2017

Meios e fins

por Marcelo Coelho

Resumo

Em 1880 Engels escreveu “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, obra em que mesmo elogiando os primeiros teóricos socialistas do século XVIII, procura dar contornos claros para a implantação do sistema segundo a sua teoria e a de Marx. Sabemos que para Engels, o caminho passava necessariamente pela revolução. Em 1899, Eduard Bernstein escreveu Os pressupostos do socialismo, contestando algumas predições centrais feitas por Engels. Bernstein observou, por exemplo, que a classe proletária alemã não estava empobrecendo, que a classe média não desaparecera e que a fusão das empresas em trustes não suprimiu a abertura de pequenas novas empresas. Bernstein foi, afinal, contrário à revolução – muito embora considerasse necessária a manutenção da luta de classes – e, por essa razão é considerado um revisionista do marxismo. Quando Bernstein pronunciou-se, houve uma reação contrária dos marxistas que eram ortodoxos na época, dentre eles, Kautsky, o mesmo que, na década de 1930, viria a criticar fortemente a Revolução Russa, conforme foi levada a cabo por Lênin e depois por Stalin. Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, o bordão ostensivamente repetido dizia: morreram as utopias e não há nada mais a se fazer a não ser se conformar com o estado das coisas. Esse bordão foi reiterado principalmente por aqueles que jamais tiveram utopias. A esquerda sofreu com o golpe incontestável que representou o triunfo do capitalismo e do neoliberalismo, mas sua resposta foi diferente: o desaparecimento de utopias do tipo teleológicas não a levaria a aceitar o caminho da resignação. Para aquele momento histórico, a frase de Bernstein “o movimento é tudo, o objetivo é nada” é esclarecida por intermédio do filósofo Philip Kichter quando ele introduziu a ideia de “progresso escapando de um ponto” em substituição à noção de “progresso em direção a um ponto”. A rejeição de um destino certo e final do socialismo não implica, portanto, em atitude passiva e num abandono total de suas ideias. Immanuel Wallerstein previu a derrocada da União Soviética no início dos anos 1980, bem como o desmantelamento posterior do capitalismo. Essa última previsão foi contrariada pelo sociólogo Michael Mann. Este anteviu um futuro “aborrecido” do capitalismo, com tendência de crescimento baixo, porém persistente, com exceção de países emergentes que ainda têm espaço para crescer por alguns anos em taxas de até 8%, como recentemente aconteceu com a Índia e a China. O capitalismo é colonizador, transformando tudo o que está ao seu alcance em mercadoria, mas – e talvez quanto a isso Engels e Bernstein estivessem certos –, ainda existe espaço para resistência, como, por exemplo, por meio de pressões para o uso de madeiras certificadas, através de instrumentos de marketing assumindo o “papel cidadão”, pressões para que as empresas assumam uma função pública ou a coibição de doações por parte de corporações privadas para campanhas eleitorais. Esses não deixam de ser esforços de contracolonização dos temas de interesse público sobre os privados.


[1]

Duas proposições se repetem cotidianamente quando se fala em utopia. A primeira é a de que temos necessidade de alguma para viver; a segunda assevera que as utopias não existem mais – que, com a queda do muro de Berlim, toda perspectiva nesse sentido se perdeu.

Minha intenção é contestar, ou pelo menos relativizar, essas duas proposições. De um lado, pretendo apresentar uma crítica à perspectiva utópica. De outro, quero combater a ideia de que as utopias desapareceram.

Talvez caiba esclarecer, desde o início, que adoto a perspectiva de uma esquerda não utópica, ou, se quisermos, reformista e social-democrática, avessa à ideia de uma transformação radical, que se voltasse à redenção completa da sociedade.

Antes de expor o pensamento de alguns representantes dessa tradição política – por longo tempo desprezada em favor de atitudes consideradas como mais “consequentes”–, e de apontar as possibilidades que traz consigo, será necessário examinar com alguma paciência as conotações de que o termo utopia acabou por se cercar.

A palavra combina ao mesmo tempo uma associação negativa – “fantasia, projeto irrealizável” – e uma positiva – “aspiração por um mundo melhor, desejo de transformação”. Não teríamos maiores problemas a partir dessa distinção, bastando em tese esclarecer em que sentido estivéssemos utilizando o termo. Se entendermos que utopia consiste apenas na projeção de um estado de coisas melhor do que o atual, certamente não haveria nada de muito polêmico ou de contestável nesse conceito. Se, contudo, tomarmos utopia no sentido negativo, como sinônimo de algo impossível, tudo dependerá de que projeto, de que ideal estamos falando. Um mundo de paz cosmopolita, ao mesmo tempo respeitoso de identidades locais, em que estivessem garantidos tanto os direitos humanos quanto a manutenção de costumes religiosos tradicionais, sem necessidade de nenhuma força estatal que reprimisse a eclosão de conflitos entre uma coisa e outra, poderia sem dúvida ser considerado utópico, no sentido de irrealizável. Podemos pensar, entretanto, em outras aspirações, igualmente importantes, ainda que localizadas: o fim da fome no mundo, a humanização da polícia, o fim das prisões, o acesso de todos a uma moradia confortável – e estaremos diante de ideais não necessariamente utópicos, nem contraditórios entre si, embora longínquos.

Avançando um passo na análise, observe-se que, no seu sentido negativo, o de algo equivalente a um plano fantasioso, o conceito de utopia acaba recebendo sua inflexão em forma de adjetivo. Acabar com as guerras no mundo? Isso seria utópico. Já no seu sentido positivo, como projeto de uma sociedade melhor, o termo manteria sua forma substantivada: “Tenho uma única utopia: a de que toda criança brasileira pudesse contar com educação de qualidade”.

Outro aspecto pode ser identificado a partir desta análise dos usos coloquiais do termo. O sentido negativo, adjetivado, de utopia tende a evocar seu uso em referência a uma terceira pessoa – “Fulano quer passagens de ônibus gratuitas para todos; trata-se de um utopista”. Já o sentido positivo, substantivado, de utopia acaba sendo usado na primeira pessoa. “Eis nossa utopia: a de que homens e mulheres dividam igualmente as tarefas domésticas”. Poucas pessoas se confessam utopistas, mas não aparentam ter problemas ao dizer que têm uma utopia.

Tendo em mente tais diferenças nos usos do conceito, é possível apontar alguns dos mal-entendidos, muitas vezes intencionais, a que se presta.

