2017

Da ética à antiética: notas para compreender a supremacia da violência

por Franklin Leopoldo e Silva

Resumo

A palavra grega éthos, da qual deriva ética, representa mais do que um conjunto de regras e costumes comumente aceitos para se viver em sociedade. Ele tem o seu aspecto universalizante (ou que se pretende universal, embora esbarre, como veremos, em condições históricas), mas, também um aspecto singular, no sentido de que precisa ser percebido de alguma forma pelo indivíduo para além das instituições. Trata-se, pois, nesse caso, de uma percepção individual, de ser-no-mundo, o que implica, claro, em ser-com-outros. Se a dimensão do indivíduo é obliterada, não estaremos sendo propriamente éticos, mas seguindo leis e normas que nos são dadas de fora; caímos, portanto, num legalismo. E mais: para vivermos essa dimensão individual, esbarramos num problema que ocorre pelo menos desde o cogito de Descartes, que consiste na impossibilidade de reconhecer a existência do outro com a mesma certeza com que reconheço a minha. Eis que se apresenta o problema da intersubjetividade. Na famosa parábola do bom samaritano (Lucas 10, 25-37), Jesus tenta romper uma barreira ao responder, didaticamente, ao legista que assim o inquire: “quem é o próximo?” No que consiste tal barreira: culturalmente, há 2000 anos e ainda hoje, tendemos a reconhecer apenas os nossos “pares”. No contexto da parábola, o homem espancado representa o incapacitado, o desvalido, o indigente, necessitado de ajuda, mas que talvez não pudesse retribuir da mesma forma o que o samaritano fez por ele. Por isso, o que Jesus pretende com a parábola é mover e universalizar a compaixão. Portanto, agindo melhor do que o sacerdote e o levita, que supostamente receberam uma formação “ética”, mas que, apesar disso, passam indiferentes pelo moribundo na beira do caminho, o samaritano enxerga para além da visão legalista e intelectual do outro, ultrapassa uma ética imposta de fora e, movido pela compaixão, pratica uma ética que brota do coração. Nesse campo, estamos embate constante porque Hegel aponta a tendência contrária: a dificuldade que temos em reconhecer-se e também ao outro segundo a nossa natureza. Tendemos a fazê-lo em termos de condição e de situação, isto é, a partir da história cujas condições tendem a nos dessensibilizar. A degradação da ética passa pelo discurso de representantes do poder que se apropriam com frequência de palavras como liberdade e fraternidade, mas de forma tão trivial quanto vazia, desgastando-as. Assim o sentido da palavra liberdade no contexto das economias de sistema capitalista, por exemplo, é hipocritamente deturpada ao ser associada à defesa da propriedade privada muito mais do que à população como um todo. Nesse sistema, ter definitivamente vale mais do que ser. Apesar das ações da sociedade civil, percebemos que a construção de uma ética com suas pontes interpessoais é, em muito, prejudicada pela violência de Estado e pela banalização da violência, seja ela explícita, implícita ou latente.


No fundo, o mal na violência deriva precisamente não de que ele destrói o direito, mas sim de que ele o cria.

J. P. Sartre

A palavra grega éthos, da qual deriva ética, traz na noção correspondente importantes aspectos de significação, que nos ajudam a entender a presença e a ausência da ética nos domínios da subjetividade e da intersubjetividade. Talvez o significado mais abrangente indique o éthos como o modo de habitar o mundo, isto é, a maneira pela qual o ser humano está em seu mundo – o que já nos deixa entrever a reciprocidade entre éthos e sujeito ético: as duas instâncias se constituem reciprocamente, pois é necessário supor alguma correspondência entre as disposições do sujeito e as condições de seu ser-no-mundo. Assim, a ética pode ser compreendida como a emergência do humano – ou da humanidade – tanto do ponto de vista da universalidade da condição (que se revela como constância no agir) quanto no que concerne à singularidade do indivíduo, isto é, como ele se vai constituindo em seus “hábitos”, ou em sua experiência específica da condição universal. Em suma, a ética é um modo de viver, que se conjuga, no “animal racional”, com o modo de pensar a vida, isto é, a modalidade de ser que em nós ocorre como existir[1].

O que está implicado nesse modo peculiar de ser designado como existência ética? Além dos vários aspectos implícitos nas características que mencionamos acima, devemos mencionar algo de especial interesse no contexto dessas considerações: o modo humano de habitar o mundo, de abrigar-se nele, de modo a perseverar no ser, acontece segundo a existência contingente, de forma que a continuidade da existência se dá como um processo que, tendo como aspectos constitutivos a contingência e a liberdade, não poderia aparecer, pelo menos para nós, seus protagonistas, como uma totalidade necessária em seu decurso. Neste sentido, o termo totalização, utilizado por Sartre para indicar, ao mesmo tempo, a impossibilidade de entender a totalidade – analiticamente constituída – e a possibilidade de compreender o processo de existir – em seu curso dialético – é a melhor forma de designar a existência histórica, isto é, a temporalidade histórica como a constituição processual da subjetividade e da intersubjetividade[2]. Assim, tanto a subjetividade quanto a intersubjetividade em sua significação ético-política pertencem ao domínio indeterminado no qual os sujeitos podem se reconhecer (e os outros) no entrelaçamento complexo das instâncias da universalidade e da singularidade.

