2017

A utopia contemporânea dos corpos

por Frédéric Gros

Resumo

Contemporaneamente tem prevalecido o discurso, por diversas vias, de que as utopias não existem mais, principalmente aquelas que preconizam e detalham o fim último do homem. Inicialmente, vimos ruir o projeto iluminista que apostava no triunfo da razão para depois, presenciarmos a crise do cientificismo e positivismo de Comte. Ainda mais recentemente, foi desfeito, para a maioria das pessoas, o sonho do socialismo logo que rolou a última pedra do Muro de Berlim em 1989. O pensamento teleológico de Hegel e também aquele de Marx e Engels, mesmo tendo eles defendido um socialismo “científico”, não foi poupado. Lyotard, atento a esse processo, declarou em 1979 o fim das grandes narrativas e, depois da Queda do Muro, o norte-americano Francis Fukuyama fez um verdadeiro estardalhaço ao publicar O fim da história. Ele sonhou com o neoliberalismo triunfante e com um mercado mundial harmonioso, ideia muitíssimo questionável em vários pontos. Depois, Fukuyama escreveria um livro bem mais sombrio nosso futuro pós-humano. Se hoje ainda subsistem utopias e, principalmente distopias, elas não têm mais como mote a sociedade ideal. Notemos que, diante dos avanços galopantes no campo da genética, da cibernética e da nanotecnologia, é o próprio homem e seu corpo que se tornam objeto das utopias e distopias mais radicais. Em outras palavras, vemos ameaçado o próprio conceito de humanidade. Com efeito, nós carregamos uma vergonha: a de já termos produzido máquinas mais ou menos autônomas que são, em vários sentidos, bem mais eficientes e velozes do que nós mesmos; comparados a elas, os nossos corpos são lentos. Os cenários sobre o futuro próximo são variados e suas possibilidades, férteis: nanotecnologia e superação de doenças terminais, hibridação (homem-máquina), chips cerebrais e acesso instantâneo a um vasto conhecimento e a temível contrapartida disso tudo: a dominação da humanidade pelas máquinas. Se tais utopias e distopias envolvem, portanto, a própria condição humana, logo se nota que as implicações sociais, políticas, econômicas e culturais nelas contidas são imensas, a começar pela pergunta: quem serão os “privilegiados” a terem acesso a todas esses supostos benefícios? Diante desse contexto, urge reler “O corpo utópico” de Foucault, texto suscinto de 1966. Nessa obra, Foucault revela que o corpo é mais do que aparenta ser. Inicialmente, o autor concebe que o corpo é avesso à utopia porque ele é o presente, ele é finito e limitado, limitante, mas num segundo momento, Foucault nega esse primeiro conceito para conceber o corpo enquanto enigma constante, paradoxo contínuo, sendo mistério, interioridade e exterioridade. Esse segundo conceito nos leva a um caminho inverso em relação à tecnologia, nos faz pensar na impotência da máquina e das inteligências artificiais frente à consciência, intuição, vontade e sensibilidade humanas.


[1]

Vivemos o fim das utopias? Há mais de trinta anos já, em 1979, Jean-François Lyotard, em seu livro La condition post-moderne[2] [A condição pós-moderna], anunciava o fim das grandes narrativas. Para ele, a pós-modernidade seria marcada pelo desaparecimento, o apagamento e a perda do que ele chamou então de metanarrativas, isto é, esquemas narrativos muito totalizantes que descreviam o progresso inelutável e maciço da humanidade a caminho de sua realização, e que anunciavam também um movimento de emancipação universal dos indivíduos pelo progresso dos conhecimentos. Reconhecemos aí tanto o projeto das Luzes (liberação da razão dos obscurantismos de toda espécie e dos fanatismos violentos) quanto a grande filosofia da história do século XIX, marcada pelos nomes de Hegel, Marx e Comte. Ora, esse anúncio por Lyotard de um fim, de um desaparecimento, de um apagamento progressivo do que fora a característica da modernidade ocidental, estava apenas começando. Ao longo dos anos 1980, sobretudo depois da queda do muro de Berlim, de maneira ainda mais intensa com a expansão e principalmente a democratização das novas tecnologias, com as mutações sociais e a globalização das trocas, foram anunciados outros fins nas esferas intelectuais: fim das ideologias, fim da política, fim da história e, em breve talvez, até o fim do homem. Vivemos certamente uma época de fins, uma época de mutação capaz de provocar o apagamento do que por muito tempo foi a identidade de nossa cultura. Logo após a queda do muro de Berlim, o intelectual americano Francis Fukuyama publicou o livro intitulado O fim da história[3]. Ele considerava que o desmantelamento do bloco soviético era apenas o prelúdio do triunfo absoluto do modelo das democracias liberais, e que em breve veríamos o fim da história, o desaparecimento dos conflitos e a constituição de um mercado mundial harmonioso. Ora, dez anos mais tarde, Fukuyama redige um texto bem mais sombrio, Nosso futuro pós-humano[4], que fala do fim do homem de maneira muito mais angustiada. E o que o inquieta e amedronta são justamente as novas utopias, utopias sustentadas certamente pelo que fazem entrever as novas tecnologias (internet, telefones celulares, nanotecnologias), mas também o desenvolvimento da genética ou das neurociências. Ele apresenta então o que se começa a chamar de trans-humanismo como a ideologia mais perigosa para a nossa época. A mim também me parece que novas utopias surgem de uns anos para cá, e penso que elas se apresentam essencialmente como utopias do corpo, segundo uma expressão usada por Foucault num texto que escreveu para um programa de rádio em 1966. Portanto, vou proceder em três tempos: primeiro, dar algumas indicações gerais sobre a utopia em sua versão mais clássica, a de Thomas Morus ou de Charles Fourier; depois, evocar o texto de Foucault sobre as utopias do corpo; e, enfim, me interrogar sobre essas novas utopias chamadas trans-humanistas.

