2015

Mundo, obsolescência programada

por Guilherme Wisnik

Resumo

O par destruição-construção, associado à especulação e ao consumo, assume hoje o comando da regulação econômica do sistema em escala global. Por isso, é sintomático que eventos globais de massa os mais variados se tornem progressivamente, em essência, grandes negócios imobiliários. São exemplos disso eventos originalmente esportivos, como a Copa do Mundo de futebol e os Jogos Olímpicos, que a partir dos anos 1990 começaram a abarcar uma série inteiramente nova de exigências técnicas e funcionais, com seus complexos aparatos logísticos. Pois se a sociedade é cada vez mais tratada como um grande mercado consumidor, a qualidade de vida nas cidades se tornou essencialmente uma mercadoria. Igualmente, as cidades também são entendidas cada vez mais, nesse contexto, como cidades-negócio que adotam estratégias competitivas de crescimento urbano. Isso faz com que o seu valor de uso, atributo histórico de definição das cidades enquanto tais, vá se tornando algo recessivo diante da hipertrofia do seu valor de troca.

A transformação do planeta em um imenso e permanente canteiro de obras vem associada a um processo de grande mobilidade e flutuação populacional no mundo, em que enormes contingentes de pessoas pobres migram ou imigram sem cessar em busca de trabalho, empregando-se de forma cada vez mais precária na construção civil, tanto para obras de construção quanto de demolição.

O que há são processos extremamente violentos, nos quais a destruição massiva, tanto de construções antigas quanto de vilas rurais ou paisagens naturais, parece completamente destituída de qualquer “pathos” heroico ou regenerador. A destruição da natureza e das pequenas e antigas construções é um imperativo inteiramente fáustico: vamos começar tudo do zero! Com isso, o princípio da obsolescência programada parece deslocar-se dramaticamente das mercadorias de uso comum para o próprio território do planeta.


Num tempo em que concepções de arte pequeno-burguesas predomina­ vam no governo, G. Keuner foi consultado por um arquiteto: deveria ele aceitar um grande empreendimento ou não? “Em nossa arte os erros e compromissos persistem por centenas de anos!”, exclamou o desespera­ do. G. Keuner respondeu: “Não mais. Desde o enorme desenvolvimento dos meios de destruição, as construções de vocês são apenas tentativas, sugestões sem compromisso. Material de contemplação para discussões do público. E quanto aos pequenos, horríveis ornamentos, as colunas etc., utilize-os como coisa supérflua, de modo que uma picareta possa rapidamente ajudar as grandes linhas puras a impor seu direito. Confie nos nossos homens, no rápido desenvolvimento!”.

BERTOLT BRECHT, Histórias do sr. Keuner

DESTRUIÇÃO CRIATIVA

A violência é, certamente, um dos motores essenciais da modernidade enquanto fenômeno histórico, tanto do ponto de vista político quanto cultural e filosófico. Investida de um pathos revolucionário, a violência aparece para muitos pensadores e artistas como instrumento legítimo de regeneração de uma sociedade ossificada e envelhecida, herdeira ainda da clausura medieval e do mercantilismo. ”A violência é a parteira de toda velha sociedade que está grávida de uma nova”, afirma Karl Marx em uma conhecida passagem do primeiro livro de O capital. E, se Marx admite que a burguesia é uma classe historicamente revolucionária, cujas conquistas

Figura 1. Chongqing, 2013. Foto: Valentina Tong.

não podem nem devem ser negadas, enxerga também, nela, um princípio autofágico destruidor. Quer dizer, a burguesia inaugura historicamente um processo de revolução ininterrupta – a modernidade -, que está, por isso mesmo, fadado a devorar a ela própria enquanto classe hegemônica. Por isso, afirma Marshall Berman, tomando uma expressão usada por Marx e Engels em O manifesto comunista, ser moderno é fazer parte de um universo no qual tudo o que é sólido desmancha no ar[1].