Tome-se como exemplo um famoso slogan de Maio de 68: “Sejamos realistas, exijamos o impossível”. A graça do lema está, claro, em seu paradoxo. Tomado ao pé da letra, não poderia ser levado a sério; não há sentido nenhum em empreender uma luta social com vistas a uma reivindicação que se sabe irrealizável: que exigisse, por exemplo, a doação de um quadro autêntico de Van Gogh para cada operário em greve. O slogan, para ter efetividade prática, significaria coisa mais simples: diz-se, apenas, que aquilo que nossos adversários chamam de impossível é, ao contrário, realista – e que aquilo que classificam como utópico não o é.

Industriais, economistas, tecnocratas e “formadores de opinião”, como sabemos, costumam reagir a todo tipo de reivindicação sindical tachando-a de impossível, prevendo que ao ser atendida haverá apenas de causar falência, miséria e desemprego. Por certo, mantidas intactas todas as demais condições da realidade, sem nenhum esforço adaptativo, é natural que qualquer modificação mais ou menos profunda tenda a produzir desequilíbrio no sistema. Dado que se recusa a possibilidade de qualquer adaptação, evidentemente apenas a eventualidade de desequilíbrio, de crise, é aventada – o que torna, na aparência, “razoável” a recusa a qualquer transformação. Segundo esse raciocínio, não há mudança possível num ponto porque é impossível mudar o conjunto. Quando tudo é impossível, nessa ordem de pensamento, obviamente o realismo está em reivindicar a mudança – pois, de uma perspectiva realista, também o resto do sistema haverá de adaptar-se; irrealista seria considerá-lo em estado de equilíbrio estático e perfeito. Não é preciso acrescentar, mais uma vez, que tudo depende da reivindicação específica e do sistema em que se está pensando[2].

O que tirar desse exemplo? Que, com o slogan de 68, entrou em cena um curto-circuito: a utopia em primeira pessoa, substantivada, em seu sentido positivo, de reivindicação ou projeto que se acredita digno de levar adiante, é enunciada, por um efeito de ventriloquismo irônico, na voz adjetivada da terceira pessoa – como algo impossível, como delírio, como fantasia “utópica”. Eu, primeira pessoa, quero o “utópico”, na terceira pessoa; adoto a terminologia do meu acusador, daquele que não acredita em mim.

Vejamos, a partir desse modelo, o que se passa com o bordão contemporâneo segundo o qual, depois da queda do muro, as utopias acabaram. Ocorre um curto-circuito semelhante. Certamente, o sentido básico da frase poderia ser parafraseado do seguinte modo: “depois de 1989, toda essa conversa de mundo melhor, de socialismo etc., está encerrada, é hora de parar com essa bobagem e cuidar da vida real, sem mais agitações”. O discurso não disfarça, nem teria por que disfarçar, sua inclinação direitista. Quem diz que as utopias acabaram nunca teve nenhuma utopia. Assim como ocorria no slogan de maio de 68, o poder persuasivo, quase hipnótico, da frase está justamente no curto-circuito que opera a partir daí. Aparenta ser uma lamentação em primeira pessoa (nossos projetos de melhoria desapareceram), mas na verdade utiliza a conotação positiva, substantiva, do termo utopia num significado em terceira pessoa (os sonhos estúpidos de vocês finalmente acabaram).

O que torna tudo mais enganoso, sem dúvida, é que para o outro lado do debate, a esquerda, nada havia de utópico, de ideal, de sonhado no sistema que caía em 1989. O regime soviético era designado, aliás, como socialismo realmente existente, em oposição ao que seria o “verdadeiro”, o “autêntico” socialismo, o socialismo pretendido e sonhado por Marx e Engels. Excluindo-se uma minoria de ortodoxos que ainda defendia a União Soviética, era pertinente para a esquerda dizer “a utopia acabou” muito antes de 1989: quando a URSS invadiu a Tchecoslováquia, em 1968, por exemplo; ou quando invadiu a Hungria, em 1956; ou quando foram denunciados os crimes de Stálin, pouco antes no mesmo ano; ou quando se realizaram os julgamentos de Moscou contra velhos bolcheviques, na década de 1930; ou quando Lênin e Trotsky esmagaram a revolta dos marinheiros de Kronstadt, em 1921. Diferentes levas de desiludidos e críticos do sistema soviético foram compondo, ao longo do século XX, uma cultura de esquerda que, naturalmente, só poderia estranhar a ideia de que só com a queda do muro operara-se o fim de suas utopias.

Mas é inegável que a esquerda ficou atônita com a queda do muro – pois o evento não representou apenas o fim de um sistema tirânico e decrépito, mas também, e principalmente, consistiu numa demonstração da superioridade do capitalismo perante as clássicas previsões de que seu colapso era iminente. A expectativa de uma crise final, comprovando a inviabilidade sistêmica daquele modo de produção, foi ainda uma vez adiada – ou desfeita cabalmente – em função de uma vitória que coincidia com a ascensão do neoliberalismo econômico, encarnado nas políticas de Ronald Reagan, Margaret Thatcher e seus seguidores. Desse modo, a esquerda aceitou a ideia do fim das utopias, entendendo por utopia qualquer perspectiva de contestar os rumos tomados pelo neoliberalismo.

Ainda assim, continuou afirmando que “precisamos da utopia”, e com isso caiu numa dupla armadilha: a de sugerir, de modo sem dúvida inconvincente, que “precisamos de planos irrealizáveis”, e a de lamentar o fim de um regime, o soviético, que certamente se provou “realizável” enquanto durou, mas não correspondia aos sonhos de quase ninguém. Só nos sobra o irrealizável, agora que as utopias acabaram…

Consequência disso, passa-se a falar na “necessidade de utopias”, como sinônimo de “necessidade de uma política de esquerda”; e, com isso, mesmo quem é de esquerda termina aceitando a ideia de que está engajado numa política puramente utópica, sem nenhuma chance de dar certo no mundo real. Aceita-se a frase de 1968, segundo a qual é preciso “exigir o impossível”, mas sem a ironia que a cercava no momento em que foi concebida.

Cabe fazer um contraponto a esse tipo de lamentação. Não para dizer que a esquerda tem de retomar suas utopias. Ao contrário, trata-se de separar, mais do que nunca, as propostas e os ideais esquerdistas dessa aura utópica que, usada inicialmente como adjetivo crítico, pela terceira pessoa, foi alegremente incorporada pela primeira pessoa, por nós, sem perder entretanto o contrabando de impossibilidade e de desqualificação que leva consigo.