Convém, primeiro, precisar a significação e os usos do termo utopia. Há que constatar que é um termo bastante vago. De maneira muito ordinária, designa o que se relaciona com o ideal, o sonho, a quimera, a ilusão. Afinal, é essa a significação primeira, etimológica do termo: utopia é um não lugar, um lugar que não está em parte alguma. Diz-se que um discurso ou um projeto é utópico quando se vê que é irrealizável, quando está claramente desconectado da realidade, quando procede de puras construções imaginárias. A utopia, portanto, é o que se opõe à realidade material, à história concreta, ao real. Mas nessa oposição há, penso eu, uma tremenda ambiguidade, algo mesmo como um paradoxo estrutural que gostaria de sublinhar porque retorna de maneira muito regular no conjunto dos debates sobre a utopia. Quando se fala de oposição ao real, o que pode vir à mente é, de fato, a ideia de que a utopia seria uma formidável máquina para escapar ao real, para arrancar-se à finitude do mundo, para não ver mais a tristeza dos homens. A utopia seria, então, um puro fantasma, uma ilusão que agitamos para nos proteger das imperfeições ligadas à nossa finitude, um mundo paralelo desenhado pela imaginação e destinado principalmente a afastar de nós o desgosto do real, o pesadelo da realidade. Haveria na utopia algo como um movimento de fuga e de negação. Ao discurso utópico opõe-se então o realismo, um certo realismo, contudo: o realismo da resignação (de um tipo muito diferente, devo ressaltar, daquele de Marx ao criticar os socialistas utópicos). Dever-se-ia aceitar o real, até mesmo resignar-se às coisas tais como são em vez de forjar ficções irresponsáveis, gratuitas, inúteis, de ousar imaginar que as coisas poderiam ser diferentes do que são, que poderíamos nos livrar das coerções definitivas do real como ele é. Nesse sentido, a utopia é condenada porque não seria séria. Mas o que o realismo antiutópico oferece é uma estranha definição da realidade: esta não seria senão o que se deve aceitar, não o que devemos transformar, mas aquilo com o qual devemos nos conformar.

No entanto, é possível, talvez, ter outra perspectiva. Opor-se ao real poderia significar também denunciá-lo, criticá-lo. Poder-se-ia dizer, do mesmo modo, que a utopia se opõe ao real na medida em que, ao lhe opor outra possibilidade de vida ou de sociedade, ela o denuncia, o critica, sublinha as injustiças do presente. De fato, ao nos apresentar o quadro completo, argumentado, preciso de uma sociedade ideal, ela nos faz compreender o quanto nosso mundo está repleto de injustiças e saturado de ignomínias. A projeção de uma humanidade perfeita ou, pelo menos, de uma organização social diferente tornaria o real insuportável e, portanto, nos convidaria perpetuamente a transformá-lo. Aqui faço evidentemente referência ao famoso livro de Karl Mannheim escrito em 1929, intitulado Ideologia e utopia[5], que demonstra que a crítica, precisamente, é a função principal da utopia. A utopia seria um instrumento de denúncia, um questionamento da realidade presente e de suas injustiças, uma condenação das sociedades em seu modo de funcionamento atual. Mas Karl Man-nheim vai mais longe ainda ao escrever que a utopia é o verdadeiro motor da história, que o imaginário seria a causa última da transformação do real. É porque o homem projeta seus sonhos que ele pode avançar; é porque crê em coisas loucas que pode mudar sua existência, a dos outros e a do mundo. Ora, se o livro se intitula Ideologia e utopia, é porque Mannheim considera a ideologia como um discurso que, em nome dos interesses de uma classe dominante, nos faz aceitar o real com suas imperfeições e suas injustiças, a fim de que ele se torne indefinidamente tolerável. Ao mesmo tempo, penso que, para além da oposição simples entre discurso crítico e discurso legitimador, é preciso notar que a utopia apresenta uma dimensão descritiva e narrativa bem maior que a ideologia. Pode haver ideologia nos saberes, nos discursos políticos, sem que haja uma coerção particular, enquanto a utopia é mais claramente orientada para o lado da narrativa. Por outro lado, a ideologia se apresenta sempre como a ideologia de uma classe, de um grupo social (a burguesia, os poderes financeiros etc.), enquanto a utopia está geralmente ligada a um autor preciso, a uma obra literária determinada.