Para Nietzsche, a negação tanto da promessa de salvação metafísica, inscrita na religião, quanto da ilusão de estabilidade universal do Iluminismo é acompanhada por um sentimento trágico vitalista, em que a tresvaloração de todos os valores é movida por um “prazer no destruir”[2]• Essa vocação sacrificial da sua filosofia, essencialmente moderna e de inspiração dionisíaca, procura purificar a piedosa compaixão cristã através do elogio da dureza. “Por que tão moles, tão amolecidos e condescendentes?”, pergunta ficticiamente o diamante ao carvão de cozinha, seu parente próximo, no diálogo “Fala o martelo”, de Assim falou Zaratustra. E em seguida afirma: “Se a vossa dureza não quer cintilar, cortar e retalhar: como podereis um dia comigo criar? Pois todos os que criam são duros”[3]• Assim, a filosofia do martelo de Nietzsche postula um mundo de ideias e de coisas em movimento, e não mais estático e conservador. Um mundo movido por um princípio de destruição alegre, uma vontade de potência regeneradora em meio a forças de desagregação e desordem. Assim, tal energia de aniquilação criadora é, em Nietzsche, o princípio que faz da modernidade um processo de permanente destruição criativa, termo tomado posteriormente pelo economista austríaco Schumpeter para descrever o processo de desenvolvimento capitalista, fazendo do empreendedor uma figura heroica, o “destruidor criativo par excellence“, segundo observação de David Harvey, preparado “para levar a extremos vitais as consequências da inovação técnica e social” em um capitalismo benevolente[4]

Como poderia um novo mundo ser criado sem destruir boa parte do que veio antes? A afirmação algo aforística de que não se pode fazer um omelete sem quebrar os ovos, usada como forma de justificação da destruição enquanto ação construtiva, percorre autores e atores que vão de Goethe a Mao Tsé-Tung, como lembra Harvey, apontando para um dilema moderno que tem o seu arquétipo literário no Fausto de Goethe, tal como assinalaram Lukács e Marshall Berman.

A análise do Fausto de Goethe é a base do primeiro capítulo, intitulado ”A tragédia do desenvolvimento”, do livro de Berman sobre a aventura da modernidade. Escrito entre 1770 e 1831, o livro de Goethe atravessa, na própria história de sua redação, eventos históricos cruciais, como a Revo­ lução Francesa. Assim, traduzindo literariamente a passagem do mundo estagnado e fechado do mercantilismo, com suas barreiras comerciais e monopólios, para a ampla liberdade do mercado liberal sem fronteiras, a história épica do Fausto descreve um mundo no qual o maior valor posi­ tivo é a mobilidade e a transformação, guiados pela livre-iniciativa e pela abertura de espaços para as novas construções.

Uma passagem crucial do livro, segundo Berman, ocorre quando Fausto e Mefisto se encontram no alto de uma montanha contemplando o espaço vazio e infinito a seus pés, e Fausto esbraveja de súbito, questionando furiosamente o fato de os homens deixarem as coisas tais como sempre foram. Em suas palavras: “Não é já o momento de o homem afirmar-se contra a arrogante tirania da natureza, de enfrentar as forças naturais em nome do ‘livre espírito que protege todos os direitos’?”. Afinal, prossegue ele, “é um absurdo que, despendendo toda essa energia, o mar se mova, para a frente e para trás, interminavelmente, ·sem nada realizar’!”. E finalmente completa: “Aqui sim eu lutaria, para a tudo isso subjugar”[5]

Tornado um grande empreendedor da construção civil após o pacto com Mefisto, Fausto comanda grandes obras de aterro e terraplenagem, incluindo a construção de obras de infraestrutura em escala territorial, como portos, canais e barragens. Seu objetivo é a ampla dominação da natureza através da criação de uma nova paisagem técnica homogênea, mobilizando imensas equipes de trabalhadores e máquinas. Mas o sucesso pragmático dessas obras de planejamento vem acompanhado de um sentimento miraculoso e terrível, na descrição de personagens que acompanham esses canteiros de obras e que falam daquelas atividades de “cavar e esburacar” o chão incessantemente ao lado da imagem de “gritos de horror” fendendo a noite, em que “sacrifícios humanos sangravam”[6], mas ao final eram sempre saudados pela luz da manhã com o aparecimento de uma nova represa ou canal.

