2017

Entre o trabalho e o labor: o devir da aldeia aldeia da cidade

por Guilherme Wisnik

Resumo

No livro A condição humana (1958), Hannah Arendt propõe uma importante distinção entre trabalho e labor. Enquanto o labor é a ação que se esgota em seu próprio consumo, a energia física que produz coisas capazes de manter a sobrevivência dos indivíduos e da espécie, o trabalho constrói objetos duráveis, exteriores, que dão materialidade à existência humana, mediando as nossas relações. Assim, se a figura histórica que melhor encarna o labor (homo laborans) é o camponês agricultor, a que encarna o trabalho (homo faber) é o artesão, o trabalhador manufatureiro, o operário ou o artista.

A chamada revolução urbana, ocorrida na Mesopotâmia por volta de 3.200 a.C., representa o colapso desse mundo estável e igualitário diante de invençōes técnicas que permitiram um grande incremento produtivo gerando excedentes, que estimularam a urbanização e o comércio. A cidade, a escrita e a moeda transformaram radicalmente o modo de vida em sociedade, inaugurando uma nova fase da humanidade que se estende, de certo modo, até hoje. Assim, superado o labor como atividade social predominante, à medida que a humanidade deixa de ser refém da subsistência, surge o trabalho como exercício de construção de um mundo objetivo e exterior ao homem: as cidades. O homo faber, portanto, não gasta sua energia produzindo alimentos para o consumo imediato, e sim construindo a durabilidade da existência humana, na forma de muralhas, edifícios e objetos de uso continuado. Com efeito, se o primado do mundo urbano está associado à figura histórica do homo faber, hoje um problema categorial se coloca. Pois com o rápido desenvolvimento da sociedade de consumo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a produção social de valor – desligada do trabalho e da transformação física da matéria, acelerada por taxas de obsolescência cada vez mais altas, e tornada abstrata pela especulação financeira – tem sofrido transformações que permitem pensar em um eclipse simultâneo, historicamente falando, tanto do homo faber quanto da cidade. Assim, superado o mundo da durabilidade construído a duras penas pelo homo faber em nome de um consumo cada vez mais voraz de tudo, incluindo os recursos não renováveis do planeta, estamos hoje de volta a uma paradoxal vigência histórica do labor como prática social predominante. Quer dizer, cinco mil anos depois do fim do período Neolítico nos reencontramos hoje com a lógica da subsistência pela via do excesso e da superabundância consumista, prática que põe a perder todas as formas de durabilidade cultivadas pelo ethos artesanal e urbano. Daí o grande acerto da expressão aldeia global cunhada por Marshall McLuhan em 1962, que podemos olhar agora sob o prisma de uma era pós-metropolitana.


A PÓS- METRÓPOLE

Será que ainda podemos chamar de cidades as imensas megalópoles tentaculares que se espraiam como supernovas por todos os continentes do planeta, conurbando os territórios existentes? O vertiginoso processo de crescimento da população mundial e das cidades ocorrido a partir da Revolução Industrial, com o advento de novas tecnologias de construção, de antibióticos e de fertilizantes, fez com que no final do século XX uma hipercidade como Tóquio abrigasse, sozinha, a mesma população urbana do planeta Terra de duzentos anos antes[1]. Que impacto isso pode ter sobre a concepção de cidade que temos hoje? Que futuro podemos avistar desde esse inquietante ponto de vista? Parece claro que, do ponto de vista urbano, vivemos um processo de ruptura histórica, isto é, de mutação e quebra de paradigmas.

Lewis Mumford inicia o seu enciclopédico A cidade na história, lançado em 1961, com o seguinte questionamento: “Que é a cidade? Como foi que começou a existir? Que processos promove? Que funções desempenha? Que finalidades preenche?”. Questões que, diante dos dramáticos impasses colocados pelas cidades naquele momento histórico crucial – o segundo pós-guerra –, culminam na seguinte pergunta: “Existe ainda uma alternativa real a meio caminho entre Necrópolis e Utopia?[2]”.

Evidentemente não há respostas seguras para tais perguntas, nem uma definição consensual sobre o que é, afinal, a cidade. Por exemplo, de acordo com a visão de Aristóteles, formulada no século 1v a.C., a pólis se definia por uma “justa medida” capaz de fazer com que ela não se confundisse nem com a aldeia, por um lado, nem com o império, por outro, garantindo uma ordem na interação entre os cidadãos em prol da boa atividade política. É por isso que, segundo o pensador de Estagira, pode-se apenas chamar de cidade aos agrupamentos humanos cuja extensão não ultrapassem a distância abarcável pelo olhar de uma pessoa, ainda que situada em um promontório[3]. Como se pode perceber, trata-se de um critério de definição que nós, há muito tempo, já desrespeitamos. Hoje, para Jürgen Habermas, “a forma de vida exigida como su- porte e alimento do mundo público a ser recomposto à contracorrente do capitalismo avançado já não pode contar mais com a forma outrora abarcável da cidade. As aglomerações urbanas deixaram de corresponder ao conceito de cidade; nelas predominam as conexões funcionais não configuráveis, sem a visibilidade do lugar público[4]”. E, de forma complementar, segundo a visão de Paul Virilio: “Se ontem o arquitetônico podia ser comparado à geologia, à tectônica dos relevos naturais, com as pirâmides, as sinuosidades neogóticas, de agora em diante pode apenas ser comparado às técnicas de ponta, cujas proezas vertiginosas nos exilam do horizonte terrestre[5]”.