Decorre dessa situação que o reconhecimento ético propiciado pela universalidade do éthos exige, constitutivamente, a experiência da reciprocidade dos indivíduos singulares enquanto participantes da condição ética universal – éthos. O indivíduo só pode reconhecer-se em sua condição ética quando entra em contato com a forma universal de habitar eticamente o mundo. E como esse mundo habitado não é apenas natural, mas também significativo, histórico e valorativo, isto é, humano, a significação ética como realidade vivida só pode aparecer na forma comum de habitar, isto é, a partir da estrutura existencial do ser-com-outros[3]. Assim se torna possível passar de uma descrição ontológica do ser-no-mundo para a compreensão da comunidade ética historicamente constituída a partir das possibilidades de intersubjetividade. Tais possibilidades nunca ficaram muito claras para as filosofias clássicas do sujeito e as dificuldades permaneceram para o estilo contemporâneo de reflexão: como é possível entender a relação entre comunidade e liberdade, ou entre o sentido comum de existência e a consciência de si? No limite – e isto ocorre desde Descartes como consequência do cogito – não seria possível reconhecer a existência do outro com a mesma certeza com que reconheço a minha. Seria preciso, para tanto, superar a oposição ontológica entre sujeito e objeto e tentar estabelecer uma relação ética sujeito/sujeito – eu/outro. No caso clássico (cogito cartesiano) a origem da dificuldade está na impossibilidade de estabelecer a mesma certeza para o conhecimento de si e para o conhecimento do outro. O solipsismo decorre, então, da constituição subjetiva do conhecimento.

Por isso, após a vigência dominante do paradigma analítico de conhecimento, tornou-se legítimo e oportuno perguntar pela possibilidade de um reconhecimento de si e do outro que não passe pelos parâmetros do conhecimento (ao menos cartesiano) e que possa, assim, constituir um horizonte de reconhecimento ético. Naturalmente, a superação da hegemonia do conhecimento teórico permanece, ainda na atualidade, uma perspectiva difícil de se impor. O que, no entanto, se pode notar, é que, para certas linhas de pensamento, o vivido e o histórico aparecem como algo a ser considerado nas relações com o mundo e com os outros. A elaboração conceitual em sua lógica estrita, a categorização exata das condições de possibilidade de conhecimento e a exclusividade da racionalidade analítica passaram a ser questionadas na modernidade tardia e na contemporaneidade[4], em grande parte devido aos impasses decorrentes das contradições da experiência histórica mais recente, o que tem levado à abertura de novos caminhos em que o reconhecimento de si e dos outros não pode evitar a consideração da dramaticidade histórica e existencial – antes deve partir dela. Talvez possamos enunciar o problema da seguinte maneira: o reconhecimento de si e do outro já não pode se pautar pelo parâmetro essencialista e por uma correspondente racionalidade exclusivamente analítica, porque não se trata de reconhecer-se e o outro em termos de natureza, mas em termos de condição e de situação, isto é, a partir da história. É a tendência que se esboça já a partir de Hegel.

Ainda assim, para que a questão do reconhecimento se apresente como nitidamente ética, seria preciso que a relação entre lógica e dialética, vigente em Hegel, fosse decididamente substituída pela relação entre história e dialética: em outros termos, seria preciso pôr em questão o papel do determinismo numa concepção contingente da história. Não seria a contingência o requisito para que a história (e, assim, a realidade humana) fosse vista como radicalmente dialética? É nesse sentido que a questão do reconhecimento e o problema da liberdade se aproximam e podem vir a se esclarecer mutuamente nas formas de colocação. O conhecimento do outro nos moldes de uma demonstração de sua existência não é condição para o reconhecimento. E não é de forma alguma estranho afirmar que o conhecimento não é condição para o reconhecimento, porque, neste contexto, não se trata do conhecimento apodítico, probatório, demonstrativo e objetivamente determinado. Trata-se, antes, de uma posição pré-reflexiva do outro na irredutibilidade de sua existência, que antecede a elucidação de seu ser. Por isso, o reconhecimento tem a ver muito mais com a aceitação daquele que aparece (a emergência do outro) do que com a sua identificação. O que significa também que o reconhecimento do outro não depende de minha identidade (reconhecimento de mim), mas as duas coisas se dão simultaneamente: reconheço o outro e me reconheço ao reconhecê-lo. A própria identidade (identificação) é um processo intersubjetivo. Por isso não é tão fácil dizer que a intersubjetividade decorre da subjetividade ou vice-versa. A decisão pode ser tomada no âmbito do conhecimento, porque na versão clássica a subjetividade é fundamento do conhecimento; mas nada seria mais inadequado do que colocar o sujeito como fundamento das relações éticas; os impasses e a crise contemporânea são, de alguma forma, heranças dessa perspectiva[5].

Isso porque o reconhecimento é sempre reconhecimento da diferença: a minha identidade é a minha diferença em relação ao outro e a diferença do outro é a sua identidade. Não é possível admitir nenhuma singularidade sem essa espécie de dialética das diferenças. De fato, a busca do fundamento pode levar à absolutização da singularidade, precisamente daquela individualidade que aparece como referência tendencialmente única para a consideração de todas as outras. Ora, as singularidades somente existem num regime de equilíbrio instável das diferenças, que podem então conviver de modo solidário ou de forma hostil. Não é possível estabelecer a priori a minha reação ao outro, porque o contato pré-reflexivo não ocorre sob condições de possibilidade: ou é real ou não é nada. Essa é a razão pela qual por vezes nos surpreendemos com nossas próprias reações aos outros: descobrimos em nós camadas ocultas de intolerância e de hostilidade que nos incomodam porque não lhes aquilatávamos as possibilidades, e então dizemos: este sou eu?, e procuramos, apesar de tudo, justificar os gestos e as condutas. Essa é também a razão pela qual tantos liberam o ódio e fazem dele critério de relações, sejam políticas, religiosas, profissionais ou outras.

