2015

A violência da vida

por Vladimir Safatle

Resumo

Muitos foram, ao longo da história, os paralelos traçados entre vida e política. Nesse sentido, a expressão “biopolítica”, cunhada por Rudolph Kjellén em 1920, foi um marco. Tratava-se, então, de ver algo de orgânico na política, em seu corpo, como se costuma dizer, não por acaso.

Tal paralelo serviu aos totaltarismos estabelecidos no século 20.

Por isso, quando Foucault retomou a expressão “biopolítica”, deu-lhe um novo sentido: o do uso político do que havia, até Aristóteles, de imutável no ser humano, isto é, seu caráter vivente. “Administração dos corpos e gestão calculista da vida”, escreve, com efeito, Foucault.

Nessa perspectiva, a “episteme” histórica vigorava sobre a vida, cuja ligação com a política deveria ser rompida; afinal, a vida, em seu vazio ontológico, é o que há de contrário à normatividade.

Mas por que não dar um sentido positivo a ela?

Foi o que fez Georges Canguilhem, professor de Foucault.

Para Canguilhem, não há sentido na conceitualização fria da vida, já que ela é a própria condição para a conceitualização. Mais: ela é potência produtiva, que se expressa na condição do vivente. Daí – ainda segundo Canguilhem – que a política a imita, mas não como se esperaria; isto é: não como cópia, mas em seu sentido produtivo. Com isso, retira-se a ênfase na filosofia da história e seus ideais, como Deus e o progresso. Esse foi todo o movimento de boa parte da filosofia francesa do século 20, manifesta em Henri Bergson, Georges Bataille e Gilles Deleuze.


Somos fecundos apenas ao preço de sermos ricos em antagonismos.

NIETZSCHE

“É a vida, muito mais que o direito, que se transformou no objeto de embate das lutas[1] políticas, mesmo que estas se formulem através da afirmação de direitos.”[2] Essa frase de Michel Foucault evidencia uma importante mutação na compreensão das estruturas de poder operada nas últimas décadas. Ela expressa a consciência de como as discussões a respeito dos mecanismos de “administração dos corpos e de gestão calculista da vida”[3] passaram a ocupar o cerne dos embates em torno dos efeitos da sujeição social. Mecanismos que mostravam como o funda­ mento da dimensão coercitiva do poder encontrava-se em sua capacidade de produzir horizontes disciplinares de formas de vida. Assim, desde que Foucault cunhou termos como biopoder e biopolítica[4], ficamos ainda mais sensíveis à maneira com que discursos disciplinares sobre a sexualidade, as disposições corporais, a saúde e a doença, a experiência do envelhecimento e do autocontrole estabelecem as normatividades que produzem a ideia social de uma vida possível de ser vivida. Daí uma afirmação maior como: “Durante milênios, o homem permaneceu aquilo que ele era para Aristóteles, um animal vivente que, além disso, era capaz de uma existência política. O homem moderno é um animal na política do qual sua vida de ser vivente é uma questão”[5].

No entanto, dizer que a vida se transformou no objeto de embate das lutas políticas é, ao menos na perspectiva foucaultiana, ainda dizer um pouco mais. Pois se trata de afirmar que o biológico não poderia ser visto como um campo autônomo de produção de normatividades capazes de alguma forma de determinação de nossos possíveis sociais. Ele não deveria sequer ser um ponto de imbricação entre vida e história, pois quem diz imbricação pressupõe dois polos que se podem ontologicamente distinguir. Notemos, por exemplo, o sentido de uma afirmação como esta de Michel Foucault a respeito da noção de biopoder:

Conjunto de mecanismos através dos quais o que, na espécie humana, constitui seus traços biológicos fundamentais poderá entrar no interior de uma política, de uma estratégia política, de uma estratégia geral do poder; dito de outra forma, como a sociedade, as sociedades ocidentais modernas, a partir do século XVIII, levaram em conta o fato biológico fundamental de que o ser humano constitui uma espécie humana[6].

Ao fazer tal afirmação, Foucault confirma que os traços biológicos fundamentais da espécie humana podem entrar no interior de uma estratégia política não porque a política está determinada, limitada por tais fundamentos biológicos, ou procura imitá-los, mas porque o biológico deve aparecer necessariamente como aquilo que não tem fundamento que lhe seja próprio[7]. Haveria uma plasticidade que lhe seria constitutiva, permitindo ao biológico ser algo como uma história esquecida de sua própria natureza. Não por outra razão, já em As palavras e as coisas, as reflexões sobre o biológico são apresentadas estritamente como a exposição da vida como expressão de epistémes historicamente determinadas. O que permite a Foucault afirmar que, se a biologia era desconhecida no século XVIII, “havia uma razão bastante simples para isso: é que a vida como tal não existia. Havia apenas seres vivos que apareciam através uma grelha de saber constituído pela história natural[8]. Dessa forma, a vida nunca aparecerá para Foucault como aquilo que força discursos voltados para transformações estruturais. Como consequência, será difícil não chegar ao fenômeno, bem descrito por Giorgio Agamben:

É como se, a partir de um certo ponto, todo evento político decisivo tivesse sempre uma dupla face: os espaços, as liberdades e os direitos que os indivíduos adquirem no seu conflito com os poderes centrais simultaneamente preparam, a cada vez, uma tácita porém crescente inscrição de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim uma nova e mais temível instância[9].

Esse esvaziamento ontológico da vida no interior de reflexões sobre estratégias políticas faz com que todo reconhecimento de uma dimensão vital no interior do campo político seja compreendida como codificação na ordem estatal, como contínua modelagem da vida pelo poder. Isso abre as portas, ao menos no interior da leitura proposta por Agamben, para toda biopolítica possível tornar-se indiscernível das formas de gestão próprias a um poder soberano que opera através da completa despossessão dos sujeitos. Poder capaz de transformar espaços sociais em zonas de gestão da anomia. A biopolítica, nesta leitura, não pode ser outra coisa que uma técnica do poder soberano, pois descreve o impacto do poder soberano na constituição de uma vida sem predicados, de uma vida completamente desnudada de sua normatividade imanente.

Talvez a crença em tal esvaziamento ontológico da vida se justifique se lembrarmos o que foi, até há bem pouco tempo, o uso político do biológico. Não falo apenas dos usos do biológico para legitimar as políticas eugenistas e racistas (Rudolph Hess dizia, por exemplo, que o nacional-socialismo nada mais era que biologia aplicada) ou a brutalidade da espoliação econômica a partir do darwinismo social. Lembremos que a articulação entre biologia e política sempre teve em vista a defesa da corporeidade do social, da organização natural do social como um corpo unitário que expressaria a crença na simplicidade funcional das organizações vitais – crença que forneceria uma visão fortemente funcionalista e hierarquizada da estrutura social e que nos levaria a compreender, entre outras coisas, os conflitos sociais como expressões tendenciais de patologias que devem ser extirpadas, da mesma forma que se retira um tecido em necrose. Já em Hobbes, os antagonismos e conflitos sociais eram descritos como patologias cuja gramática era derivada das nosografias das doenças de um organismo biológico[10]. A política só pode aparecer aqui como imunização contra o adoecimento do corpo social.