É diante do quadro de crise conceitual que enfrentamos hoje que muitos teóricos têm empregado o termo pós-metrópole para designar os agrupamentos urbanos gigantes e informes que definem o nosso mundo, onde a distância entre os centros e as bordas se expande tanto que atinge um ponto crítico de ruptura[6]. Significativamente, muitos deles são italianos, oriundos de uma tradição cultural que batizou a noção de cidade com a qual trabalhamos no Ocidente[7]. Para Giulio Carlo Argan, por exemplo, uma transformação profunda se deu no segundo pós-guerra, quando as cidades deixaram de poder ser consideradas espaços delimitados e obje- tivados em determinados territórios para se configurarem mais como impalpáveis redes de fluxos viários e sistemas de serviços praticamente ilimitados[8]. Não por acaso, esse é o mesmo período histórico em que a arte vive uma profunda crise, explodindo o seu suporte tradicional, rompendo sua autonomia, lançando-se de forma impura e precária no ambiente, e tornando-se passível de ser manipulada pelo público. É por causa dessa relação de espelhamento que, para o grande teórico italiano, a história da arte pode ser lida e contada como história da cidade, e vice-versa.

A propósito, como bem observa Lorenzo Mammì, “a unidade pela qual Argan mede a rede de sentidos instaurada pela obra de arte é a cidade”. Assim, contra uma concepção romântica de nação e de povo, mas também contra um universalismo plácido, presente em muitas das utopias modernas, “Argan propõe a cidade como comunidade concreta de pessoas que moram no mesmo espaço, compartilham os mesmos símbolos, veem a mesma paisagem”. Portanto, em oposição ao campo, lugar da natureza, a cidade, no Ocidente, é, por excelência, o lugar da história. Por isso, arremata Mammì, “é a partir da cidade que é necessário defender a história como princípio humanístico do fazer social[9]”.

Ora, mas é exatamente essa espessura do tempo histórico, aliada ao aspecto modelar e generalizável da arte e da noção de projeto, que se perdem irremediavelmente na segunda metade do século XX, junto com a ideia de cidade como um agrupamento orgânico, razoavelmente unitário e culturalmente coerente. Claramente, é outra a ideia de cidade que temos hoje, quando olhamos imagens aéreas das imensas e impermanentes periferias de Kinshasa, Lagos, São Paulo, México, Daca ou Karachi. Ou, de forma complementar, quando vemos o tecido urbano difuso e esgarçado de Los Angeles, Las Vegas, Houston ou Dallas, por exemplo.

Assim, voltamos à pergunta inicial: como redefinir as cidades no momento histórico em que o mundo se tornou majoritariamente urbano, e em que o agigantado espaço físico dessas ditas pós-metrópoles vai sendo enormemente multiplicado pelos ciberespaços virtuais? Sem poder responder diretamente a tais questões, proponho retornarmos vários milênios para trás, em busca de uma melhor compreensão da origem histórica das cidades, que possa de alguma maneira iluminar as razões do que possa representar o ser urbano, indicando-nos, ao mesmo tempo, o que sobreviveria ainda hoje dessa presumida razão ontológica das cidades.

DA ALDEIA PARA A CIDADE

Segundo o arqueólogo australiano Vere Gordon Childe, a chamada selvageria paleolítica, economia primitiva de coleta e caça, organizava-se em clãs, grupos unidos em torno de ascendências míticas, totêmicas. Se essa economia extremamente débil não tivesse sido superada, nas palavras de Childe, o Homo sapiens teria permanecido um animal raro. Contudo, a revolução econômica do oitavo milênio antes de Cristo – a do- mesticação de animais e o cultivo de cereais – solucionou esse impasse evolutivo, criando o sedentarismo agrícola. Inicia-se aí uma nova forma de organização social e mental da humanidade, organizada em mundos fechados em aldeias, dotadas de estruturas simbólicas predominantemente matriarcais[10].

Contudo, esse novo mundo das aldeias – a chamada barbárie neolítica – manteve a organização social dos clãs, continuando e amplificando o sistema comunal de divisão dos alimentos com base na posse e exploração coletiva da terra. Para Marx, a comunidade tribal espontânea, vinda das hordas do nomadismo, na medida em que se fixa na forma do comuna- lismo pela recompensa que pode extrair do esforço coletivo, transforma a terra num prolongamento de sua subjetividade, na natureza de sua reprodução, e se objetiva. Assim, o homem é mais do que o nômade que coletava, pois tem uma existência objetiva na propriedade, que antecede o seu trabalho (assim como sua própria pele).

O homem é, segundo Marx, uma subjetividade que se desdobra em uma objetividade: a terra, sua extensão e precondição inorgânica[11]. E a mediação que garante esse desdobramento é a existência do indivíduo como membro da comunidade, o sentido de pertencimento a esse grupo. Assim, o conceito de propriedade, nessa primeira acepção, significa pertencer a uma tribo, ter uma existência objetiva dentro dela. Dessa forma, para a comunidade espontânea, a relação que o trabalhador estabelece com as condições objetivas de trabalho – a terra – é de propriedade. E a propriedade, vista desta maneira, não é a apropriação estática de uma porção de terra, mas um termo que designa uma relação: é a unidade natural do trabalho com seus pré-requisitos materiais, é a atitude natural do homem de encarar suas condições naturais de produção como lhe pertencendo. No entanto, a propriedade é comunal, portanto, o significado do pertencimento ao todo da comunidade é o sentido que dá ao indivíduo o caráter de possessor, de possuidor temporário. A apropriação da terra é condição preliminar do trabalho, e não o seu resultado.