O primeiro episódio trágico da narrativa aparece quando Fausto lança sua mira furiosa sobre Filemo e Báucia, um casal de velhinhos que permanecem desde longa data morando em um pequeno chalé nas dunas, onde oferecem ajuda e hospitalidade a marinheiros náufragos e sonhadores. Ocupando uma pequena porção de terra encravada em meio àquelas grandes obras, o simpático e indefeso casal se coloca como obstáculo no caminho expansionista de Fausto, que programa removê-los para cons­ truir ali uma torre de observação, do alto da qual ele e os seus possam “contemplar a distância até o infinito”[7]• E, contrariado com o fato de eles não aceitarem um polpudo pagamento em troca do terreno em que moravam, Fausto ordena a Mefisto que os retire dali imediatamente, liberando a terra para que as obras possam prosseguir. Porém, ao saber que Mefisto havia incendiado a casa, matando impiedosamente o casal de velhinhos, Fausto, ultrajado, o chama de monstro e o expulsa. Ao que o príncipe das trevas responde com uma risada antes de se retirar, explicitando o fato de que “Fausto vinha fingindo, não só para os outros mas para si mesmo, que podia criar um novo mundo com mãos limpas”[8]

Escrevendo seu livro nos albores da década de 1980, Marshall Berman cria uma potente reflexão a respeito da atualidade do pacto fáustico, sobre o fundo sombrio da crise energética da década anterior, da constante ameaça nuclear e dos traumas com a então recente Guerra do Vietnã. Pois o verdadeiro pacto fáustico, consumado historicamente com a Revolução Industrial, parecia dar sinais de que caminhava para seus capítulos decisivos, isto é, para seu desfecho trágico, o momento em que Mefisto vem cobrar o seu quinhão após ter dado a Fausto todo o poder do mundo, aumentando imensamente a sua força produtiva. Assim, segundo a penetrante análise que Berman faz daquilo que chamou de tragédia do desenvolvimento, o “peculiar ambiente que constitui o cenário do último ato do Fausto – o imenso canteiro de obras, ampliando-se em todas as direções, em constante mudança e forçando os próprios figurantes a mudar também – tornou-se o cenário da história mundial em nosso tempo”[9]

O marco zero da era fáustica nas cidades, em termos históricos, é a reforma de Paris conduzida pelo barão Haussmann entre 1853 e 1870, assunto também abordado no livro de Berman através da figura de Baudelaire. Conduzido à prefeitura de Paris por Luís Bonaparte durante o chamado Segundo Império francês, Haussmann governou a cidade com mãos de ferro, realizando um “urbanismo a golpes de martelo” – expressão que, como vimos, ecoaria depois em Nietzsche -, demolindo vastas áreas da cidade para reconstruí-las segundo uma nova feição moderna. Conhecido, por isso, como o artista demolidor, Georges-Eugene Haussmann foi o responsável pelas grandes obras que transformaram drasticamente a face de Paris, construindo um vasto sistema de avenidas largas (os bulevares) que erradicaram o aspecto medieval da cidade, tornando-a a Cidade Luz, um novo centro de cultura, lazer e consumo que desembocaria na chamada belle époque do final do século e no surgimento da art nouveau.

A reforma de Paris, como se pode imaginar, foi extremamente violenta. Combatendo a revolução fracassada de 1848, o urbanismo higienista de Haussmann expulsou as classes populares das áreas centrais para regiões distantes e tornou a cidade muito menos suscetível a manifestações

Figura 2. Subúrbio de Xangai, 2013. Foto: Valentina Tong.

populares e guerrilhas de barricadas. Ao mesmo tempo, contudo, preparou Paris para a modernidade, para a escala das massas e para a euforia da vida metropolitana que vemos em muitas das pinturas impressionistas, com seus bulevares cheios de gente, suas pontes metálicas, gares, trens e fumaças. Modernidade plasmada na vida e na imagem da própria cidade, que por isso mesmo pode ser considerada, segundo a conhecida designação de Walter Benjamin, como a capital do século XIX.

Sabemos, no entanto, que o verdadeiro palco da flânerie benjaminiana, mirada em Baudelaire, ao contrário do que faz supor Marshall Berman, não é o espaço público convencional presente no bulevar haus-

smanniano, e sim a cidade de vielas que morre com a grande reforma e que ainda entrevemos hoje no ensaio fotográfico de Charles Marville (Album du vieux Paris [Álbum da velha Paris], 1865-68). A propósito, como nota Adrián Gorelik, para Walter Benjamin “Haussmann destrói a Paris onírica do jlâneur, seus últimos rasgos de autenticidade, para formar a metrópole na qual não haveria mais lugar para a experiência”[10]

O ano de 1848, imediatamente antes da subida de Napoleão m ao poder, foi o marco de uma das primeiras crises em grande escala do capitalismo nascente, uma crise de capital não reinvestido e de desemprego em massa. Daí a tentativa fracassada de revolução, naquele ano, de trabalhadores desempregados e utopistas burgueses, que teve como desdobramento histórico contraditório a ascensão de Luís Bonaparte ao poder, através de um golpe de Estado, e sua autoproclamação como imperador em 1851. E, como mostra David Harvey, sua estratégia como governante se baseou na repressão aos movimentos de oposição, por um lado, e em um vasto programa de obras de infraestrutura, por outro, tais como ferrovias e portos, além da ampla reforma da capital. No caso da cidade de Paris, o imperador confiou o programa de estabilização econômica do sistema a Haussmann, que, segundo as palavras de Harvey, “entendeu claramente que sua missão era ajudar a resolver o problema do capital e do desemprego por meio da urbanização”[11].