Quando, séculos mais tarde, a sociologia de Émile Durkheim descreve as desregulações da normatividade como situações de patologias sociais, encontramos a permanência de uma perspectiva que se serve do biológico para legitimar que a vida social obedeça a dinâmicas pre­ viamente estabelecidas. Pois o paralelismo assumido entre indivíduo e sociedade através do uso sociológico de um vocabulário médico permite a Durkheim falar da última como de um organismo ou corpo que precisa de intervenções a fim de livrar-se de acontecimentos que a enfraquecem e a fazem adoecer. Tais analogias serão fundamentais para as primeiras discussões sobre a biopolítica, ainda no período anterior à Segunda Guerra[11]. O termo foi, de fato, criado para inicialmente forçar a analogia entre biológico e social, entre normatividade vital e normatividade social, partindo da visão ideal da totalidade social para posteriormente projetá-la no interior da natureza, que começa a funcionar como a imagem duplicada do que setores hegemônicos da vida social procuram estabelecer como normalidade. Dessa forma, a biologização da política será o movimento complementar de uma verdadeira judicialização da vida, pois expressão da vida como o que se deixa pensar sob a forma das normas jurídicas e de nossos modelos de poder e legitimidade. A vida será o fundamento da lei porque a lei encontrará na vida sua própria imagem invertida. A vida social poderá, então, mascarar para si a profunda “convergência de soluções paralelas” própria às normatividades sociais, paralelismo que produz conflitos contínuos sobre normas e valores que demonstram como a sociedade é um “conjunto mal unificado de meios”[12].

Assim, é possível compreender por que uma peça fundamental da reconstrução do pensamento crítico nas últimas décadas passou pelo esvaziamento ontológico da vida produzido pelos desdobramentos desse conceito de biopolítica reconstruído pelas estratégias foucaultianas.

No entanto, podemos colocar atualmente em questão a necessidade real de tal estratégia. Pois mais eficaz do que esvaziar a realidade ontoló­ gica da vida talvez seja indagar se as figuras totalitárias produzidas pela aproximação dos discursos da política e da biologia, com suas metáforas da sociedade como um organismo no qual lugares e funções estariam funcionalmente determinados, ou ainda através das temáticas do darwinismo social, não seriam resultantes de uma compreensão completamente incorreta do que é uma normatividade vital. Assim, em vez de simplesmente cortar toda possibilidade de articulação entre os dois campos, há uma operação mais astuta que consiste em dar ao conceito de vida uma voltagem especulativa renovada.

Tal operação está claramente presente no professor de Foucault, a saber, Georges Canguilhem. Lembremos, por exemplo, o sentido de uma afirmação como: “Não é porque sou um ser pensante, não é porque sou sujeito, no sentido transcendental do termo, mas porque sou vivente que devo procurar na vida a referência da vida”[13]. Posso pensar a vida porque não fundamento o pensamento na abstração de um sujeito transcendental que se colocaria como condição prévia para a categorização do existente, nem como substância pensante. Posso pensar a vida porque ela se expressa em minha condição de existente, e por ser ela o que faz da minha existência uma expressão, o movimento conceitual do meu pensamento não pode distanciar-se por completo da reprodução do movimento da vida. O que elucida esta afirmação: “Não vemos como a normatividade essencial à consciência humana se explicaria se ela não estivesse, de alguma forma, em germe na vida”[14]. No entanto, se a normatividade essencial à consciência humana está em germe na vida, então nada impedirá Canguilhem de dar um passo politicamente prenhe de consequências ao afirmar: “Os fenômenos da organização social são como que uma imitação da organização vital, no sentido em que Aristóteles diz que a arte imita a natureza. Imitar, no caso, não é copiar, e sim procurar reencontrar o sentido de uma produção”[15].

Ao afirmar claramente que os fenômenos da organização social são como que uma imitação da organização vital, Canguilhem mostra como seu conceito de vida não tem direito de cidade apenas no interior de discussões sobre clínica e ciências médicas. Na verdade, tal conceito tem uma forte ressonância para a crítica social, fornecendo uma espécie de horizonte biopolítico que não se resume à crítica foucaultiana da maneira com que a atividade vital é construída como categoria de normatização e legitimação de procedimentos disciplinares de administração dos corpos e gestão calculista da vida. Ele traz em seu bojo a perspectiva positiva de uma biopolítica vitalista transformadora[16]. Por partir de uma reflexão na qual a vida não aparece apenas como objeto reificado de práticas discursivas mas também como a potência que produz conceitos, Canguilhem pode colocar no horizonte regulador do pensamento crítico algo como um peculiar fundamento biológico. O biológico, ou seja, a dimensão da vida que provoca em nós o espanto cuja resposta é uma forma de arquitetura de conceitos, não se apresenta apenas como produto de um discurso. Ele aparece como experiência que produz discursos, principalmente discursos que nos permitem voltar-nos contra outros discursos que produzem em nós um profundo sentimento de limitação.

Por outro lado, apelar à vida como fundamento para a crítica social teria a vantagem de retirar o pensamento crítico da dependência a filosofias da história que se veriam na obrigação de justificar perspectivas teleológicas, assim como uma confiança finalista no conceito de pro­ gresso. Tal apelo foi estratégia maior no interior da filosofia francesa contemporânea e pode ser encontrado em experiências intelectuais tão distintas entre si quanto Henri Bergson, Georges Bataille, Gilbert Simondon e Gilles Deleuze[17].

Claro que tal estratégia poderia ser, por sua vez, abstratamente criti­ cada na medida em que potencialmente abriria as portas para a fascinação ideológica pela origem, uma origem agora naturalizada. A não ser que o conceito de vida tenha sido determinado de forma tal que tenha dei­ xado de fornecer normas positivas de regulação das condutas, fornecendo apenas a descrição de um movimento processual imanente, ou seja, uma processualidade cuja teleologia encontra-se, de maneira imanente, no próprio processo. Processualidade que Canguilhem descreve, como veremos, ao pensar a vida como atividade marcada pela errância. Nesse caso, a vida não fornece determinações ontológicas de forte teor prescritivo; ela fornece a possibilidade sempre aberta do que poderíamos chamar de mobilidade normativa do existente. Mobilidade que traz em seu bojo um modelo paradoxal de auto-organização.

VIOLÊNCIA E DISRUPÇÃO

Gostaria de abordar este ponto a partir de uma inversão importante cujo eixo gira em torno da noção de violência. Normalmente, as metáforas biológicas do social foram construídas para justificar certas formas de violência e coerção, como aquela imposta pelo Estado contra os que parecem colocar em risco a unidade do corpo social ou ainda a violência de uns grupos contra outros dentro de uma dinâmica concorrencial pelo espaço vital. Ou seja, elas aparecem geralmente como estratégia para a justificativa da violência soberana, que seria, ao menos segundo tal visão, uma espécie de contraviolência preventiva diante da violência imanente das relações dos indivíduos entre si. Como resultado disso, desenvolvemos a crença tácita de que não deveria haver lugar para a violência em uma vida reconciliada. Pois a violência na vida social apareceria apenas como forma de coerção ou de submissão.

Mas uma reflexão sobre a biologia nos lembrará que, de certa forma, tal gramática da violência é radicalmente limitada e deveria ser alargada. Se conhecemos de fato a violência ligada à coerção, assim como conhecemos suas consequências, talvez seja necessário falar mais das violências que no fundo procuramos, ou seja, essas violências produzidas pelo desequilíbrio e pela desorganização das normatividades diante de acontecimentos e contingências – violências fundamentais ao movimento vital.

