2017

Mal-estar na temporalidade: o ser sem o tempo

por Olgária Chain Féres Matos

Resumo

É preciso compreender as mutações contemporâneas do tempo, com sua transformação de qualitativo em quantitativo, espacialização da duração, perda da experiência e da qualidade dialética do vivido. Na época de sua aceleração e contração, o tempo reflete-se na constituição das subjetividades modernas, na constituição de personalidades desengajadas, pois juramento e promessa diziam respeito ao tempo longo e à longa duração. Em suas Passagens, Walter Benjamin analisa, em fragmentos e citações, o tempo homogêneo e vazio que inviabiliza criar ou reconhecer valores, de modo a constituir uma patologia da experiência axiológica e da liberdade.

Da akedia grega à acídia medieval, da melancolia barroca ao tédio baudelairiano, dá-se o confisco da dimensão do futuro, com a instauração da Langeweile, isto é, a monotonia vinculada à repetição no processo produtivo (de um mesmo gesto, como o do trabalhador diante da máquina), na produção em massa (circulação de produtos padronizados), no consumo anômico, no capitalismo que não satisfaz necessidades nem desejos, mas os multiplica ao infinito.

Cultura do medo e do pânico, a modernidade substitui o tema metafísico das incertezas da vida e da história pelo culto da insegurança. O capitalismo é, para Benjamin, o permanente “estado de exceção”, já que se alimenta da obsolescência na produção e da insegurança jurídica nas vidas política e social. Procedendo a uma heurística do medo, a teoria crítica benjaminiana revela a identidade contemporânea da economia e do tempo, da política e do mercado, tempo fetichizado preenchido por esportes radicais, terrorismos, guerras, obesidade mórbida, anorexia, todos os descontentes da civilização.


SPLEEN E IDEAL

Para tratar das transformações sociais e culturais do capitalismo, Benjamin as compreende segundo uma “teologia do inferno”, seguindo Baudelaire, para quem a modernidade é a “queda de Deus”. Não se trata de cisões de dois mundos – céu e inferno –, pois esta separação é consequência da cultura dualista da qual Deus é o criador: bem e mal, matéria e espírito, corpo e alma, Deus e Satã. Neste sentido Baudelaire anota: “A Teologia. Em que é que consiste a queda? Se é a unidade feita dualidade, então foi Deus quem caiu. Ou, posto em outros termos, não será a criação a própria queda de Deus?[1]”.

Colocando-se acima da cissiparidade, responsável pelo tédio que aflige o mundo moderno, o Poeta e o “dândi revolucionário” respondem ao “decreto das potências supremas”, seu dever é denunciar a falsidade dos valores sobre os quais essa vida se funda. Operando por antíteses, Baude- laire propõe: “a lei dos contrastes […] governa a ordem moral e a ordem física (physique)[2]”, por isso há, no homem, “duas postulações simultâneas, “uma em direção a Deus, outra a Satã[3]”. E no Poeta, dois sentimentos contraditórios, “um de horror e outro de exaltação pela vida[4]”, que são a um só tempo “sonho e consciência”, “spleen e ideal”. Na senda de Baudelaire, Benjamin reconhece no capitalismo triunfante um torpor mítico que se abateu sobre o século, o Capital do qual Paris é a capital, é sonho em estado de vigília. Para compreendê-lo, Benjamin reúne o cenário político seiscentista do seu Drama barroco alemão do século xvnn às arcadas de Paris e às Passagens, indicando seu ponto de encontro: “comum a ambos os temas: teologia do inferno. Alegoria, publicidade, tipos: mártir, tirano – prostituta, especulador”. Mundo dos duplos invertidos – o tirano que é mártir, o mártir tirano, a prostituta é especulador, o explorado, explorador. Universo dos paradoxos baudelairianos, à modernidade falta um “princípio de razão suficiente”, segundo a fórmula leibniziana de que tudo tem fundamento, “nihil est sine ratione”.

Com efeito, entre os séculos XVI e XVII, o Tempo moderno significou o fim do cosmos fechado grego e da transcendência medieval, com o advento do universo infinito[5]. Assim, a physis grega, que possuía suas próprias razões imanentes de vir a ser e se transformar, de crescer e desaparecer, era o princípio governado pela “medida prudente e sábia”. A representação antiga de um cosmos finito fazia da natureza norma e limite, a harmonia em que residem leis de funcionamento do mundo e do homem. Ordem estruturante e perfeita, a physis não concorre com os humanos, sua sacralidade preservada por desconhecerem qualquer desejo de ultrapassagem da permanência imutável das coisas. O infinito, ao contrário da “bela Totalidade”, era o ápeiron, o “indefinido”, o inacabado. Na Física, por exemplo, Aristóteles observava ser o infinito imperfeito; o finito, o terminado, o acabado, completo[6]. Desse modo, o que as filosofias do progresso denominaram civilizações tradicionais refere-se a sua defesa, através de um tempo circular, necessário, com respeito à história. Quanto ao tempo meta-histórico da Idade Média, os acontecimentos se inscreviam na história da salvação, e, por isso, consistiu em um período litúrgico, ao qual importa o que perdura e não o que passa. Se a compreensão religiosa grega e escatológica cristã dos fins últimos da vida e do universo – em que são limitados os horizontes de expectativa – o futuro vinculando-se ao passado – não previnem essas sociedades de disfunções e conflitos, elas não apresentam, porém, um mal-estar próprio à modernidade: “o tédio e o vazio de sentido não parecem ter sido um problema maior para essas sociedades[7]”. O tédio é contemporâneo da filosofia do progresso, do pensamento que baniu milagres da Bíblia, mas também, em consequência das transformações culturais e da visão de mundo mecanicista de estilo cartesiano, desvalorizou as coisas criadas, silenciando a natura loquax, instituindo o reino de objetos mortos e regras arbitrárias em um mundo sem esperança de salvação. A modernidade, domínio das mercadorias e do capital, estabeleceu uma Ersatz da fé, os milagres morais do processo histórico.

Tomando o traumatismo da revolução proletária de 1848 em Paris e a repressão de Napoleão nnn, a modernidade evoca crueldades cometidas e tormentos sofridos, no contexto das terríveis circunstâncias de vida que reinavam em Paris e na França: “Paris, o inferno dos anjos, o paraíso dos demônios[8]”. As condições de trabalho e a descrição dos massacres dos insurretos fazem de Dante uma presença infalível, a metáfora do inferno ampliando o lugar antes circunscrito à existência operária em geral. E, depois de junho, as aproximações com o Terror da Revolução de 1789 e com a “Noite de São Bartolomeu dos operários parisienses” foram correntes. Referindo-se à Paris de Napoleão nnn e à de Haussmann, Benjamin cita Paul-Ernest de Rattier:

A verdadeira Paris é naturalmente uma cidade escura, lamacenta, mal- cheirosa, confinada em suas ruas estreitas […], um formigueiro de becos, de ruas sem saída, de alamedas misteriosas, de labirintos que levam você até a casa do diabo; uma cidade em que os tetos pontiagu- dos de casas sombrias se reúnem perto das nuvens, disputando com você o pouco de azul que o céu nórdico dá de esmola à grande capital. A verdadeira Paris é cheia de pátios de milagres, dormitórios a três centavos por noite, de seres inimagináveis e fantasmagorias humanas […] Ali, numa nuvem de vapor de amoníaco […] E, em camas que não foram arrumadas desde a criação do mundo, repousam lado a lado centenas e milhares de saltimbancos, vendedores de fósforos, tocadores de acordeão, corcundas, cegos, mancos; anões e aleijados, homens com o nariz devorado em brigas; homens-borracha, palhaços envelhecidos, engolidores de espadas, malabaristas que equilibram um pau-de-sebo entre os dentes […] Crianças de quatro pernas, gigantes bascos ou ou- tros tipos, o pequeno Polegar em sua vigésima encarnação […]; esque- letos vivos, homens transparentes feitos de luz […], cuja voz debilitada pode ser escutada por um ouvido atento […]; orangotangos com inte- ligência humana; monstros que falam francês[9].

A iminência de sublevações se expressa em fórmulas ameaçadoras, em panfletos indicando que, assim que o povo saísse de seu inferno, seria o inferno dos afortunados: “O século XIX tende a pensar o movimento histórico com categorias teológico-morais, e uma de suas ideias fixas é o Mal[10]”. Mesmo Marx e Engels, que evitavam moralizar, partilharam o maniqueísmo, Marx apresentando os “plebeus” como mártires de uma burguesia ensandecida, de sua guarda móvel – “sanguinários cães da ordem”. Por um lado, o egoísmo dos dominantes, a injustiça social, a “de- pravação dos privilégios”; de outro, a inveja dos pobres, nas palavras de Thiers, ou “a inquietude de espírito”, nas de Tocqueville. Porque Paris – em 1789, 1830, 1848 e 1871 – inaugura a era do Capital e das barricadas, ela é o arquétipo da modernidade[11], é o tempo do inferno, das revoluções e das contrarrevoluções, e a redenção, antes teológica, se fará agora nos eventos temporais e pelo surgimento de uma nova personagem: o herói revolucionário.

Esse período assiste à oposição entre irmãos inimigos, Caim e Abel, à construção do martírio, em favor de Caim, com referência a Robespierre, “esse Caim da fraternidade[12]”. Aqui os antecedentes da noção de luta de classes e a justificativa moral da violência nos termos de Caim, pois, embora tenha cometido um assassinato, ele foi injustamente desfavorecido por Deus. A partir de então, Marx compreenderá a cisão da sociedade em campos irreconciliáveis, ou entre capital e trabalho. O ideal da fraterni- dade, presente nos frontões de fevereiro de 1848, é assim denunciado por Marx: “A fraternité, a fraternidade das classes antagônicas, uma explorada pela outra, esta fraternité, proclamada em fevereiro, inscrita em letras garrafais nos frontões de Paris, sobre cada prisão, sobre cada caserna – a sua expressão verdadeira, autêntica, prosaica, é a guerra civil, a guerra civil em sua forma mais terrível, a guerra entre o trabalho e o capital. Essa fraternidade flamejava diante de todas as janelas de Paris na noite de 25 de junho, quando a Paris da burguesia iluminava-se ao passo que a Paris do proletariado ardia, sangrava, gemia[13]”. Esse período, a que o historiador Maurice Agulhon denominou “aprendizado da República”, polarizou, como proclamado por Marx, o antagonismo entre as classes, circunscritas em papéis estritamente econômicos, a moral como moral de uma classe, as leis como leis de uma classe, segundo a oposição amigo/ inimigo. Citando Marx, que chama a revolução de “nosso bom amigo, nosso Robin Hood, a velha toupeira que sabe trabalhar tão rapidamente sob a terra”, Benjamin anota:

Na Idade Média havia na Alemanha um tribunal secreto, a Femgericht, para vingar os desmandos dos poderosos. Quando se via um sinal ver- melho em uma casa, aquilo significava que seu proprietário caíra nas garras do Femgericht. Hoje há em todas as casas da Europa uma mis- teriosa cruz vermelha. A própria história é o juiz – e quem executa a sentença é o proletariado[14].