Assim, caberia distinguir pelo menos três tipos de discurso: a narrativa utópica desrealizante, que talvez nem se deva qualificar de utópica, mas de quimérica (pela magia das palavras seriam criados, como Baudelaire chamou, paraísos artificiais, ilusões sem outra função senão a de servir de anteparo ao real, função de escapatória, portanto); o discurso ideológico, que teria a função de legitimação, ao justificar o estado do mundo tal como é; e, por fim, um discurso utópico com a função de tornar o real insuportável e de nos incitar a transformá-lo. Três tipos de discurso, portanto: quimérico, ideológico, utópico.

Vê-se, todavia, que a ambiguidade dessa oposição ao real é forte. Nesse nível, há quase coincidência com a noção de ideal. Afinal de contas, o idealista pode também ser considerado como alguém que denuncia o real para transformá-lo, ou que o nega em projeções abstratas. Mas me parece que o que faz a diferença entre os dois é a precisão, a meticulosidade da narrativa utópica. O ideal está ligado a noções abstratas: tem-se um ideal de justiça, de fraternidade, de igualdade. Mas na utopia a relação com o real é muito paradoxal, e é confrontando a noção de ideal com a de utopia que se compreende isso. De fato, a utopia não apenas enuncia ideais abstratos como articula numa narrativa precisa, longa, a organização social, as formas arquitetônicas, as estruturas econômicas que tornam esse ideal efetivo na vida dos homens, mesmo que essa efetividade seja evidentemente imaginária. No fundo, acho que por trás desse paradoxo há algo como uma definição muito estranha da utopia que se poderia formular assim: a utopia é a possibilidade do impossível.

Penso que, para ser completo, caberia mesmo acrescentar um quarto tipo de discurso, que não seria o quimérico, nem o utópico, nem o ideológico, mas o mítico. Refiro-me aos relatos míticos recolhidos pelos antropólogos e não necessariamente aos mitos filosóficos de Platão, cujo papel é certamente mais complexo (com efeito, pode tratar-se de belas mentiras nas quais se tem interesse de fazer acreditar para manter uma coesão social, ou de relatos construídos para desenvolver significações ricas e ocultas). Ora, os mitos têm ainda outra função que é a de fundar a história de um povo, fundar a identidade de uma comunidade, revelar o segredo das origens. Ato de fundação, portanto, o que não é a mesma coisa que um ato de legitimação. O mito se apresenta, da mesma forma, como uma narrativa extremamente detalhada, precisa, mas que se volta para o passado: é uma narrativa das origens.

Contudo, temos de ser um pouco mais precisos e tentar compreender agora a utopia por ela mesma. O que se chama utopia é primeiramente um gênero literário, certo tipo de narrativa codificada por Thomas Morus em seu livro justamente intitulado Utopia. É Thomas Morus, portanto, quem forja o nome utopia nesse pequeno texto que conheceu um grande sucesso ao longo de toda a Renascença. E nos habituamos a considerá-lo o fundador do gênero literário utópico, ainda que evidentemente se possa encontrar bem antes dele a descrição de sociedades idílicas, na cultura grega, por exemplo – penso em Atlântida ou na sociedade ideal tal como Platão a imaginou em As leis. Alguns anos depois do livro de Morus, Tommaso Campanella escreve sua Cidade do Sol[6]. São os dois exemplos mais conhecidos, mas evidentemente houve outras histórias semelhantes até o século XVIII. Como se sabe, o século XIX vê surgir um gênero de narrativa um pouco diferente, inspirado pelo socialismo. No que se costuma chamar de socialismo utópico (ou seja, os livros de Fourier, Owen, Saint-Simon e muitos outros), a dimensão da organização social é mais pronunciada, com uma ênfase no trabalho e uma esperança no desenvolvimento das técnicas industriais. A dimensão programática também é mais pronunciada: trata-se menos de sociedades ou comunidades secretas do que de projetos a se realizarem num futuro próximo. Estimam-se ao todo, na cultura ocidental, mais de mil narrativas que podem pertencer à literatura utópica. Assim, a difícil e complexa questão que se coloca é a de saber se, para além dessa tremenda diversidade, há características comuns a essas narrativas, aquilo que se poderia chamar de traços estruturais. A tarefa é, de fato, muito difícil. Depois de ler mais de uma dezena desses relatos utópicos ou de consultar o Dictionnaire des utopies[7] [Dicionário da utopia] ou ainda o livro de Raymond Trousson, Voyages aux pays de nulle part [Viagens aos países de lugar nenhum], logo se percebe que é impossível estabelecer verdadeiramente traços estruturais, temas ou tramas narrativas que se possam encontrar em toda parte.