Portanto, absorvendo enormes volumes de dinheiro e mão de obra, a reconstrução da cidade foi um poderoso veículo de estabilização social e econômica. Com efeito, para realizar tamanha empreitada, a prefeitura precisou do apoio de instituições financeiras e de crédito, criando, ainda segundo Harvey, “um sistema protokeynesiano de melhorias urbanas de infraestrutura financiadas por títulos de dívida”[12]• Como está claro, estava inventado aí o modelo de estabilização econômica do capitalismo em momentos de superprodução, através de uma aliança simbiótica entre mercado imobiliário e capital financeiro, tão poderosa até os dias de hoje, como sabemos.

E, no caso da Paris do século XIX, a reforma criou empregos e mercado para a absorção da produção de excedentes, fazendo da cidade um centro de lazer e consumo, apto a absorver dinheiro e mercadorias em grande escala. Daí o narcisismo orgulhoso da art nouveau, o grande símbolo dessa nova cultura urbana. Esse foi o primeiro movimento artístico a se afirmar socialmente como moda, isto é, como arte nova, signo de privilégio e distinção social que se reafirma através de um desenho com valor passageiro, pronto a ser substituído. É por isso que, segundo Giulio Carlo Argan, aartnouveau, “enquanto estilo ‘moderno’, corresponde ao que, na história econômica da civilização industrial, é chamado de ‘o fetichismo da mercadoria”‘[13]• E também, poderíamos completar, corresponde ao que é chamado de obsolescência programada.

VIOLÊNCIA DESAPAIXONADA

Sabemos que essa interpretação positiva da destruição, por parte de muitos dos pensadores e artistas modernos do século XIX, encontra o seu limite histórico nas duas grandes guerras mundiais da primeira metade do século XX,. Daí, inclusive, que a sua retomada altissonante e descalibrada em alguns dos movimentos de vanguarda do início do século – tal como no caso mais explícito dos futuristas, apologistas da guerra e da higiene étnica e social através da tecnologia – já nos pareça um embuste sinistro, destituído da complexa ambiguidade presente naquele pathos catártico da destruição criativa. Ao que tudo indica, no século XX, sob a égide da guerra técnica e da destruição em massa, a violência se naturaliza nas práticas sociais, instrumentaliza-se, perdendo aquele aspecto redentor e revolucionário que parecia ter antes. Sintomaticamente em 1923 – seis anos após a Revolução Russa – Le Corbusier propõe a arquitetura e o urbanismo como remédios à revolução social: ”Arquitetura ou revolução. Podemos evitar a revolução”, afirma[14]. Portanto, em uma perspectiva oposta à de Marx e espelhada em Haussmann, Corbusier entende a arquitetura como antídoto aos processos revolucionários instaurados pela modernidade. Um antídoto que, no entanto, assim como na reforma de Paris, se realizaria modernamente através de processos extremamente violentos, fazendo tabula rasa da cidade existente. Não por acaso, a sua Ville Radieuse, em 1935, é dedicada à autoridade.

Depois da Segunda Guerra Mundial, no período que Eric Hobsbawm qualificou como a era de ouro do século, o paradigma cultural do Ocidente vai deixando de ser a destruição violenta da guerra, tal como se pode ver no cubismo, para se tornar a destruição lenta do consumo, tal como aparece na pop art[15]Nesse período começa a ocorrer o processo de grande subur­ banização das cidades norte-americanas – modelo logo exportado para todo o mundo -, conduzida pela difusão do automóvel, o baixo preço do petróleo e o subsídio à compra de casas unifamiliares em áreas distantes. Associam-se, assim, a dispersão territorial, o culto à propriedade privada, o endividamento das famílias, a atomização social e o conservadorismo político. Paralelamente, os centros urbanos se esvaziam e passam a apre­ sentar maiores problemas com violência e segregação social. Trata-se, como se vê, de um modelo urbano predatório, que, no entanto, se difundiu enormemente pelo globo.