Podemos dizer, então, que o reconhecimento somente acontece num contexto de intersubjetividade admitido como pluralidade e diferenciação. A princípio, nada mais óbvio, desde que aceitemos que a sociabilidade é característica do animal político. Entretanto, e assim como a razão e a fala, quase tudo que convimos ser natural, ou mesmo essencial, mostra-se na realidade vivida difícil e até raro. Talvez seja por isso que nos preocupamos tanto com princípios, sobretudo na vida ética e política. As revoluções se fazem em nome de princípios que são rapidamente esquecidos, se é que alguma vez alguém teve a intenção de colocá-los em prática. As promessas de reforma ética, religiosa, política, econômica etc. só são efetivamente levadas a sério por pessoas extraordinariamente ingênuas ou desgraçadamente honestas. Em suma, a esfera das relações humanas é, cada vez mais, formal, a ponto de qualquer atitude autêntica parecer algo fora de lugar. Por isso a linguagem intersubjetiva, notadamente aquela usada em público, está completamente constituída de palavras desgastadas e anuladas em seu significado. O discurso é vazio porque reflete o vazio da ética e da política que deveriam alimentá-lo e sustentá-lo. Eis-nos então diante de uma forte contradição entre princípios e fatos e de uma total falta de correspondência entre valores e ações. Consequentemente, as condições lógicas e o conteúdo material do que se faz dificilmente decorrem de juízos eticamente estruturados. O maior problema do mundo laico não é a descrença, mas o excesso de crença dogmática na utilidade imediata das coisas, algo que se expressa em profissões de fé, na realidade, na tecnociência e na razão. Por isso, a condição para acreditar em alguém é torná-lo tão claro, distinto e imediato como uma coisa considerada a partir de sua objetividade inerte. E a grande contradição é que, quanto mais aceitamos alguém em sua complexidade de pessoa, mais difícil se torna conhecê-lo e crer em sua verdade determinada.

A distância entre os fatos e os valores, bem como a presença totalitária dos fatos e a ditadura do imediatismo, constituem e justificam uma situação de total desenraizamento ético e político, que é a melhor descrição da realidade humana em sua condição contemporânea.

Esse divórcio significa que, por entre os caminhos e descaminhos da modernidade, a história teria derrotado a ética? O conflito hegeliano das consciências[6] pode ser lido como a impossibilidade do triunfo completo de uma sobre a outra – e a interdependência dramática do senhor e do escravo; mas pode ser interpretado também como uma competição pelo reconhecimento, o que de modo algum pode ser visto como o desfecho do impasse da intersubjetividade. A subjetividade seria uma forma de opressão, e a objetividade seria a designação lógica da condição de sujeição.

É por isso que, entre a aceitação racional de princípios ético-políticos e a prática das ações que deles dariam testemunhos, media um espaço que tende a ser visto como utopia, e a palavra é usada neste caso com o sentido predominante da impossibilidade, ou, ao menos, como aquilo que pode ser pensado, mas que não poderia ser realizado. É possível praticar a igualdade, a fraternidade e a liberdade? É possível viver de acordo com os direitos à vida e à propriedade dos outros? É possível um reconhecimento ativo das diferenças a ponto de fazer daquele que não sou eu o polo constituinte dos meus juízos e das minhas ações? É possível a experiência de uma práxis orientada pelo princípio universal da dignidade? O paradoxo é que, ainda que nos julguemos moralmente obrigados a responder afirmativamente a todas essas perguntas, sabemos, de alguma forma, que não agimos assim e que, aparentemente, é como se não pudéssemos fazer aquilo que sabemos que devemos fazer. Ademais, quando olhamos em torno de nós, principalmente para as esferas política e financeira, o espetáculo de degradação ética é tão evidente que corremos o risco de naturalizá-lo. É a partir daí que nos ocorre a pergunta: haverá alguma situação em que o mal seja justificável? Em que os meios se imporiam em vista de fins, sem que tivéssemos a oportunidade de discernir, isto é, de subordinar as nossas intenções morais, em todos os casos, àquilo que, num passado que se vai tornando remoto, foi chamado de retidão?

A relação complicada entre conhecimento e ética, que já abordamos, persiste em seus impasses e aporias. Tomemos ainda uma vez os exemplos das bandeiras das revoluções modernas, isto é, a aparente intenção de reinstaurar a política. Tanto aqueles que prepararam a Revolução Francesa quanto aqueles que a fizeram, sabiam, em princípio, o que é a fraternidade. Tal conhecimento motivou as tentativas de transformação, mas não foi suficiente para sustentá-la. Poderíamos até mesmo dizer que a fraternidade foi tanto menos exercida quanto mais se insistia em sua necessidade teórico-política. O que não se deve apenas às contradições relativas à vida histórica, mas provavelmente a uma impossibilidade constitutiva de passar do saber, do conhecimento, à convicção, ou da elaboração conceitual à orientação da vida. De modo geral, esse é o contexto em que se coloca a oposição, ou pelo menos a diferença, entre razão e fé – ou entre a condição intelectual de possibilidade e o impulso da convicção, talvez as “razões” do coração.

Sabemos que Max Weber tratou, no contexto da moralidade social, de um “tipo” de ética da fraternidade, buscando, na superação das diversas modalidades de relação com o “próximo”, o sentido universalista da fraternidade[7]. Ao passar das situações éticas em que a relação de fraternidade seria praticada de modo particular (família, grupo, nacionalidade), vai-se também superando os sentidos mais estritos de reconhecimento em direção ao alcance universal da relação ética. Desde já é preciso que se diga que a universalidade da ética não significa ultrapassar as particularidades concretas das situações de relação para atingir um sentido geral e abstrato em que todas as relações caberiam logicamente. Deveria ser óbvio que, no plano ético, não se trata nunca da extensão lógica de um conceito, mas do alcance de uma experiência afetiva, assim como não se trata do conhecimento e da observância formal de preceitos, mas de quanto a realidade concreta da relação nos toca e nos move à ação[8].

