queridos da esquerda mundial: o americano Joseph Stiglitz e o indiano Amartya Sen. O objetivo era atualizar os indicadores de bem-estar ou de felicidade que não tivessem os defeitos do produto interno bruto (PIB). Seguindo as recomendações dessa comissão, o Insee passou a contabilizar dali em diante as horas passadas nos trabalhos domésticos não remunerados. Cozinhar e ocupar-se da arrumação, brincar com as crianças, fazer pequenos consertos, levar o cachorro para fazer suas necessidades é produção para consumo próprio. Não levar isso em conta é minimizar a produção, o consumo e, logo, a riqueza da nação.

Na escala da França, o tempo total consagrado a essas atividades é eloquente: entre uma e duas vezes o tempo de trabalho remunerado. Uma enorme proporção dessas horas é feita pelas mulheres. Mas se quisermos juntar ao PIB o que é assim produzido, será preciso converter as horas em dinheiro. O Insee tentou muitos métodos. No último relatório, considerou-se que uma hora passada cozinhando valia o salário com que se teria remunerado uma cozinheira para fazer a mesma tarefa. O valor do tempo passado com as crianças? É o que teria sido pago a uma babá para fazer o mesmo “trabalho”. E assim por diante.

Quando se fazem os cálculos, vemos que o PIB aumenta pela metade e o consumo das famílias em dois terços. A maior parte dos comentaristas parece impressionada. A extrema esquerda aplaudiu os resultados. Muitos consideram que desse modo se reconhece a dignidade das tarefas domésticas, frequentemente executadas pelas mulheres. O princípio da igualdade exige que não se valorize o trabalho das mulheres e dos homens por métodos diferentes.

Raros são os observadores que viram nessa operação o que, penso eu, ela na verdade é, e o repito: uma obscenidade. Os mais lúcidos foram os que não resistiram ao prazer de fazer brincadeiras, reivindicando que não se omitisse do PIB alargado o trabalho que a esposa presta ao marido ao multiplicar o número de relações com ele pelo que cobra a prostituta, preço modulado de acordo com seu desempenho. O paradoxo é que o Insee recusou incluir no PIB francês, resistindo assim a uma determinação europeia que os outros países seguiram, em geral, sem resmungar, o volume de negócios da prostituição.

Os responsáveis do Insee não imaginaram um só instante que, se o dinheiro não compra certos bens sem corrompê-los, ele não pode servir de medida para tudo. Dar um valor monetário a um bem é, no plano simbólico, convertê-lo em dinheiro. Confundindo o simbólico e o real, os internautas inferiram da alta inesperada do PIB que suas aposentadorias aumentariam; outros, mais desconfiados, que seriam seus impostos.

“Tempo é dinheiro”: não há nada mais claro. Nas autoestradas da Califórnia, nas horas de pico, é preciso ter pelo menos duas pessoas no carro para poder trafegar na fila da esquerda. Acontece que em 90% dos automóveis há apenas o condutor, sozinho. As pessoas ficam bloqueadas, para-choque contra para-choque, a pista rápida vazia, e a tentação de trapacear é muito forte. Seria arriscado, como já se tentou, colocar uma boneca inflável no banco do passageiro. Para preencher a mesma função, alguns já recorreram aos serviços de prostitutas aposentadas. O ciclo está fechado.

A lista de tarefas que compõem a produção doméstica estabelecida pelo Insee é muito imprecisa. Se colocarmos aí o tempo despendido em melhorar seu habitat e brincar com seus filhos, por que parar num caminho tão bom? Todas as horas fora do trabalho remunerado contribuem para o duro labor de viver; o sono, como o lazer, só serve para reproduzir a força de trabalho. Toda a vida é um meio a serviço de um fim inexistente. Não há mais limites para a economistificação do mundo e a confusão de todos os valores. Somos todos cúmplices e vítimas desse câncer ético – alguns, evidentemente, mais do que outros.