A autossuficiência dos homens neolíticos estava baseada no fato de cultivarem seus alimentos e poderem fabricar todo o seu equipamento social com material conseguido localmente: pedra, osso, madeira, argila etc. “Segue-se disso que a economia neolítica não oferece ao agricultor nenhum estímulo material para produzir mais do que necessita para manter-se com a família[12]”. Assim, esse mundo fechado – cada clã é um universo enraizado – fundamentado na autossuficiência, na perpetuação, resolve imensos impasses sociais e culturais, mas cria, ao mesmo tempo, contradições internas que minam sua perenidade. Seu sucesso adaptativo permite maior controle dos processos da vida e, com isso, a liberação de uma série de contingências ligadas exclusivamente à satisfação das necessidades, permitindo um desenvolvimento espiritual que coloca o trabalho como “mais uma das atividades da vida”. O consequente crescimento numérico da população força a expansão, que, por sua vez, tem que ser contida para manter a autossuficiência, a não especialização, o comunitarismo. Apesar de, como observa Marx, nas formas asiáticas o indivíduo encontrar-se firmemente enraizado, a fragilidade de sua manutenção está na exposição ao contato com os elementos de fora das aldeias, que as colocam, a partir de certa momento, em curto-circuito. Quando os indivíduos de uma comunidade adquirem, pelo contato de comércio, pelas guerras, ou pelo simples pressuposto aberto com o precedente da propriedade divina, ou “real”, uma existência separada de sua existência coletiva como comunidade – a propriedade privada –, surgem as condições que permitem ao indivíduo a perda de sua propriedade e, consequentemente, a desintegração do sentido de coletividade que a sustentava.

Uma segunda contradição apontada por Gordon Childe na sociedade neolítica é a fragilidade desse controle sobre a natureza (a aldeia estava ainda completamente exposta aos efeitos das catástrofes naturais), portanto, o caráter ilusório dessa perpetuação na autossuficiência. Dessa maneira, as contradições apontadas só se resolveram historicamente à medida que essa contenção, que esses mecanismos de restrição do crescimento se dissolveram. Isto é, na hora em que os agricultores foram persuadidos a produzir além de suas necessidades, sustentando especialistas desincumbidos da produção para o consumo próprio. Esse momento corresponde à barbárie superior da Idade do Cobre, e está no nó dos pré-requisitos que deram impulso material à chamada ascensão da cidade, ou revolução urbana.

A exploração do metal, no caso, primeiramente o cobre, se mostrou extremamente vantajosa para a fabricação de instrumentos – mais potentes e duráveis – e de armas. Dado o poder e a utilidade desse novo material, sua exploração requereu dedicação exclusiva, especialização. E, em virtude da alquimia da transformação metalúrgica, esses novos especialistas aparentaram-se aos primeiros – os mágicos – como “iniciados nos mistérios” da transubstanciação. Contudo, com uma nova característica: já não estavam vinculados a uma base territorial, à perpetuação tectônica do clã (do qual o mágico era a emanação), e portanto eram desgarrados, itinerantes, detentores de um saber que recoloca o princípio paleolítico errante do deslocamento em novas bases, apontando para a natureza da troca[13]. Assim, segundo a visão tecnicista de Childe, pelo uso do metal essa nova classe de metalúrgicos e comerciantes engendra a destruição da autossuficiência neolítica, cortando as bases econômicas do matriarcado. Como o metal tinha de ser buscado longe, abre-se um precedente para o comércio e o deslocamento, engendrando também a submissão pelas armas. Assim, o que permite a ampla produção de excedentes e a intensa transformação social do período é a utilização conjunta das três grandes descobertas: a agricultura, a pecuária e o metal, base para a construção do arado. Um processo de estratificação, de dominação crescente, faz nascer a riqueza, a propriedade pessoal, a hereditariedade e o culto da personalidade.

Nos locais onde as aldeias neolíticas se desenvolveram (as estepes sírias e os planaltos do Irã), seus habitantes “podiam viver sem sentir a necessidade imperiosa de enfrentar a formidável tarefa de reconstruir todo o edifício da barbárie neolítica[14]”, observa Childe, enquanto as recompensas oferecidas pela exploração coletiva de um ambiente inicialmente mais difícil, como a Suméria, região lamacenta junto ao delta dos rios Tigre e Eufrates, eram muito maiores. É lá que “as aldeias da Idade do Cobre se transformaram nas cidades da Idade do Bronze[15]”.

Ao contrário de alguns nostálgicos da vida prosaica de aldeia, que veem na urbanização o pecado original da civilização, Marx dá a entender, em sua análise, que o movimento de desarraigamento que dá origem às cidades já estava de alguma maneira contido no modelo asiático de autoperpetuação comunal. Segundo ele, a apropriação da terra se dá como precondição anterior ao processo de trabalho. Contudo, Marx acentua que, no caso da maioria das formas asiáticas fundamentais, a apropriação é compatível com o fato de que a “unidade geral mais abrangente” apareça como o proprietário único ou superior, concretizado na figura do rei, enquanto as comunidades propriamente ditas se constituam apenas como possuidoras hereditárias. Como a unidade é também – anota – precondição real da propriedade comum, um pressuposto natural ou divino (e não resultado do trabalho), torna-se perfeitamente possível que apareça como algo separado, superior às numerosas comunidades particulares. Poder e propriedade são pré-requisitos e não resultados do trabalho. Dessa forma, para o indivíduo da comunidade a propriedade, a relação com o corpo objetivo de sua subjetividade, aparece como cessão da unidade maior, o déspota, mediada pela comunidade menor, a aldeia. Assim, a interpretação marxista faz crer na consagração dessa entidade realeza-divindade como uma unidade entre aldeias, apontando, portanto, para uma consolidação simbólica e tributária antes da criação efetiva de cidades, as novas unidades espaciais que desarraigam os clãs estabelecidos em aldeias, em genos.