É nesse sentido que tocamos agora num ponto tão relevante quanto delicado, e que se poderia designar, imperfeitamente, como a parábola bíblica como a afirmação cristã da universalidade. Vejamos, muito esquematicamente, o que isso significa, por via de uma referência sumária ao exemplo privilegiado de fraternidade que é a parábola do bom samaritano (Lucas 10, 25-37), e o valor paradigmático da narrativa provém do alcance do reconhecimento que ali acontece. Assim, a parábola nos proporciona o entendimento da diferença entre o conhecimento da lei e a práxis da lei. Os especialistas da lei, os legistas, conhecem a lei e reconhecem a necessidade da observância da norma. Mas o reconhecimento da lei é o reconhecimento do conteúdo ou da normatividade? Em outras palavras, o conhecimento da lei se esgota em sua formalidade legislativa ou deve incluir as referências da lei – não apenas a lei em si, mas aquilo e aqueles a que ela se refere como sua finalidade? Em suma, além do conhecimento da lei em si mesma, é preciso o compromisso com as referências da lei. Assim, é possível conhecer a lei e não cumpri-la efetivamente.

É o que ocorre com o sacerdote e o levita: conhecem a lei e não têm dúvidas quanto à necessidade de sua observação, mas isso não gera neles alguma atitude de compromisso, como se a observância da lei consistisse num conhecimento externo às referências da norma. Ora, tais referências são Deus e o próximo: “amarás o senhor teu Deus e a teu próximo como a ti mesmo”. O legista que interroga Jesus não ousa perguntar quem é Deus, mas questiona acerca de “quem é meu próximo?”. Caberia talvez perguntar por que os dois preceitos estão juntos: amarás a Deus e ao próximo. Não será porque o reconhecimento de Deus e do próximo estariam estritamente relacionados? A transcendência pode ser definida como uma distância que afasta e aproxima; a transcendência de Deus nos indica a diferença (a nossa finitude ante a infinitude de Deus) e a transcendência do próximo nos indica que o outro, qualquer que ele seja, em sua diferença, nunca estará tão longe que venha a perder sua condição de proximidade. Portanto, o próximo é o outro, mas não de modo determinado e definido, como seria a resposta talvez esperada pelo legista. Se assim fosse, a determinação do próximo poderia excluir o outro. Por isso Jesus não responde definindo o próximo, mas mostrando quem ele é, em sua indeterminação, isto é, em sua universalidade[9].

Para o sacerdote e para o levita, próximo é um conceito jurídico, e a pergunta do legista indica a dificuldade de reconhecer o próximo, para além de sua existência de direito. Pelo contrário, a lei é conhecida, pois ele a recita com exatidão, embora talvez não fosse capaz de reconhecê-la em seu significado ou espírito. A possibilidade de conhecer a letra da lei e permanecer alheio ao seu espírito constitui, sempre, a grande dificuldade no âmbito do reconhecimento intersubjetivo. No caso da parábola, o sacerdote e o levita nem sequer se aproximam para constatar (ou não) a presença do próximo. Mesmo de longe, já sabem que ele não corresponde à acepção jurídica de próximo: “Viram, mas não reconheceram”[10]. E quais são os sinais indicadores de que ele não seria, literalmente, o próximo? Ele encarna a carência: ferido, só, abandonado, sofredor, incapaz; mas não é reconhecido como digno de solidariedade porque não se enquadra num grupo restrito. O fator mais relevante para a sua exclusão é a sua condição de estrangeiro. O homem caído é, portanto, um estranho em relação a esse estrangeiro, o que provavelmente não acontece entre o homem caído e aqueles que passaram adiante. O reconhecimento do próximo e o ato de se aproximar de alguém são dois gestos indiscerníveis e absolutamente necessários, em sua identidade, para a práxis da fraternidade; para superar a “visão” física e intelectual do próximo. Assim, não é a afinidade religiosa, geográfica, cultural ou política que determinam a fraternidade, e é nisso que se encontra a universalidade que a narrativa afirma. A lei prevê o acolhimento do excluído: do órfão, da viúva e do estrangeiro, mas a referência do preceito é particularizada de modo que ele valha apenas para os “iguais” e, assim, faço pelo outro o que espero que ele faria por mim. Nessa ética da permuta, o desvalido não tem lugar, pois nada tem a oferecer. Ele não pode mostrar aquilo que o faria conhecido como parceiro.

Sendo assim, quando um estrangeiro reconhece um estranho, o que ele reconhece no outro? Nenhuma afinidade específica, nenhum traço particular de união, nenhuma característica comum definida. Mas há algo que o comove: “moveu-se de compaixão” (Lucas 10, 18). O movimento da alma é inteiramente livre e autônomo, mas é ao mesmo tempo profundamente motivado pela condição comum, que antecede e transcende qualquer traço determinado de semelhança. Independentemente da reação do estranho, o movimento da alma do estrangeiro o encontra num regime de comunidade humana totalmente indeterminado no âmbito das lógicas de pertencimento. E ao movimento da alma seguem-se os gestos concretos de auxílio, solidariedade e cuidado. A relação entre os dois homens é de diferença: aquele que ainda desfruta de sua integridade física vê no outro a carência e a vulnerabilidade em ato, e reconhece, nessa situação, a carência e a vulnerabilidade como condição comum. Nesse sentido, a diferença no plano da singularidade revela a semelhança no plano da universalidade. E não é apenas porque o que acontece com o outro poderia acontecer comigo, mas sim porque, independentemente do que acontece e das circunstâncias específicas, eu e o outro habitamos o mesmo mundo e partilhamos as mesmas possibilidades. Por isso, “toda qualificação ulterior é irrelevante”[11], para mim e para ele, diante de um encontro que singulariza a universalidade da relação fraterna e a mostra de modo concreto.