* * *

Tentei mostrar que a corrupção da política pela economia, que está no coração do debate público atualmente no Brasil, deve ser recolocada num quadro histórico, antropológico e filosófico muito mais vasto que diz respeito à história do Ocidente em seu conjunto. É o destino trágico de uma utopia que fazia da economia a solução do que Spinoza denominou problema teológico-político. Num mundo sem Deus, privado de transcendência, os homens podem viver em sociedade sem se matarem uns aos outros? A solução econômica funcionou enquanto estava orientada pela crença de que um dia um ponto de abundância e de saciedade seria alcançado. Essa crença foi substituída pela sacralização do Crescimento sem objeto, sem fim nem finalidade. Mas esse ato de fé está, por sua vez, em via de se desagregar sob nossos olhos, e isso em escala mundial. Que nos resta, então?

Notas

  1. Comunicação feita no ciclo de conferências Mutações: O novo espírito utópico, organizado pela Artepensamento e realizado em São Paulo e Rio de Janeiro, em 6 e 7 de outubro de 2015. La Trahison de l’opulence é o título de um livro que publiquei com Jean Robert em 1976, em Paris, pela PUF. Esse livro registrava muitos anos de pesquisas realizadas no Cidoc, o centro de pesquisas e encontros que Ivan Illich criou em Cuernavaca, no México. Escolhi o mesmo título para essa comunicação para homenagear esse período longínquo de minha vida e também os amigos e colegas com os quais eu refletia na época – em primeiro lugar, é claro, Ivan Illich e Jean Robert. A tradução do presente ensaio, incluindo as citações de obras feitas pelo autor, é de Ana Maria Szapiro.
  2. Ver Jean-Pierre Dupuy, The Mark of the Sacred, Stanford: Stanford University Press, 2013; e Economy and the Future: A Crisis of Faith, Michigan: Michigan State University Press, 2014.
  3. J. M. Keynes, La Pauvreté dans l’abondance, Paris: Gallimard, 2002, pp. 103-ss.
  4. Ibidem, pp. 111-3.
  5. Variável de estoque é a expressão utilizada pelos economistas para tratar do que nas ciências da natureza se denomina variável de estado, porque se trata de medir o estado de um sistema (por exemplo, o volume de um gás, a massa de um corpo sólido, a massa monetária de uma economia etc.). Por contraste, as variáveis de fluxo medem a mudança no tempo do estado de um sistema: a velocidade de um elétron, as despesas mensais de uma família etc. O PIB é uma variável de fluxo, o capital é uma variável de estado ou de estoque.
  6. Marcel Gauchet, Le Désenchantement du monde: une histoire politique de la religion, Paris: Gallimard, 1985.
  7. Ibidem.
  8. Victor Hugo, Ruy Blas, 1838.
  9. Elias Canetti, Masse et puissance, Paris: Gallimard, 1966. Ed. bras.: Massa e poder, Sergio Tellaroli (trad.), São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  10. Albert Hirschman, The Passions and the Interests: Political Arguments for Capitalism before its Triumph, Princeton: Princeton University Press, 1977. Ed. bras.: As paixões e os interesses: argumentos políticos a favor do capitalismo antes do seu triunfo, Luiz Guilherme B. Chaves; Regina Bhering (trad.), Rio de Janeiro: Record, 2002.
  11. Ibidem, p. 132.
  12. Alexis de Tocqueville, A democracia na América, livro ii: Sentimentos e opiniões, São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 169.
  13. Termo utilizado pelos mercantilistas da época para zombar dos fisiocratas, os ancestrais dos nossos ultraliberais. Ver Jean-Pierre Dupuy, L’Avenir de l’économie: sortir de l’économystification, Paris: Flammarion, 2013.
  14. Milton Friedman; Rose Friedman, Free to choose, New York: Avon, 1981. Ed. bras.: Livre para escolher, Ligia Filgueiras (trad.), Rio de Janeiro: Record, 2015.
  15. Karl Polanyi, The Great Transformation: The Political and Economic Origins of Our Time [1944], Boston: Beacon Press, 2001.
  16. Michael Sandel, Ce que l’argent ne saurait acheter, Paris: Seuil, 2014. Ed. bras.: O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado, Clovis Marques (trad.), Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

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