Contudo, Marx cria para o surgimento das cidades uma imagem um tanto ambivalente. Por um lado, se refere ao surgimento delas como se dando ao lado das aldeias, nos pontos privilegiados de comércio, respon- dendo, portanto, a um ímpeto difusor de comunicação. Mas, por outro lado, dá a entender a ocorrência de uma “evolução” das comunidades na direção de uma centralização espacial unitária, conseguida com as conquistas do trabalho coletivo (como a irrigação, por exemplo) que a centralização do poder proporciona. Para esse novo sistema centralizador – a cidade –, “a área cultivada é parte do seu território”, enquanto para o comunalismo primitivo a “aldeia era simples apêndice da terra”. Marx destila sua argumentação ao desenvolver a ideia de como a produção de excedentes, o contato através das guerras e a escravização criam o princípio pelo qual os indivíduos se descolam da comunidade, dando origem à propriedade privada e à alienação do trabalho, que constituirão as bases para o futuro capitalismo. A forma asiática, em síntese, representa um modelo que resiste por longo tempo a esse desenvolvimento que a degrada, mantendo o círculo da produção autossustentado na unidade da agricultura com a manufatura artesanal.

Temos assim que esse novo organismo hipercomplexo – a cidade –, que libera forças demenciais que estavam acorrentadas no mundo intrauterino das aldeias, e as controla colocando-as em comunicações novas, inusitadas, está voltado a consolidar-se na expressão de um autoculto personalista. Essa imagem soberana, que se afirma na existência de deuses públicos (geralmente as cidades estavam identificadas por deuses, de cuja autoridade emprestavam sua afirmação potente), de reis absolutos e conquistadores, se conjuga com a realidade físico-geográfico que fez nascer a cidade. Erguer a civilização como uma batalha coletiva que extrai frutos antes impensados da natureza num território aparentemente hostil que, por essa transformação, se mostra generoso e benevolente, qualifica o empreendimento cidade, em sua natureza, como materialização de uma vontade de potência, que a realiza e identifica[16]. Assim, a transformação de um mundo de aldeias em um mundo de cidades implica não apenas o aumento do tamanho dos recipientes físicos que as abrigam, mas aponta também, e sobretudo, para uma radical mudança de direção e finalidade, como anota Mumford[17].

O TRABALHO E O LABOR

Diferentemente da palavra latina lex (lei), que designa uma relação formal de deveres e direitos entre uma comunidade de pessoas, a palavra grega nomos (lei) se origina de nemein, que significa distribuir, possuir e habitar. Isto é, a lei, para os gregos, é um conceito bastante concreto, que equivale a uma espécie de parede ou de muro. Um aglomerado de casas, um povoado, poderia prescindir do nomos, como mostra Hannah Arendt, “mas não uma cidade, uma comunidade política[18]”.

O termo grego poiesis, do qual derivam as palavras latinas poética e poesia, significa fabricação, isto é, produção manual. Então, se para os gregos a poiesis é o fazer, os poemas – como todas as obras de arte e, também, os muros da cidade e suas leis, como vimos – são coisas feitas. Ao mesmo tempo, a palavra tekton, de onde vem “arquiteto”, significa fabricante, alguém que trabalha sobre materiais duros, como pedra ou madeira. Vê-se, portanto, que para os gregos o poeta e o arquiteto estão irmanados e remetidos, em última análise, à figura do artífice, o trabalhador manual. De forma coerente, o termo grego que designa o que entendemos modernamente por arte é tékhne, que também significa técnica, definindo a unidade original entre ambas.

A tékhne, para os gregos, está na origem da própria condição humana, seguindo uma narrativa mítica que remonta a Hesíodo, em Os trabalhos e os dias. Pois representa a capacidade dos homens de prover a sua subsistência e construir o mundo material à sua volta através de um artifício: o fogo que o titã Prometeu roubou de Zeus e lhes deu de presente, permitindo que os homens cozinhassem o próprio alimento e fabricassem peças de cerâmica nas oficinas de Hefesto. A contrapartida lógica a esse gesto transgressivo é o aparecimento de Pandora, a primeira mulher, com a qual Zeus presenteia e ao mesmo tempo castiga os homens, para que passem a reproduzir-se entre si. Assim, a dor do parto e a perecibilidade do alimento representam a condição humana, desde então separada da condição divina.

Pandora, que significa “todos os dons”, é, segundo Hesíodo, o “belo mal”, pois quando abre a sua caixa de maravilhas espalha dores e males incontáveis pelo mundo[19]. Desse modo, como observa Jean-Pierre Vernant, a constituição simbólica dos homens na Grécia antiga possui um caráter duplo, em que a fecundidade e o trabalho aparecem como funções opostas e complementares. “Toda vantagem tem sua contrapartida, todo bem seu mal. A riqueza implica o trabalho, o nascimento, a morte.” Portanto, é “em meio a esse caráter ambivalente da simbologia mítica arcaica que técnica e arte fundem-se na constituição do gênero humano[20]”.

Em A condição humana, Hannah Arendt postula a existência de três atividades principais para a vida em sociedade: o labor, o trabalho e a ação. O centro da sua discussão, nesse livro, é uma reflexão sobre a erosão da esfera pública no mundo contemporâneo, correspondente à elevação social do âmbito doméstico, com a proliferação da chamada sociedade de consumo. Nesse sentido, se o seu modelo da ação política é funda- mentalmente grego, e, portanto, talvez distante demais do nosso mundo, sua caracterização do labor e do trabalho permanece muito viva para se pensar o mundo contemporâneo.

Segundo o seu modelo teórico, a ação (práxis) é o domínio da política: o lugar da liberdade, do discurso e do conflito de ideias que constituem a esfera pública. No polo oposto, isto é, na dimensão privada, está o labor, a atividade que corresponde ao processo biológico da vida humana, a produção e o consumo de alimentos para a subsistência. Entre eles está o trabalho, a produção de objetos feitos para durar: os artefatos, que constituem o artificialismo da existência humana. O sujeito que constrói simbolicamente esse mundo artificial – representado pela transgressão de Prometeu – é o homo faber, que trabalha sobre os materiais duros, em oposição ao animal laborans, que se mistura com eles. E se o labor assegura a sobrevivência do indivíduo e da espécie, o trabalho e seu produto, o artefato, emprestam permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal, ligadas a uma consciência histórica.