As dificuldades inerentes ao reconhecimento que se desdobram, notadamente, por toda a história da filosofia moderna, vinculam-se, ao que tudo indica, à dependência que o reconhecimento ético mantém em relação à necessidade epistemológica da determinação cognitiva para a admissão (fundamentada) da realidade do que quer que seja. Com efeito, coisas, pessoas, relações necessitam da legitimidade conferida pela representação intelectual, pois, como afirmou Descartes, o intelecto é a essência da realidade humana, e tudo o mais são modos (acidentais) de sua manifestação. Ora, se, como vimos, o reconhecimento (ético) passa antes pela emoção e pela comoção do que pelo conhecimento, não é surpreendente que a realidade da relação, em seu teor existencial e experiencial – e não lógico – tenha dado ocasião a tantos impasses. Sobretudo se, do ponto de vista das filosofias da subjetividade, a relação se dá entre consciências e deve ser determinada pela consciência do sujeito. Por isso, Honneth pode afirmar que, a partir da concepção hegeliana do conflito das consciências, a luta pelo reconhecimento ocorre no domínio da filosofia da consciência, o que significa um outro plano de eticidade calcada na alteridade[12]. Em outras palavras, a superação do impasse cartesiano que resultaria no solipsismo deu-se pela interiorização da possibilidade do reconhecimento e pelo conflito como testemunho do outro e da alteridade. A alteridade, considerada como reação dos sujeitos um ao outro, só pode acontecer em situação de conflito. Chega-se, assim, a uma reciprocidade, mas conflituosa e problemática em sua universalidade se vista somente como intersubjetividade, por assim dizer, restrita ao célebre modelo hegeliano, que parece destinado preponderantemente à individualização.

Ora, segundo Honneth, seria preciso entender a luta pelo reconhecimento como processo social: a individualização deveria derivar desse processo, que seria então inseparável da dinâmica da comunitarização. Seria talvez necessário diferenciar esse processo da relação orgânica entre indivíduo e comunidade, presente em Hegel, já que, ao que tudo indica, Honneth pretende, justamente, enfatizar a primazia da dinâmica social no desdobramento da individualização. Somente assim se poderia fazer da política um instrumento que impeça os conflitos em suas consequências destrutivas, sem apelar para o totalitarismo hobbesiano ou para uma justificativa maquiaveliana do poder. É como se o caráter constitutivo do conflito das consciências na experiência de alteridade fosse muito mais derivado de uma concepção solipsista ou monádica do cogito, do que de possibilidades realizáveis a partir da emergência social da subjetividade. Ou seja, é preciso pensar numa instância prévia à pluralidade dos sujeitos como condição, ao menos de direito, do reconhecimento – mas isso num contexto em que a subjetividade predomina e é vista como fundamento. Dir-se-ia que a comunidade não pode ser fundamento da individualidade, como se supõe que fosse o caso na Grécia, mas, por outro lado, a individualidade não deve ser o fundamento da comunidade. De alguma forma, a concepção de Hegel teria a intenção de superar essa alternativa[13]. Mas, de modo geral e esquematicamente, pode-se dizer que, de Maquiavel a Habermas, o teor sócio-histórico da racionalidade ético-política nunca teria sido devidamente valorizado. Não apenas na esfera da metafísica, mas também no plano da lógica transcendental, da dialética e mesmo da razão comunicativa, de alguma forma a normatividade, em suas várias acepções, sempre se teria sobreposto à articulação histórica. Assim, em seus últimos trabalhos, notadamente em O direito da liberdade, o autor teria privilegiado uma discussão das relações ancorada no desenvolvimento histórico em suas configurações específicas[14]. Com isso os vínculos entre liberdade, história e ética incidem de forma mais esclarecedora sobre a questão do reconhecimento.

Ora, se a liberdade passa a desempenhar a função de condição do reconhecimento, temos uma outra articulação entre as dimensões subjetiva/individual e social/objetiva. Se buscarmos a eticidade no âmbito da filosofia do direito, como o faz Honneth, veremos que a questão política da democracia (eticidade democrática) se destaca, pois é nessa direção que se pode pensar (e praticar) socialmente a justiça. “Uma das maiores limitações que sofre a filosofia política contemporânea é a sua separação de uma análise social e, com isso, a fixação em puros princípios normativos[15].” O reconhecimento de si e do outro como prática da justiça inclui obrigatoriamente os vínculos entre teoria da justiça e teoria social. Relação que não pode ser simplesmente descrita, mas que deve ser permanentemente reconstruída de forma crítica. Tanto o reconhecimento quanto a justiça só fazem sentido se forem consideradas em seu enraizamento social, num regime de liberdade concreta. Assim se passa, finalmente, do eu ao nós. É curioso notar que o esforço de Honneth, aparentemente desenvolvido para superar o caráter especulativo da filosofia política, reintegrando a subjetividade ética à objetividade histórica, não chega, ao que tudo indica, à articulação da complexidade do reconhecimento concreto. O leitor sente a falta, tanto na Luta pelo reconhecimento quanto em O direito da liberdade, de maior precisão e aprofundamento das instâncias institucionais que deveriam fazer parte do processo de reconhecimento, isto é, de uma experiência social da intersubjetividade. Talvez por isso a insistência na dimensão social, sem dúvida pertinente e oportuna, não resulta no esclarecimento da relação efetivamente dialética entre sujeito/indivíduo e a coletividade em seu caráter ativo, que até há algum tempo podíamos chamar de sociedade civil. Essa lacuna – se assim podemos dizer – restringe, de alguma forma, a compreensão e a ação da relação com os outros. Por exemplo, é verdadeiro dizer que a relação com os outros não se dá apenas nos âmbitos da família, da escola e do trabalho: no entanto, se não lograrmos discernir a vivência da liberdade em cada uma dessas instâncias, não alcançaremos uma compreensão suficiente do exercício social da liberdade, cuja preparação, realização, êxito ou fracasso acontece por meio das instituições que interferem no processo de subjetivação e socialização.