O que se pode tentar identificar são apenas algumas constantes gerais, mas cujo enunciado imediatamente suscita contraexemplos. A única base absolutamente comum a todas as narrativas, o núcleo mesmo de sua identidade, é que elas se apresentam como a descrição de uma sociedade perfeita, harmoniosa. Por outro lado, existe uma trama narrativa repetida com frequência, pelo menos até o século XVIII: um viajante é jogado, após uma tempestade, numa praia desconhecida, ou então chega pelo maior dos acasos a uma cidade isolada, escondida, ou ainda, depois de ter-se extraviado numa floresta imensa, vê abrir-se uma clareira improvável e ali descobre uma civilização maravilhosa, um povo bom e em plena saúde, que vive na paz e na harmonia, na abundância e na serenidade. O gênero literário utópico é primeiramente a descrição de uma cidade ideal, de uma organização política harmoniosa, de um povo feliz. A dimensão coletiva e social é determinante para os relatos utópicos clássicos e modernos que se apresentam sempre como a descrição de comunidades que, na maioria das vezes, são comunidades isoladas, separadas, sem contato com o mundo exterior. Com muita frequência são ilhas desconhecidas, cidades fortificadas, escondidas, ou ainda labirintos debaixo da terra.

A utopia descreve, portanto, sociedades perfeitas, mas essa perfeição social, essa harmonia, essa unidade são produzidas por meios humanos. Aí está, penso eu, a primeira grande diferença entre a narrativa utópica e a narrativa chamada milenarista ou quiliasta. Já fizemos uma distinção importante entre mito e utopia. Penso também que a utopia não se confunde inteiramente com as profecias milenaristas. Para a crença cristã no milenarismo, que logo foi condenada pelos patriarcas da Igreja, o fim do mundo seria precedido de um período de mil anos em que a humanidade viveria em plenitude perfeita: plenitude cósmica, com uma natureza generosa e pródiga; plenitude humana, com o desaparecimento de toda violência, de toda hostilidade, de todo sofrimento; plenitude também política e social, com o reinado de reis justos e o fim da pobreza. A referência a um período de mil anos encontra-se no Apocalipse de São João, e descrições gloriosas desse estado de perfeição na Terra estão presentes nas profecias de Isaías. Alguns patriarcas cristãos, como Justino, Irineu, Barnabé, professaram essa doutrina que será condenada pela Igreja, certamente porque ela introduzia a possibilidade de uma perfeição imanente, um estado de plenitude feliz na Terra. Dito isso, essa crença reaparecerá na Idade Média de maneira muito ativa: em algumas cruzadas (especialmente as cruzadas dos pobres); em alguns movimentos igualitários como os de John Ball ou de Thomas Munzer; no anúncio por Joaquim de Fiore de uma terceira e última era do mundo depois das eras do pai, do filho e do espírito, esta representada pelos monges contemplativos; na criação, enfim, de um mito político muito forte no Ocidente medieval, o mito do império dos últimos dias, a ideia de uma república cristã unificada que supõe a abolição das fronteiras e a reunião de toda a humanidade numa mesma fé. Trata-se, então, de anunciar que o Apocalipse seria precedido por essa era de plenitude, ela mesma precedida por um período de perturbações extremamente graves trazidas por um Anticristo.

Na utopia vamos reencontrar essas mesmas características de perfeição, de consumação, mas é preciso assinalar algumas diferenças. Em primeiro lugar, na utopia essa perfeição não é dada como o resultado de uma manifestação da transcendência divina, o cumprimento de uma profecia, o sinal do advento do reino de Deus na Terra. De resto, como já foi observado, a narrativa utópica, pelo menos em suas primeiras manifestações, não coloca a utopia num futuro, mas num presente que é simultaneamente ausente. É este o paradoxo da narrativa utópica: descreve-se um impossível já realizado, mas longe, noutro lugar, num espaço secreto, escondido, que é ao mesmo tempo aqui e nenhum lugar, enquanto o relato milenarista coloca essa perfeição num futuro iminente que é ao mesmo tempo um passado findo. Quero enfatizar que o estado de perfeição que une a humanidade antes do fim dos tempos é também um retorno a uma idade de ouro perdida, à época do paraíso terrestre que precedeu o pecado original. Por outro lado, a narrativa utópica mostra essa perfeição realizada por certa comunidade, separada do resto da humanidade, distante e mantendo sua perfeição precisamente graças a essa distância. A utopia é algo à margem da história dos homens. Além disso, enquanto as profecias são geralmente muito vagas e se limitam a grandes referências simbólicas (regatos de leite e mel, leões vegetarianos etc.), a narrativa utópica é extremamente precisa; cada autor dedica centenas de páginas aos detalhes da organização social, descrevendo a distribuição das tarefas, o tamanho das casas, a alimentação, a repartição dos poderes. É nesse ponto que se fala da utopia de Morus, de Campanella, de Fourier, porque a cada vez se trata de um sistema muito preciso, muito diferenciado.