As lutas operárias de fevereiro – a conquista dos “três oitos” (“oito horas de trabalho, oito horas de descanso, oito horas de sono”, bem como o “direito ao trabalho”) – resultaram, no mês de junho, em sangue, de que a literatura da época, em particular a de Baudelaire, testemunha o horror. A repressão de junho de 1848 conclui-se na inércia do proletariado e da burguesia, no “despotismo do tédio[15]”. Em seu poema “Ao leitor”, expondo-se aos demônios para melhor apreender suas causas, Baudelaire denuncia o sonho de destruição do mundo:

Na almofada do Mal é Satã Trismegisto/ Quem docemente nosso es- pírito consola,/ […] É o diabo que nos move e até nos manuseia!/ Dia após dia, para o inferno caminhamos,/ Sem medo algum, dentro da treva que nauseia […]/ Em nosso crânio um povo de demônios cresce […]/ Em meio às hienas, às serpentes, aos chacais/ Aos símios, escor- piões, abutres e panteras,/ Aos monstros ululantes e às viscosas feras […]/ Um há mais feio, mais iníquo, mais imundo/ Sem grandes gestos ou sequer lançar um grito,/ Da Terra, por prazer, faria um só detrito/ E num bocejo imenso engoliria o mundo./ É o Tédio! […] Tu o conheces, leitor, aos monstros delicado;/ – Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão.

A natureza mortífera do tédio das Flores do mal resulta no dandismo da indiferença dos Projéteis em face da degradação que a modernidade atesta em seu imobilismo: “Confesso que o que mais me mortifica nes- ses espetáculos [Baudelaire analisa aqui uma das pinturas de batalha de Horace Vernet] não é a profusão de ferimentos, a abundância hedionda de membros mutilados, mas, sobretudo, a imobilidade na violência e a espantosa e fria máscara de um furor paralisado[16]”. Antes disso, no “Salão” de 1846 anotara, pensando também em seu padrasto, o general Aupick, que Vernet, por ser um militar que pretende praticar a pintura, só consegue borrar pinceladas militares: “O sr. Horace Vernet é um militar que faz pintura. Eu odeio essa arte improvisada ao rufar do tambor, essas telas borradas num galope, essa pintura fabricada com tiros de pistola, assim como odeio o exército e as forças armadas, e tudo que carrega armas barulhentas para um lugar pacífico. Essa imensa popularidade que, aliás, não durará mais tempo que a guerra, e diminuirá à medida que os povos tiverem outras alegrias – essa popularidade, repito, essa vox populi, vox Dei, é para mim uma opressão[17]”. Essa “imobilidade no mal” é a do tempo dominado pelo tédio, um dos avatares do inferno, sentimento de prisão no espaço em huis clos e em um tempo estagnado, como no fragmento “Sintomas de ruínas”:

Fendas, rachaduras. Umidade proveniente de um reservatório situado perto do céu. – Como alertar as pessoas, as nações? Uma torre. – Labirin- to. Nunca consegui sair […]. Calculo, mentalmente […] se uma tão prodi- giosa massa, de pedras, mármores, estátuas, paredes que vão se chocar umas contra as outras, serão infectadas por essa multidão de cérebros, de carnes humanas e de ossadas trituradas. Vejo coisas tão terríveis em sonho que gostaria algumas vezes de não mais dormir[18].

“Eternidade negativa”, esse tempo é doentio, é um labirinto cheio de cadáveres. Ruas, arcadas e escadarias constituem uma babel espacial, em que o “assombro do espaço é o assombro da privação do espaço”. Refletindo sobre o labirinto, Benjamin contrapõe a “rua” ao antigo “caminho”: “Ambos são completamente diferentes no que diz respeito a sua natureza mitológica. O caminho traz consigo os terrores da errância. Um reflexo deles deve ter recaído sobre os líderes dos povos nômades. Ainda hoje, nas voltas e decisões incalculáveis dos caminhos, todo caminhante solitário sente o poder que as antigas diretrizes exerciam sobre as hordas errantes. Entretanto, quem percorre uma rua parece não precisar de uma mão que o aconselhe e guie. Não é na errância que o homem sucumbe à rua; ele é submetido, ao contrário, pela faixa de asfalto, monótona e fascinante, que se desenrola diante dele. A síntese desses dois terrores, no entanto – a errância monótona –, é representada pelo labirinto”, prisão em que a infinidade do espaço coincide com seu fechamento. Fantasmagoria do espaço e de privação do espaço, o labirinto identifica-se com a fonte de todas as perversidades e, também, de ânsia por novidades, no labirinto do consumo. A produção em série das mercadorias, a monotonia da multiplicação ao infinito do Mesmo, o medo pânico da deriva entre prateleiras e vitrines das galerias e lojas de departamentos, dissimulam-se nas peque- nas variações nos protótipos de maneira a dissimular o sentimento de angústia e induzir à compra, para manter o circuito em funcionamento. Esse período é o do crescimento do proletariado e do capital especulativo[19], a produção de mercadorias em série afetando o devir temporal. Por isso Benjamin afirma que, na modernidade, mesmo os acontecimentos históricos se repetem como artigos em série no labirinto do consumo[20]. Período “cinzento pintado de cinzento” – drama farsesco em que tudo deve mudar para permanecer igual –, Marx o concebe, no Dezoito Brumário, como repetição histórica: “história sem acontecimentos; desenvolvimentos cuja única força motriz parece ser o calendário, cansativo pela repetição constante das mesmas tensões e das mesmas distensões”. O capitalismo realiza revoluções permanentes no modo de produção, arquiva formas de vida e de trabalho, desenraizando os homens de seus hábitos e valores e criando Langeweile e Ennui[21]. Embora a modernidade seja, para Baudelaire, tédio – “infortúnio medíocre” que derrota todo desejo de ação –, este não aniquila, no spleenático, “anseios espirituais”, “ambições tenebrosamente recalcadas”, “Volúpia”. Neste sentido, Baudelaire se refere a “Mulheres de Argel” de Delacroix, apreendendo nelas a vida vegetativa no harém, vida de espera e tédio[22]. São “mulheres doentes”, “doentias”, cuja beleza interior provém desta “tensão dos nervos”, de sua “dor moral”.

O tédio é, conforme se diz, um sentimento aristocrático que tensiona spleen e ideal, realidade prosaica e transcendência utópica, passado (spleen) e futuro (ideal). Aqui o pascalianismo de Baudelaire: “do caráter duplo e contraditório da natureza humana”, escreve Poulet, “destaca-se, pois, no pensamento de Baudelaire, a concepção de uma beleza que, também ela, tem uma dupla natureza e um duplo rosto: uma natureza permanente e uma transitória, uma face de grandeza e uma de miséria. E, em um mesmo movimento, descobre-se a possibilidade de viver em um tempo que não seria nem o tempo da eternidade dos estados paradisíacos nem o tempo infeliz dos estados infernais; mas um tempo duplo que, na infelicidade, conteria a promessa de felicidade, que do feio faria surgir a beleza[23]. Já a monotonia caracteriza as massas. Inapelavelmente patológica, ela é tempo imóvel que não passa. Dominados por ela, não se é capaz de reconhecer ou criar valores. Tempo esvaziado de significações, é tão monótono quanto o gesto repetitivo do trabalhador junto à máquina. O capitalismo contemporâneo herda da filosofia e da literatura do século xnx a exclamação de Gautier, “antes a barbárie que o tédio”. A cultura contemporânea combinou os dois: “Guerras, guerras sem nenhum interesse / O tédio das guerras de cem anos[24]”.

O tempo da monotonia recebe algo dos anacoretas dos desertos de Alexandria e da acídia medieval que, a partir do século IV, caracteriza um estado moral de indiferença, desânimo e apatia do coração, temidos como sinais do demônio. O demônio do meio-dia (daemon meridianus), de todos o mais ardiloso, é o que surpreende monges em plena luz diurna, dando-lhes a impressão de um sol imóvel e de um dia insuportavelmente longo. Diferenciando-se da acídia – pecado mortal porque o demônio faz com que o religioso, em seu recolhimento, venha a recusar o lugar em que se encontra e a vida que tem –, o tédio e a monotonia não constituem apenas um fenômeno subjetivo e individual, mas da história social moderna e da cultura. Se em fevereiro de 1848 Baudelaire encontrava-se nas barricadas militantes, depois de junho seguiram-se destruição e apatia da sociedade. Acentuando a duplicidade antitética de suas Flores do mal, Baudelaire, como notou Benjamin, “via a Revolução dos dois lados”, dentro e fora da burguesia. Apoiado na visão pascaliana do homo duplex, afasta-se da glorificação do proletariado e da luta entre as classes. Deslocando as litanias do “povo sempre sofredor”, para as de Satã, o “senhor dos disfarces”, aquele que tem “um duplo rosto”, “figura da marginalidade”, “deus deposto”, “príncipe do exílio”, “Deus traído pela sorte”, “Príncipe e protetor dos exilados e proscritos”, Baudelaire concebe a reversibilidade das forças: “Ormuz e Arimã, vós sois o mesmo”. Carrasco e vítima confundidos, entre o povo e o tirano há sempre uma “furiosa reciprocidade”. Em meio à carnificina das forças policiais defensoras das classes abastadas, os vencedores também têm seus supliciados, seus deputados, generais e bispos “que tombaram em nome da ordem”. No arquivo “Movimento social” Benjamin cita um episódio da insurreição de junho de 1848:

[…] viam-se mulheres jogando óleo fervente ou água escaldante nos soldados, aos berros e aos gritos. Em alguns pontos davam aos insur- gentes uma aguardente misturada com diversos ingredientes, que os excitava até a loucura […]. Algumas mulheres cortavam os órgãos ge-nitais de vários soldados da guarda aprisionados; sabe-se que um insur- gente vestido com roupas femininas decapitou vários oficiais prisionei- ros […]. Viam-se cabeças de soldados espetadas em lanças plantadas sobre as barricadas […]. Muitos insurgentes fizeram uso de balas que não podiam mais ser retiradas dos ferimentos, porque tinham um ara- me que as atravessava de um lado a outro. Por detrás de várias barri- cadas havia bombas de pressão que projetavam ácido sulfúrico contra os soldados que atacavam. Seria impossível relatar todas as atrocidades diabólicas praticadas por ambos os lados[25].

Século das “festas sangrentas das revoluções”, Baudelaire se diz “phy- siquement dépolitiqué”. Assim, no poema em prosa de 1864, que torna ultrapassadas as litanias de Satã de 1853, Satã responde ao interlocutor que lhe pede “notícias de Deus”, “com uma indiferença nuançada por uma certa tristeza”: “nós nos cumprimentamos quando nos encontramos, mas como dois velhos cavalheiros em quem uma polidez inata não conseguiria apagar completamente a lembrança de antigos rancores”.