Assim, o mérito de ter chamado a atenção para a multiplicidade complexa do processo de reconhecimento não se prolonga, em Honneth, numa visão suficientemente aprofundada da articulação dialética entre indivíduo e sociedade. Nesse sentido, permanece o risco da limitação do reconhecimento a um cálculo moral de perfil utilitarista, a uma solidariedade de estilo durkheimiano e a uma certa objetivação da esfera pública. Tudo isso é, provavelmente, consequência de não se ter escapado inteiramente do império da norma (e, consequentemente, talvez, de uma gramática dos conflitos sociais), embora se possa duvidar dessa possibilidade.

Se os conflitos não ocorrem apenas entre as consciências em busca da hegemonia e se a forma e o conteúdo da luta pelo reconhecimento é dependente da esfera social em que os indivíduos atuam e, principalmente, do modo como a organização da sociedade interfere na atuação do indivíduo e molda, em grande parte, o processo e os resultados da subjetivação, então seria preciso buscar, na interação dessas causas, os motivos sócio-históricos da indiferença, da exclusão, da discriminação e da extraordinária perversão dos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, responsável pela degeneração dos ideais iluministas na violência já contemporânea à proclamação das expectativas de autonomia. Seria, pois, nessa direção que se deveria buscar alguma possibilidade de compreender essa mutação, suficientemente radical para que pudéssemos passar da ética à antiética. Para que a fraternidade seja, para nós, apenas um termo trivial ou uma fórmula vazia, e a violência seja, pelo contrário, uma realidade tão contundente que experimentamos por vezes dificuldades para atingi-la no efetivo horror de seu significado, o que faz, um tanto paradoxalmente, que as duas palavras sejam usadas com a mesma leviandade e irresponsabilidade. Note-se que não se trata apenas de apontar as causas sociais da violência, já exaustivamente examinadas e conhecidas de todos, tanto daqueles que lhes conferem primazia absoluta e mesmo exclusividade, quanto daqueles que negam a elas algum grau de importância na dinâmica dos conflitos. Atente-se para o que diz Adauto Novaes: “Alain nos adverte: se quisermos tratar com seriedade a questão da violência, devemos levar em conta a diferença entre as ‘causas ocasionais e as causas permanentes’, isto é, ver a diferença entre os acontecimentos (causas ocasionais) e as instituições[16]”.

O que já dissemos até aqui deveria ser suficiente para indicar que não se trata de articular causas e efeitos, nos moldes de uma análise objetiva de um fenômeno externo e extrínseco. A violência é um fenômeno que nos concerne independentemente da participação direta que nele possamos ter, como vítima ou algoz. Por mais indiferentes que nos mostremos, sabemos, no fundo, que mais cedo ou mais tarde a violência nos atingirá, ou perceberemos, com incômoda clareza, que ela já nos atingiu – e que já a vivemos. A consideração da violência em termos de exterioridade é fruto de um conhecimento superficial da realidade e, sobretudo, de um déficit de experiência pelo qual nossa hipocrisia é responsável, por exemplo, quando transfiguramos a sociedade dividida em dois mundos que apenas eventualmente se comunicam, como duas realidades independentes. A mutação a que nos referimos acima diz respeito, sobretudo, à expansão e onipresença da violência, em suas formas antigas e em suas novas configurações que já não nos escapam porque já não nos é possível viver à distância delas. A mutação não permite que expliquemos objetivamente a violência, porque a sociedade tornou-se intrinsecamente violenta. A violência não é acidental, mas essencial a uma sociedade que optou politicamente pela via da exclusão, fazendo com que a ordem e a justiça aconteçam sempre mediadas pela força e, portanto, pela repressão. Ela é interior a nós, no sentido subjetivo; mas é interior também à organização institucional da sociedade. A violência pode ser vista como consequência necessária da opção pela força como critério da ordem e da justiça. Trata-se da conhecida relação de consequência entre repressão e civilização, tematizada por Foucault e, antes dele, por Freud e Nietzsche[17]. A questão é: devemos aceitar o diagnóstico desses pensadores como justificativa da necessidade do uso da força, tanto no âmbito privado quanto na esfera pública? Em outros termos, dizer que a sociedade atual é intrinsecamente violenta seria o mesmo que afirmar que força e violência seriam elementos essencialmente constitutivos da vida social? Hobbes afirmou: “Sem a espada, os pactos não passam de palavras sem força, que não dão a mínima segurança a ninguém[18]”. Nesse sentido, só pode assumir a responsabilidade pela paz aquele que pode dispor indiscriminadamente da força, uma vez que a força legalizada (ou a violência como monopólio do Estado) não é mais do que a afirmação da lei e da força, já que o “arcabouço jurídico” somente funciona se imposto.

É notável (além de muito atual) que a opção pela submissão completa a uma autoridade totalitária – a renúncia à liberdade – seja considerada por Hobbes como uma escolha racional e inteiramente justificada se o objetivo for a paz. A necessidade da força e o monopólio estatal da violência aparecem como fundamentais pelo menos nesses dois momentos relevantes da história política: em Hobbes e em Weber. Poderíamos contrapor a essa concepção o liberalismo de Locke, para quem a instância decisiva de poder é sempre o povo, que pode destituir o poder institucional – executivo e legislativo – quando este já não atender mais às necessidades e aos direitos dos cidadãos. Dir-se-ia então que o Estado existe para preservar a liberdade, e não para restringi-la. Mas, de fato, entre a vida, a liberdade e a propriedade, direitos naturais, é o último que detém a prerrogativa, e os demais são regulados por ele. Dito de modo mais direto, a vida e a liberdade valem relativamente ao patrimônio dos indivíduos, razão pela qual o Estado tem o dever primordial de defender a propriedade. Ela não é acidental ou ocasional, não é um mero efeito da condição política de cidadão, mas sim aquilo que constitui propriamente a natureza da vida política, de tal modo que se pode dizer que preservar a liberdade é exatamente o mesmo que defender a propriedade. Não é necessário comentar muito acerca das consequências éticas dessa posição porque a prevalência total do ter sobre o ser é, sem dúvida, o traço mais nítido da introjeção subjetiva e coletiva da essência do capitalismo. O caráter trivial que a vida assume no contexto da violência contemporânea está certamente vinculado ao estatuto relativo da vida em relação à propriedade, o que ocorre também na relação entre propriedade e liberdade. Não há dúvida de que o grau da liberdade que o indivíduo pode desfrutar está diretamente ligado à quantidade de patrimônio de que dispõe: a propriedade é um bem superior porque garante o uso e fruição de outros bens, entre os quais a vida e a liberdade.