Há, entre as profecias milenaristas e as narrativas utópicas (a maioria delas, pelo menos), um ponto comum: a estrutura estritamente igualitária, o desaparecimento da propriedade privada, a ausência de desigualdades sociais, muitas vezes até a interdição do dinheiro – no fundo, o que se poderia chamar de realização de um comunismo. Mas nas narrativas utópicas essa igualdade não é o fruto de uma natureza infinitamente generosa. Ela é o resultado de regulamentações estritas, de um arsenal de leis severas, de uma organização artificial que em geral supõe um pequeno grupo de dirigentes extremamente meticulosos. Nas sociedades utópicas há muitas vezes um artificialismo: a perfeição é o resultado de um engenheiro genial, de um artesão inspirado. Mesmo assim, a narrativa utópica é obcecada pela seguinte questão: como eliminar entre os indivíduos todos os fatores de discórdia, todas as fontes de conflito? E a resposta é bastante imediata: suprimindo a propriedade privada, a moeda e às vezes até mesmo a família, anulando tudo o que poderia dar origem a ciúmes e cobiças. No extremo, trata-se mesmo de acabar com a dimensão individual: não deve haver indivíduos no sentido de singularidades marcadas por diferenças. A perfeição social e a plenitude da justiça são, portanto, asseguradas por uma regulamentação extensa, uma vigilância contínua, sobretudo a destruição de toda dimensão privada, suspeita de alimentar germes de dissensão social. No fundo, há relativamente poucas utopias anarquistas ou naturalistas. A sociedade como máquina maravilhosa, que dá a cada um sua parte exata de felicidade e de realização, supõe um círculo de dirigentes que são como os grandes tecnocratas do social. No entanto, essa ênfase num igualitarismo estrito, num funcionalismo quase cego (lembro aqui a fórmula de Saint-Simon de substituir o governo dos homens pela administração das coisas), no emprego necessário de um controle permanente dos indivíduos, acabou por suscitar, no século XX, as chamadas contrautopias ou distopias, isto é, versões narrativas de sociedades cuja perfeição tem mais a ver com o pesadelo que com o sonho: são as narrativas, por exemplo, de Yevgeni Zamyatin, Nós, de Aldous Huxley, Admirável mundo novo, ou de George Orwell, 1984.

Nesses relatos do século XX encontramos a tirania da transparência, o despotismo do conformismo, o totalitarismo do funcionalismo. Os indivíduos não são mais que marionetes que se sorriem estupidamente e não pensam mais. A meu ver, a produção dessas contrautopias permitiu colocar uma série de questões muito ligadas, porém temíveis, que a narrativa utópica ao mesmo tempo mascara e revela: a produção autoritária pelo Estado da felicidade de um povo supõe a negação de sua liberdade? Só se pode ser feliz na obediência? Ou ainda: seria a felicidade apenas uma aspiração que nos move e um pesadelo tão logo se realiza?

Volto a citar o sucinto texto “O corpo utópico”, de Foucault, escrito em 1966, que se constrói pela justaposição de dois momentos. No primeiro deles, imitando de maneira quase irônica o procedimento fenomenológico, Foucault constrói a ideia de que o corpo é a antítese da utopia, a instância contrautópica por excelência. Por quê? Bem, precisamente porque é um aqui absoluto, uma coerção definitiva, uma presença ao mesmo tempo pesada e incômoda, um acompanhamento contínuo, uma finitude insuperável. É a razão pela qual, explica o autor, as utopias são, de maneira bastante imediata, a negação do corpo: sonha-se livrar-se dele, ou imagina-se que ele é transparente, capaz de deslocar-se instantaneamente a velocidades infinitas. No fundo, para Foucault, o que se chama alma no Ocidente é também a projeção imaginária de um corpo, que seria, no entanto, incorpóreo. Toda utopia seria então, talvez, a negação do corpo.

No segundo momento do texto, de maneira bastante brusca, Foucault inverte todas essas análises para demonstrar, ao contrário, que o corpo é um enigma constante, um paradoxo contínuo: certamente sou meu corpo, mas ao mesmo tempo esse corpo me escapa; ele existe sobretudo no olhar dos outros, define um espaço confuso que habito mas que conserva suas próprias leis de funcionamento. Ele é um mistério: é simultaneamente uma interioridade e uma exterioridade, um sujeito e um objeto, uma máscara e um ponto de revelação. É, finalmente, uma virtualidade utópica, antes a fonte do que a negação das utopias, e no fundo, para Foucault, toda utopia se constrói como o prolongamento das virtualidades do corpo, o exagero imaginário de suas possibilidades.

Ora, parece-me, e por isso achei o texto de Foucault pertinente, que há esse duplo movimento naquilo que se poderia chamar de novas utopias, particularmente nas chamadas utopias trans-humanistas ou pós-humanistas. Quando falo aqui dessas novas utopias, designo uma série de discursos, de intervenções, de livros, também de anúncios ou até de instituições universitárias, que se passou a agrupar sob a bandeira do trans-humanismo ou do pós-humanismo. No livro de Rémi Sussan intitulado Les utopies posthumaines [As utopias pós-humanas], lê-se que as raízes primeiras dessa corrente se encontram na contracultura norte-americana californiana dos anos 1960 (portanto, uma corrente individualista e libertária), mas também na ficção científica. Dito isso, o que entendo por trans-humanismo ou pós-humanismo é uma série de discursos sobre as perspectivas abertas pelos progressos tecnológicos para o aperfeiçoamento humano, possibilitado pela convergência das nanotecnologias, das biotecnologias, das ciências da informação e das ciências cognitivas. Ora, esse trans-humanismo passou a ser levado a sério a partir dos anos 2000 e é o objeto de ações políticas nos Estados Unidos e na Europa, portanto, de financiamentos e de pesquisas para o melhoramento do indivíduo humano por essas novas tecnologias. Os grandes ideólogos, por assim dizer, dessa corrente, ainda que o termo seja um pouco pejorativo, são conhecidos: Max More e seu Instituto de Extropia; Raymond Kurzweil e sua Universidade da Singularidade, patrocinada pelo Google; Nick Bostrom, fundador da Associação Trans-humanista Mundial, que considera a constituição de uma superinteligência; podem-se incluir também personalidades como Aubrey de Grey, que anuncia a possibilidade de uma regeneração contínua das células, além de acadêmicos como James Hugues, Allen Buchanan etc. Na França, Marc Roux e Laurent Alexandre são considerados representantes do trans-humanismo.