Trata-se de valorizar outra tradição de esquerda, que sempre teve uma atitude antiutópica, realista, acostumada a usar o termo utopia precisamente no seu sentido negativo, em terceira pessoa, de fantasia irrealizável. Seria o momento, portanto, de “dar o troco” para o discurso corrente de direita, que sequestrou o termo utopia para atribuí-lo à esquerda, negando assim a validade para qualquer política realista e qualquer tentativa de transformação social que esta venha a defender.

Cumpre fazer referência, assim, a teóricos de esquerda que compõem uma forte tradição antiutópica – o que não significa que tenham sido acríticos com relação ao mundo real.

O primeiro deles é ninguém menos que Friedrich Engels, autor de um texto bem menos lido hoje do que antigamente, e que ganhou o título “Do socialismo utópico ao socialismo científico”. Foi escrito em 1880, ou seja, ainda nos últimos anos de vida de Marx. Nesse trabalho, Engels expressa sem dúvida sua admiração pelos defensores de uma sociedade socialista ideal, como Saint-Simon, Fourier e Owen. Mas não compartilha do idealismo desses autores.

Tratava-se de descobrir um sistema novo e mais perfeito de ordem social, para implantá-lo na sociedade vindo de fora, por meio da propaganda e, sendo possível, com o exemplo, mediante experiências que servissem de modelo. Esses novos sistemas sociais nasciam condenados a mover-se no reino da utopia; quanto mais detalhados e minuciosos fossem, mais tinham que degenerar em puras fantasias[3].

Eram projetos que funcionavam como crítica da sociedade existente, sem ter contudo quaisquer condições de sucesso. Engels vai além na sua condenação dos socialistas utópicos. “Para todos eles, o socialismo é a expressão da verdade absoluta, da razão e da justiça, e é bastante revelá-lo para que, graças à sua virtude, conquiste o mundo”[4].

Só que, acrescenta, se quiséssemos “converter o socialismo em ciência, era necessário, antes de tudo, situá-lo no terreno da realidade”[5].

O que seria esse “terreno da realidade” cujo conhecimento poderia dar as bases científicas, isto é, práticas, não fantasiosas, para a construção do socialismo? Não haveria espaço aqui, naturalmente, para expor as certamente ambíguas e matizadas ideias de Marx e Engels sobre o assunto. Contentemo-nos em seguir a rápida argumentação de Engels nessa obra.

Inicialmente, o autor estabelece o contraste do mundo do trabalho medieval com o modo de produção capitalista. No pré-capitalismo, diz Engels, o artesão que produzisse uma mercadoria tinha a propriedade dos seus instrumentos de trabalho; a mercadoria que produzisse se tornava, assim, automaticamente sua, para ser vendida no mercado.

Com o surgimento das fábricas e do trabalho assalariado, a situação muda radicalmente. O trabalhador não mais é dono dos meios de produção, dos instrumentos de trabalho, nem da mercadoria que foi produzida. A forma da produção deixa de ser mais individual. “Os meios de produção foram convertidos essencialmente em fatores sociais”[6], isto é, coletivos, diz Engels.

Surge, entretanto, uma contradição: embora produzidas coletivamente, as mercadorias terminam sendo apropriadas por uma só pessoa, o proprietário dos meios de produção. Há, assim, “uma incompatibilidade entre a produção social e a apropriação do capitalista”[7]. Nesse esquema, conclui-se facilmente que o dono da fábrica, como simples “apropriador” da produção alheia, se torna figura supérflua. No raciocínio de Engels, a produção social na fábrica poderia manter-se tranquilamente sem uma personagem que não faz outra coisa a não ser se apropriar do lucro. Obviamente, ninguém ignora o quanto uma “nova classe” – uso o termo entre aspas – hoje em dia se encarregou de organizar os diferentes métodos de trabalho na fábrica, quantos disciplinadores, engenheiros, técnicos de produção, especialistas de logística e software se tornaram necessários para pôr a produção em funcionamento, maximizando sua eficiência; mas sigamos a exposição do esquema de Engels, que se limita a duas classes essenciais, uma das quais inútil, parasitária, supérflua.

À primeira contradição assim exposta, que se dá entre a produção social e a apropriação privada, Engels acrescenta uma segunda contradição. Na produção pré-capitalista de mercadorias, o artesão trabalha mais ou menos sob encomenda, ou para consumo próprio ou para um mercado tradicional, de demandas fixas e previsíveis, segundo regras estabelecidas pelas associações de ofício. Esse mundo estável e “pacífico” desaparece no capitalismo industrial. “As antigas associações começam a perder força, as antigas fronteiras [territoriais] vão caindo por terra, os produtores vão convertendo-se mais e mais em produtores de mercadorias independentes e isolados. A anarquia da produção social sai à luz e se aguça cada vez mais”[8].

Os produtores entram em guerra uns contra os outros, disputando mercados; a guerra se estende a países inteiros, numa luta selvagem pela existência. “A contradição entre a produção social e a apropriação capitalista manifesta-se agora como o antagonismo entre a organização da produção dentro da fábrica e a anarquia da produção no seio de toda a sociedade”[9].

Nessa luta concorrencial, o capitalista vai investir cada vez mais em formas mais eficientes e baratas de produção. À medida que o processo avança, com novas máquinas e sistemas, o trabalhador vai perdendo o emprego.

A maquinaria, o recurso mais poderoso que se pôde criar para reduzir a jornada de trabalho, converte-se no mais infalível recurso para converter a vida inteira do operário numa grande jornada disponível para a valorização do capital; ocorre, assim, que o excesso de trabalho de uns é a condição determinante da carência de trabalho de outros, e que a grande indústria, lançando-se pelo mundo inteiro, em desabalada carreira à conquista de novos consumidores, reduz em sua própria casa o consumo das massas a um mínimo de fome e mina com isso seu próprio mercado interno […]. Isso dá origem a que a acumulação do capital corresponda a uma acumulação igual de miséria[10].