Essa Paris prosaica, dominada pelo tédio, é a da degradação temporal e de seus valores, como em O cisne, cujos versos falam de uma Andrômaca troiana e da “imensa majestade” de sua dor passada, agora convertida na silhueta de uma negra tísica”, expressão baudelairiana da modernidade[26]. E, na “Negação de São Pedro”, desenvolve a “metafísica da provocação”, em um mundo em que “a ação não é irmã do sonho”. “Espanquemos os pobres”, “O mal vidraceiro”, “O Bolo” exprimem menos sua “histeria” que satanismo e dandismo, a maneira baudelairiana de escapar ao status quo, ao realismo político: “Se alguma vez recuperar o vigor e a energia que já possuí”, escreve Baudelaire a sua mãe, “então desabafarei minha cólera através de livros horripilantes. Quero incitar toda a raça humana contra mim. Seria uma volúpia que me compensaria por tudo[27]”. Recusando a empatia filantrópica e patriarcal com os misérables, Baudelaire descarta também a filosofia do progresso, advertindo seus burgueses a não menosprezarem os pobres, superestimando-se a si próprios: “ainda quando se torna simbolicamente algoz, ele permanece (de modo satânico, é claro) um iluminista[28]”. “Senhor das antíteses[29]”, Baudelaire as imprime nos múltiplos sentidos de suas Flores do mal, na época para a qual “flores” eram o “bem”, evocando, simultaneamente, mal moral e doença crônica – o tédio.

A “nova Paris”, a da batalha de junho e do estado de sítio consecutivo, a Paris de 1851, “foi muitas vezes descrita como uma necrópole […], uma cidade de vida aparente[30]”. Essa paisagem de coisas mortas e tempo estagnado aparece em “Quarto de casal[31]”, onde reina o Tempo mecânico e obsedante dos ponteiros dos relógios, seus minutos e segundos: “o Tempo agora reina como soberano […] e retornou todo o seu cortejo demoníaco de Lembranças, Pesares, de Espasmos, de Terrores, de Angústias, de Pesa- delos, de Cóleras e de Neuroses[32]”. A modernidade é “queda satânica” que conduz a intermináveis recaídas de Sísifo, é fluxo de instantes estáticos e sequências mórbidas, é sono letárgico e retorno da violência mítica: “o tédio”, escreve Benjamin, “é o lado externo dos acontecimentos inconscientes[33]”, é o retorno do reprimido: o Mal. O homo duplex em um mundo em que “diminuem os rastros do pecado original”, que “vai acabar” pelo “aviltamento dos corações”, bem como as carnificinas, tudo inviabiliza aceitar a ideia de que os movimentos sociais podem ser dramáticos mas no fim das contas seguem adiante porque a história tem sentido e finalidade. O diagnóstico baudelairiano do moderno é satânico, não é marxista, é o dos duplos em tensão: “Tu que, mesmo ao leproso e ao pária, se preciso,/ Ensinas por amor o amor do Paraíso”. É assim que Baudelaire, segundo Desjardins, “aliou a sensibilidade do Marquês de Sade às doutrinas de Jansenius[34]”. Baudelaire, como um Pascal, entende que a natureza inteira participa do pecado original, da mesma forma que Sade convida, por náusea e derrisão, a rivalizar com ela. E, como Jansenius, “quer se jogar por terra como o culpado que suplica a graça”. De onde atitudes contraditórias, mártir e carrasco em cada homem, vítima e sacrificador. Por isso, Baudelaire não adere ao ideário marxista, evolucionista e posi- tivista do progresso, e em “Espanquemos os pobres!” não se limita a dar ouvidos às insinuações de seus demônios internos; transforma-as em atos imaginários, resguardando-se de acrescer à revolta dos pobres um discurso ideológico – o que levaria Brecht a considerar que Baudelaire tinha “abjurado suas ideias revolucionárias” e “apunhalado o movimento operário pelas costas”. Baudelaire, o “parteiro dândi do movimento revolucionário dos pobres”, não adere ao comunismo de tipo marxista, a ele preferindo Proudhon e seus lemas satânicos – “A propriedade é o roubo”, “Deus, o grande perverso”, mas sobretudo Proudhon é aquele que se atém à “discussão” e não “às barricadas”. O que é bem diferente de se ter tornado um porta-voz do “despotismo imperial[35]”.

O ENNUI SEM IDEAL: TEMPO E TRABALHO

Para Benjamin, como para Baudelaire, evoca a eternidade, o tédio, mesclando o arcaico e o moderno, Sísifo, as Danaides e o Capital, o barril das Danaides, sempre cheio e sempre vazio. Figuras do tempo reificado e morto do trabalho alienado, repetitivo, automático, absurdo, cuja expressão cultural apresenta um déficit criador devido à inflação de mercadorias e informações. Se cada vez mais se dispõe de informações, isso não significa ter informações a mais, porque o tempo para transformá-las em compreensão e experiência não aumenta proporcionalmente, o que prejudica a vida intelectual e afetiva: “a saturação cognitiva”, escreve Bernard Stiegler, “induz a uma perda de cognição, isto é, a uma perda de conhecimento, a um desregramento do espírito […], a saturação afetiva engendra um desafeto generalizado[36]”.

No consumo contemporâneo, o indivíduo consome, simultaneamente, coisas e seu tempo de vida. Porque tudo se equivale, escolher é indiferente, dissolvendo-se o sentido do preferível ou desejável. Em suas Lições de ética, Kant observa que o tédio se vincula a um desenvolvimento cultural, que difere de épocas em que se mantinha uma alternância entre necessidades e satisfação de carências: “Gozar a vida”, escreve Kant, “não preenche o tempo, mas deixa-o vazio; ora, diante deste tempo vazio, a alma humana experimenta o horror, a irritação, o desânimo. Claro, o tempo presente pode nos parecer preenchido enquanto for presente, mas na lembrança ele é vazio, pois, quando não se fez nada da vida, a não ser esbanjar o tempo, e se volta o olhar para a vida passada, não se compreende como ela pôde tão depressa chegar a seu fim[37]. Se, no tédio, o tempo passado, que não foi experienciado mas perdido, parece ter transcorrido velozmente, também o tempo breve se manifesta intoleravelmente longo, com o que desaparece a diferença entre curta e longa duração, plasmando o Sujeito em um perpétuo presente.

Fundadas, de início, na subjetividade livre e no Cogito, as sociedades modernas eram “conscientes de ter um passado e de desejar um futuro”, definindo-se por um projeto: “A consciência histórica era a de nos criarmos, de nos inventarmos no tempo. Antidestino, ele é tomada de consciência de uma liberdade, a de querer, agir e de transformar-se no tempo[38]”, no qual se constrói um mundo comum. O homem devia contar apenas consigo mesmo, endossando cada vez mais o papel antes reservado a Deus. Desse modo – e sobretudo a partir da revolução copernicana operada por Kant –, o mundo será constituído pelo Sujeito, Sujeito que compensa o vazio do mundo que se seguiu à ausência de Deus através do sentido que lhe confere o Eu transcendental. E, na senda do subjetivismo, a cultura romântica completa o individualismo filosófico que se desenvolveu durante o século XVIII. Hegel, um dos primeiros a considerar o subjetivismo a doença mais característica de nosso tempo, o vincula à revolução copernicana, quando não mais a consciência reflexiva satelizava os objetos do mundo, mas estes passaram a girar em torno do Sujeito. Sujeito abstrato, lembra Hegel, ele não basta para a constituição do sentido das coisas, pois “tudo o que não é o Eu e tudo o que existe pelo Eu podem igualmente ser destruídos pelo Eu”. Enquanto nos atemos a estas formas inteiramente vazias, tendo sua origem no absoluto do Eu abstrato, nada aparece tendo um valor próprio, mas somente aquele inspirado pela subjetividade do Eu[39]. Como os valores dependem do Eu, sua importância não se prende às próprias coisas e serão, pois, vazios, sem distinção entre o significativo e o insignificante – com o que tudo se torna apenas interessante e, em consequência, igualmente tedioso[40]. Se Hegel indica o abandono no mundo moderno dos quadros de sua vida anterior, é para mostrar seu resultado: a insustentável leveza das coisas e seu duplo, o tédio, ambos, ligeireza e tédio ingressando bruscamente e de forma violenta na existência, constituindo a novidade do moderno – um transcorrer do tempo independentemente de objetivos preestabelecidos ou causas finais.

Nesta época – na qual a Substância ou a matéria se torna Sujeito e a necessidade se quer liberdade (como na ideologia da autorregulação do mercado) –, a consciência ligeira e entediada não é, como queria Hegel, sintoma passageiro e intermediário mórbido entre duas formas de solidez e segurança, a passagem do substancialismo católico da parousia (a manifestação do divino) para a liberdade pós-protestante (o livre exame da razão), pois esta se torna potencialmente ilimitada: desejos a cada dia renovados, inconstância permanente, prazeres efêmeros sempre, reduzidos a nada por uma nova necessidade. Neste sentido, o tédio é a impossibilidade de projeto ou simplesmente de qualquer expectativa a longo prazo.

Nesta nova situação, em que nada é efetivamente proibido, mas ao mesmo tempo nada é inteiramente possível, no indiscernimento na ordem de importância das coisas, dá-se uma clausura do futuro, desmotivação para escolhas e deliberações, abrindo-se o campo da monotonia, de tal modo que se configura a patologia do presente como perda do sentido da vida em comum dos homens[41]. Vive-se uma inflação das possibilidades de significados e, portanto, a impossibilidade em reconhecê-los. Nas palavras de Leder:

O imaginário da sociedade contemporânea encontra-se condicionado […] por uma extrema saturação […]. É precisamente a tensão entre a intuição da presença da satisfação e a realidade de seu afastamento e inacessibilidade o que determina a situação da consciência contempo- rânea […]. Um exemplo pode ser encontrado na sociedade polonesa, na dicotomia entre sociedade da penúria material e uma sociedade de consumo que ocorreu há quinze anos e transformou totalmente o imaginário social. A mudança da valorização e principalmente da sa- turação do campo simbólico foi muito mais acelerada que a melhora da qualidade de vida. Paradoxalmente, nos anos 1960, depois da de- sestalinização, quando praticamente a totalidade dos poloneses vivia em profunda penúria, mas ao mesmo tempo seu imaginário estava relativamente pouco saturado e também o mundo se regulava pelo vetor do progresso, a percepção da falta era pequena, e cada aquisição material era um símbolo valorizado positivamente. Nos anos 1990, a transformação econômica melhorou muito a situação material da maioria da população, mas, ao mesmo tempo, forçou a integração do campo simbólico dos poloneses no espaço da civilização global. O sentimento de falta e de frustração tornou-se generalizado em todas as camadas da sociedade[42].

“Perturbação mental”, em uma formulação de Kant, é “perda do senso comum (sensus communis) e o aparecimento da singularidade lógica (sensus privatus)[43]”, o “acosmismo[44]” e sua dupla consequência, moral e patológica. Moral: não há mais valores universais ou universalizáveis, reconhecidos por todos em um espaço comum, tampouco uma cidadania mundial e cosmopolita. Patológica: patologia da liberdade, é confinamento no tempo presente. Esse “presente perpétuo” caracteriza-se por uma vivência específica do tempo – ora transbordando mercadorias, ora tempos mortos:

os doentes [escreve Benjamin], testemunhas insubstituíveis de seu tem- po […], têm um conhecimento bem particular do estado da sociedade: neles, o desencadeamento das paixões privadas se transforma, em certa medida, em faro inspirado pela atmosfera na qual seus contemporâ- neos respiram. Mas a área desta reviravolta é a “nervosidade”. Seria importante saber se esta palavra não se tornou uma palavra da moda no Jugendstil[45].