O labor é um processo ininterrupto, em que toda a produção é imediatamente consumida. Já o trabalho, ao contrário, se orienta por uma finalidade clara: acrescentar objetos duráveis ao mundo humano, que, embora possam ser desgastados pelo uso, não são nunca consumidos. Esses objetos, que incluem os edifícios e a própria cidade, constituem a materialidade das relações em sociedade, e não apenas impedem que colidamos uns com os outros, escreve Arendt, mas também impõem uma objetividade à nossa subjetividade instável.

Na sociedade de consumo, contudo, toda essa categorização entra em crise à medida que o labor é alvo de uma promoção social inédita – o que se percebe na própria palavra consumo –, e a esfera privada tende a eclipsar a esfera pública. Só o labor, “com sua inerte fertilidade”, assevera a autora, é capaz de produzir a abundância, que precisa ser consumida. Desse modo, promovido a sujeito social aquele que é, por definição, alie- nado do mundo, o animal laborans mina pelo consumo a durabilidade do artefato humano à sua volta, transformando objetos duráveis em mercadorias expostas a taxas de obsolescência simbólica cada vez mais altas. Parece claro, portanto, à luz desses conceitos, concluir que vivemos hoje o crepúsculo da durabilidade, e que o mundo das cidades vive também o seu ocaso, já que o conceito de cidade, tal qual o viemos postulando, se ergueu por cinco milênios sobre o esforço dessa durabilidade tangível rodeada por muralhas: a criação do artefato humano fora do homem, numa relação de objetivação material e simbólica. Nesse caso podemos demarcar, em amplo espectro, a predominância do labor delimitando os momentos anteriores e posteriores à vigência histórica da cidade: o mundo da aldeia neolítica, por um lado, e a sociedade de consumo pós-metropolitana, por outro. No entanto, falar em ocaso da cidade deve parecer um enorme disparate, na medida em que, objetivamente, as cidades não cessam de crescer. De modo geral, as metrópoles contemporâneas são o resultado de dois fenômenos concorrentes e complementares: o inchaço material, a conurbação, por um lado, e o refluxo da urbanidade, num sentido político e filosófico, por outro. É que a noção de cidade talvez não possa jamais prescindir do seu contraponto: o seu outro, isto é, aquilo que não é cidade.

A palavra lugar designa uma localidade onde paramos. É uma pausa no espaço, o que faz do lugar, segundo Massimo Cacciari, algo “análogo ao silêncio de uma partitura”, sem o qual não há música. Com efeito, prossegue, “o território pós-metropolitano ignora o silêncio numa partitura; não nos permite parar, ‘recolhermo-nos’ no habitar. Ou seja, não conhece, não pode conhecer distâncias[21]”.

ALDEIA GLOBAL

Retomando as categorias conceituais de Hannah Arendt, enquanto o labor é a atividade que se esgota em seu próprio consumo, a energia física que produz coisas capazes de manter a sobrevivência dos indivíduos e da espécie, o trabalho constrói objetos duráveis, exteriores, que dão materialidade à existência humana, mediando as nossas relações. Assim, se a figura histórica que melhor encarna o labor (animal laborans) é o camponês agricultor, a que encarna o trabalho (homo faber) é o artesão, o trabalhador manufatureiro, o operário, o arquiteto ou o artista.

O período de prevalência histórica do labor é o Neolítico, que corresponde à sedentarização do homem em aldeias, cujos habitantes eram agricultores, e não mais caçadores nômades, como no Paleolítico. Associado em geral a um universo de matriarcado estável, pouco hierarquizado e devotado à subsistência, como vimos, o período Neolítico se caracteriza por uma longa estabilidade social – que vai do 10o ao 3o milênio a.C. –, ancorada na partilha comunal da terra. Visto hoje, esse vasto período da história humana pode ser interpretado como uma fase anterior ao da dominação hierárquica, que caracteriza as sociedades urbanas divididas em classes sociais. Período este cujas características essenciais são de certa forma reencenadas posteriormente na Idade Média, dando a base para a idealização comunitária presente no conceito germânico de gemeinschaft.

A chamada revolução urbana, ocorrida na Mesopotâmia por volta de 3.200 A.C., como vimos também, representa o colapso desse mundo estável e igualitário diante de invenções técnicas e culturais que permi- tiram um grande incremento produtivo pela geração de excedentes e estimularam a urbanização e o comércio. A cidade, a escrita e a moeda transformaram radicalmente o modo de vida em sociedade, inaugurando uma nova fase da humanidade que se estende, de certo modo, até os dias de hoje. Assim, superado o labor como atividade social predominante, à medida que a humanidade deixa de ser refém da própria subsistência, surge o trabalho como exercício de construção de um mundo objetivo e exterior ao homem, materializado nas cidades. O homo faber, portanto, não gasta sua energia produzindo alimentos para o consumo imediato, e sim construindo a durabilidade da existência humana, na forma de muralhas, edifícios e objetos de uso continuado.

Com efeito, se o primado do mundo urbano está associado à figura histórica do homo faber, hoje um problema categorial se coloca. Pois, com o rápido desenvolvimento da sociedade de consumo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a produção social de valor – desligada do trabalho e da transformação física da matéria, acelerada por taxas de obsolescência cada vez mais altas e tornada abstrata pela especulação financeira – tem sofrido transformações que permitem pensar em um eclipse simultâneo, historicamente falando, tanto do homo faber, como sujeito histórico, quanto das cidades, como estruturação física e simbólica. Assim, superado o mundo da durabilidade construído a duras penas pelo homo faber em nome de um consumo cada vez mais voraz de tudo, incluindo os recursos não renováveis do planeta, parecemos estar hoje de volta a uma paradoxal vigência histórica do labor como prática social predominante. Quer dizer, s mil anos depois do fim do período Neolítico nos reencontramos hoje com a lógica da subsistência pela via do excesso e da superabundância consumista, prática que põe a perder todas as formas de durabilidade cultivadas pelo éthos artesanal e urbano. Daí o grande acerto da expressão aldeia global cunhada por Marshall McLuhan em 1962[22], que podemos olhar agora, como vimos, sob o prisma de uma era pós-metropolitana.