Pensar a produtividade de tal forma de violência e sua funcionalidade no interior de imagens renovadas da vida social é prioridade.

Tomemos, por exemplo, as reflexões de Canguilhem sobre as distinções entre normal e patológico. Partamos da seguinte afirmação: “Patológico implica pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e impotência, sentimento de vida contrariada”[18]. Enquanto modificação global de conduta, a doença é indissociável da restrição da capacidade de ação. Como dizia Goldstein, estar doente é “não estar em estado de atualizar a capacidade de rendimento que lhe pertence essencialmente”[19]. Ou seja, há uma especificidade da restrição da capacidade de ação na doença. Ela não é resultado de uma coerção externa, mas de uma impossibilidade interna ao organismo de atualizar seus possíveis, obrigando-se assim a viver em contrariedade. Por isso Canguilhem fala da doença como abismo da impotência[20].

Uma das consequências dessa ideia é a dissociação entre doença e anomalia. Uma anomalia vivenciada de maneira patológica por uma individualidade em determinada situação pode aparecer, para outra indi­ vidualidade em outra situação, como ocasião para o desenvolvimento de novas normas. Daí porque a fronteira entre o normal e o patológico é imprecisa quando tomamos diversas individualidades consideradas simultaneamente, mas ela é absolutamente precisa quando tomamos uma individualidade considerada sucessivamente. Vem mais uma vez de Goldstein a ideia, presente em Canguilhem, de que a distinção entre normal e patológico exige uma norma individualizada. Não se trata aqui, no entanto, de uma concepção individualista de saúde, mas de uma concepção que individualiza. A saúde não é um padrão que conforma individualidades a um conjunto predeterminado de regularidades a serem observadas. Padrão disciplinar que visaria, no caso humano, produzir indivíduos como entidades capazes, por exemplo, de organizar sua conduta a partir de regulações emotivas e processos cognitivos socialmente normatizados. Ela é, na verdade, a capacidade de individualizar processos tendo em vista a constituição de inflexões singulares da vida. A saúde não é uma conformação, mas uma individuação que produz processos que, do ponto de vista dos interesses de autoconservação dos indivíduos de uma espécie, podem parecer irracionais.

Isso auxilia, entre outras coisas, a compreender a importância da desvinculação geral entre doença e anomalia[21]. Nem toda anomalia é patológica, o que não significa que inexistam anomalias patológicas. Mas quando a vida não se contraria, uma individualidade em mutação é o ponto de partida para outra espécie, pois exprime outras formas de vida possíveis que, caso demonstrem sua superioridade em relação à fecundidade, à variabilidade e à estabilidade da vida, serão novas normatividades.

Não existe fato que seja normal ou patológico em si. A anomalia e a mutação não são, em si mesmas, patológicas. Elas exprimem outras normas de vida possíveis. Se essas normas forem inferiores às normas anteriores, serão chamadas patológicas. Se, eventualmente, se revelarem equivalentes – no mesmo meio – ou superiores – em outro meio – serão chamadas normais. Sua normalidade advirá de sua normatividade[22].

Assim, se a saúde pode produzir uma individuação que parece irracional da perspectiva da autoconservação dos indivíduos de uma espécie localmente configurada, é porque ela é a expressão da mobilidade da vida em sua procura por formas fora da espécie:

Há uma polaridade dinâmica da vida. Enquanto as variações morfológicas ou funcionais sobre o tipo específico não contrariam ou não invertem esta polaridade, a anomalia é um fato tolerado; em caso contrário, a anomalia é experimentada como tendo valor vital negativo e se traduz externamente como tal[23].

Ou seja, a vida é uma atividade normativa polarizada contra tudo o que é valor negativo, tudo o que significa decréscimo e impotência.

Quando a diversidade orgânica não implica tal polarização, a diferença não aparece como doença. Por isso, seres vivos que se afastam do tipo específico são, muitas vezes, inventores a caminho de novas formas. Se a saúde é norma que individualiza, é porque ela produz normas a partir de anomalias que se demonstraram produtivas. Na verdade, toda verdadeira saúde é uma espécie de anomalia produtiva, todas as formas vivas são monstros normalizados[24]. O que não poderia ser diferente, já que a vida, mesmo no animal, não é mera capacidade de evitar dissabores e se con­ servar. Ela é procura, atividade baseada na capacidade de afrontar riscos e triunfar[25], daí porque ela tolera monstruosidades.

Não estamos muito longe das afirmações de Nietzsche que procuram erigir a criação de valores em vontade de afirmação da vida a partir do conceito de grande saúde.

PATOLOGIAS SOCIAIS

Notemos, entre outras coisas, o impacto político de uma ideia dessa natureza. Ao utilizar os conceitos de normal e patológico para dar conta da vida social, Émile Durkheim dirá: “Para as sociedades como para os indivíduos, a saúde é boa e desejável, e a doença, ao contrário, é a coisa má que deve ser evitada”[26]. O paralelismo assumido entre indivíduo e sociedade através do uso sociológico de um vocabulário médico permite a Durkheim falar da última como de um organismo ou corpo que precisa de intervenções a fim de livrar-se de acontecimentos que a enfraquecem e a fazem adoecer. Por outro lado, essa visão orgânica do social leva Durkheim a insistir na dependência profunda entre sofrimento psíquico e sofrimento social a partir da relação entre o todo e suas partes, como podemos ver nesta afirmação: “Os indivíduos participam muito estreitamente da vida da sociedade para que ela possa ficar doente sem que eles sejam tocados. De seu sofrimento advém necessariamente o sofrimento deles. Como ela é o todo, o mal que ela sente se comunica às partes que lhe compõem”[27].

Mas o ponto importante aqui é .como se descobre a normalidade do organismo social. Ela é descoberta através da construção de um tipo médio derivado da ideia de média aritmética, o que leva à discussão sobre o patológico a derivar-se, em larga medida, da noção de desvio quantitativo em relação à norma[28]. O patológico será, assim, um problema de excesso ou de falta em relação ao tipo normal previamente definido através do recurso à média. Essa maneira de definir a normalidade a partir do tipo médio obriga Durkheim a estabelecer uma indistinção importante entre patológico e anomalia, como vemos nesta afirmação: “O mórbido é o anormal na ordem fisiológica tal como o teratológico é o anormal na ordem anatômica”[29]. Pois a anomalia é a figura privilegiada de um tipo que não pode mais ser descrito em conformidade aos padrões de uma estrutura média.

Aqui, devemos fazer uma precisão. A princípio, pode parecer estranho que Durkheim se recuse, por exemplo, a chamar o crime ou o suicídio de patologias. Ao contrário, “o crime é normal porque uma sociedade sem crime é impossível”[30]. Pois, através do crime, uma sociedade fortaleceria sentimentos coletivos ofendidos, principalmente em uma época na qual as trajetórias individuais significam, também, intensidades distintas da consciência moral. Por outro lado, “para que ela possa evoluir, faz-se ne­ cessário que a originalidade individual possa aparecer à luz do dia. Ora, para que a originalidade do idealista, que sonha ultrapassar seu século, possa se manifestar, é necessário que a do criminoso, que está atrás de

 

seu tempo, seja possível. Uma não vai sem a outra”[31]. Essa compreensão dinâmica da sociedade permite a Durkheim afirmar que a liberdade nunca seria proclamada se as regras que a proibiam não fossem violadas antes de serem ab-rogadas. No entanto, naquele momento tal violação foi um cri­ me. Da mesma forma, o suicídio é normal porque não há sociedade sem um certo nível de suicídio[32]. Através dos suicídios uma sociedade mostra sua força diante dos indivíduos (como no caso do suicídio altruísta) ou se fortalece contra um individualismo excessivo (como no caso do suicídio egoísta). Crime e suicídio são impeifeições necessárias, mas não doenças.