Em todo caso, “os nervos são como fi bras inspiradas que serpenteavam, com estreitamentos recalcitrantes, com sinuosidades febris, à volta do mobiliário e das fachadas[46]”. O intérieur, como Benjamin o compreende em “o intérieur, o flâneur” de suas Passagens, é o salão burguês saturado de enfeites, dourados, espelhos, paredes forradas de tecidos adamascados e com desenhos florais, tapetes, móveis em forma de naves ou de catedrais góticas etc., de onde o “burguês vê o mundo”, com o ilusório sentimento de segurança no mundo do capital – mundo burguês que substitui a questão metafísica das incertezas da vida pelo elogio da insegurança no mercado alienado:

O intérieur do século xnx. O espaço se disfarça, assumindo a roupagem dos estados de ânimo como um ser sedutor. O pequeno-burguês, sa- tisfeito consigo mesmo, deve experimentar algo da sensação de que no aposento ao lado pudessem ter ocorrido tanto a coroação do im- perador Carlos Magno como o assassinato de Henrique nv […]. Ao final, as coisas são apenas manequins, e mesmo os grandes momentos da história universal são apenas roupagens sob as quais elas trocam olhares de conivência com o nada, com o trivial e o banal. Semelhante niilismo é o cerne do aconchego burguês; um estado de espírito que se condensa na embriaguez do haxixe, em satisfações satânicas, em saber satânico, em quietude satânica, mas que assim revela como o in- térieur dessa época é, ele mesmo, um estimulante da embriaguez e do sonho. Aliás, este estado de espírito implica uma aversão contra o espaço aberto, por assim dizer, uraniano, que lança uma nova luz sobre a extravagante arte decorativa dos espaços interiores da época. Viver dentro deles era como ter se enredado numa teia de aranha espessa, urdida por nós mesmos, na qual os acontecimentos do mundo ficam suspensos, esparsos, como corpos de insetos ressecados. Esta é a toca que não queremos abandonar[47].

As guirlandas feéricas desses intérieurs acalmavam, não obstante, os nervos dilacerados pelo progresso, eram como uma promesse de bonheur. Por isso, spleen e “nervosidade” ligavam-se ainda ao Ideal, a neurastenia resguardando suas forças criativas. Quanto à contemporaneidade, a “doença dos nervos” é substituída pelo estresse. Nos anos 1880, o médico norte-americano George Miller Beard[48] denominou “neurastenia” uma nova “doença dos nervos” cuja causa principal era a civilização que exigia cada vez mais desempenho, provocando, pelo constrangimento dos relógios de ponto no trabalho, mas também pelo “ritmo precipitado da época moderna”, “colapsos nervosos”. Em seguida conhecido como estresse, sem a dimensão metafísica do spleen, o fenômeno foi diretamente associado à economia de mercado. Tributário da medicina, de experimentos com hormônios injetados em animais de laboratório que aceleravam secreções levando à morte, o estresse foi detectado em indivíduos durante a “grande depressão” de 1929 nos EUA. Do ponto de vista da cultura em que a tecnologia não apenas predomina como se antecipa com respeito à política e à economia, ela tem por paradigma da aceleração a locomotiva e novos terrores, identificados por Benjamin no viajante que conhece

[…] todas as provações e perigos da viagem pela estrada de ferro […]; conhece, a perder de vista, o suceder [das imagens] deste deslocamen- to, como os limiares do espaço e do tempo que a viagem transpõe, a começar pelo “tarde demais” daquilo que ele deixa atrás de si, arqué- tipo do pesar, até a solidão no compartimento, o medo de perder a baldeação, o horror que inspira o saguão desconhecido em que o trem se precipita[49].

Utilizadas a partir de 1939, as palavras “estresse” e “exaustão” indicam uma degradação da experiência do tempo, ausência de pensamento, “consciência sonolenta” do presente, perda de seu sentido como projeto e futuro, confinado, então, no presente. No âmbito do trabalho, o não senso se expressa no “princípio do desempenho[50]”, segundo uma mutação dos atributos do trabalho. Com efeito, se das formas tradicionais de organização do trabalho resultavam bens e serviços, no moderno ele não mais se conecta a um produto concreto, tornando-se cada vez mais abstrato e desterritorializado. Para Vincent de Gaulejac também a relação entre produtividade e salário não é evidente, dependendo cada vez mais de desempenhos coletivos; a comunidade de profissionais não é mais portadora de laços estáveis constituídos no longo prazo; não promove mais identidades sociais, de ofício e grupos de trabalho; não é mais um elemento de solidariedade, proteção e mediação entre o indivíduo e a empresa. Também o sistema de avaliação individualizada de desempenho reforça a competição em lugar da cooperação; o estabelecimento de uma organização que designa a cada um seu lugar e tarefa é substituído pela virtualidade polifuncional, ninguém mais sabendo exatamente quem faz o quê, desaparecendo a coerência do trabalho e a estabilidade do conjunto das atividades; e, sobretudo, o valor atribuído às realizações de cada um não se prende mais à qualidade de uma obra – a do objeto realizado, da atividade concreta –, mas a um conjunto de princípios que é preciso interiorizar. Por último, Gaulejac indica os efeitos de não senso[51] quando se pretende valorizar competências extrinsecamente, segundo as expec- tativas de clientes ou do mercado.

A perda do sentido do trabalho e a experiência do absurdo encontram-se, em particular, nas obras literárias, romances e contos, como os de Kaf ka, na identificação entre o homem e sua profissão; sendo absurda, ela revela o absurdo das profissões em geral: “fui empregado como espancador: portanto espanco”, declara o personagem de O processo, forçado, por culpa involuntária de K., a bater sem parar em dois funcionários. Situação que se repetiria nas respostas dadas em juízo dos funcionários dos campos de concentração nazistas, resposta daquele que não é responsável porque não lhe foi conferida responsabilidade alguma. Neste caso, ser recompensado não corresponde a um mérito, deve-se, antes, ao acaso, com o que se desqualifica o trabalhador ao gratificá-lo[52]. E, se o trabalho é alienado, o mesmo se passa com o consumo. Realização perversa do “esquematismo” kantiano – a faculdade do conhecimento que, em Kant, promovia a passagem dos dados esparsos da sensação à construção de um objeto no espaço a seu sentido em uma nova figuração, organizado na maquinaria lógica do entendimento – a organização dos dados esparsos (as mercadorias) migra para o mercado: “O esquematismo kantiano”, escrevem Horkheimer e Adorno, “a indústria o retomou para seus próprios fins. Esta implica o esquematismo como um serviço ao cliente […]. Para o consumidor, nada resta para classificar que não tenha já sido englobado pelo esquematismo da produção[53]”. O tédio crônico corresponde a esta carência de sentido pessoal na produção e no consumo, uma vez que objetos e informações nos chegam com um código pré-dado, inviabilizando a busca de um sentido próprio de compreensão.

A produção em excesso de mercadorias com respeito a necessidades, o consumo se realizando pelas necessidades do mercado e não do consumidor, corresponde a um estado de exasperação das carências reais da sociedade e a uma nova modalidade de aturdimento da mente, consequência do capitalismo contemporâneo e da cultura que ele engendra. O excedente material transfere-se para o plano imaginário e para a consciên- cia daqueles que vivem em estado de penúria extrema, desorganizando os elementos capazes de estruturar o campo simbólico:

O próprio conceito de justiça, quando colocado sob a égide da parti- cipação do sujeito de direito nas vantagens do sistema de propriedade […], designa aqui a tarefa, jamais realizada plenamente, que consiste em liberar da situação precária aqueles que são manifestamente pobres e pauperizados, abrindo, também a eles, acesso ao mundo da abundân- cia, [o que supõe] um aprendizado de uma vida coberta de mimos[54].

No descompasso entre a abundância material e o desconforto moral, se inscreve a preparação para vencer o tédio crônico porque “os modernos devem renunciar ao mandato fictício da necessidade[55]”. Se, como ensina a psicanálise, a falta produz desejos, do excesso decorrem patologias, uma vez abandonada a ética protestante em nome do espírito capitalista. Se tempo é consumo, não é busca de sentido e subjetividade, mas quantidade e heteronomia impostas pela temporalidade do capitalismo tardio – o que só aprofunda a crise do sentido da atividade: a desagregação do sentido da vida em comum arrisca subsumir o homem nesta alienação particular denominada “acosmismo”, que faz cada um sentir-se estranho no mundo, o não pertencimento de quem se percebe supérfluo[56].

Modernização significa, assim, a passagem de um mundo com regras conhecidas a um mundo instável e incerto: no trabalho, o trabalhador encontra-se sob pressão permanente das empresas nas quais ele se sente “custando muito caro”. Na perda da identidade profissional e da autoestima encontra-se uma situação traumática, uma vez que não apenas se perde um posto de trabalho para, talvez, encontrar um outro como – e antes de tudo – toda uma vida pode ser desfeita:

[…] advêm sentimentos de desvalorização de si, ruptura de redes de solidariedade, perda de elementos constitutivos da identidade profissional, culpabilidade, vergonha, introversão, dilaceramento da comuni- dade de trabalho que sustentava a existência […]. A perda de confiança no futuro – […] que se anuncia incompreensível – produz uma pro- funda ansiedade a que respondem a angústia e o medo do abandono. Angústias arcaicas […] que podem ter efeitos devastadores[57].

Diferem capitalismo de produção e capitalismo de consumo. No primeiro, o “homem só se sentia em casa quando fora do trabalho, e quando no trabalho, estava fora de si[58]”. Milan Kundera, comparando o trabalho no mundo contemporâneo ao da Idade Média, reconhece no presente o tédio, pois os ofícios de outrora, em parte, não poderiam ser concebidos sem um apego apaixonado: os camponeses por sua terra; o carpinteiro era o mágico das belas mesas; os sapateiros conhecendo de cor os pés de todos os aldeões; os guardas-florestais; os jardineiros. O sentido da vida estava em suas oficinas e campos, cada ofício criara sua própria maneira de ser: “Um médico pensava diferentemente de um camponês, um militar tinha um outro comportamento com respeito a um professor”. No capitalismo baseado na produção industrial e no estoque de bens que revelavam o longo prazo, o gesto do trabalhador é repetitivo, o imaginário social, padronizado pela produção em série de mercadorias e desejos. Não obstante, fora do trabalho encontrava-se consigo mesmo. Pode-se dizer que, na época da sociedade de massa e do consumo – de coisas, de imagens –, a escolha individual recai no que Nietzsche denominava “espírito gregário”, no mimetismo organizado, na mimésis de apropriação ou na “rivalidade mimética[59]”; malgrado a produção cada vez mais diversificada de um mesmo produto, visando “indivíduos” que se reconheceriam nas pequenas diferenças de um objeto a outro, predominam a desindividualização psíquica e a proletarização generalizada, pois o consumo não supõe um savoir-vivre. Antes indispensável, a “arte de viver” era conhecimento de si, a techné tou biou, sendo ascese e autoelaboração das possibilidades e limites na realização de desejos: “Nenhuma técnica, nenhuma habilidade profissional pode ser adquirida sem exercício; também não se pode aprender a arte de viver – a techné tou biou – sem uma askési que deve ser compreendida como uma exercitação de si por si mesmo. Aí estava um dos princípios tradicionais a que, desde sempre, pitagóricos, socráticos e cínicos deram uma grande importância. Parece que, entre todas as formas tomadas por este treino (que comportava abstinência, memorização, exame de consciência, meditações, silêncio e escuta do outro), a escrita – o fato de escrever para si e para o outro – se pôs a desempenhar tardiamente um papel considerável[60]”. Na contemporaneidade, ao contrário, os indivíduos não são mais sequer engrenagens na máquina de produção, mas compõem um mercado para o consumo, de tal forma que a modelação dos comportamentos visando o mercado implica uma destruição programada do savoir-vivre. Este saber referia-se, na tradição grega, às “almas noéticas”, racionais, isto é, políticas, pois inclinadas à philia. E, assim como o operário submetido à máquina perde seu savoir-faire, reduzindo-se à condição de proletário, da mesma forma o consumidor, padronizado em seus comportamentos de consumo pela fabricação artificial de desejos, perde seu savoir-vivre. Na sociedade do consumo, quando o homem está fora do trabalho, tampouco se encontra junto a si. A “escalada da insignificância” resulta em uma lógica do desengajamento em relação a um mundo compartilhado e também a si mesmo, na obsolescência de valores como solidariedade, responsabilidade, fidelidade e respeito, o mercado induzindo ao consumo permanente, constrangendo à pressa, à rapidez e à aceleração, acentuando a superficialidade nos vínculos (na medida em que os sentimentos exigem a duração para desenvolverem-se), produzindo a “pobreza interior[61]”. Não se engajar significa “não se empenhar na criação de valores espirituais[62]”.