Segue-se que a produção acelera mais do que o consumo, surgindo daí um círculo infernal de crises periódicas: “Desde 1825 […] não se passam dez anos seguidos sem que todo o mundo industrial […] saia dos eixos”[11]. As máquinas param – o que significa, conclui Engels, que o sistema capitalista “não permite aos meios de produção funcionar, nem aos operários trabalhar e viver”[12]. A única forma de resolver essa contradição é que “as forças produtivas sejam redimidas de sua condição de capital, de que seja efetivamente reconhecido o seu caráter de forças produtivas sociais”[13]. O capitalismo começa a experimentar esse reconhecimento, diz Engels, com a substituição do antigo chefe de indústria pelas sociedades anônimas, e com a criação de trustes, com as fusões entre empresas. “É claro que, no momento, em proveito e benefício dos capitalistas. Mas aqui a exploração se torna tão patente, que tem forçosamente de ser derrubada. Nenhum povo toleraria uma produção dirigida pelos trustes, uma exploração tão descarada da coletividade por uma pequena quadrilha de cortadores de cupões”[14].

O caminho seria, como sabemos, a tomada do poder político pelo proletariado, que converte em propriedade pública os meios sociais de produção.

Encerro aqui, com desculpas para os que conhecem o assunto, esse pequeno resumo de teoria marxista a respeito da necessidade do socialismo. Como se pode notar, toda a conexão entre progresso tecnológico e desemprego está exposta com clareza por Engels, e lendo esse texto de 1880 é impossível não reconhecer sua atualidade. Ao mesmo tempo, percebem-se algumas notas em falso nessa teoria. Certamente, o propósito de Engels é mostrar que a própria natureza do sistema capitalista forçava a seu desaparecimento, o que diferencia suas teses de qualquer utopismo. Com efeito, não é porque desejamos uma sociedade igualitária e livre que isso há de se realizar, e sim porque para além de nossos desejos e das boas intenções há uma lógica conduzindo a tal objetivo. Uma primeira nota em falso surge, entretanto, na última frase de Engels que acabamos de citar: “a exploração se torna tão patente [com a chegada das sociedades anônimas], que tem forçosamente de ser derrubada. Nenhum povo toleraria uma exploração tão descarada da coletividade por uma pequena quadrilha de cortadores de cupões”.

O elemento subjetivo, o elemento da vontade política, surge aqui como determinante, e, a despeito dos muitos protestos que se verificam hoje em dia, em torno do slogan “nós somos os 99%” – em consequência do absoluto “descaramento” que se revelou com a crise financeira de 2008 –, é de se perguntar se o projeto socialista, em especial o projeto de Engels, tornou-se mais próximo nestes últimos anos. A questão fica em aberto, mas, depois de muitas crises periódicas do capitalismo, certamente o mais científico, no caso, seria nos perguntar por que o capitalismo sobreviveu, e não afirmar com tanta segurança, como se fazia em 1880, que estava em seus dias finais.

Aqui intervém uma segunda nota em falso, que é bastante conhecida nas discussões sobre o tema: a teoria, também expressa por Engels, em frase já citada, segundo a qual à acumulação do capital corresponde uma acumulação igual de miséria.

Dentro de uma perspectiva científica, ou, se quisermos evitar o exagero do termo, dentro de uma perspectiva realista, não utópica, abriu-se o debate no partido socialista alemão, pouco tempo depois dessas afirmações de Engels. Foi o executor testamentário do velho líder, encarregado de espalhar suas cinzas no mar, quem levantou dúvidas sobre a tese do crescimento da miséria, da pauperização do proletariado.

Tratava-se de Eduard Bernstein, que lançou seu livro Os pressupostos do socialismo em 1899. Três constatações, a seu ver, tornavam ilusório o modelo de tomada do poder teorizado por Marx e Engels.

Em primeiro lugar, embora houvesse todo um movimento de fusões entre empresas e formação de trustes, Bernstein demonstra que o número dos capitalistas não estava reduzindo; não se restringia a “uma pequena quadrilha de cortadores de cupões”. Por intermédio do mercado acionário, a propriedade capitalista se disseminava, em vez de concentrar-se. Além disso, ao longo do tempo, o número de pequenas empresas crescia, e não o contrário. Podemos também lembrar, nos dias de hoje, o importante peso dos fundos de pensões, onde funcionários de uma empresa depositam parte de seus vencimentos com vistas à aposentadoria futura; tais fundos gerem o capital criado – comprando inclusive ações de empresas, naturalmente.

Em segundo lugar, acompanhando ainda o raciocínio de Bernstein, a própria classe operária tendia a se diferenciar internamente; em vez de uma única massa proletária, dentro da realidade de uma “produção social” no interior da fábrica, o que se via era um nítido crescimento das camadas médias, administrativas e técnicas. A classe média, em uma palavra, aumentava nos países industrializados. O interior do sistema produtivo se tornava menos “socializado”, portanto, e cada vez mais diferenciado. Segundo o autor, “a expulsão do proprietário capitalista, ou dos muitos proprietários, da fábrica só por um exame superficial constituiria um ato decisivo na transformação das empresas capitalistas em empresas socialistas viáveis. As empresas capitalistas são organismos extremamente complexos”[15].

Em terceiro lugar, parecia claro que o operariado não estava empobrecendo e sendo jogado a uma vida miserável: seu bem-estar crescia continuamente.

A polêmica que se seguiu foi intensa e extremamente prolongada, envolvendo de início os grandes nomes da teoria marxista da época, como Kautsky, Plekhanov e Rosa Luxemburgo. O mais importante deles, do ponto de vista da autoridade que tinha no movimento socialista alemão, era Karl Kautsky. Contestando as conclusões de Bernstein quanto ao crescimento da classe média sob o capitalismo, insistiu na tese de que, fosse como fosse, a divisão entre possuidores e não possuidores permaneceria. Com relação à crescente miséria do proletariado, ele aceitava a ideia de que, em termos absolutos, isso não mais acontecia. Mas se a miséria material diminuía, o mesmo não acontecia com a miséria social; ocorria uma pauperização dos trabalhadores em termos relativos: dado o acúmulo de riqueza dos capitalistas, o bem-estar do proletariado não crescia na mesma proporção.

Para provar sua tese de que a miséria social do proletariado estava aumentando, apesar de não ocorrer uma pauperização absoluta, Kautsky empregava argumentos curiosos. “O aumento do trabalho das mulheres”, dizia ele,

é um sinal claro da agravação da miséria, é uma intensificação da miséria […]. O trabalho assalariado da mulher causa seu esgotamento físico, uma vez que esse trabalho vem se somar ao trabalho doméstico [ele estava certo quanto a isso, mas vejam o desenvolvimento do raciocínio] e daí resulta que o casal vai se empobrecendo sempre, seja porque então eles vão comer fora, seja porque a operária, que não se preparou para seu papel de dona de casa, desperdiça tudo, uma vez que não conhece os princípios da arte culinária ou da costura. De que serve para o operário a alta dos salários, a baixa nos preços dos cereais, se sua mulher já não sabe mais preparar refeições apetitosas e nutritivas?[16].