Se nem o crime nem o suicídio são, em si, patologias, é porque o conceito não se refere a fenômenos sociais específicos que encontram seu lugar no desenvolvimento dinâmico da vida social e que, pela via negativa, reforçam seus sistemas de crenças. Na verdade, a noção de patologia social é utilizada por Durkheim para descrever a desagregação da força de reprodução da vida social. Isso explica por que o conceito de anomia aparecerá como a patologia social por excelência. Ela descreve uma forma de desvio marcada pela falta e pela ausência, já que a desregulação das normas indica incapacidade a determinar sujeitos, internalizando sistemas de regras de conduta e crenças, devido à falta de força de coesão social. Dessa maneira, as normas sociais não seriam mais capazes de individualizar comporta­ mentos e fundamentar funções sociais de maneira bem-sucedida.

Nesse sentido, é clara a forma com que Canguilhem praticamente coloca tal perspectiva de Durkheim de cabeça para baixo. Não sendo o normal aquilo derivado do nível médio presente nas formas mais gerais, nem sendo as anomalias necessariamente expressões de patologias, elas podem aparecer como a expressão da capacidade transitiva da vida em sua procura para deslocar-se de um meio a outro. Do ponto de vista da normatividade social vigente à procura de sua conservação, mesmo que através de uma dinâmica de fortalecimento que admite o desvio controlado, toda anomalia é um convite em potencial à anomia. Porque a anomalia é o indeterminável, o sem lugar. No entanto, essa ausência de lugar pode não ser simples desabamento da estrutura, mas possibilidade de um modelo diferente de produtividade.

Assim, patológico para Canguilhem não será o anormal, mas exatamente o deixar-se aprisionar na fixidez de uma configuração estática da estrutura das normas. Longe de impor uma normatividade reguladora única a nossas expectativas de realização, o conceito de vida permite expor a raiz da profunda anormatividade e indeterminação que parece nos guiar no interior dos embates na vida social. Pois “o que caracteriza a saúde é a capacidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir novas normas em situações novas”[33]. Se quisermos explorar as possibilidades do uso de conceitos como patológico na análise da vida social, diremos que a saúde exige uma experiência na qual a capacidade de ultrapassar normas vigentes, de afirmar o que aparece como anômalo, assim como o poder de instituir novas normatividades, são fenômenos internos às dinâmicas sociais e políticas.

O OUE PODE SIGNIFICAR “DOMINAR”

Neste ponto, fica clara a importância dada por Canguilhem à dissociação entre saúde e adaptação ao meio. Importância sintetizada em afirmações como: “Normal é viver em um meio no qual flutuações e novos acontecimentos são possíveis”[34]. Ou ainda: “O homem só se sente em boa saúde – que é, precisamente a saúde – quando se sente mais do que normal, isto é, não apenas adaptado ao meio e às suas exigências, mas também normativo, capaz de seguir novas normas de vida”[35]. São maneiras de afirmar que a saúde dissocia normalidade e normatividade por ser atividade capaz de colocar em questão normas fisiológicas usuais, permitindo ao organismo viver em um mundo de acidentes possíveis[36]. Isso implica uma noção de relação entre organismo e meio ambiente que não pode ser compreendida como simples adaptação e conformação a um sistema meta-estável. Um organismo completamente adaptado e fixo é doente por não ter uma margem que lhe permita suportar as mudanças e infidelidades do meio. Por isso, compreendemos mal um organismo biológico quando vemos nele apenas um feixe de funções e órgãos que se submetem a padrões gerais de mensuração e quantificação, feixe de funções que responde a exigências de ajustamento a um meio causalmente fechado. Essa vida seria o exemplo de uma razão que se transformou em princípio de autoconservação; princípio que tem em vista apenas as ilusões mecanicistas de uma visão de natureza digna do século XIX. Vida mutilada por não reconhecer mais sua potência de produção de valores. Assim, a doença aparece necessariamente como fidelidade a uma norma única. Ela é o nome que damos a uma norma de vida que não tolera desvio algum das condições em que é válida. Daí esta definição: “Uma vida sã, uma vida confiante na sua existência, nos seus valores, é uma vida em flexão, uma vida flexível[…]. Viver é organizar o meio a partir de um centro de referência que não pode, ele mesmo, ser referido sem com isso perder sua significação original”[37].

Tentemos entender melhor o que pode vir a ser essa flexibilidade própria da vida. Ser flexível é, principalmente, ser capaz de mover-se. Se aceitarmos a teoria da degenerescência, seremos obrigados a admitir que a cura da doença implicaria necessariamente alguma forma de retorno a estados anteriores ao adoecer, estados nos quais funções vitais ligadas à preservação e geração poderiam voltar a funcionar a contento. No entanto, uma forma insidiosa da própria doença é a fixação em um estado anterior de saúde. Pois a vida não conhece reversibilidade, embora admita reparações que são inovações fisiológicas. Goldstein insistia em que “não se pode jamais reencontrar a antiga maneira de agir, a antiga adaptação ao antigo meio que correspondia à essência do organismo são”[38]. A nova saúde não é a saúde de outrora nem é a recuperação de determinações normativas anteriores. Mais importante, porém, é que ela é indissociável de uma compreensão renovada do que significa seguir uma norma. Pensemos, por exemplo, na seguinte afirmação de Canguilhem:

Porque a saúde não é uma constante de satisfação, mas o a priori do poder de dominar situações perigosas, esse poder que é usado para dominar perigos sucessivos. A saúde, depois da cura, não é a saúde anterior. A consciência do fato de que curar não é retornar, ajuda o doente em busca de um estado de menor renúncia possível, liberando-o da fixação ao estado anterior[39].

O que pode ser, nesse contexto, “o a priori do poder de dominar situações perigosas”? Se entendermos dominar como submeter o funcionamento de uma situação à imagem de ordenamento estabelecida a priori ou previamente, dificilmente entenderemos o que Canguilhem tem em mente. Senão, seria impossível compreender por que curar não poderia ser, de alguma forma, retornar. No caso, retornar a imagens de ordenamento anteriormente estabelecidas.

Lembremos aqui uma afirmação astuta de Theodor Adorno, para quem só dominamos uma língua quando nos deixamos dominar por ela, ou seja, quando nosso raciocínio é levado, em certa medida, pela estrutura interna da língua. Talvez algo disso valha para o fenômeno que Canguilhem procura descrever. O poder de dominar situações perigosas está, de certa forma, indissociável da capacidade de se deixar dominar por perigos sucessivos. Se aceitarmos que tais perigos representam as situações que podem levar à desorganização e à desordem do organismo, até sua completa dissolução e morte, então diremos que dominar tais situações está indissociável da capacidade de ser “um sistema em desequilíbrio incessantemente compensado por empréstimos no exterior”[40]. Conceito aparentemente paradoxal, já que um sistema em desequilíbrio incessante é aquele que transforma o risco perpétuo de sua dissolução como sistema em operador de seu desenvolvimento; é aquele que cria e desenvolve habilidades a partir daquilo que pareceria refratário à toda criação técnica. Desequilíbrio que nos coloca diante de um dos conceitos fundamentais de Canguilhem, a saber, a noção de errância.