LANGEWEILE : MONOTONIA E TECNOLOGIA

Ao tratar do espírito do capitalismo e a Beruf, que é profissão de fé e vocação para ganhar dinheiro, Weber lembra que um operário, assim que recebia um aumento de salário, passava a trabalhar menos, escolhia “levar a vida”: “o ganho suplementar o atraía menos que a redução de seu trabalho[63]”. Este trabalhador, embora não disponível ao que os gregos denominavam skolé[64] e os romanos, otium[65], estava predisposto a tomar o tempo como seu bem próprio, pois, ainda que o trabalhador estivesse vol- tado para a subsistência, ele se concebia como alguém que tem, antes de tudo, uma existência. Não se trata de um repouso medido pelo trabalho, mas de um tempo para viver, livre de todo negotium. Este, como ethos do capitalismo, viria a se tornar “vocação” para o negócio, o atarefamento para a sobrevivência tornado modelo da vida. Se é verdade que só o clero desfrutava propriamente do ócio, à distância de toda necessidade alienada no negotium, o operário, se bem que obcecado pela carência, participava, de alguma forma, da esfera do otium enquanto ser que crê nos rituais do culto de que se encarregam os sacerdotes. O capitalismo pré-industrial como “espírito” decorrente da Reforma já preparava, assim, sua meta- morfose, a crença transformada em “confiança”, melhor dizendo, em “crédito” que se obtém pela confiança, pois esta é calculável e mede o tempo da ocupação, do “negócio”. Como anotou Benjamin Franklin: “Aquele que é conhecido por pagar pontualmente e na data prometida pode a qualquer momento e em qualquer circunstância solicitar o dinheiro que seus amigos economizaram […]. Na menor decepção, a bolsa de seu amigo se fechará para você[66]”. Não se trata apenas de respeitar uma regra e não esquecer um dever; o ganho se torna o fim, não mais um meio para satisfazer necessidades materiais.

Não constituindo o desejo de ganhar dinheiro nenhuma natureza humana, o capitalismo promove uma “educação” para recompensas materiais, e uma de suas práticas disciplinares é a pauperização:

Depois do fracasso de um chamado para o “sentido do lucro” através de altos salários, só restava recorrer ao procedimento inverso: por um rebaixamento do salário, constranger o operário a um trabalho acresci- do a fim de conservar o mesmo ganho […]. Pois o povo não trabalha só porque ele é pobre e enquanto assim o permanecer[67]?

Na sequência virá a condenação da vida sacerdotal e de seus cultos porque, já para Lutero antes de Calvino, otium e práticas religiosas – as técnicas da ascese até então consideradas indispensáveis para a aquisição de uma art-de-vivre – são “coisas do demônio”. No arquivo “Ócio e ociosidade”, Benjamin anota:

Na Grécia antiga o trabalho prático era reprovado e proscrito; embo- ra fosse executado essencialmente por mãos escravas, era condenado principalmente por revelar uma aspiração vulgar por bens terrenos (riqueza); ademais, esta concepção serviu para a difamação do comer- ciante, apresentando-o como servo de Mammon: “Platão prescreve, nas Leis (vnnn, 846), que nenhum cidadão deve exercer profissão mecâni- ca: a palavra banausos, que significa artesão, torna-se sinônimo de desprezível […]; tudo o que é artesanal ou envolve trabalho manual traz vergonha e deforma ao mesmo tempo o corpo e a alma. Em geral, os que exercem tais ofícios […] só se empenham para satisfazer […] ‘o desejo de riqueza, que nos priva de todo tempo de ócio […]’. Aristóteles, por sua vez, opõe aos excessos da crematística [arte de adquirir riquezas] […]. A sabedoria da economia doméstica […]. Assim, o desprezo que se tem pelo artesão estende-se ao comerciante: em relação à vida liberal, ocupada pelo ócio do estudo (skolé, otium), o comércio e os ‘negócios’ (neg-otium, ascolia) não têm, na maioria das vezes, senão um valor negativo”[68].

A operosidade, intensificada a partir da Revolução Francesa, registra todas as energias humanas como mão de obra. Neste sentido, Benjamin cita Lafargue:

O protestantismo […] aboliu os santos no céu a fim de poder suprimir na terra os feriados a eles dedicados. A Revolução de 1789 foi ainda mais longe. A religião reformada havia conservado o domingo; os burgueses revolucionários achavam que um dia de descanso em cada sete era demais, e instituíram, no lugar da semana de sete dias, a dé- cada, para que houvesse um dia de descanso só a cada dez dias. E para enterrar de vez a lembrança dos feriados religiosos […] substituíram no calendário republicano os nomes dos santos pelos nomes de me- tais, plantas e animais[69].

Na sequência, o capitalismo associa-se à eletrificação. Eis por que Benjamin dedica um de seus arquivos de Passagens às relações entre iluminação e trabalho, pois, à maneira dos mercados financeiros, o homem não deve dormir nunca. A modernidade capitalista, do industrialismo à microeletrônica, supõe a plena luz. Dessa forma, com a substituição dos lampiões a gás pela iluminação elétrica em fins do século XIX, “a Via Láctea foi secularizada[70]”. Estas palavras não se referem apenas ao desen- cantamento psíquico e da cultura, mas também ao significado socioeconômico dessa realização: a atividade sem trégua do modo de produção capitalista tornou-a desmedida, não tolerando o tempo noturno – de passividade, repouso e contemplação. Benjamin não hesita em indicar a patologia desse tempo a partir da luz elétrica, considerando o mundo do capital um asilo de cegos e loucos:

Vamos aos fatos. A luz jorrando da eletricidade serviu primeiro para iluminar as galerias subterrâneas das minas; no dia seguinte as praças públicas e as ruas; depois as fábricas, as oficinas, as lojas, os espetá- culos, os quartéis; e, finalmente, as casas de família. Os olhos, em presença desse inimigo radiante, comportaram-se bem, mas pouco a pouco veio o deslumbramento, efêmero no início, depois periódico, e, no fim, persistente. Eis o primeiro resultado. – Compreendo; mas e a loucura dos grandes senhores? – Nossos magnatas das finanças, da indústria, dos grandes negócios, acharam bom […] Dar a volta ao globo em pensamento, enquanto eles próprios permaneciam em repouso […] Para isso, cada um deles pregou, em seu gabinete de trabalho, num canto da escrivaninha, os fios elétricos que ligam suas caixas às colônias da África, da Ásia, da América. Confortavelmente sentado diante da mesa, ele recebe, com um sinal de mão, o relato de seus correspondentes distantes, das agências semeadas pela superfície do globo. Um lhe comunicava, às dez horas da manhã, o naufrágio de um navio milionário […]; um outro, às dez horas e cinco minutos, a falência fulminante da mais sólida casa das duas Américas; um terceiro, às dez horas e dez minutos, a entrada radiante, no porto de Marselha, de um navio carregado com a colheita dos arredores de São Francisco. Tudo isso numa sucessão rápida. Essas pobres cabeças, por mais firmes que fossem, curvavam, como curvariam os ombros de um Hércules do mercado se decidisse carregar dez sacos de trigo em vez de um. Eis o segundo resultado[71].

A economia, em sua forma atual de acumulação (cuja infraestrutura são as nanotecnologias, a microeletrônica e suas inovações), exige a extensão e a intensificação da atividade até os últimos limites físicos e biológicos do indivíduo. Razão pela qual, com a eletrificação, o dia iluminado terá 24 horas, estabelecendo-se o estresse como modo de vida, seja para aqueles ligados a um trabalho, seja para a massa crescente de trabalhadores precários e desempregados. A esse respeito, Anselm Jappe observa:

Aos olhos de qualquer senhor feudal, os managers de hoje, sujeitos ao estresse, mais pareceriam pobres plebeus […]. Os capitalistas, e na for- ma mais pura os da new economy, não representam senão uma forma agravada da miséria geral e do sobretrabalho universal. Um verdadeiro pequeno empresário dos nossos dias orgulha-se mesmo de trabalhar mais do que um proletário inglês do tempo de Charles Dickens[72].

A produtividade intensificada do trabalho, em razão das tecnologias, não resultou em diminuição da jornada laboriosa, mas, devido à “baixa tendencial da taxa de lucro”, o capital responde ampliando seu mercado, pela “proletarização do consumo”, que corresponde a um “proletariado sem qualidades”: “o estágio atual do capitalismo”, escreve Jappe, “caracteriza-se pela ausência de pessoas que valha a pena explorar”[73]. Inúteis na lógica da produção de valor e acréscimo do capital, são as populações convertidas em humanidade supérflua para a contínua criação de mais-valia, de concentração do valor e acréscimo do Capital. Excesso de trabalho e ociosidade se reúnem em uma percepção do tempo na qual não mais se tem tempo – sentimento este presente, também, entre os desempregados[74]. O capitalismo ultraliberal confisca o “espaço da expe- riência” e o “horizonte de expectativas[75]”, o porvir significando “mercados futuros”: “o dinheiro – principal categoria da sociedade capitalista – tem por finalidade seu próprio crescimento, num processo que não pode ser interrompido e se estendeu às regiões infinitas da especulação que cria capital fictício, baseado na expectativa de mais lucros[76]”.