Mais uma vez aqui, as grandes obras de urbanização apareceram para resolver exemplarmente o problema sistêmico de reinvestimento do capital. Problema que, na primeira metade dos anos 1940, no caso dos Estados Unidos, havia sido aplacado na ampla mobilização da economia do país para a guerra. E que permaneceu resolvido, no período seguinte, tanto pela manutenção do vínculo ao incremento da indústria armamentista em razão da Guerra Fria, por um lado, quanto pela enorme expansão urbana através dos subúrbios, por outro, mais uma vez articulada a uma ampla política de créditos junto a instituições financeiras. Dessa associação sobreviveu o capitalismo, em grande medida, em sua chamada era de ouro, até que a crise do petróleo, somada ao estouro da bolha imobiliária americana, em 1973, encerrassem essa fase histórica.

Bem se sabe que tal associação entre economia financeira e mercado imobiliário é a responsável não apenas pela estabilização do sistema capitalista em períodos de superprodução, como também, por outro lado, pela formação das chamadas hipotecas podres e pelo estouro das bolhas mais recentes do sistema capitalista mundial globalizado, que insistem em reaparecer como uma crise sistêmica não resolvida. Daí a insistência de David Harvey no papel central que a urbanização e o mercado imobiliário desempenham no funcionamento do capitalismo em sentido amplo. Papel que ganhou maior protagonismo ainda à medida que o investimento global na indústria bélica – o outro par importante na absorção da produção excedente – declinou após o fim da Guerra Fria. O que observamos, a partir de então, e em escala global, foi uma espécie de superinflação da construção civil e da especulação imobiliária, baseadas, em grande medida, em programas de demolição em grande escala, uma escala verdadeiramente fáustica. Tudo se passa, segundo a hipótese que proponho aqui, como se o antigo conceito de obsolescência programada das mercadorias, referido aos pequenos bens de uso cotidiano, se transferisse para o próprio território do planeta, fazendo com que os bens perenes sejam tratados como artigos de consumo. Agora, na voragem da hiperurbanização mundial, é a própria terra que tem a sua taxa de obsolescência imensamente acelerada. E a arquitetura, arte historicamente ligada à firmitas[16], à solidez, se vê diante de uma crise de identidade.

Não é possível supor, portanto, que a violência tenha deixado de desempenhar um papel central em nossa sociedade em tempos recentes. A diferença é que ela agora não parece mais investida nem de um poder catártico, tal como na primeira metade do século XX,, durante as duas guerras mundiais, nem de uma força construtiva regeneradora, tal como suposto na destruição criativa da segunda metade do século XIX,. Naturalizada e infiltrada em todas as esferas da vida social de uma maneira muito mais banal e capilar, a violência, entre nós, se tornou desapaixonada. É a destruição lenta do consumo a que se refere Argan[17]• E o predomínio do consumo enquanto valor social hegemônico, tal como percebeu Hannah Arendt já no final dos anos 1950, materializado na vitória do animal laborans sobre o homo faber, significa a erosão da durabilidade das coisas, da durabilidade do mundo[18]

Nesse contexto, em que o par destruição-construção, associado à especulação e ao consumo, assume o comando da regulação econômica do sistema em escala global, é sintomático que eventos globais de massa os mais variados se tornem progressivamente, em essência, grandes negócios imobiliários. Refiro-me aqui a eventos originalmente esportivos, como a Copa do Mundo de futebol e os Jogos Olímpicos, que a partir dos anos 1990 começaram a abarcar uma série inteiramente nova de exigências técnicas e funcionais, com seus complexos aparatos logísticos, que redundaram em grandes obras de arquitetura e infraestrutura, acompanhadas de imensos custos e também, por que não, de imensos lucros. Pois se a sociedade é cada vez mais tratada como um grande mercado consumidor, a qualidade de vida nas cidades se tornou essencialmente uma mercadoria. Igualmente, as cidades também são entendidas cada vez mais, nesse contexto, como cidades-negócio que adotam estratégias competitivas de crescimento urbano. Isso faz com que o seu valor de uso, atributo histórico de definição das cidades enquanto

Figura 3. Chongqing, 2013. Foto: Valentina Tong

Figura 4. Kangbashi, Ordos, 2013. Foto: Valentina Tong.

tais, vá se tornando algo recessivo diante da hipertrofia do seu valor de troca. É a cidade entendida como “máquina de produzir riqueza”, segundo a definição de Harvey Molotch e John Logan – a cidade como “máquina de crescimento”[19]

A valorização excessiva do valor de troca em detrimento do valor de uso das cidades é um fenômeno que tem gerado situações aberrantes nos dias atuais. Uma delas é a cidade de Kangbashi, em Ordos, situada na província chinesa da Mongólia Interior, no extremo norte do país.