A administração de uma sociedade que se constitui por tais parâmetros exige vigilância e segurança para que a ordem seja mantida, vigorando também uma acepção de justiça diretamente vinculada à ordem sistêmica necessária à defesa da propriedade. Isso significa uma escala bem determinada de valores: a justiça decorre da ordem e a ela se subordina; a liberdade e a vida serão ou não preservadas conforme a garantia que a propriedade possa oferecer para tanto. A prevalência da propriedade indica que a sociedade não está pautada por valores éticos, mas funcionalmente organizada segundo a divisão e a ordenação econômica. Como já foi observado muitas vezes, o capitalismo não é somente um sistema econômico, mas um modo de vida materialmente ordenado por uma noção patrimonial de valor, o que incide diretamente sobre a questão do reconhecimento e reitera a necessidade de recolocá-la a partir da ética. Com efeito, os critérios de reconhecimento, quando dizem respeito à dimensão do ter mais do que à dimensão do ser, já não dizem respeito à pessoa, mas tão somente às condições de eficácia econômica das unidades de produção, que os economistas costumam chamar, significativamente, de atores em cenários. Políticas públicas de segurança levam em conta a conduta provável de atores em cenários sociais, a partir dos papéis que devem representar segundo um roteiro sociopolítico elaborado e previsto em conformidade com as exigências da divisão social de classes, em que a diferença se traduz em submissão ou dominação. Daí a necessidade de que a questão do reconhecimento seja colocada de modo social e histórico, mas de acordo com a complexidade inerente à relação dialética entre o singular e o universal. O mesmo se pode dizer da justiça – sobretudo quando mostra de forma mais clara a ambiguidade inerente à sua natureza de poder.

E isso porque poder e força, apesar de estarem obviamente associados, beneficiam-se de um mascaramento pelo qual se atribui aos poderes políticos a isenção, e, ao poder judiciário, a neutralidade. Essa é a razão pela qual até hoje se aceita com relativa naturalidade a tese weberiana do monopólio estatal da violência: presume-se que o uso da força pelo Estado, ocorrendo na dimensão pública, seria um uso desinteressado. Mas não é preciso muita acuidade de visão para entender que o Estado atua segundo interesses que se desdobram com vantagem em relação aos demais agentes políticos. Por isso não se pode comparar o monopólio estatal da força com o poder de Deus, como sugere a comparação hobbesiana entre o Deus imortal e o deus mortal. O Estado pode ser aparelhado; Deus, em princípio, não poderia sê-lo, mas as Igrejas, como sabemos, se prestam muito bem a isso. Assim se justifica o reparo:

Compreende-se que a análise weberiana sobre o monopólio legítimo da violência, tomado como fundamento primordial do Estado, deve ser questionada não apenas em razão de sua inadequação ao contexto democrático, mas, sobretudo, devido a fatores que se impõem na sociedade contemporânea contrariando esta tese, além de sua ineficácia como fundamento único para a garantia do direito à segurança. Registre-se aqui a fragilidade dos Estados contemporâneos diante da aceleração do processo de globalização da economia, sobretudo quando aparece minado pela globalização do crime[19].

A crítica coloca em destaque pelo menos dois aspectos importantes, embora não tratados com frequência nos estudos de filosofia política:

  1. A relação entre o Estado forte e a segurança do cidadão. Não existe conexão “necessária” entre os dois elementos. O que se observa historicamente é que o domínio e o controle exercidos pelo Estado forte colocam o cidadão à mercê do poder, e suas únicas garantias seriam o conformismo e a obediência. A ausência de reconhecimento da cidadania e mesmo da humanidade é a característica principal da relação entre o indivíduo e o poder, razão pela qual ele não pode ser considerado um sujeito político. Sua sobrevivência ocorre na medida em que a violência do poder se exerce de fato sobre os outros, o que significa que ele mesmo também é, por direito de estado, uma vítima em potencial da arbitrariedade.

2. O monopólio da força significa o direito à violência legitimado pelas razões de Estado. Só o Estado, isto é, o poder, pode exercer a violência amparado pelo direito. Nesse sentido, cessa qualquer interlocução política entre o indivíduo e o poder, porque toda diferença é anulada, e o direito está apenas do lado do poder. Quando o indivíduo discorda e eventualmente contesta a situação, trata-se de um fato desprovido de legalidade e que deve, por isso, ser evitado e reprimido. Quando a repressão se torna a base da manutenção do poder e da ordem, o Estado não é respeitado, mas sim temido. Ora, a justiça é para ser respeitada ou temida? Os direitos estão distribuídos entre os cidadãos ou concentrados no Estado? O critério de igualdade política, social e econômica é instituído pelo Estado ou está intrinsecamente ligado à cidadania e à humanidade?