Esse tempo paralisado, do eterno retorno do sempre igual, é a figuração do inferno, é repetição ou espera vazia: “A essência do acontecimento mítico é o retorno. Nele está inscrita, como figura secreta, a inutilidade gravada na testa de alguns heróis do inferno (Tântalo, Sísifo ou as Danai- des) […]. A espera é, de certa forma, o lado interior forrado do tédio (Hebel: o Tédio espera pela morte) […]. Eu chegava primeiro, fui feito para esperar” ( Jean-Jacques Rousseau, Les confessions)[77]. Tempo de angústia, a vida é repetição inútil e preparação para algo que não vai acontecer. Esse tempo patológico, Benjamin o encontra em Kaf ka, em seus romances e contos. Neles, o tempo se cristaliza em imagens estáticas, não havendo nenhum progresso nas ações: “Na verdade o ponteiro de segundos do desespero corre sem cessar e a toda a velocidade em seu relógio, mas o ponteiro dos minutos está quebrado, e o das horas, parado[78]”.

A manifestação do tédio coletivo dá-se na passagem do capitalismo de produção para o do consumo[79], com a “mudança do espírito puritano do trabalho para a fixação liberal no lazer, do espírito da poupança para o crédito, da renúncia ao consumo para tudo já, da glorificação das virtudes do empreendedor para a heroicização das personalidades do esporte e do divertimento[80]”. Sendo assim, a perda do sentido do tempo encontra-se também na hiperatividade, no desemprego ou no subemprego. Pesquisas recentes indicam que a percepção da “falta de tempo” encontra-se, de maneira enfática, entre os desempregados. Com efeito, a exclusão do trabalho e da própria sociedade não permite o afastamento da atmosfera carregada de comunicação do mundo contemporâneo[81]. Institucionalmente organizada, essa temporalidade não é a da experiência, do conhecimento, da felicidade, mas “o atributo mais eminente da dominação[82]”. Consciente da heteronomia, o Maio de 1968 francês eternizou nos muros da cidade a inscrição: “Não mude de emprego, mude o emprego de sua vida”. Por seu irrealismo político, o movimento estudantil pôde efetuar a crítica do presente, transformando uma sociedade em comunidade política utópica, afirmando, simultaneamente, os direitos da autonomia e do indivíduo.

Inscreveu em Nanterre: “É proletário aquele que não tem nenhum poder sobre o emprego de sua vida cotidiana e que sabe disso[83]”.

O tempo na modernidade determina o decréscimo das faculdades criadoras e fantasmáticas, gerando insegurança e medo. Essa atmosfera de fim do mundo encontra-se nas pinturas de Yves Tanguy, especialmente Jour de lenteur (“Dia de lentidão”), de 1937, na incerteza de desertos onde pairam formas inidentificáveis, vazios de vida e de presença humana, impregnados apenas por um tempo que parou, onde há sombras, mutismo e luz que não aquece. L’humeur des temps (“O humor dos tempos”), de 1928, L’extinction des espèces nn (“A extinção das espécies nn”), de 1938, J’avais déjà cet âge que j’ai (“Eu já tinha naquela época a idade que eu tenho”), de 1939, Encore et toujours (“Ainda e sempre”), de 1942, Ce matin (“Esta ma- nhã”), de 1951, Mémoire du matin (“Memória da manhã”), de 1944, evocam a extinção como o reverso da criação, a imobilização, a repetição infinita e sem esperança do Mesmo, no encontro marcado entre o eterno retorno e a desagregação das coisas, entre o que é imutável e o que é lentamente destrutível. Tempo sempiterno, cristalizado e sem saída, cada manhã não é em nada diversa de todas as outras manhãs. Assim, se “muitos viveram”, fica subentendido que “para nada”. “Eu já tinha a idade que eu tenho” manifesta a inutilidade de crescer quando nenhum acontecimento novo está previsto para nós. Quanto ao sol, no céu, sempre fixo no mesmo lugar, torna o tempo imensamente longo, pois o tempo parou de passar. O peso de um dia que não passa, Tanguy o retrata “pelo sol que se detém em seu curso, pelo tédio exasperado, ansioso, infinito […]. Tudo confina em um vazio sideral, que já se comparou ao dia seguinte do apocalipse, aos primeiros tempos depois da explosão da bomba de megatons[84]”. A temporalidade contemporânea produz um tempo que se exprime na ansiedade de “matar o tempo”, oscilando este entre cansaço e exaustão, abulia e “hiperatividade”. Aparentemente diversas, ambas “as atitudes possuem um traço comum: a reificação de si”: “a atividade tornou-se uma variante da passividade e mesmo onde as pessoas se cansam até seu limite […], ela tomou a forma de uma atividade – mas para nada – isto é, uma inatividade[85]”. Porque no tédio o tempo não passa, ele é vazio e monótono, e é preenchido por ativismos e diversas formas de excesso, desde esportes radicais até a obesidade mórbida. Esse horror vacui é um “panteísmo demoníaco” em que a monotonia é um nada que impregna toda a realidade.

Neste âmbito, todas as formas do excesso atestam o desejo de “preencher o tempo”: obesidade mórbida, anorexia, bulimia, terrorismos, guerras, esportes radicais. Poder-se-ia dizer o mesmo do culto das façanhas na Antiguidade grega, no contexto dos jogos pan-helênicos ou guerreiros, que não expressavam equilíbrio e proporção, como o atleta de maratona que ultrapassou seus limites até o esgotamento e a morte. Mas o que caracteriza as competições antigas, ao contrário das modernas,

[…] é que o vencedor, superando todos, não ultrapassa a natureza humana, mas a realiza da maneira mais sublime, aparentando-se aos deuses, conquistando a glória, elevando-se, sempre, um “projeto” com objetivo final, pois guerreiros e esportistas não procuram nenhum ul- trapassamento de si como princípio de suas ações. A agitação perma- nente revela hoje a “desvalorização de todos os valores”, nessa impos- sibilidade de diferenciar o acessório do essencial, tudo parecendo ao mesmo tempo urgente e importante, e por isso devendo realizar-se já. É a cultura da performance e do desempenho, a capacidade de fazer cada vez mais em menos tempo[86].

A monotonia é, pois, a patologia do tempo e da falta de energia e de motivação: “ausência de projeto, ausência de motivação, ausência de comunicação, [a monotonia] é o avesso perfeito das normas de socialização[87]”.

No auge da cultura científica instala-se, por último, a monotonia das revoluções técnicas: “a pálida vida de nossa civilização, monótona como o trilho de uma estrada de ferro”. Monotonia que o aumento crescente das indústrias da cultura atesta em seus espetáculos que são “o mau sonho da sociedade moderna encarcerada, que somente expressa, afinal de contas, seu desejo de dormir[88]”. Se as estradas de ferro representaram velocidade e progresso, a crítica da civilização técnica é crítica do tempo reificado, na mesma medida em que o revolucionário benjaminiano é um ludista do tempo, aquele que interrompe a ideologia do progresso, como na xv tese de “Sobre o conceito de História”:

Na revolução de julho [de 1830] ocorreu um incidente em que essa consciência histórica fez valer os seus direitos. Chegado o anoitecer do primeiro dia de combate, ocorreu que em diversos pontos de Paris, ao mesmo tempo e sem prévio acerto, dispararam-se tiros contra os relógios nas torres. Uma testemunha ocular que deve, talvez, sua adi- vinhação à rima escreveu: Qui le croîrait! On dirait qu’irrités contre l’heure / De nouveaux Josué, au pied de chaque tour / Tiraient sur les cadrans pour arreter le jour[89]

  1. Cf. C. Baudelaire, “Meu coração a nu”, trad. Fernando Guerreiro. Em: Charles Baudelaire, poesia e prosa,

    Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 534.

  2. Cf. “Conselhos aos jovens literatos”, trad. Joana Angélica d’Ávila Melo, op. cit., p. 563.
  3. “Meu coração a nu”, op. cit., p. 529.
  4. “Meu coração a nu”, op. cit., p. 546.
  5. Cf. A. Koyré, Do mundo fechado ao universo infinito, 4a ed., São Paulo: Forense Universitária/Edusp, 2006, será acompanhado na sequência deste trabalho.
  6. Cf. Aristóteles, Physique, trad. H. Carteron, Paris: Les Belles Lettres, s.d.
  7. Lars Svendsen, Petitie philosohie de l ennui, trad. De Hélène Hervieu, Paris: Fayard, 1999, p. 228, nota 66. Embora presente ao longo da história como akedia antiga, acedia medieval, melancolia na Renascença, o tédio e a monotonia como fenômenos sociais são característicos do mundo moderno, do sujeito pri- vado da objetividade da Natureza dos antigos e da transcendência medieval. Cf. O. Matos, “Auf klãrung na Metrópole: Paris e a Via Láctea. Em: W. Benjamin, Passagens, Belo Horizonte: UFMG, 2006, e Anne Larue, L’autre méclancolie: Acedia ou les chambres de l’esprit, Paris: Hermann éditeurs des sciences et des arts, 2001.
  8. Cf. Heine, “Soucies babyloniens”, Poèmes et legendes, oc, tomo 13, Paris: Akademie Verlag/Editions du cNRS, 1978,

    p. 123.