Penso que, nos devaneios trans-humanistas, há de fato algo como um desprezo do corpo, que pode ser apreendido a partir de pelo menos três noções: o virtual, a conectividade e a inteligência artificial. A possibilidade de entrar em mundos virtuais, em universos paralelos, já existe através dos videogames, das visitas virtuais a sítios arqueológicos e a sites de museus ou de atrações de parques de diversões. O deslocamento num universo virtual se faz em âmbito puramente cerebral; no ciberespaço existimos sem corpo; a cibersexualidade nos propõe relações sexuais sem parceiro real. Alguém poderia dizer que, no fundo, o simples devaneio permite deslocar-se e existir sem o corpo. Mas aqui o mundo virtual nos é imposto. O que chamo aqui de corpo é apenas este fragmento de espaço ligado ao meu cérebro, bem mais do que a totalidade fisiológica que me faz existir. A utopia de uma existência num mundo virtual supõe a distinção entre o cérebro e o corpo, entre a velocidade das atividades cerebrais e a lentidão de um corpo preso ao seu próprio peso e prisioneiro de suas insuficiências. Do mesmo modo, quando um indivíduo se torna, armado com seu smartphone, cada vez mais um homo connecticus, um ser conectado (e aí não se trata mais de utopia), isto é, capaz de estar sempre em contato com outros indivíduos afastados fisicamente dele. Reencontramos a ideia de que existe um modo de presença que não está mais ligado ao corpo. Não é mais um corpo limitado no espaço e no tempo, um corpo com capacidades restritas que impõe as coordenadas da presença. Por outro lado, o projeto de criar uma superinteligência é uma nova variação desse desprezo do corpo. Usa-se a ideia de inteligência para falar de “telefone inteligente” ou “cidade inteligente”. A utopia da cidade inteligente, por exemplo, é a de uma cidade saturada pelas tecnologias da informação, de tal modo que as coisas interagiriam constantemente entre si produzindo uma autorregulação contínua. Seria a criação de uma internet dos objetos, capaz de diminuir gastos de energia, de tornar mais fluidas as circulações, de prevenir catástrofes. Ora, o que me interessa aqui é o uso que se faz do termo inteligência. Será chamada inteligência a simples capacidade de captar uma informação e de responder a ela de maneira adequada. É o caso, por exemplo, do robô inteligente que a Mitsubishi desenvolve no Japão para ajudar idosos e que, ao escanear regularmente o rosto de seu mestre, pode adaptar suas intervenções vocais. Trata-se de uma inteligência que calcula a resposta ótima em função das informações dadas. O problema é saber se a inteligência pode se resumir ao cálculo e à capacidade de responder de maneira adaptada a um estímulo. A consciência, a intuição e a sensibilidade não participam também da inteligência? No fundo, a ultramodernidade nos obriga a voltar à ideia de uma estupidez da máquina e dos automatismos. Por muito tempo se considerou que a máquina não era mais que um boneco inerte que obedecia de maneira dócil a uma vontade superior, porque se estava no paradigma industrial. A cibernética e o desenvolvimento das tecnologias digitais fazem aparecer máquinas que tratam as informações de maneira diferencial, calculam possibilidades de resposta e interagem entre si sem necessidade da autorização de uma consciência humana para funcionar. Há um desprezo do corpo, portanto, nas utopias contemporâneas. David Le Breton escreveu um livro chamado L’adieu au corps[8] [O adeus ao corpo] para mostrar que todas as novidades tecnológicas tentam nos poupar ao máximo todo esforço corporal). Mas não só isso: exalta-se também uma inteligência resumida a funções de cálculo e de tratamento diferenciado das informações.