É difícil negar que, quando se recorre a argumentos desse tipo, a pura ideologia, o desejo de que as coisas sejam como se quer e como quer a teoria, já se substituiu a qualquer análise da realidade.

Ainda em 1965, conforme lemos no posfácio à edição de Les Presupposés du socialisme, um grupo de jovens comunistas franceses tentava contestar a tese do Partido Comunista Francês segundo a qual o empobrecimento do proletariado estava em curso, já que “o salário real do trabalhador francês [estava] em baixa com relação aos níveis de antes da Segunda Guerra”[17]. Dada sua heterodoxia, o grupo dissidente foi dissolvido pelo partido.

Retomando as teorias de Bernstein, e o tema deste artigo, temos de dizer que conduzem a uma conclusão inevitável. Se as condições reais do capitalismo não levavam ao empobrecimento do proletariado, à desaparição da classe média e a uma crise total no próprio sistema, então as propostas de Engels quanto à tomada do poder e à implantação do socialismo deixavam de ser científicas, baseadas em possibilidades concretas, e se tornavam… simplesmente utópicas.

O que não significava dizer que o movimento socialista devesse simplesmente desaparecer. A luta de classes persistiria. Bernstein cita um trecho de Marx para fortalecer sua posição.

“A classe operária […] não tem utopias prontas para instaurar por decreto do povo. Sabe que sua própria emancipação, como as novas formas de vida para as quais tende irresistivelmente a sociedade atual, supõe longas lutas, uma série de processos históricos que transformarão completamente as circunstâncias e os homens. Ela não tem que realizar o ideal, mas somente liberar as forças da sociedade nova que a velha sociedade burguesa que se desfaz carrega dentro de si.” Assim se exprime Marx na Guerra Civil na França. É nesta passagem que eu pensava quando me interrogava sobre o “objetivo final”. Marx não está dizendo, em substância, que o movimento, a sucessão dos processos, é tudo, e que, inversamente, os objetivos fixados por antecipação não apresentam nenhum interesse? Todas as teorias que fixam por antecipação o sentido e a natureza do movimento operário acabarão por se transformar em utopias: a um momento dado, elas surgirão como verdadeiro obstáculo ao progresso[18].

Vem daí um slogan formulado por Bernstein, que teve fama na época: “o movimento é tudo, o objetivo final é nada”. Com isto, nosso autor passou a ser identificado, no interior do movimento de esquerda, como “o revisionista Bernstein”, em oposição aos representantes do marxismo original, ortodoxo, que tinham em Kautsky seu maior representante.

Uma ressalva pode ser, desde logo, levantada contra a ideia de que “o movimento é tudo, o objetivo final é nada”. Surge naturalmente a pergunta: se objetivo não é nada, então para onde, para que rumo, se dirige o movimento? Talvez, mais do que nunca, se possa distinguir aqui entre uma visão utópica e uma visão realista das reivindicações e lutas dos trabalhadores. Podemos pensar que essas lutas se fazem com vistas à reparação de injustiças, estando inspiradas, assim, na construção, ainda que vaga, de um mundo ideal onde ninguém será oprimido, todos terão educação, crianças não precisem trabalhar etc. Estaríamos, mesmo numa estratégia puramente reformista, gradualista, não revolucionária, diante de um componente utópico a dirigir, vagamente que fosse, os rumos do movimento. Podemos pensar, também, numa alternativa diversa: o movimento não se dá em direção a um estado de coisas desejado, mas simplesmente como fuga de algo que não podemos suportar. A necessidade, e não o ideal, seria o móvel das lutas pela transformação social, impregnando assim de uma coloração profundamente antiutópica as próprias movimentações por um mundo melhor. Talvez o mais sensato seja pensar que uma mistura entre os dois componentes, utópico e antiutópico, manifesta-se na estratégia reformista. Um argumento interessante, e a meu ver precioso porque se afasta do sentimentalismo utopizante da esquerda atual, foi formulado em contexto diferente pelo filósofo Philip Kitcher:

Com excessiva frequência a percepção do progresso se limita pelo fato de pensarmos esse conceito em termos de proximidade face a um objetivo prefixado: assim, o progresso cognitivo se identifica a uma aproximação na direção da verdade. Mas seria absurdo vislumbrar algum sistema ideal de transporte, e aí supor que o progresso nessa área consiste em alcançar suas características em estágios cada vez mais próximos do ideal; ou pensar em médicos tentando ajudar seus pacientes a se aproximarem de um estado ideal de saúde perfeita. Melhor pensar num “progresso escapando de um ponto” do que num “progresso em direção a um ponto”[19].

A história do século XX iria rapidamente – ou não tão rapidamente assim, conforme a inclinação de cada um – providenciar a “vingança” de Bernstein, refutando os que o criticavam. Uma das primeiras e mais significativas vítimas desse processo seria o próprio Kautsky, que se tornaria um crítico impiedoso da Revolução Russa, a partir da teoria do marxismo social-democrata alemão. Veja-se o que esse autor escreveu em 1933, quando o poder de Stálin já se consolidava.

Tendo tomado controle do poder, Lênin considerou-se imediatamente poderoso o bastante para empreender a partir de cima e por métodos utópicos a consecução de uma tarefa que até então ele próprio, como marxista disciplinado, encarava como irrealizável, a saber, o imediato estabelecimento da ordem socialista de produção com a ajuda de um proletariado imaturo.

[Dado o atraso econômico e político do povo russo] todo partido socialista na Rússia de hoje seria inevitavelmente levado a métodos de utopismo e ditadura se fosse colocado no poder por forças extraordinárias, sem apoio da maioria da população, e se suas próprias ilusões o impelissem a empreender a tarefa imediata de construir o socialismo. É nisso que reside a explicação dos métodos bolcheviques na Rússia. Os experimentos dos socialistas utópicos na Europa Ocidental, há cem anos, foram igualmente conduzidos pelo insuficiente desenvolvimento do proletariado em seus países. Os métodos tanto dos velhos utopistas, quanto dos bolcheviques não são meros acidentes, mas derivam sua lógica das condições existentes[20].