O OUE ACONTECE QUANDO ENTRAMOS POR UMA PORTA ERRADA?

Canguilhem costumava dizer que a doença poderia ser definida como um erro, não no sentido de fazer uma conta errada, mas de entrar por uma porta errada. Se voltarmos à primeira definição de doença como restrição da capacidade de ação através da fixação a uma norma única, então é possível completar o raciocínio explorando um duplo movimento. A doença aparece como reação catastrófica à percepção da instabilidade do meio no qual o organismo se situa. Assim, o organismo erra por agir como se tomasse o meio a partir de sua imagem de estabilidade, ligada à perpetuação da situação anterior. Ele continua reagindo mecanicamente, como se o meio não houvesse se modificado, o que o leva a sobreviver apenas à condição de restringir radicalmente seu meio e a sucumbir quan­ do essa restrição é impossível.

Mas o que pode significar aqui entrar na porta errada? Quem entra pela porta errada não apenas se perde, mas encontra o imprevisto, o impercebido que só vem à existência quando mudamos a estrutura de nossa percepção. Entrar pela porta errada é condição para que mutações estruturais do organismo ocorram. No entanto, em uma afirmação importante a respeito de seu conceito de errância, Canguilhem dirá: “Nada acontece por acaso, mas tudo ocorre sob a forma de acontecimentos. É nisso que o meio é infiel. Sua infidelidade é exatamente seu devir, sua história”[41]. O que pode significar essa aparente negação do acaso e sua inusitada contraposição à noção de acontecimento? Podemos tentar contemporizar afirmando que talvez esse regime de negação do acaso deva ser mais bem qualificado, talvez seja simplesmente expressão da recusa em admitir acontecimentos desprovidos de relação. Não que Canguilhem procure assumir a submissão de todo acontecimento possível a relações de causalidade determinada. Caso assim fosse, eliminaríamos por completo a função da contingência no processo de desenvolvimento das formas vitais.

Nesse contexto, “nada acontece por acaso” significa simplesmente que nada acontece sem impor um devir que reconfigura as possibilidades do organismo, definindo retroativamente uma história. A necessidade não é uma determinação ontológica inscrita previamente no interior das formas vitais. Formas vitais não resultam de um projeto que se projetaria no tempo em vista de sua realização. A necessidade é uma determinação processual que fornece à historicidade a função de construir relações entre contingências. Pois a errância não é uma sucessão de contingências que não tecem entre si relação alguma, o que nos levaria à ideia de um sistema que vive em um tempo completamente descontínuo, um tempo pontilhista e instantaneísta no interior do qual habitariam organismos que seriam tábulas rasas perpétuas. Mesmo no nível das estruturas celulares, tal ideia do tempo da vida como um tempo descontínuo não se sustenta:

[…] a resposta de uma célula às modificações de seu meio ambiente não é unívoca. Sua resposta depende, ao mesmo tempo, da natureza dos sinais [que ela recebe do exterior], do momento no qual ela os percebe e do estado no qual ela se encontra. Sua resposta depende, ao mesmo tempo, de seu presente e de sua história, dos sinais que ela recebeu no passado e da maneira com a qual ela os interpretou[42].

A vida tem memória, hábito, repetição, um pouco como um pianista cujos dedos ao piano relembram uma peça que a consciência é incapaz de recompor. As atividades anteriores ficam marcadas como pontos de um processo contínuo de recomposição dinâmica a partir das pressões do presente. Por isso, o trajeto vital de metamorfoses não é indiferente, mesmo que ele seja recontado de frente para trás.

No entanto, a errância não é movimento submetido a uma finalidade teleológica transcendente, e é para afirmar tal característica que devemos insistir na existência da contingência[43]. Nesse sentido, vale a pena lembrar a peculiaridade da processualidade interna à vida. Para assumirmos que organismos podem ter a experiência da contingência, devemos aceitar que o organismo biológico é uma organização dinâmica capaz de ser um processo de

desorganização permanente seguido de reorganização com apançao de propriedades novas se a desorganização pôde ser suportada e não matou o sistema. Dito de outra forma, a morte do sistema faz parte da vida, não apenas sob a forma de uma potencialidade dialética mas como uma parte intrínseca de seu funcionamento e evolução: sem perturbação ou acaso, sem desorganização, não há reorganização adaptadora ao novo; sem processo de morte controlada, não há processo de vida[44].

Aqui se delineia a diferença ontológica fundamental entre um organismo e uma máquina artificial. Ao menos segundo Canguilhem: “Na máquina, há verificação estrita das regras de uma contabilidade racional. O todo é rigorosamente a soma das partes. O efeito é dependente da ordem das causas”[45]. Já o organismo não conhece contabilidade:

Uma fiabilidade como esta do cérebro, capaz de funcionar com continuidade mesmo que células morram todos os dias sem serem substituídas, com mudanças inesperadas de irrigação sanguínea, flutuações de volume e pressão, sem falar da amputação de partes importantes que perturbam apenas de maneira muito limitada as peiformances do conjunto, não tem semelhança com qualquer autômato artificial[46].

Ou seja, há um princípio de auto-organização no organismo capaz de lidar com desestruturações profundas e desordens. Isso é possível porque um sistema reduzido a uma só via de contato (entre A e B) seria simplesmente dissolvido se tal via se desordenasse por completo. Mas organismos não são sistemas dessa natureza. Ao contrário, eles são compostos por vários subsistemas que permitem que completa. independência entre A e B não se traduza na dissolução completa do organismo[47].

No entanto, a possibilidade da destruição do organismo como sistema é um dado real, e é necessário que tal dado seja real para que a ideia de errância possa realmente ser necessária. Errância implica poder se perder por completo, despender todo o processo acumulado em uma profunda irracionalidade econômica, o que explica por que a destruição do sistema é uma parte intrínseca de seu funcionamento. Pois apenas por poder perder-se por completo, ou seja, por poder deparar-se com a potência do que aparece como anormativo, que organismos são capazes de produzir formas qualitativamente novas, migrar para meios radicalmente distintos e, principalmente, viver em meios nos quais acontecimentos são possíveis, nos quais acontecimentos não são simplesmente o impossível que destrói todo princípio possível de auto-organização. Tal figura do acontecimento demonstra como as experiências do aleatório, do acaso e da contingência são aquilo que tensionam o organismo com o risco da decomposição. São tais experiência ligadas à errância que dão à vida sua normatividade imanente[48].