Mas creio que se pode perfeitamente fazer o equivalente do gesto de Foucault em seu texto de 1966. De fato, as utopias contemporâneas trans-humanistas talvez só desprezem o corpo de maneira marginal ou secundária. Também elas são movidas pelo sonho de uma transformação do corpo: trata-se de conservá-lo, mas eliminando dele tudo que é da ordem da limitação e da imperfeição. Pensamos aqui imediatamente nas três grandes dimensões do corpo: nascer, sofrer, morrer. Percebe-se que a utopia trans-humanista contém o projeto evidente de fazê-las desaparecer. Prometem-nos o apagamento do acaso do nascimento, uma duração de vida indefinidamente prolongada numa saúde perfeita, contanto que se aceite que nosso corpo seja atravessado por nanorrobôs que o reparam a todo instante, previnem as doenças e impedem o envelhecimento. Prometem-nos, evidentemente, performances inacreditáveis, uma sensibilidade multiplicada, uma alegria constante, o fim do câncer e em breve o fim da morte. Essas fantasias certamente não datam de hoje, mas as mutações tecnológicas as tornam, talvez, mais dignas de crédito, ainda que seja difícil imaginar que essas proezas tecnológicas estarão ao alcance de todos. Mas elas supõem também uma transformação do corpo, que será fundamentalmente híbrido e perpetuamente sustentado por nanotecnologias cuja importância é poder intervir num nível nanométrico. Nesse nível, como escreve Gilbert Hottois, “não há mais diferença absoluta entre matéria inerte, viva e pensante; entre natural e artificial; entre homem, máquina, animal”. Ou seja, os elementos se compõem e se conjugam. É esse nível nanométrico que permite, por exemplo, imaginar a aprendizagem imediata, por download em nossos cérebros, de conhecimentos e capacidades teóricas, ou, ao contrário, o download do conteúdo de um cérebro em outro suporte que não o biológico, primeiro. Trata-se de considerar a criação de indivíduos que serão ditos aumentados, melhorados; não mais de imaginar simples próteses, mas verdadeiramente uma recomposição da química fundamental do ser vivo. Compreende-se então o que pode significar o termo trans-humanismo e sua passagem para o pós-humanismo. No fundo, em sua versão clássica, a utopia propunha algo como uma realização da humanidade. Desta vez se trata de ultrapassar a condição humana para poder conhecer a felicidade, e o caminho da perfeição estaria na elaboração sempre maior de uma continuidade entre o homem e a máquina, a constituição de um ciber-homem. No trans-humanismo só se fala de melhoria, de aumento, mas com a aceitação antecipada de que essas transformações fatalmente vão causar uma alteração, uma mutação da humanidade. A questão que se coloca, então, é a de nosso apego à humanidade: seríamos mesmo tão apegados à nossa humanidade? Não significa ela apenas uma série de limitações? Estaríamos cansados de ser humanos?

É possível que a distinção feita por Foucault, e que reproduzi na

apresentação, entre desprezo e exaltação do corpo seja em grande parte artificial. Pois se trata de um mesmo movimento: quer-se um novo corpo, um corpo que não tenha mais esses elementos que fazem parte de sua definição, sua finitude. Eis por que essas utopias contemporâneas podem parecer assustadoras: sempre nos perguntamos, ao lê-las, se no fundo não exprimem certo fascínio pela morte, se não visam finalmente a uma transparência ausente de si mesma. Penso aqui na definição de Jean-Michel Besnier que, considerando com muito ceticismo e desconfiança essa corrente trans-humanista, diz que “a utopia é a morte tal como gostaríamos de vivê-la”.

Talvez pudéssemos arriscar o seguinte. As grandes utopias clássicas podem ser lidas como reações de indignação diante da injustiça de um estado do mundo. Basta ler o texto de Thomas Morus para convencer-se disso. Ora, parece-me que as utopias contemporâneas do trans-humanismo têm a particularidade de surgir de outro sentimento, que seria um sentimento de vergonha: vergonha diante das capacidades de uma máquina que nós mesmos criamos. O trans-humanismo talvez seja a expressão dessa vergonha. Criamos máquinas que calculam e processam dados a uma velocidade que jamais atingiremos, podemos criar robôs androides com capacidades múltiplas, mais belos e eficientes que nós. E então sentimos a vergonha de ser homens, vergonha de nosso desempenho limitado. Alguém dirá que a vergonha, afinal, é um sentimento cristão: Adão foi o primeiro a senti-la depois do pecado original. Mas agora não é diante de Deus que temos vergonha, mas diante de uma máquina que nós mesmos criamos. O humanismo expresso nos escritos do século XVI (podemos pensar aqui no texto de Pico della Mirandola sobre a grandeza do homem) se baseava na descoberta de uma transcendência no sentido sartriano do termo: é a ideia de que o homem não tem lugar determinado, mas deve inventar-se a si mesmo, que seu destino é não ter destino, que ele deve sempre encontrar nele próprio o recurso do devir humano. O humanismo, penso eu, é fundamentalmente a ideia de que a humanidade é uma tarefa indefinida, e de que é preciso dedicar-se a ser homem, a humanidade sendo uma aventura. Mas essa aventura nos expõe ao acaso dos encontros, é um devir tortuoso, sem certezas. O trans-humanismo em sua versão mais radical exprimiria o projeto louco de uma autocriação de si perfeitamente controlada.

As críticas ao trans-humanismo (fascínio gelado pela máquina, sonho delirante e narcísico de autoengendramento e de sucesso) são certamente fáceis e se apoiam num humanismo um pouco clássico.