Em poucas palavras, o chamado socialismo realmente existente, o criado em torno do modelo soviético, pode ser justamente criticado não por ser socialista, ou revolucionário, mas sim por ser utópico – inviável, fruto de uma vontade política que só poderia impor-se pela violência, e inutilmente, porque condenado a não dar certo. O autoritarismo do modelo leninista e stalinista não é um acidente, mas sim consequência de seu caráter utópico – naquele mau sentido a que fazíamos referência. Nesse sentido, sem dúvida, só podemos festejar o tão lamentado fim das utopias.

O debate histórico-teórico em torno da Revolução Russa naturalmente está longe de resolvido, mas tomando em conta as críticas de Bernstein e Kautsky será interessante fazer algumas breves considerações sobre o momento atual.

Recordemos aquelas duas contradições básicas lembradas por Engels: a contradição entre a produção social e a apropriação capitalista, de um lado, e, de outro, a que contrapõe a organização da produção dentro da fábrica e a anarquia da produção no seio de toda a sociedade. Cooperação, dentro da fábrica, e concorrência feroz, fora da fábrica. Trabalho socializado, dentro da fábrica, e apropriação privada do lucro, fora da fábrica. Sem dúvida, podemos reconhecer brevemente que tais contradições ainda persistem, mas com diferenças muito importantes.

A primeira diz respeito à “anarquia da produção no seio de toda a sociedade”. Engels teorizava a partir de um modelo de livre concorrência, no qual em última análise o capitalista produz mercadorias sem saber se serão compradas ou não – havendo o risco de seus produtos simplesmente encalharem nas prateleiras. Tudo indica que, por vários motivos, esse risco se vê acrescido de outros fatores mais complexos. O próprio Engels menciona a tendência para as indústrias se fundirem, se organizarem em trustes, acertando preço e quantidade de bens a serem produzidos. Algo que se faz até hoje, mas não se faz tranquilamente. O Estado intervém nessa tendência; surgem novos concorrentes internacionais; a estabilidade alcançada com esses subterfúgios leva a um progressivo atraso tecnológico, que por sua vez estimula o surgimento de novos concorrentes. Há uma tensão constante no sistema, ora incentivando maior anarquia no mercado, ora restringindo-a.

As próprias técnicas de produção se agilizaram enormemente, podendo adaptar-se com muito mais facilidade às oscilações da demanda– como fazem supor os métodos japoneses do just in time e congêneres. Por outro lado, a própria demanda não é mais uma incógnita total para quem fabrica. É prevista, é planejada e, mais do que isso, é criada – pela propaganda e pela invenção do próprio produto.

Em outras palavras, o mundo fora da fábrica, do mercado, da concorrência, não se tornou mais tão obscuro e inconsciente, em contraste com a relativa clareza “socializada” do sistema de produção dentro da fábrica. Ao contrário, cresceram e tornaram-se muito complexos, claro, os meios de controle e administração das relações entre o mundo da produção e o ambiente exterior. Controles privados e controles públicos também.

Por outro lado, como se sabe, demandas imprevistas – e não apenas as de novos produtos, de novas marcas – estão sempre surgindo, enquanto outras desaparecem. Quem imaginava, para recorrermos a um exemplo bem corriqueiro, que a procura por tatuagens iria aumentar como tem aumentado nos últimos tempos? Notemos que se trata do reino, ainda, do pequeno artesão, até que alguém crie uma franchising de tatuagens, como existem as de salões de beleza, com a concentração da propriedade nuns poucos capitalistas. Desse modo, enquanto a satisfação de demandas em massa se torna cada vez mais administrada, aumentando e diminuindo, conforme o momento, o grau de concorrência ou de monopólio na produção, a imprevisibilidade que acompanha o surgimento de novas demandas – quando o acesso a bens básicos como alimentação e vestuário bem ou mal se satisfaz – permite novas levas de empreendimentos que exigem pouco capital.

Pensemos em outros exemplos. Todo o mercado de saúde e fitness cresce, enquanto o do tabaco diminui. Enquanto serviços de personal trainer se multiplicam, surgem pequenas academias de bairro, que por sua vez são compradas por redes de franquia – até que novas especializações e métodos de treinamento sejam lançados experimentalmente em pequena escala. A demanda, criada ou real, de remédios, com as pesquisas em medicina, não parece ter prazo para declinar. Como não pensar na indústria de entretenimento, de turismo? Ou da geração de energias alternativas? De modo que, se a tendência é de queda no emprego com o crescimento tecnológico, não é fora de cogitação pensar em novos setores industriais, ou “pós-industriais”, que estão em constante crescimento, dada a virtual infinidade das necessidades humanas.

Para resumir, há aqui uma tensão entre demanda administrada, produzida artificialmente pela publicidade, e demanda caótica, criada a partir da própria abundância ou, se preferirmos, a partir da ociosidade da mente humana. Criada, enfim, a partir da satisfação de demandas anteriores. Vencida a fome, surgem os produtos para emagrecer.

Temos, então, dois focos de tensão, ou de dinamismo no sistema. No lado da produção – pelo próprio desenvolvimento tecnológico – surge uma estrutura incomparavelmente mais hierarquizada, mais tecnicizada, menos “igualitária” e cooperativa do que a existente no antigo sistema industrial. Ao contrário, baseia-se claramente na luta de todos contra todos, no interior da própria camada assalariada; é fato corriqueiro a divisão entre equipes rivais numa mesma corporação. Cria-se todo o imenso aparato de controles, de checagens, de padrões de tempo e qualidade, de sistemas logísticos que precisam ser implantados para que a produção se cole cada vez mais à demanda existente. A busca da diminuição das incertezas, do desconhecido, na esfera do mercado, leva à cientifização de todo o conhecimento administrativo – e ao declínio da solidariedade no interior da produção.

Quanto ao lado da demanda, a tensão surge da constante descoberta, da constante criação e invenção de novas necessidades, razoáveis ou estúpidas, reais ou artificiais.

Tais fatores conduzem a um razoável ceticismo quanto à possibilidade de colapso no sistema capitalista – tanto no que diz respeito à pauperização do proletariado quanto ao desaparecimento da classe média, e mesmo quanto a uma tendência infinita para o desemprego e para a concentração de renda. Crises desse tipo já foram anunciadas antes – mas é claro que nada impede que, desta vez, as profecias estejam certas.