  9. Cf. Benjamin, “As ruas de Paris”, P 4,1, Passagens, op. cit., pp. 564-565.
  10. Dolf Oehler, Dolf, “Bárbaros e Bestas/Monstros, demônios O Inferno/Satã o Mal”. Em: O Velho Mun- do desce aos infernos, trad. José Marcos Macedo, São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 42.
  11. Se para identificar a modernidade capitalista Walter Benjamin volta-se para Paris e não Berlim, sua cidade natal, isto decorre de seu maior poder de engano: ao mesmo tempo em que se estabelece a dominação capitalista e imperial em Paris, há rebeliões e insurreições operárias, lutas contra o colonia- lismo, sedução do capitalismo milionário e democracia, Estado de direito e estado de exceção. Dessa duplicidade fetichizante, Benjamin anota, citando Engels: “Só na França há uma Paris, uma cidade em que a civilização europeia atinge seu máximo esplendor, onde se unem todas as fi bras nervosas da história europeia […], cidade onde a população sabe unir como nenhum outro povo a paixão pelo pra- zer com a paixão pela ação histórica, cujos habitantes sabem viver como o mais refinado epicurista de Atenas e sabem morrer como o mais destemido espartano – Alcebíadas e Leônidas em uma só pessoa; uma cidade que realmente é […] o coração e o cérebro do mundo” (“Movimento Social”, a, 4, 1, pp. 715-716, op. cit.)
  12. Cf. Dolf Oehler, op. cit., p. 80. Também Baudelaire, “Abel et Caïn”, entre outros.
  13. Marx, Die neue Reinishen Zeitung, MEG, vol. v. Horkheimer permanece atento às ambiguidades do con- ceito marxiano de proletariado, “ficção heurística” de Marx: comunidade imaginária, classe inteira- mente histórica e ao mesmo tempo fora da história, classe que não é uma classe porque dissolve todas as classes, ser que realiza os destinos de toda a humanidade. (Cf. Horkheimer, Dämmerung, Fischer Verlag, Frankfurt, 1974. Também Benjamin, afastando-se da letra do pensamento de Marx, aponta algumas dificuldades na conceituação. Em seu arquivo U, das Passagens transcreve uma citação que diferencia Saint-Simon e Marx: “O primeiro amplia de modo mais abrangente possível o número dos explorados, incluindo entre eles até os empresários, uma vez que estes pagam juros a seus credores. Marx, ao contrário, inclui na burguesia todos aqueles que de alguma forma são exploradores, ainda que estes também sejam vítimas de exploração” (“Saint-Simon, Ferrovias”, arquivo U 4,2, op. cit. p. 621).
  14. Cf. Karl Marx, apud W. Benjamin, “Movimento Social. Em: Passagens, op. cit., p. 771.
  15. Cf. D. Oehler, “Morte. Fim do velho mundo”, op. cit., p. 92.
  16. Baudelaire, Salão de 1859. Em Poesia e Prosa, org. Ivo Barroso, trad. Suely Cassal, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 821.
  17. “Do Sr. Horace Vernet”, Salão de 1846, Poesia e Prosa, op. cit., p. 711.
  18. Cf. Baudelaire, “Pequenos poemas em prosa”, apud Benjamin, op. cit. J 44,3, op. cit., p. 353, e ”As Ruas de Paris”, P. 2,1, Passagens, op. cit., p. 560. Georges Poulet, referindo-se a este fragmento de Baudelaire, indica ser ele inspirado nos Carceri de Piranese. Cf. “Piranèse et les poètes romantiques français”, Trois Essais de Psychologie Romantique, Paris: 1966.
  19. Em “Paris, capital do século xnx”, Benjamin escreve que, sob Luís Felipe, Paris tornou-se a “sala de visita onde os banqueiros fazem seus negócios” (Cf. Passagens, op. cit.). Sob Luís Felipe, Paris vive “as mais belas horas da especulação”.
  20. No arquivo N das Passagens, em que Benjamin procede à crítica da noção capitalista de progresso, a situação mortífera do tédio é apresentada a partir da hipótese astronômica da “eternidade pelos astros” de Blanqui, o “eterno retorno” das forças cósmicas de Nietzsche, conceitos ampliados no “eterno retorno do sempre igual” (das Immergleiche). Cf. “Tédio, eterno retorno”, arquivo D, Passagens, op. cit.
  21. A monotonia que impregna a sociedade de massa coincide com o “esquecimento da política” e da descrença com respeito a projetos coletivos, seu esvaziamento resulta em “realismo político” e “de- cisionismo”, ideologias que são ”pseudoteorias do real”, com o que “os espíritos fortes se entregam ao culto da facticidade, esta deusa cruel, acompanhada por um assistente também cruel, a decisão, se se reconhece que a essência da decisão é de focalizar uma única opção e deixar morrer outras alternativas”(Cf. Peter Sloterdijk, Écumes, trad. Olivier Mannoni, Paris: Hachette, 2005, op. cit., p. 618). Atesta-se a crise da democracia representativa, por exemplo, na ineficácia da Lei ou em sua inoperância, como nos casos de abusos de poder (práticas militares e policiais, entre outras), “improbidades administrativas”! etc. Cf. ainda, Olgária Matos, “Auf klärung na Metrópole: Paris e a Via Láctea”. Em: Passagens, op. cit.).
  22. Cf. Baudelaire, Salão de 1857 e também “Volúpia”, em Flores do mal, op. cit.
  23. Cf. Études sur le tempos humain, Paris: Plon, 1950, p. 365.
  24. Ezra Pound, Cantos, The Cantos, Londres: Faber and Faber, 1975. A literatura de Dostoievski a Musil, a filosofia de Schopenhauer e Kierkegaard, Camus e Cioran, passando por Benjamin e Heidegger tematizam o tédio na cultura capitalista, a da produção de mercadorias e de não senso, de “pobreza da experiência”. Como Heidegger, para quem o capitalismo, o bolchevismo e o americanismo são suas expressões: o presente prosaico é o vazio, o tédio, a ambiguidade e a pobreza de verdadeiros acontecimentos. Cf. Ser e Tempo e as análises heideggerianas sobre a inautenticidade, o tédio e a situação existencial daqueles exilados à margem de qualquer sentido na história, jogados na pura facticidade, expostos na nebulosa esfera da mundaneidade. O homem moderno, o do progresso “erigiu em Deus a imagem de sua própria mediocridade”. Cf. Os conceitos fundamentais da metafísica: Mundo, finitude, solidão.
  25. Cf. Passagens, op. cit., a, 2ª, 2.
  26. O recurso baudelairiano aos modelos da Antiguidade clássica (Vênus, Pomona) e aos religiosos me- dievais revelam que o poeta-filósofo desiste do sonho de uma simultaneidade ou sincretismo entre o passado e o presente, como em “A musa doente”, em que se misturam o sangue cristão da musa que circularia como os “numerosos sons das sílabas antigas.” Cf. “A musa doente”, Spleen e Ideal, op. cit.
  27. Cf. Charles Baudelaire, “Lettres à sa Mère”, Correspondance, n, Bibliothèque de la Pléiade, Paris: Gal- limard, 1973, p. 278.
  28. Cf. D. Oehler, op. cit., p. 187.
  29. O “espírito de contradição” é, em Baudelaire, “crítica do presente”, “energias teóricas” da prosa de Bau- delaire, Benjamin escreve: “O mais das vezes Baudelaire expõe opiniões apoditicamente. Discutir não é a sua seara. Ele o evita mesmo quando as evidentes contradições em teses que adota sucessivamente exigiriam um debate. O “Salão de 1846”, ele o dedicou ‘aos burgueses’ […]. Mais tarde, por exemplo em suas investidas contra a escola do bon-sens, encontra para a ‘honnête’ burguesia e para o notário – a figura do respeito no meio burguês – os traços da boêmia mais raivosa. Por volta de 1850 declara que a arte não deve ser separada da utilidade; alguns anos depois defende l’art pour l’art” (Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, trad. José Carlos Barbosa e Hemerson Alves Batista, ed. Brasiliense, 1991, p. 10. O paradoxo opera, na obra de Baudelaire, como um antissistema, pois este é, por definição, o regime das classificações de diferenças assim codificadas. Tampouco aceita o “indiferenciado”, o “sem-sistema” pois consiste em uma “sedução satânica.” (Cf. Exposição Universal de 1855).
  30. D. Oehler, op. cit., p. 102.
  31. Leda Tenório da Motta traduz o fragmento “Chambre double” de Spleen de Paris (Imago, 1995) por “Quarto de casal”, e Aurélio Buarque de Holanda Ferreira escolhe “Quarto Duplo” em Poesia e prosa, op. cit. Ambas sendo igualmente possíveis, “quarto duplo”, nos hotéis, não indica necessariamente “casal”. Nos dois casos, trata-se de um duplo que deveria ser familiar, do acompanhante ou cônjuge, mas que se apresenta estranho e ameaçador, pois o Poeta é incomodado pelo credor que o persegue com o inferno de suas dívidas, no endividamento permanente e continuado que é a alma do sistema capitalista moderno, as determinações econômicas, o mundo externo invadindo as esferas da vida privada e da intimidade. De qualquer forma, “Quarto de casal” resolve melhor a poética filosófica, pois, como lembra Leda Tenório da Motta, Baudelaire é o lírico das “alcovas” e do “secreto”.
  32. Cf. Baudelaire, “Pequenos poemas em prosa”, trad. Aurélio Buarque Ferreira. Em: Poesia e Prosa, op. cit., p. 282.
  33. Passagens, “O tédio, eterno retorno”, o 2ª, 2, p. 146.
  34. Passagens, J, 43,1.
  35. Cf. Oehler, op. cit., p. 395, n. 403.
  36. Cf. B. Stiegler, Mécreance et discrédit – les sociétés incontrolables et les individus désaffectés, Paris: Galilée, 2006, p. 125.
  37. Cf. Leçons d’éthique, Fayard, 1997. No tédio, quando se recua no tempo, ele parece infinitamente curto, enquanto que um tempo plenamente vivido é infinitamente mais longo e assim a vida torna-se estra- nhamente curta na mesma medida em que o tempo torna-se longo, de tal forma que na monotonia ou no tédio profundo desaparece a diferença entre curta e longa duração.
  38. Paul Zawadzki, “Malaise dans la temporalité”. Em Malaise dans la temporalité, org. Paul Zawadzki, Paris: Publications de la Sorbonne, 2002, p. 42.
  39. Hegel, Esthétique, tomo n, Introdução, Paris: Flammarion, 1979, pp. 98-99.
  40. Hegel utiliza a expressão “subjetividade monstruosa” ao referir-se a Fichte. E Adorno, na Dialética ne- gativa, escreve: “Toda a metafísica ocidental, fundada no sujeito, encarcerou o sujeito para a eternidade no seu próprio Eu como punição por sua idolatria”.
  41. Cf. as análises de Bernard Stiegler sobre os levantes incendiários nas periferias francesas em novem- bro de 2005 e sobre o tédio dos jovens nas Cités (conjuntos habitacionais dos subúrbios metropolita- nos): Mécreance et discrédit – La décadence des démocraties industrielles, Paris: Galilée, 2006, entre outros do autor.
  42. Malgorzata Szpakowska, Vouloir e avoir. La conscience en Pologne du temps du changement, Varsóvia, 2203, apud A. Leder, “Introduction à une analyse des transformations de l’intuition du temps dans la culture contemporaine”. Em: Malaise dans la temporalité, org. Paul Zawadzki, Paris: Publications de la Sorbon- ne, 2002.
  43. Kant, Anthropologie du point de vue pragmatique, trad. A. Renaut, Paris: Garnier-Flammarion, 1993, p. 53.
  44. Lembre-se que o “acosmismo” integra a experiência, nos totalitarismos, do “ser supérfluo”, do “ser a mais”, de “estar sobrando”, própria ao mundo da flexibilidade das leis trabalhistas e da terceirização, por um lado, o desemprego estrutural de outro. Para uma reconstituição de suas relações com o “paria” e o “parvenu”. Cf. Eleni Varikas, “Les figures du paria: une exception que éclaire la règle”, revista Tumultes, n. 21-22, nov. 2003.
  45. Jugendstill (modern style, em inglês, art nouveau, na França), significa, em sentido literal, “estilo da juven- tude”. Benjamin refere-se ao estilo arquitetônico e decorativo do final do século xnx e início do século xx, que com seus aplicativos florais de arabescos criava um mundo de fantasia, a nostalgia da vida campestre enlaçando-se, com o ferro ondulado e os cristais coloridos, à vida da metrópole e seus fetiches. Sobre a patologia dos tempos modernos, cf. Benjamin, Passagens, arquivo I, “Intérieurs, flâneur”, “Teoria do conhecimento, teoria do progresso”, op. cit., p. 529.
  46. Benjamin, Écrits autobiographiques, trad. Christophe Jouanlanne e Jean-François Poivier, Paris: Bour- geois, 1994, p. 206.
  47. Benjamin, n 2, 6, Passagens, op. cit., p. 251.
  48. Cf. Nervous Exhaustion, Neurasthenia, apud Lohar Baier, Keine Zeit, Munique: Kunstmann Verlag, 2000,

    p. 147.