Dito isso, se esse conjunto de doutrinas me interessa (e convém notar que não são defendidas apenas por sonhadores idealistas e irresponsáveis, mas por acadêmicos reconhecidos, engenheiros e pesquisadores financia-dos por forças econômicas e políticas consideráveis), é porque apresentam para a filosofia de hoje uma fonte de inquietude formidável. De fato, elas nos permitem interrogar pelo menos duas oposições que acreditávamos fundadas e definitivas para a nossa cultura. Primeiro, a oposição entre o homem e a máquina: até que ponto podemos ser sustentados em nosso funcionamento interno por nanorrobôs, nanomoléculas, sem que isso altere a nossa identidade? Será que devemos imaginar, no extremo, relações de respeito a estabelecer com um robô androide para respeitarmos melhor a nós mesmos e aos outros humanos que passarão a ser um tanto híbridos? A segunda distinção que se fragiliza é a que se dá entre terapia e melhoramento. No fundo, grande parte da rejeição do trans-humanismo pelo humanismo clássico consiste em dizer que as técnicas biomédicas têm vocação de cuidar e não de aumentar desempenhos; de diminuir os sofrimentos e não de aumentar os prazeres. Mas até que ponto valem essas distinções? Quero dizer que, se uma deficiência ou uma inferioridade natural é sentida como um sofrimento, o melhoramento não significa para o indivíduo que dele se beneficia o equivalente de um cuidado, de uma terapia? De maneira mais ampla, será que o desejo de melhorar seus desempenhos, sua longevidade, de aproveitar as possibilidades técnicas quando existem (e, é importante acrescentar, quando se tem os meios financeiros para financiá-las), deve esbarrar numa recusa da medicina, que considera que você já viveu o bastante ou que seu desempenho é normal? Acrescento que o grande argumento dos trans-humanistas consiste precisamente em dizer que a possibilidade de corrigir desigualdades naturais é uma revolução democrática, pois essas desigualdades são as mais injustas de todas. No fundo, a sociedade que os trans-humanistas propõem (penso num livro como From chance to choice: Genetics and Justice[9] [Do acaso à escolha: genética e justiça]) é uma sociedade na qual cada um poderá livremente se escolher em vez de submeter-se a uma fatalidade genética (o problema é que, no fundo, se terá sido escolhido pelos pais), inventar-se e reinventar-se – na verdade, preferir-se de tal maneira e não de outra. A definição de liberdade do trans-humanismo, e talvez seja esse filosoficamente seu grande limite, é a capacidade de escolher e de preferir.

Para concluir, direi então que essas utopias trans-humanistas devem ser tomadas a sério e provocar, da parte dos filósofos, algo mais que um desprezo condescendente ou uma rejeição pelo fato de serem apenas a expressão ideológica última do neoliberalismo. Por um lado, são utopias, porque permitem retomar o que chamei de grandes narrativas, a exemplo de Jean-François Lyotard. As grandes narrativas feitas pelas Luzes e pelo marxismo hegeliano do século XIX eram relatos da história. A história era o lugar da utopia, talvez desde Santo Agostinho e sua Cidade de Deus[10]; era o relato da aventura humana, de seu nascimento selvagem até o ponto mais alto de sua civilização. Ora, o que caracteriza o trans-humanismo é a proposta de uma utopia que não tem mais a história da humanidade como quadro, mas a evolução da espécie humana, uma espécie humana perfectível e indefinidamente transformável pela técnica. Não se trata mais de realizar uma essência e de revelar a humanidade segundo sua verdade autêntica, mas de aperfeiçoar uma máquina biológica e de fazer surgir indivíduos extremamente versáteis. Nisso o trans-humanismo certamente tem a ver com o que Foucault chamou de biopolítica, mas uma biopolítica não mais enquadrada por um Estado que quer controlar sua população e sim sustentada por indivíduos que consideram que são seus desejos que definem a extensão de seus direitos.

Por outro lado, e para terminar realmente desta vez, penso que o trans-humanismo nos obriga a recolocar a questão da finitude humana: essa finitude é ontológica ou simplesmente empírica? É um simples dado transformável ou está na raiz de nossa identidade? É com essa questão, para a qual evidentemente não tenho resposta, que terminarei.

Notas

  1. A tradução do presente ensaio, incluindo as citações de obras feitas pelo autor, é de Paulo Neves.
  2. Jean-François Lyotard, A condição pós-moderna, São Paulo: José Olympio, 2010.
  3. Francis Fukuyama, O fim da história, Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
  4. Idem, Nosso futuro pós-humano, Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
  5. Karl Mannheim, Ideologia e utopia, Rio de Janeiro: Globo, 1952.
  6. Thommaso Campanella, A Cidade do Sol, Rio de Janeiro: Vozes, 2014.
  7. Michele Riot-Sarcey, Dictionnaire des utopies, Paris: Larousse, 2006.
  8. David Le Breton, L’Adieu au corps, Paris: Editions Métailié, 2013. Ed. bras.: O adeus ao corpo – antropologia e sociedade, São Paulo: Papirus, 2003.
  9. Norman Daniels; Daniel Wikler, From Chance to Choice: Genetics and Justice, Massachusetts: Cambridge, 2002.
  10. Santo Agostinho, A cidade de Deus, v. 1, Rio de Janeiro: Vozes, 2011.

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