É extensa, e talvez inabarcável, a literatura a respeito; limito-me a fazer referência a um teórico apenas, que aliás já acertou previsões importantes – como aquela, feita no início da década de 1980, a respeito do colapso da União Soviética. Aponta, agora, para o fim do capitalismo.

Para Immanuel Wallerstein, o sistema tem sobrevivido na medida em que se expande para novas áreas – e não utiliza o termo apenas em sua acepção geográfica. Seu modelo, por certo, é o da expansão colonial do século XIX, mas o raciocínio tem uma premissa mais ampla.

Num modelo de concorrência extrema entre capitalistas, o lucro tende a zero. A atividade capitalista só se torna compensatória quando um capitalista consegue se aproveitar de uma situação de quase monopólio.

Só nesses casos, diz ele, os produtores

conseguem vender os seus produtos a preços bem acima dos custos de produção. Em sistemas verdadeiramente competitivos, com um pleno e livre fluxo dos fatores de produção, qualquer comprador inteligente pode encontrar vendedores que irão vender produtos com lucro de um centavo, ou mesmo abaixo do custo. Não há como haver lucro real num sistema perfeitamente competitivo[21].

O produtor pode ser o único fornecedor de determinado produto, ou ser o primeiro a se instalar numa região, por exemplo. Para Wallerstein, o mundo se tornou pequeno demais: novas áreas de empreendimento monopolista se tornaram impossíveis de descobrir, e a globalização extingue as vantagens territoriais que ainda era possível encontrar. Três fatores, segundo ele, permitiram ao capitalista continuar maximizando seus lucros, ao longo dos últimos séculos, e esses fatores parecem em via de esgotamento. Primeiro, a existência de bolsões de mão de obra barata, de contingentes de trabalhadores recém-saídos da vida rural, que podem aceitar como vantajosa a remuneração nas indústrias, ainda que esta seja baixíssima comparada com a de outros países. Segundo, não é mais possível “externalizar”, diz ele, os custos da produção. Durante séculos, as empresas não tiveram de pagar por todos os seus insumos: água não era problema, podia-se jogar o lixo industrial onde bem se entendesse etc. Em terceiro lugar, os gastos com infraestrutura de transportes e comunicações se tornam cada vez mais caros para que o Estado simplesmente se encarregue de provê-los. Crescem os impostos e os gastos diretos a que a empresa tem de responder[22]. A solução, diz Wallerstein, é a mesma que ocorre em todo ciclo declinante de produção industrial: a principal fonte de lucro passa a ser a especulação financeira, que se baseia no mecanismo básico de emprestar muito a quem não pode pagar o total da dívida, mas é capaz de sempre nutrir o credor com os juros do que deve. Crescem os protestos, o desemprego e a repressão. Assim, conclui o autor, os governos não têm como reformar o sistema capitalista de modo a conseguir uma acumulação infinita do capital[23]. Veja-se que, para Wallerstein, não está no horizonte o fim da empresa privada, da economia de mercado e do trabalho assalariado: o que ele entende por capitalismo, cujo colapso prevê, é o sistema dirigido à acumulação sem fim do capital.

A questão, entretanto, não parece tão simples assim. Sem contar os países ainda mal integrados ao sistema mundial, o capitalismo encontrou novos continentes inexplorados, por assim dizer, como aponta o próprio Wallerstein. Primeiro, os próprios países do antigo sistema soviético. Em segundo lugar, e o movimento foi geral, o capitalismo encarregou-se de colonizar o próprio Estado, com privatizações em escala mundial (ferrovias, telecomunicações, geração de eletricidade), assegurando para o lucro privado vastas áreas antes inexploradas. Em terceiro lugar, para repetir o ponto, o desenvolvimento tecnológico assegura aos inventores, aos pesquisadores, sempre novas situações de monopólio – é para isso que serve o sistema de patentes, como estímulo para que, por determinado tempo, o descobridor de um novo produto, de um novo remédio, obtenha remuneração por seu investimento em pesquisa – que pode ser caríssimo. Já notamos o papel da imprevisibilidade das descobertas e das demandas sociais no surgimento dessas “novas regiões” para o empreendimento capitalista; este é um dos pontos da consistente crítica a Wallerstein feita por Michael Mann. Mesmo num quadro em que a produção para o mercado cubra todo o planeta, rebaixando os níveis de lucro e crescimento econômico, nada impede – este o cenário mais otimista, cumpre lembrar, teorizado pelo autor – que o sistema se estabilize num “capitalismo de baixo crescimento de longa duração”[24]. A grande irrupção do capitalismo, diz ele,

ocorreu na Grã-Bretanha dos séculos XVIII e XIX. Contudo, o crescimento britânico nunca excedeu a taxa de 2% ao ano. A “história de sucesso” britânica consistiu mais numa taxa de crescimento médio pouco acima de 1% ao ano. No século XX, entretanto, o ritmo se acelerou […] com taxas até então inéditas de 4% [no entreguerras]. Então, no fim do século xx, China e Índia […] alcançaram taxas de 8%. Embora essas taxas tenham durado por ao menos duas décadas, irão inevitavelmente declinar. Mais adiante, a África e a Ásia Central poderão ter desempenho ainda melhor. De qualquer modo, terão muito tempo à frente até que encontrem o padrão de 1% da “história de sucesso” britânica. […] Nesse momento, toda a humanidade poderia viver numa economia de quase imobilidade, como os japoneses têm feito pelos últimos vinte anos. O futuro do capitalismo pode não ser tumultuado, e sim aborrecido[25].

Há fatores, enfim, que parecem nos afastar da imagem de uma crise iminente no sistema e, portanto, de uma utopia socialista ou revolucionária. Vemo-nos talvez condenados a um sistema que, se sem dúvida foi capaz de aumentar o bem-estar material de parcelas sempre crescentes da humanidade – sabemos a que preço e com quantas delongas –, nem por isso deixa de estar fundado, de modo cada vez mais evidente, em algo que se poderia chamar de mentiras estruturais.

Mais e mais pessoas são forçadas a entregar suas vidas a uma rotina desgastante e a trabalhos sem sentido, para que possam consumir produtos de que, a rigor, não têm necessidade. Torna-se difícil imaginar uma saída para essa eterna procura do asno pela cenoura amarrada à sua frente, a menos que as bases de um novo ascetismo religioso, de uma nova crença ecológica na simplicidade, ou de um renovado vigor crítico se estabeleçam no comportamento das massas. Paradoxalmente, as políticas econômicas do capitalismo contemporâneo tendem a privilegiar situações de “austeridade” – retirando do orçamento público, sobretudo, benefícios sociais duramente conquistados – enquanto continuam a afirmar, como valor supremo da atividade humana, o desperdício e a ostentação.