O que está implicado nas duas observações acima, como consequência do que vimos até aqui, é que a articulação dialética entre indivíduo e sociedade, ou subjetivo e objetivo, passa por um equilíbrio, que pode ser instável, entre a singularidade individual e subjetiva e a universalidade social e objetiva. O que vincula as duas instâncias, mantendo rigorosamente a diferença entre elas, é a ideia de cidadania como individualidade comunitária. Note-se que uma das lições a serem aprendidas com a polis grega é que a comunidade não consiste apenas num agrupamento de indivíduos, e que o cidadão não se define apenas como um elemento particular num contexto geral. A pertinência recíproca torna a realidade política mais complexa: o indivíduo é comunitário, e a comunidade é individualizante. Isso significa que o indivíduo-cidadão não é apenas um ser natural, mas uma construção ou autoconstrução política; e a comunidade não corresponde apenas à necessidade de cooperação para a sobrevivência dos indivíduos, mas à realização intersubjetiva da humanidade, ou à expressão do éthos.

É a consideração do éthos, ou a experiência ética de existir humanamente que se exprime no respeito, que transcende muito a observância da norma (o respeito à lei), e somente se efetiva quando capta a realidade ética da pessoa. Assim, a exigência do respeito à lei é, via de regra, um requisito da sociabilidade funcional, e não de uma comunidade de pessoas ou cidadãos. Por isso, esse tipo de “respeito” se presta a toda sorte de mentiras, falsidades, hipocrisias e transgressões, como é o caso da representação política em seu processo de degeneração, mas que se observa também de modo geral na dissolução ética do sujeito e da sociedade.

Assim esperamos ter indicado pelo menos algumas linhas que permitam avaliar o extraordinário estreitamento do horizonte de compreensão das noções que deveriam compor a vida ética, a ponto de se poder falar, sem grande espanto, do próprio desaparecimento da ética, ou de sua inutilidade na consecução dos objetivos que orientam a vida contemporânea, individual e coletivamente. Diante do desaparecimento de critérios éticos, não é surpreendente que a violência se tenha tornado trivial e ocupe tanto espaço na esfera das relações humanas, de modo explícito, implícito ou latente. E, assim, que o direito à vida se tenha banalizado em proporção direta com o enaltecimento do direito à propriedade. E que o direito à liberdade tenha sido absorvido pela funcionalidade normativa da vida administrada. Enfim, de todos os lados os poderes se organizam e se armam não para o exercício político do reconhecimento pela diferenciação, mas para o aumento contínuo da intensidade do “poder de fogo”, já que o resultado esperado da violência parece ser a única expectativa das vidas provisórias e vazias no deserto do real. O poder não é, talvez nunca tenha sido, um meio de promover o bem comum, na forma da democracia. O poder tornou-se um fim em si mesmo e, portanto, precisa ser preservado por via de todas as formas possíveis de violência. As notas aqui apresentadas buscaram os fatores que permitiriam compreender essa mutação.

Fontes

  1. Ver, a respeito, as considerações fundamentais de Henrique Cláudio de Lima Vaz, Escritos de filosofia: Introdução à ética filosófica, 2 vols., São Paulo: Loyola, 1999-2000.
  2. Cf. J.-P. Sartre, Questão de método, São Paulo: Difel, 1966; e Crítica da razão dialética: precedido por Questão de método, Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
  3. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Campinas/Petrópolis: Edunicamp/Vozes, 2012, especialmente o quarto capítulo, pp. 333 ss. Cf., também, J.-P. Sartre, O ser e o nada, Petrópolis: Vozes, 2001, pp. 287 ss.
  4. Cf. Maurice Merleau-Ponty, Phénomenologie de la perception, Paris: Gallimard, 1946, especialmente a Introdução, pp. 9 ss.
  5. Como mostra Emmanuel Lévinas ao longo de toda a sua obra, que consiste basicamente na proposta de uma superação da prerrogativa moderna da subjetividade e da adoção de um paradigma, radicalmente ético, da constituição de si pelo outro. Cf., entre outros textos, Totalidade e infinito, Lisboa: Edições 70, 2011, especialmente a Seção III, pp. 181 ss.
  6. Cf. Hegel, La Phénomenologie de l’esprit, Paris: Auibier, 1941, pp. 145 ss.
  7. Cf. Max Weber, Economia e sociedade, vol. 1, Brasília: Editora da UnB, 2000, pp. 385 ss.
  8. Cf. Lafayette Pozzoli, “Reconhecimento e fraternidade”, disponível em: <http://www.uca.edu.ar/ uca/common/grupo57/files/reconhecimento_e_fraternidade.pdf>, acesso em: mar. 2017.
  9. A respeito do assunto, acompanhamos as considerações de Joachim Jeremias, As parábolas de Jesus, São Paulo: Paulinas, 1976.
  10. L. Pozzoli, op. cit., p. 3.
  11. Ibidem, p. 4.
  12. Axel Honneth, Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, São Paulo: Editora 34, 2003, p. 63. Cf. também, para uma visão mais geral, Rurion Melo (org.), A teoria crítica de Axel Honneth: reconhecimento, liberdade e justiça, São Paulo: Saraiva, 2013.
  13. A. Honneth, op. cit., p. 65.
  14. Cf. Filipe Campello, “Do reconhecimento à liberdade social: sobre o ‘direito da liberdade’ de Axel Honneth”, Cadernos de Ética e Filosofia Política, nº 23, São Paulo: FFLCH-USP, 2013, p. 186.
  15. Axel Honneth, O direito da liberdade, apud Filipe Campello, op. cit., p. 188.
  16. Adauto Novaes, “Causas acidentais e causas permanentes da violência”, apresentação do ciclo de conferências “Violência Interior”, realizado na Escola de Oficiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
  17. Michel Foucault, Nietzsche, Freud e Marx – Theatrum philosophicum, São Paulo: Princípio, 1997.
  18. Thomas Hobbes, Leviatã, São Paulo: Abril, 1980, p. 123.
  19. Lúcia Lemos, “A política de segurança pública entre o monopólio da força e os direitos humanos”, tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco, 2010, p. 94.

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