Tempo cíclico? Eterno retorno? Tragédia revivida como farsa? Ou será que, ao contrário disso, poderíamos enxergar esse retorno simbólico da aldeia como algo capaz de trazer de volta algum comunalismo não hierárquico perdido no fim do período Neolítico e reencenado na Idade Média, antes dos cercamentos[23]? Será que não está aí a base das novas práticas coletivistas e autogestionárias que propõem, hoje, substituir o conceito de público pelo de comum[24], e que não por acaso se estruturam em ações de pequena escala, sendo muitas delas próprias ao universo da agricultura, como hortas comunitárias? O que é certo, em todo caso, é que não é possível pensar o futuro das cidades no terceiro milênio sem levar em conta a reemergência do labor como uma categoria conceitual que inverte o sentido das coisas. Uma mutação que exige a redefinição de todos os conceitos.

APROPRIAÇÃO E RECICLAGEM

O diagnóstico sobre a situação atual, seguindo a trilha de Hannah Arendt, é, sem dúvida, sombrio. Richard Sennett, conhecido discípulo da pensadora alemã, tem se dedicado nos últimos anos a escrever uma trilogia dedicada ao homo faber O artífice (2008), Juntos (2012) e um terceiro livro sobre as cidades, ainda não terminado –, com o objetivo de, valorizando a cultura material, contribuir para a resistência à erosão das coisas e dos valores no maleável mundo de hoje[25].

Com efeito, para concluir de forma inconclusiva este texto, abrindo-o para perguntas novas, gostaria de sugerir que talvez a recuperação simbólica do labor no mundo atual possa ser algo não tão ruim quanto parece. Pois se o mundo do homo faber culminou na Revolução Industrial, e na ambição de submeter todo o ambiente do planeta aos desígnios técnicos e produtivistas do homem “civilizado”, hoje a posição defendida por muitos grupos que afrontam claramente esse modelo parece ser a afirmação eloquente de um éthos laboral e coletivista, agressivamente antiprodutivista, e muitas vezes voltado à mera subsistência. Sobretudo em países como o Brasil, onde nações indígenas permanecem vivendo em aldeias, conservando suas respectivas organizações sociais e simbólicas, a reflexão sobre a atualidade crítica desse modo de vida e de pensamento é algo fundamental. Junto ao exemplo da aldeia encontramos novamente a experiência da terra comunal, em oposição radical à lógica da privatização neoliberal, que dominou as cidades. Desse modelo mais cooperativo e próximo da escala humana depreendemos os nexos mais pessoalizados de relação dentro de uma comunidade, de onde se desdobram práticas importantes de gestão local, como orçamentos participativos e trabalhos por mutirão.

No contexto brasileiro, são importantes exemplos dessa postura crítica através das referências da aldeia e do labor tanto as reivindicações de movimentos sociais como o MST – pregando a concessão de terras para a subsistência familiar –, quanto os lúcidos ataques de Eduardo Viveiros de Castro ao nosso neodesenvolvimentismo recente, baseado no agronegócio, no biodiesel, nas usinas hidrelétricas e na indústria automobilística. Observa ele:

De minha parte, dane-se o desenvolvimento; dane-se, sobretudo, o tal do “crescimento econômico”. Não é por aí. Viva, isso sim, a distribui- ção de renda, a reforma agrária, a pequena propriedade, a produção de comida em vez de commodities, o uso morigerado de energia, o cuidado com as águas. E educação, e saúde para o povo – é claro. Isso é desenvolvimento, ou melhor, é envolvimento; o resto é desenvolvimentismo[26].

Muito a propósito, no comovente filme-documentário Martírio (2016), de Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tita, sobre a saga dos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul, vemos como os índios no Brasil têm sido recorrentemente perseguidos por serem vistos – de modo cínico e surreal – como os antagonistas da economia produtiva do país. Em particular, é mostrada no filme a cena de uma convenção de ruralistas em 2013, em que a então senadora Kátia Abreu – depois ministra da Agricultura –, em um discurso inflamado, afirma que “nós”, tendo já vencido o MST e o Código Florestal, temos ainda que batalhar contra o último adversário em jogo: a “questão indígena”. Pois a família brasileira (no caso, os proprietários de terras), feita de sujeitos de bem, que só querem ajudar o desenvolvimento do país, afirma ela, não aguenta mais tanta violência dos índios. Pois o que “nós” queremos, completa por fim, é apenas “paz para produzir”.

Ao mesmo tempo, do ponto de vista da discussão urbana internacional, está claro, hoje, que boa parte da energia de transformação e invenção nas grandes cidades é encontrada não mais – ou não priorita- riamente – em seus setores legais e consolidados, e sim em suas áreas impermanentes, informais e informes[27]. São as chamadas cidades post-it, ou cidades makeshift (cidades temporárias, ou improvisadas)[28], feitas de favelas, mercados ambulantes, ocupações temporárias e apropriações da infraestrutura urbana para fins imprevistos. Nessas cidades, em que movimentos que reclamam o uso dos espaços públicos fervilham, a agenda de discussão e contestação se afasta claramente do paradigma edificante do homo faber em direção a estratégias mais ágeis e temporárias de ocupação, reciclagem e apropriação dos espaços e serviços urbanos, bem como de gestão compartilhada desses bens situados na fronteira entre o público e o privado, progressivamente entendidos como “comuns” (commons). Cenário em que, do ponto de vista dos “tipos ideais”, o arquiteto e o operário tendem a ser eclipsados pelo advogado e pelo ativista, assim como o muro pela lei[29].