Não deixa de ser surpreendente que a vida se sirva dessa dinâmica para poder construir suas formas, o que talvez mostre como não se trata de um mero dado anedótico lembrar que “mais de 99% das espécies aparecidas desde quatro bilhões de anos foram provavelmente extintas para sempre”[49]. Essa é apenas uma maneira um pouco mais dramática de lembrar que os valores mobilizados pela atividade vital não podem ser utilidade, a junção ou mesmo o papel a desempenhar. A vida ultrapassa essa contabilidade de balcão de supermercado. Não podemos sequer definir o desenvolvimento de órgãos a partir da necessidade de certas funções próprias a uma adaptação à configuração atual do meio. Como a biologia evolucionista nos mostra, mais correto seria dizer que muitos órgãos são inicialmente configurados para que, posteriormente, uma multiplicidade de funções deles se desenvolvam. A natureza paradoxal de um sistema que funciona através da errância vem do fato de ele estar assentado sob a ausência de uma tendência a perseverar no próprio ser. Para que haja uma errância que não seja simplesmente movimento de expressão do desenvolvimento biológico em direção ao progresso contínuo, devemos aceitar a existência de uma tendência à dilapidação de si interna aos organismos. O que talvez explique por que Canguilhem nunca viu reais dificuldades em admitir, por exemplo, o fundamento biológico de um conceito como a pulsão de morte freudiana[50]. Essa tendência à dilapidação de si foi descrita posteriormente através de fenômenos como a apoptose, ou seja, a morte celular produzida por um princípio interno:

Durante muito tempo, pensamos que o desaparecimento de nossas células – assim como nossa própria desaparição como indivíduos – só podia resultar de acidentes e de destruições, de uma incapacidade fundamental a resistir à usura, à passagem do tempo e às agressões permanentes do meio ambiente […]. Hoje, sabemos que todas as nossas células possuem o poder de se autodestruir em algumas horas[…]. E a sobrevivência de cada uma de nossas células depende, dia após dia, de sua capacidade de perceber no meio ambiente de nosso corpo os sinais emitidos por outras células, e apenas tais sinais lhe permitem reprimir o desencadeamento de sua autodestruição[…], um acontecimento percebido até aqui como positivo – a vida – parece resultar da negação de um acontecimento negativo – a autodestruição[51].

Ou seja, viver, para cada célula, é ter conseguido reprimir o desencadeamento de seu suicídio, é negar uma negação (como dizia Rubens Rodrigues Torres Filho, quem um dia adoeceu de hegelianismo nunca se cura). Tal ideia produz consequências importantes para o conceito de auto-organização. Pois sistemas orgânicos, devido à constância dos erros de leitura, teriam uma tendência interna à decomposição e à desordem que pode levá-los ou à autodestruição ou a ser agenciados através da errância, com todos os seus riscos e suas reorganizações provisórias. Daí porque “viver, construindo-se em permanência, é utilizar instrumentos que podem provocar a autodestruição e ser, ao mesmo tempo, capaz de reprimir tal autodestruição”[52]. A mecanização da vida descrita através dos fenômenos de doença não é apenas uma reação catastrófica contra um meio ambiente em mutação. Ela é também incapacidade de agenciar tendências internas ao próprio organismo.

O CAPITALISMO DESCONHECE CONTINGÊNCIAS

Por fim, poderíamos perguntar se tal ideia de desorganização permanente seguida de reorganização não seria um conceito fraco de acaso e contingência, uma espécie bizarra de contingência controlada por estru­ turas de relações. Poderíamos mesmo perguntar se tal ideia não seria apenas um símile da realidade social do capitalismo avançado, marcada pela flexibilização constante e pela desorganização controlada pela processualidade dinâmica do capital[53]. Pois em que uma biopolítica da mobilidade normativa poderia servir de fundamento para uma crítica do capitalismo em sua fase de flexibilização geral de identidades e processos? A fim de responder tal pergunta, seria importante lembrar que a desorganização produzida pelo capital é a condição para que um prin­ cípio geral de equivalência, encarnado na figura da forma-mercadoria, permaneça como uma espécie de axioma intocado. As características fundamentais do mundo flexível do capital são a intercambialidade e a reversibilidade. Circulação de intercâmbio e reversão que só podem operar por serem movimentos de uma estrutura marcada pela univocidade, mesmo se tal univocidade se fractalize em múltiplas formas. Trata-se da univocidade do capital. Tal univocidade se realiza por impor ao tempo um regime peculiar de esvaziamento. Pois o tempo do capital é a eternidade do eternamente reversível, o tempo das operações feitas sempre com termos intercambiáveis e que, por isso, tem como principal função a comensurabilidade. A diferença entre a flexibilização do capital e a atividade vital não é, assim, uma diferença de grau, na qual a primeira seria a versão controlada da segunda. Não chegaremos à atividade vital intensificando os processos internos ao capitalismo, mesmo que em sua dinâmica o capitalismo procure, à sua maneira, mimetizar a vida.

De fato, Marx já falava, ao discorrer sobre o fetichismo no livro m de O capital, que a capacidade de autovalorização do capital dava a impressão de estarmos diante de um organismo vivo. Ao aparecer como capital produtor de juros, temos a forma D-D’, na qual o valor valoriza a si mesmo através das atividades financeiras, sem passar assim diretamente pela encarnação do dinheiro em mercadoria. Nesse contexto de autovalorização aparentemente espontânea, Marx dirá: “O dinheiro é agora um corpo vivo que quer multiplicar-se”[54]. Mas essa característica de quase geração espontânea da mais-valia através da autovalorização do capital nunca poderia se passar pela atividade vital.

Na verdade, a diferença entre a dinâmica do capital e a atividade vital é qualitativa. A atividade vital não conhece intercambialidade e reversibilidade, mesmo que conheça repetições. Como foi dito, contrariamente ao que alguns acreditam, um acontecimento contingente não é aquilo que poderia ter sido outro ou que simplesmente poderia não ter sido, como se o que é contingente fosse necessariamente intercambiável com seus opostos. Insistamos, tais definições são desprovidas de sentido. Só posso dizer que algo poderia ter sido outro a partir da perspectiva de uma relação de causalidade que previamente me aparece como necessária. Mas a questão filosófica relevante é se precisamos realmente continuar a conjugar causalidade determinada e necessidade.

Nesse sentido, é possível dizer que um acontecimento contingente é exatamente aquele que traz o impercebido e o incomensurável à cena. Incomensurável não por ser infinitamente grande ou pequeno, mas por ser infinitamente outro. Por isso, ele quebra a redundância de um sistema de informações que sempre precisa encontrar, entre fatos dispersos, um denominador comum de contagem. Tal outra cena produzida pelo reconhecimento da contingência é o que nos leva a essa auto-organização paradoxal na qual os sistemas vitais estão em contínua reordenação, instituindo novas normatividades que podem mudar radicalmente o modelo de regulação do sistema, afirmando sua capacidade transitiva. Essa outra cena, será o caso sempre de lembrar, radicalmente fora do tempo do capital. Pois – e porque não dizer as coisas por completo?- é a vida em sua soberania insubmissa que nos puxa para fora desse tempo.