Mas não terminemos em nota tão desolada as considerações deste texto. Poderíamos abordar a segunda contradição apresentada por Engels. Talvez seja menos claro, ou decisivo, hoje em dia, o que o autor diz a respeito da contradição entre organização social do trabalho e anarquia no mercado. Mas persiste como nunca a outra contradição, entre trabalho social, riqueza produzida por toda a sociedade, e apropriação privada do lucro.

A luta de classes continua a ser uma realidade de todos os dias. Expressa-se, por exemplo, nos conflitos entre quem quer implantar um corredor de ônibus numa avenida e quem reivindica mais espaço para carros particulares. Entre uma incorporadora que quer construir um edifício no jardim de um casarão e os movimentos para transformá-lo em parque. Os exemplos são corriqueiros, urbanos, pequenos, mas podemos pensar na ocupação feita pelo movimento dos sem-teto num prédio particular desocupado. Mais ainda, naquilo que é um foco crucial da luta hoje em dia, e que nos envolve a todos, sem perceber, que é o problema das patentes. Pergunte-se, por exemplo, qual o prazo “justo” para sua duração? Os netos de Walt Disney, por exemplo, ainda deveriam receber copyright por suas criações? E quanto aos acionistas da empresa? Em que medida essa remuneração contribui para o desenvolvimento, ou para a estagnação, da criatividade de novos quadrinistas ou novos diretores de cinema? Qual a remuneração que um Bill Gates deve receber pelos softwares que desenvolve? Perguntas igualmente bruscas podem ser feitas na questão dos impostos sobre a riqueza, cuja intensidade ou moderação resultam, em grande parte, de uma correlação de forças políticas. Observe-se, aliás, que Wallerstein aponta justamente esse tipo de lutas e conflitos como indicativos de que, mesmo sem saber, estaríamos a caminho da superação do capitalismo.

A forma das lutas sociais hoje em dia parece se desenvolver em muitas frentes: a do consumidor de música gratuita contra o artista e as gravadoras, a do doente de aids em favor de remédios sem patente, a do consumidor, do cidadão urbano etc. O que parece unificar esses movimentos pode ser resumido como sendo o conflito entre o interesse público e o interesse privado. Não penso, portanto, na tomada do poder por uma classe que colocaria os conflitos em paz de uma vez por todas, nem na ligação entre essa proposta e os métodos internos de produção capitalista. Seria mais adequado dizer que há um processo de colonização, para usar o termo de Wallerstein, a ser feito em sentido contrário ao que habitualmente se verificou.

O capitalismo, como sabemos, “colonizou” a cultura, a religião, as sociedades tradicionais, o ensino, transformando tudo em mercadoria. Todos os dias vemos, entretanto, um processo no sentido contrário: a ética, o interesse público buscam colonizar o empreendimento privado – que faz, por exemplo, do uso da madeira certificada, da produção politicamente correta etc. instrumentos de marketing, assumindo o “papel cidadão”, a “função pública” da empresa. O que dizer, por exemplo, de leis que visem a regular ou proibir a doação de corporações privadas para campanhas eleitorais? Ou que desenvolvam mecanismos cada vez mais severos para coibir o bullying no ambiente de trabalho? Pura farsa? Ou influência da luta ideológica sobre o simples instinto animal do empreendedor privado? Não se trataria, mais exatamente, de múltiplas formas de desenvolvimento da luta de classes, sem que necessariamente se aposte numa resolução geral dos problemas humanos através da conquista do poder central?

Concluiríamos, como o velho Bernstein, que o objetivo final – a revolução, a propriedade coletiva dos meios de produção – não existe e que tudo é movimento. O capitalismo, naturalmente, sobrevive com tais iniciativas; podem ser vistas como “água no moinho do capitalismo”, como reformas visando a mantê-lo vivo. Mas eu acrescentaria que, dialeticamente, tais reformas também são “água no moinho do socialismo”. Socialismo e capitalismo caminham lado a lado, como sempre caminharam, e continuarão caminhando: sem nenhuma utopia pela frente, mas com um desejo utópico sempre renovado.

Notas

  1. Não havendo indicações em contrário, as traduções dos trechos citados são do autor. [n.e.]
  2. Cf., a esse respeito, Albert Hirschman, “Reactionary Rhetoric”, em: The Essential Hirschman, Oxford/ Princeton: Princeton University Press, 2013, pp. 293-308.
  3. Friedrich Engels, “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, em: Karl Marx; Friedrich Engels,

    Textos 1, São Paulo: Edições Sociais, 1977, p. 31.

  4. Ibidem, p. 37.
  5. Ibidem.
  6. Ibidem.
  7. Ibidem.
  8. Ibidem, p. 49.
  9. Ibidem, p. 50.
  10. Ibidem, p. 51.
  11. Ibidem, pp. 51-2.
  12. Ibidem, p. 53.
  13. Ibidem.
  14. Ibidem.
  15. Eduard Bernstein, Les Presupposés du socialisme, Paris: Seuil, 1974, p. 148.
  16. Fréderic Bon; Michel-Antoine Burnier, “Qu’elle ose paraître ce qu’elle est”, em: Eduard Bernstein, op. cit., p. 265.
  17. Ibidem, p. 275.
  18. Eduard Bernstein, op. cit., pp. 221-2.
  19. Philip Kitcher, Life after Faith: The case for a secular humanism, New Haven: Yale University Press, 2014, p. 42.
  20. Karl Kautsky, Marxism and Bolshevism: Democracy and Dictatorship, Boston/New Orleans: Pine Flag Books, 2013,

    p. 31.

  21. Immanuel Wallerstein, “Structural Crisis, or Why Capitalists May No Longer Find Capitalism Rewarding”, em: Wallerstein et al., Does Capitalism Have a Future?, Oxford: Oxford University Press, 2013, p. 11.
  22. Ibidem, pp. 23-4.
  23. Ibidem, p. 35.
  24. Michael Mann, “The End May be Nigh, But for Whom?”, em: Wallerstein et al., op. cit., p. 90.
  25. Ibidem, p. 91.

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