Talvez não haja um caso no mundo mais expressivo acerca do deslocamento contemporâneo do paradigma do trabalho para o do labor do que a cidade de Detroit, em Michigan. Capital da indústria automobilística norte-americana, a cidade da Ford e da Chrysler é hoje um esgarçado conjunto urbano cheio de vazios, nos quais uma população pobre planta legumes para sobreviver. Esvaziada ao longo de décadas tanto pela fuga das classes médias e altas para os condomínios de subúrbio – processo conhecido como white flight –, levando com elas a sua alta arrecadação, quanto pela fuga da produção industrial para áreas periféricas do planeta, Detroit perdeu quase dois terços da sua população em cinquenta anos, acumulando uma dívida superior a 20 bilhões de dólares. Com sua situação econômica agravada pela crise hipotecária de 2008, que provocou mais de 100 mil despejos na cidade, a prefeitura de Detroit declarou falência em julho de 2013, sofrendo intervenção estadual. Tendo um terço do seu território abandonado, quase metade da iluminação pública desativada, parques fechados, e alto índice de desemprego e de homicídios, a cidade viu crescerem, por outro lado, hortas comunitárias em seus terrenos vazios: associações de pessoas que passaram a se apropriar desses terrenos para plantar alimentos em pequena escala[30]. Seriam essas práticas novos modelos cooperativos, que apontam alternativas válidas de vida mais comunal na cidade pós-industrial? Ou, ao contrário, formas de regressão a um estágio arcaico de subsistência, resultado de extrema precariedade e miséria?

Mas se, por um lado, as fazendas urbanas de Detroit parecem ser a consequência crítica de um processo de depressão econômica e social, por outro, inúmeros casos pelo mundo – sobretudo no Norte da Europa– demonstram situações exemplares, ainda que pontuais, de reorganização social em torno de práticas sustentáveis que reavivam de forma positiva o labor em contexto urbano, apontando para formas novas de resiliência. Muitos desses casos se encontram em Berlim, cidade onde a alta presença de artistas e imigrantes, combinada a um modesto desempenho econômico, fez nascer o chamado urbanismo tático, ou de guerrilha, que congrega muitos dos processos aqui referidos. Um interessante exemplo é o Nomadisch Grün, criado em 2009, em Prinzessinnengärten, em um cruzamento de vias expressas. Trata-se de uma cooperativa de agricultura urbana gerida pelos moradores do entorno e que inclui não apenas a plantação propriamente dita, mas também a criação de equipamentos comerciais e comunitários como café e biblioteca, além de atividades didáticas ligadas à culinária e à consciência ecológica. Outro exemplo digno de nota é o R-Urban, em Colombes, subúrbio de Paris. Essa iniciativa de ecourbanismo do Atelier d’Architecture Autogérée, originada em 2011, constitui um sistema de equipamentos que atuam em rede no bairro, criando um ciclo regenerativo de produção e consumo, reciclagem e reuso, dando nova utilidade produtiva e social a terrenos que normalmente seriam usados como estacionamentos ou estariam simplesmente baldios.

Citando Ludwig Wittgenstein, o artista tailandês-argentino Rirkrit Tiravanija repete com frequência a seguinte frase: “não procure o significado, procure o uso”. Um dos maiores expoentes da arte chamada de pós-produção, Tiravanija realiza trabalhos efêmeros em que o público compartilha com ele uma certa experiência coletiva, como uma refeição em grupo, tal como fez pela primeira vez em Untitled (free), em 1992, em uma galeria de Nova York, onde o trabalho (ou o labor?) consistiu em servir arroz e curry tailandês às pessoas, que foram imediatamente consumidos.

Pós-produção, escreve Nicolas Bourriaud, é uma expressão oriunda do mundo dos serviços e da reciclagem, posta em prática pelas figuras gêmeas do DJ e do programador. Pensar a arte nesse registro significa dar forma estética a práticas que se desdobram a partir da apropriação, do rea-dy-made, ressignificando o universo das coisas já existentes, ao invés de se lançar à produção (ou fabricação) de objetos novos. Claramente, há aqui uma tentativa crítica de se evitar “a armadilha da reificação” que poderia resultar da produção de objetos, procurando-se, ao invés disso, “romper a lógica do espetáculo”, restituindo idealmente aos participantes do trabalho de arte o próprio “mundo como experiência a ser vivida”[31]. Assim, contrapondo-se ao mito construtivista (e materialista) da faktura, do “autor como produtor[32]”, os trabalhos de arte identificados à pós-produção incentivam a pirataria, a colagem-remontagem e a ironia, desdobrando contemporaneamente o pressuposto duchampiano de que o consumo também é um modo de produção. Temos aí, inegavelmente, uma bela maneira de se pensar o consumo em uma chave avessa à do consumismo capitalista. Essa é a baliza que sustenta a possibilidade de enxergarmos uma brecha construtiva no drama contemporâneo apontado por Hannah Arendt sessenta anos atrás, sem recair na celebração hippie-tecnológica da aldeia global.

  1. Ver Mike Davis, “Planeta de favelas: a involução urbana e o proletariado informal”, in: Emir Sader (org.),

    Contragolpes: seleção de artigos da New Left Review, São Paulo: Boitempo, 2006, p. 192.