  1. Este artigo é a versão inicial de um estudo mais amplo a respeito das relações entre o pensamento de Georges Canguilhem e a potência política do vitalismo.
  2. Michel Foucault, Histoire de la séxualité, vol. 1, Paris: Gallimard, 1976, p. 191. Edição brasileira: História da sexualidade 1: a vontade de saber, São Paulo: Graal, 2010. [Todas as citações, cujas reterências bibliográficas estão em outro idioma, não havendo nota em contrário, foram traduzidas pelo autor do ensaio].
  3. Ibidem, p. 187.
  4. Biopolítica é um termo cunhado provavelmente por Rudolph Kjellén, em 1920, para descrever sua concepção do Estado como forma vivente (Lebenform) provida da organicidade própria a uma forma biológica (cf Rudolph Kjellén, Grundriss zu einem System der Politik (Esboço de um sistema da política), Leipzig: Rudolf Leipzig Hirtel, 1920, pp. 3-4). Para uma genealogia do conceito de biopolítica, ver Roberto Esposito, Bios: Biopolitics and Philosophy (Bios: biopolítica e filosofia), Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008.
  5. Michel Foucault, op. cit., p. 188.
  6. Idem, Sécurité, territoire, population, Paris: Seuil, 2004, p. 3. Edição brasileira: Segurança, território, população, São Paulo: Martins Fontes, 2000.
  7. Isso talvez explique, como perceberam alguns comentadores, por que o conceito de vida, em Foucault, nunca é explicitamente determinado, “permanecendo essencialmente implícito” (cf. Maria Muhle, Eine Genealogie der Biopolitik: zum Begriff des Lebens bei Foucault und Canguilhem (Uma genealogia da biopolítica: sobre o conceito de vida em Foucault e Canguilhem), Bielefeld: Transcript, 2008, p. 10). Ele só pode permanecer implícito porque é, ao menos para Foucault, um conceito sem autonomia ontológica. Muhle defende outra hipótese, a saber, a de que, em Foucault, a vida tem um duplo papel: como objeto da biopolítica e como modelo funcional a ser imitado pela biopolítica. No entanto, há que insistir que a vida nunca é pensada por Foucault a partir de uma organização conceitual imanente, como vemos em Canguilhem (com os conceitos de errância, de normatividade vital, de organismo, de relação com o meio ambiente, entre outros). Por isso, a meu ver, pode-se dizer que, no máximo, há uma latência no pensamento de Foucault para, em certas situações, permitir que a vida apareça como modelo funcional a ser imitado. Mas uma latência é algo muito diferente de uma tarefa filosófica assumida.
  8. Michel Foucault, Les Mots et les choses, Paris: Gallimard, 1966, p. 139. Edição brasileira: As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas, São Paulo: Martins Fontes, 2000.
  9. Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002,

    p. 127.

  10. Basta lembrarmos aqui dos paralelismos presentes no capítulo XXIX do Leviatã, no qual Hobbes descreve as enfermidades de um Estado a fim de nos alertar para “aquelas coisas que enfraquecem ou tendem à dissolução da república”. Cf. Thomas Hobbes, Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2002.
  11. Cf. Morley Roberts, Bio-politics: An Essay in the Physiology, Pathology and Politics of the Social and Somatic Organism (Biopolítica: um ensaio sobre a fisiologia, patologia e política do organismo social e somático), London: Dent, 1938; e Jacob von Uexküll, Staatsbiologie: Anatomie, Phisiologie, Pathologie des Staates, Berlin: Gedrüber Paetel, 1920.
  12. Georges Canguilhem, O normal e o patológico, Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 229.
  13. Idem, Études d’histoire et philosophie des sciences (Estudos de história e filosofia das ciências), Paris: Vrin, 1983, p. 352. Tal proposição segue de perto uma ideia nietzscheana: ”Ao falar de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nos força a estabelecer valores, ela mesma valora através de nós, ao estabelecermos valores” (Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos deuses, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 36). Proposição distante de uma perspectiva biopolítica tipicamente foucaultiana por exigir que o conceito de vida seja dotado de potência produtiva autônoma do ponto de vista ontológico. Uma potência produtiva autônoma que pode nos levar à pergunta sobre as possibilidades de uma política que assuma certa posição vitalista. A respeito da influência de Nietzsche sobre Canguilhem, ver, entre outros, Georges Canguilhem, “Vie” (vida), em: Enciclopaedia universalis, Paris: Enciclopaedia Universalis France, 1990, pp. 16-7; Pierre Daled, “Santé, folie et vérité aux XIXº et XXº siecles: Nietzsche, Canguilhem et Foucault” (Saúde, loucura e verdade nos séculos XIX e xx: Nietzsche, Canguilhem e Foucault), em: Pierre Daled (org.), L’Envers de la raison: alentour de Canguilhem (O avesso da razão: em torno de Canguilhem), Paris: Vrin, 2008, pp. 115-40; e Pierre Fichant, “Georges Canguilhem et l’idée de philosophie” (Georges Canguilhem e a ideia de filosofia), Georges Canguilhem: philosophe, historien des sciences (Georges Canguilhem: filósofo, historiador das ciências), Paris: PUF, 1993, p. 48.
  14. Georges Canguilhem, O normal e o patológico, op. cit., p. 77.
  15. Ibidem, p. 226. Pensando em afirmações dessa natureza, Pierre Macherey dirá: ”Assim, encontra-se invertida a perspectiva tradicional relativa à relação entre vida e normas. Não é a vida que é submetida a normas, estas agindo sobre ela do exterior, mas são as normas que, de maneira completamente imanente, são produzidas pelo movimento mesmo da vida”. Cf. Pierre Macherey; De Canguilhem à Foucault: la force des normes (De Canguilhem a Foucault: a força das normas), Paris: La Fabrique, p. 102.
  16. Isso talvez se explique pelo fato de os conceitos sobre a vida não serem, em Canguilhem, objetos apenas de uma epistemologia genealógica, mas também de uma peculiar ontologia. O que François Dagonet compreendeu ao lembrar: “Enquanto Michel Foucault se engaja em um estudo genealógico, Georges Canguilhem explora menos o campo da história e se entrega mais a um exame ontológico (em que consiste a saúde?)”. François Dagonet, Georges Canguilhem: philosophie de la vie (Georges Canguilhem: filosofia da vida), Paris: Les Empêcheurs de Penser en Rond, 1997, p. 15.
  17. Ver, por exemplo, Henri Bergson, L’Évolution créatrice, Paris: PUF, 2007 (Edição brasileira: A evolução criadora, São Paulo: Editora Unesp, 2010), e toda a primeira parte de Georges Bataille, A parte maldita, precedida de A noção de dispêndio, Belo Horizonte: Autêntica, 2013. Cf. também Deleuze, que não verá problemas em dizer: “Há um vínculo profundo entre os signos, o acontecimento, a vida, o vitalismo. É a potência de uma vida não orgânica, esta que pode estar em uma linha de desenho, de escritura ou de música. São os organismos que morrem, não a vida[…]. Tudo o que escrevi era vitalista, ao menos eu espero, e constituía uma teoria dos signos e do acontecimento” (Gilles Deleuze, Pourparlers, Paris: Minuit, 1990, p. 196).
  18. Georges Canguilhem, O normal e o patológico, op. cit., p. 76.
  19. Kurt Goldstein, La Structure de l’organisme (A estrutura do organismo), Paris: Gallimard, 1983, p. 346.
  20. Georges Canguilhem, O normal e o patológico, op. cit., p. 91.
  21. O que não poderia ser diferente, já que, como veremos mais à frente: “A negatividade da doença (e principalmente da morte) não está ligada à modificação de uma norma propriamente originária, como fizeram teorias da degeneração. Ao contrário, ela está ligada à incapacidade do organismo de modificar a norma aprisionando-o, forçando-o a urna repetição infinita da norma”. Cf Roberto Esposito, op. cit., p. 190.
  22. Georges Canguilhern, O normal e o patológico, op. cit., p. 113.
  23. Ibidem, p. 105.
  24. Idem, La Connaissance de la vie, Paris: Vrin 2003, p. 206. Edição brasileira: O conhecimento da vida, São Paulo, Forense Universitária, 2012. Sobre tal relação entre anomalia e produção de normatividades vitais, vale a pena ainda lembrar que: “Graças à perfeição conservadora do aparelho replicativo, toda mutação, considerada individualmente, é um acontecimento muito raro. Nas bactérias, únicos organismos dos quais temos dados numerosos e precisos a esse respeito, podemos admitir que a probabilidade, para um gene dado, de uma mutação que altera sensivelmente as propriedades funcionais da proteína correspondente é da ordem de 106 a 108 por geração celular. Mas em alguns mililitros de água uma população de vários bilhões de células pode se desenvolver. Em tal população, temos a certeza de que toda mutação dada é representada na ordem de 10, 100 ou 1.000 exemplares. Podemos igualmente estimar que o número total de mutantes de todas as espécies nessa população é da ordem de 105 a 106. Na escala de uma população, a mutação não é um fenômeno de exceção: é a regra”. Jacques Monod, Le Hasard et la nécessité: essai sur la philosophie naturelle de la biologie moderne, Paris: Seuil, 1970, p. 157. Edição brasileira: O acaso e a necessidade, Petrópolis: Vozes, 2006.
  25. Ibidem, p. 215.
  26. Émile Durkheim, Les Regles de la méthode sociologique, Paris: Flammarion, 1988, p. 142. Edição brasileira:

    As regras do método sociológico, São Paulo: Martins Fontes, 2014.

  27. Idem, Le Suicide, Paris: PUF, 2000, p. 229. Edição brasileira: O suicídio, São Paulo: WMF Martins Fontes,

    2011.

  28. “Chamaremos de normais os fatos que apresentam as formas mais gerais, e daremos aos outros o nome de mórbidos ou de patológicos.” Cf. Émile Durkheim, Le Suicide, op. cit., p. 149.
  29. Érnile Durkheim, Les Regles de la pensée sociologique, op. cit., p. 149.
  30. Idem, Le Suicide, op. cit., p. 160.
  31. Ibidem, p. 164.
  32. Ibidem, p. 10.
  33. Georges Canguilhem, O normal e o patológico, op. cit., p. 151.
  34. Ibidem, p. 146.
  35. Ibidem, p. 161.
  36. “A saúde, como expressão do corpo produzido, é uma segurança vivida em um duplo sentido de segurança contra o risco e de audácia para corrê-lo. É o sentimento de uma capacidade de superação das capacidades iniciais, capacidade de levar o corpo a fazer o que ele parecia inicialmente não ser capaz de prometer.” Cf. Georges Canguilhem, La Santé: concept vulgaire et question philosophique (A saúde: conceito vulgar e questão filosófica), Toulouse: Sables, 1990, p. 26.
  37. Idem, La Connaissance de la vie, op. cit., p. 188.
  38. Goldstein, op. cit., p. 348.
  39. Georges Canguilhem, Escritos sobre a medicina, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 70.
  40. Idem, La Santé: concept vulgaire et question philosophique, op. cit.
  41. Idem, O normal e o patológico, op. cit., p. 159.
  42. Jean-Claude Ameisen, La Sculpture du vivant: le suicide cellulaire et la rnort créatrice (A escultura do viven­ te: o suicídio celular e a morte criadora), Paris: Seuil, 2003, p. 51.
  43. Insistindo na natureza dos erros que modificam a instrução genética produzindo mutações que podem ter consequências importantes para a espécie, François Jacob dirá: “Todo o sistema é agenciado para produzir erros às cegas. Não há na célula constituinte algum para interpretar o programa em seu conjunto, para sequer ‘compreender’ uma sequência e modificá-la. Os elementos que traduzem o texto genético só compreendem a significação de trincas tomadas separadamente. Esses elemen­ tos que, ao reproduzi-los, poderiam modificar o programa, não o compreendem. Se existisse uma vontade para modificar o texto, ela não disporia de ação direta alguma. Seria-lhe necessário passar pelo longo desvio da seleção natural”. Cf. François Jacob, La Logique du vivant: une historie de l’hérédité, Paris: Gallimard, 1970, p. 310. Edição brasileira: A lógica da vida, Rio de Janeiro: Graal, 2001.
  44. Henri Atlan, Entre Le Cristal et la famée: essai sur l’organisation du vivant, Paris: Seuil, 1979, p. 280. Edição brasileira: Entre o cristal e a famaça: ensaio sobre a organização do ser vivo, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992
  45. Georges Canguilhem, La Connaissance de la vie, op. cit., p. 149.
  46. Henri Atlan, op. cit., p. 41.
  47. Tendo tal modelo em mente, Atlan dirá a respeito do cérebro: “a determinação genética concerne apenas à estrutura anatômica global do cérebro, sendo o detalhe das conexões fruto do acaso, modificando-se à medida de sua constituição pelo efeito de experiências adquiridas”. Pois “se representamos um organismo em relação a um meio ambiente natural e impessoal, os efeitos deste só podem ser percebidos como aleatórios no que diz respeito à estrutura e às determinações anteriores do organismo. É por isso que a ideia de que uma parte importante seja deixada ao acaso na estrutura do detalhe da organização cerebral permite resolver esse paradoxo aparente relativo a um sistema organizado que parece ampliar a riqueza de sua organização sob efeito de fatores aleatórios”. Cf. Henri Atlan, L’Organisation biologique et la théorie de l’information, Paris: Hermann, 1992, p. 165. Edição em português: A organização biológica e a teoria da informação, Lisboa: Instituto Piaget, 2008.
  48. Maria Muhle, op. cit., p. 106.
  49. Jean-Claude Ameisen, op. cit., p. 12.
  50. Como dirá Canguilhem: “Se é verdade que o vivente é um sistema em desequilíbrio incessantemente compensado por empréstimos ao exterior, se é verdade que a vida está em tensão com o meio inerte, o que haveria de estranho ou de contraditório na hipótese de um instinto de redução de tensões a zero, de uma tendência à morte”. Cf. Georges Canguilhem, La Santé: concept vulgaire et question philosophique, op. cit. Canguilhem pensa, sobretudo, nas afirmações de Henri Atlan, para quem o único projeto possível dos organismos biológicos é morrer: “Ou seja, como em todo sistema físico, de alcançar um estado de equilíbrio. Os algoritmos do mundo vivente não podem ser inicialmente algoritmos de reprodução de estados de equilíbrio, mas de distâncias em relação ao equilíbrio, assim como de retorno a tal estado por desvios[… ]. Como nota W R. Ashby; o retorno ao equilíbrio só é banal e desinteressante, do ponto de vista de algoritmos de organização, em sistemas simples. Em sistemas complexos, unicamente devido ao grande número de parâmetros que podem variar ao mesmo tempo, os estados de estabilidade fora do equilíbrio e os caminhos utilizados para tornar ao equilíbrio oferecem possibilidades de organização muito mais ricas”. Cf. Henri Atlan, L’Organisation biologique et la théorie de l’information, op. cit., p. 224.
  51. Jean-Claude Ameisen, op. cit., p. 15.
  52. Ibidem, p. 316.
  53. Devo essa crítica precisa a uma intervenção de Judith Butler em colóquio no qual apresentei pela primeira vez essa ideia, no ano de 2012, em Santiago do Chile.
  54. Karl Marx, O capital, livro m, vol. 5, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988, p. 522.

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