  49. Benjamin, “Kriminalromane, auf Reisen”, Frankfurt/M: Suhrkamp, em: GS, IV, I, 1972 a 1989, p. 381.
  50. “Princípio do desempenho” é o conceito marcusiano, apresentado em Eros e civilização, que corresponde à exacerbação do “princípio de realidade”, no desaparecimento da “racionalidade” da renúncia. Considere-se, aqui, o cristianismo e a condenação da gula, pecado capital adequado às condições ma- teriais da Idade Média, período em que a sobrevivência dependia de recursos escassos. O princípio de realidade – de adaptação ao mundo circundante, de renúncia a um quantum de prazer, de dedicação ao trabalho, de deserotização do corpo requerido como instrumento das máquinas etc. – transforma-se em “princípio de desempenho”, em uma época em que não mais são necessários tais sacrifícios; não obstante a performance se impõe, ampliando o trabalho alienado e a extensão de sua lógica a todos os domínios da vida, do lazer às artes. Na “sociedade da abundância”, o princípio de desempenho é acompanhado de “mais repressão” ou “dessublimação repressiva”, o que não era permitido passando a obrigatório, como o “erotismo programado” da sexualidade.
  51. Cf. V. Gaulejac, La société malade de la gestion. O autor refere-se ao último Natal na Inglaterra em que os Correios premiaram uma funcionária que vendeu grande número de um certo tipo de envelopes, o que não correspondia a nenhum desempenho especial, mas ao acaso.
  52. “On ne sais plus à quel sens se vouer”, em Les sentiments et la politique, Paris: L’Harmattan, 2007.
  53. Horkheimer e Adorno, Dialética do esclarecimento, trad. Guido de Almeida, São Paulo: Zahar, 1985.
  54. Peter Sloterdijk observa que a produção do excesso corresponde ao advento da “sociedade da abun- dância”, malgrado a persistência da retórica da era da penúria – o que se atesta pela proliferação de antenas parabólicas nas periferias, de consumo de eletrodomésticos e a ocupação do espaço urbano com equipamentos para a venda de alimentação nas cidades, entre outros: “o esbanjamento, à primei- ra vista escandaloso, do dinheiro dos fundos públicos devem ser interpretados, neste contexto, como uma participação do Estado à euforia da abundância”. Esta circunstância foi detectada por Marcuse, cuja obra Eros e civilização continha as primeiras divergências com respeito a Freud, na direção de uma cultura não repressiva, no apagamento da diferença entre princípio de prazer e principio de realidade. Para além da obra A teoria da classe ociosa, de Thorstein Veblen, o mundo urbano atual se converte em um sistema que perverte as pessoas de tanto “mimá-las”.
  55. Ibidem.
  56. Uma de suas grandes expressões encontra-se na pintura de De Chirico e Hopper. Hopper, a desolação de suas paisagens e personagens, solidão lunar em que a luz do sol não aquece, seres estáticos sem comunicação na metrópole pós-industrial. Hannah Arendt indica a diferença entre solitude e loneliness. Se, na primeira, o recolhimento é solidão e reencontro com a intimidade de si, a segunda é isolamento e desolação, é ausência de um mundo comum compartilhado. Cf. “Nighthawks”, de 1942, de Hopper e “Six O’Clock”, entre outros. Nesses intérieurs como os art nouveaux, tapetes e mobiliário desempenhando o papel do inconsciente, em que Id e Super-Ego as associam, confinando o espaço do Eu, agora estranho a si mesmo, em estado de absoluta desolação, em espaços que se estreitam, aprisionam e asfixiam. (Cf. M. Canevacci, Power Point apresentado no xvnn Encontro Internacional de Cinema de Salvador/Bahia, Teatro Castro Alves. Os manequins e ponteiros de relógio parados antes do “tempo”, em De Chirico, como em “A melancolia da partida”, onde o pêndulo marca 13h28. Ruas desertas, praças vazias, pórticos, torres, janelas com venezianas fechadas. Trens parados, estátuas, sombras imóveis, geometria metafísica, com seus retângulos, trapézios; quadrados com bandeiras onde não sopra o vento. A pintura de De Chirico realiza reflexões pictóricas sobre a acídia, suas telas atualizam os terrores medievais do deserto – essas “fornalhas de Deus”, provação do fogo divino. Suas personagens e paisagens são os avatares dos “demônios do meio-dia” no mundo urbano.
  57. Vincent de Gaujelac, em: La Société malade de la gestion, Paris: Seuil, 2005, p. 164.
  58. Cf Marx, Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, São Paulo : Martin Claret, 2001.
  59. René Girard entende por “rivalidade mimética” o desejo de objetos desejados ou apropriados por um outro, vindo este a ser constituído, ao mesmo tempo, como modelo e obstáculo à realização do desejo, no esquecimento do objeto desejado, deslocando-se o desejo do objeto para aquele que supostamente o detém, do que resulta um estado de guerra latente ou manifesto. Cf. Politiques de Caïn: en dialogue avec René Girard, org. Domenica Mazzu, Paris: Desclée de Brouwer, 2004.
  60. Cf. M. Foucault, “L’écriture de soi”, Dits et écrits nn, (1976-1988), Paris: Gallimard, 2001, p. 1236.
  61. É interessante lembrar os ensaios de Walter Benjamin “O Narrador” e “Experiência e pobreza”, nos quais o filósofo reflete sobre o mundo moderno, onde não é mais possível dar ou ouvir conselhos, onde não se pode desenvolver uma filosofia prática como aquela contida nas narrativas tradicionais, com suas fábulas, parábolas e provérbios que auxiliavam os homens a enfrentar infortúnio e boa-sorte.
  62. Cf. Miguel Abensour, posfácio a Quelques réflexions sur la philosophie de l’hitlérisme, de Emmanuel Levinas, Paris: Rivages, 1997, p. 5.
  63. Cf. Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, trad. Ana F. Bastos e Luís Leitão, Lisboa: Presença, 1990, p. 61.
  64. Sobre ela Joaquim Brasil Fontes observa: “Skolé é a palavra com que os gregos significavam as coisas a que dedicamos nosso tempo, ou aquilo que merece o emprego do tempo. De onde, por meio de uma evolução notável, o sentido de ‘estudo’, encontrado em Platão. (Leis, 820 c). Skolé é, ainda, aplicada a discussões científicas, por oposição aos jogos ou brincadeiras) […]. Skholé […] significa também ‘lazer’, ‘tranquilidade’, ‘tempo livre’, e, às vezes, ‘preguiça’. O advérbio skholêi indicava, para os gregos, o que dizem para nós as expressões: ‘com vagar e ócio’, ‘lentamente’; ‘à sua vontade’ . O escoliasta seria, afinal de contas, um flâneur cerimoniosos? Ele caminha em prenant son temps, às margens dos textos, e pára, de vez em quando, oferecendo algumas flores, bonitas mas inúteis – puros pleonasmos –, ao leitor, culto por definição. Os comentários ou escólia são, assim, uma espécie de luxo, um capricho (do aluno atencioso), uma brincadeira (de professor aplicado), um jogo às margens dos discursos; um convite para que o leitor se transforme também ele em flâneur” (Cf. Eros, tecelão de mitos, São Paulo: Iluminuras, 2003, pp. 29-30.
  65. Ócio é “cuidado”, é prática livre da preocupação com a subsistência imediata e material, tempo livre da necessidade e das carências.
  66. Benjamin Franklin, apud Weber, op. cit., p. 45.
  67. Idem, op. cit., pp. 61-62.
  68. Cf. Benjamin, “Ócio e ociosidade”. Em Passagens, op. cit., M I, I, op. cit, p. 839.
  69. “Die Christliche Liebestätigkeit”, arquivo G 2, 2, “A bolsa de valores, História econômica”

    Passagens, op. cit., p. 819.

  70. Cf. Benjamin, Passagens, op.cit, “arquivo J”, 64,4, op. cit.
  71. Cf., “Tipos de iluminação”, T 3,1, Passagens, op. cit., p. 610.
  72. Cf. A. Jappe., As aventuras da mercadoria, trad. José Miranda Justo, Lisboa: Antígona, 2006.
  73. A. Jappe, op. cit., p. 155.
  74. Cf. Noëlle Bürge, Minima sociaux et conditions salariales, Paris: Fayard, 2000.
  75. “Que se considere a mobilização dos jovens estudantes em novembro de 2006 contra a Lei do Pri- meiro Emprego (cPE) na França, a revelar que o jovem não quer apenas encontrar um job, mas sim desenvolver um trabalho, não procuram somente salário, mas motivação. Pois “a condenação de uma sociedade a uma vida sem saberes, quer dizer, sem sabor, lança a todos em um mundo insípido, economicamente, simbolicamente e libidinalmente miserável”. Cf. Stiegler, B, Mécreance…, op. cit., p. 93.
  76. A. Guerreiro, “A alma da mercadoria”, Jornal Expresso, 22 jul. 2006.
  77. Cf. Benjamin, “O tédio, eterno retorno”, Passagens, op. cit., pp. 159-158.
  78. Günther Anders, Kafka: pró e contra, São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 48. Porque o tempo é o da repeti- ção do sempre igual, Kaf ka inverte as determinações de causa e efeito. Em O processo, acusação vazia do início arrastará o acusado para a culpa. Em América, seu personagem recebe a carta que o expulsa da casa do tio, mas esta, como em seguida se verificará, já estava escrita antes de ocorrer a causa de sua expulsão.
  79. Sobre a diferença entre o capitalismo em sua fase industrial e a pós-industrial, no abandono da noção de durabilidade e de estoque e sua substituição pelo descartável e pela obsolescência programada, cf. Harvey, D., A condição pós-moderna, Loyola, 2002.
  80. Cf. P. Sloterdijk, Écumes, op. cit., pp. 752-753.
  81. Como no filme de Denys Arcand, Joyeux Calvaire, o clochard, como os empresários mais atarefados, não tem tempo algum.
  82. Elias Canetti, Masse et puissance, trad. R. Rovini, Paris, 1966, p. 422.
  83. Est proletaire celui qui n’a aucun pouvoir sur l’emploi de sa vie quotidienne et qui le sait.” Cf. Les murs ont la parole: mai 68, org. Julien Besançon, Paris: Eric Koehler, 2007
  84. Cf. Anne Larue, L’Autre mélancolie: Acedia, ou les chambres de l’esprit, Paris: Hermann, Paris, 2001, pp. 192-193.
  85. Günther Anders, L’obsolescence de l’homme, trad. Cristophe David, Paris: Ed. De L’encyclopédie des Nuisances/Ivrea, 2002, p. 247. O autor refere-se às personagens de Esperando Godot, de Beckett. Assim, Estragon e Vladimir, que não fazem absolutamente nada, representam, na peça, milhões de homens ativos.
  86. Cf. Nicole Aubert, “De l’accomplissement de soi à l’excès de soi: dépassement de soi et rapport à la finitude”. Em: Les sentiments et la politique, Paris: L’Harmattan, 2007.
  87. Cf. A. Ehrenberg, La fatigue d’être soi. Depression et société, Paris: Odile Jacob, 1998, p. 187.
  88. Guy Debord, La société du spectacle, Paris: Gallimard, 1992, § 21.
  89. Quem acreditaria! Dir-se-ia que irritados contra o dia/ Novos Josués ao pé de cada via/ Atiraram nos quadrantes para parar o dia (tradução própria). Cf. Tese n xv, “Über den Begriff der Geschichte, em: Illuminationen, Frankfurt/M: Suhrkamp, 1981, p. 259.

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