  2. Lewis Mumford, A cidade na história, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 9.
  3. Aristóteles, A política, São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 87-8.
  4. Jürgen Habermas apud Otília B. F. Arantes, O lugar da arquitetura depois dos modernos, São Paulo: Edusp, 1993, pp. 117-8.
  5. Paul Virilio, O espaço crítico, Rio de Janeiro: Editora 34, 1993, p. 21.
  6. Ver Rem Koolhaas, “A cidade genérica”, in: Rem Koolhaas, Três textos sobre a cidade, São Paulo: Gustavo Gili, 2016, p. 33.
  7. Ver, por exemplo, Vittorio Gregotti, Architettura e postmetropoli, Torino: Einaudi, 2014; e Massimo Cacciari, “A cidade-território (ou a pós-metrópole)”, in: Massimo Cacciari, A cidade, São Paulo: Gustavo Gili, 2010.
  8. Giulio Carlo Argan, História da arte como história da cidade, São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 21s.
  9. Lorenzo Mammì, “Prefácio à edição brasileira”, in: Giulio Carlo Argan, História da arte italiana, São Paulo: Cosac Naify, 2003, p. 13.
  10. Ver Gordon Childe, O que aconteceu na história, São Paulo: Círculo do Livro, 1942, p. 62.
  11. A utilização, por Marx, do termo inorgânico para a terra pode nos parecer estranha se pensarmos numa concepção estrita de terra, de solo, como natureza, portanto, como fonte de organicidade. No entanto, na construção marxista, o termo designa propriedade, relação com a terra, em que a preexistência do solo, em relação ao homem que dele dispõe, se constitui nessa relação como prolongamento objetivo de sua subjetividade orgânica.
  12. G. Childe, op. cit., p. 63.
  13. Marx ressalta que a troca é o agente principal que individualiza o homem, destacando-o do grupo de pertencimento. “Torna supérfluo o caráter gregário e o dissolve.” Cf. Karl Marx, Formações econômicas pré-capitalistas, São Paulo: Paz e Terra, 1981, p. 90.
  14. G. Childe, op. cit., p. 93.
  15. Ibidem, p. 93.
  16. Max Weber assinala que, para muitas cidades do Oriente Próximo, a necessidade de regular o curso das águas, portanto, o estabelecimento de uma política hidráulica, deu origem a uma burocracia real voltada para as construções, da qual derivou uma ampla burocratização de toda a administração. Isso possibilitou ao rei tomar em sua própria administração o regime do exército, “oficial”, equipado e sustentado pelos armazéns reais. Cf. Max Weber, “La dominación no legítima (tipologia de las ciudades)”, Economia y sociedad, México: Fondo de Cultura Económica, 1984, p. 974.
  17. “Muita coisa da cidade estava latente ou mesmo visivelmente presente na aldeia: contudo, esta existia como o óvulo não fertilizado e não como o embrião em desenvolvimento; na verdade foi preciso que todo um conjunto de cromossomos complementares de um pai viesse desencadear os novos processos de diferenciação e complexo desenvolvimento cultural.” Cf. L. Mumford, op. cit., p. 28.
  18. Segundo Hannah Arendt, a combinação de lei e de uma espécie de muro é evidente num fragmento de Heráclito: “o povo deve lutar pela lei como por um muro”. Ver Hannah Arendt, A condição humana, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 199s, p. 73 (ver nota 61).
  19. Richard Sennett, O artífice, Rio de Janeiro: Record, 2009, p. 12.
  20. Jean-Pierre Vernant, Mito e pensamento entre os gregos, São Paulo: Difel, 1973, p. 210.
  21. M. Cacciari, op. cit., p. 3s.
  22. Marshall McLuhan, The Gutenberg galaxy, Toronto: University of Toronto Press, 1962.
  23. Ver, a propósito, Garrett Hardin, “The tragedy of the commons”, Science, nº 162, 1968, pp. 1243-48.
  24. Ver Michael Hardt; Antonio Negri, Bem-estar comum, Rio de Janeiro: Record, 2016; e David Harvey, “A criação dos bens comuns urbanos”, in: David Harvey, Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana, São Paulo: Martins, 2014.
  25. Com efeito, Sennett é sensivelmente mais materialista do que Arendt, para quem o mundo da materialidade, das coisas fabricadas, estava sempre sujeito ao domínio da política. Influenciado por ela, Sennett escreve a sua trilogia para, ao mesmo tempo, realizar um acerto de contas com sua mestra.
  26. Eduardo Viveiros de Castro, “Temos que criar um outro conceito de criação”, in: Renato Sztutman (org.), Eduardo Viveiros de Castro, Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 172.
  27. Ver Nelson Brissac Peixoto, “Informe: urbanismo e arte nas megacidades”, in: Nelson Brissac Peixoto,

    Paisagens urbanas, São Paulo: Editora Senac, 2003.

  28. Ver Martí Peran, Post-it city: ciudades ocasionales, Barcelona: Centre de Cultura Contemporània de Bar- celona, 2008; e Francesca Ferguson, Make_Shift City: Renegotiating the Urban Commons, Berlin: Jovis Verlag, 2014.
  29. A palavra ativismo provém de ação. Fica sugerido aqui, desde esse ponto de vista, que a primazia histórica do faber parece ser atacada, hoje, por uma combinação inquietante – e não prevista por Hannah Arendt – entre novas formas de labor e de ação.
  30. Informações retiradas da pesquisa feita para a exposição “Detroit: ponto morto?”, realizada na 10a Bienal de Arquitetura de São Paulo, em 2013, no Centro Cultural São Paulo. A Bienal teve curadoria geral minha e curadoria adjunta de Ana Luiza Nobre e Ligia Nobre. A exposição referida teve pesquisa de Francesco P. Bosch, Laura Belik e Marina Portolano.
  31. Nicolas Bourriaud, Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo, São Paulo: Martins, 2009, p. 32.
  32. Referência à famosa conferência de Walter Benjamin no Instituto para o Estudo do Fascismo em Paris, em 27 de abril de 1934.

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