Planejada e construída a partir de 2001 para uma população de um milhão de habitantes, a cidade tem apenas em torno de cinco mil ainda. Mas, aparentemente, a geração de empregos proporcionada pelas obras de construção da cidade, mais o papel simbólico que ela desempenha em uma região de fronteira (e de conflito), como um polo local de economia criativa, parecem bastar, pelo discurso do governo e dos investidores,

Figura 5. Kangbashi, Ordos, 2013. Foto: Valentina Tong.

para justificar o sucesso do empreendimento. Sintomaticamente, ao ser perguntado sobre o possível mau negócio que ele teria feito ao investir em imóveis de uma cidade-fantasma, um investidor pequinês, dono de propriedades em Ordos, respondeu tranquilamente o seguinte: “Foi um bom negócio. Estou investindo em uma cidade que não está sendo gasta”[20].

A transformação do planeta em um imenso e permanente canteiro de obras vem associada a um processo de grande mobilidade e flutuação populacional no mundo, em que enormes contingentes de pessoas pobres migram ou imigram sem cessar em busca de trabalho, empregando-se de forma cada vez mais precária na construção civil, tanto para obras de construção quanto de demolição. A China, nesse sentido, é o epicentro de um processo de urbanização que se tornou realmente global, devido à integração dos mercados financeiros mundiais. Consumindo desde a virada do milênio praticamente a metade de todo o cimento produzido no mundo, o país que Mao Tsé-Tung manteve muito pouco urbanizado até o final dos anos 1970 tem hoje mais de cem cidades com população acima de um milhão de habitantes. E apresenta espantosos fenômenos de hiperurbanização quase instantânea, tais como os que ocorreram em Chongqing, Guangzhou e Shenzhen, por exemplo. Esta última, aliás, foi construída sobre uma antiga vila de pescadores no delta do rio Pérola, onde se criaram a partir dos anos 1980 as chamadas Zonas Econômicas Especiais. Após meros 35 anos de existência, Shenzhen abriga hoje 11 milhões de habitantes, um centro financeiro pujante, uma bolsa de valores (só Xangai também tem uma bolsa de valores no país) e um skyline com prédios altíssimos, sediando bancos e proeminentes companhias de tecnologia, hotéis de alto padrão e unidades habitacionais.

Figura 6. Shenzen, 2013. Foto: Valentina Tong.

Cidade-oásis com o maior crescimento mundial do PIB ao longo da década de 2000 (com uma média de 28% a cada ano), Shenzhen é inteiramente composta por uma população de migrantes, com uma média etária abaixo de 30 anos, e aproximadamente 70% de população flutuante. Flutuação que, se por um lado confere um aspecto dinâmico à cidade, é também perversa por outro, gerando porções de cidade oficialmente inexistentes. Pois, apesar de os antigos vilarejos de pescadores terem sido englobados fisicamente pela cidade em seu processo de expansão, eles mantiveram legalmente um estatuto ambíguo, configurando-se como

Figura 7. Shenzen, 2013. Foto: Valentina Tong.

minienclaves rurais dentro da malha urbana, onde vieram a se instalar habitações precárias e muito densas, que nós associaríamos a cortiços ou favelas. Como não consta nos dados oficiais dos moradores de Shenzhen, boa parte dessa população flutuante, que constitui a mão de obra barata que trabalha na cidade, não tem acesso aos serviços públicos. Trata-se, é claro, de uma fórmula cruel de crescimento urbano, que financia a construção de uma cidade com baixos custos.

No interessante livro How the City Moved to Mr. Sun: China’s New Megacities (Como a cidade mudou para o sr. Sun: as novas megacidades chinesas), Michiel Hulshof e Daan Roggeveen descrevem, entre outros casos, as desventuras de Sun Huanzong, um camponês, morador dos arredores de Shijiazhuang, no norte do país, que passou por processos seguidos e traumáticos de desapropriação já na terceira idade. Pois quando a primeira onda de urbanização chegou às suas terras, em meados dos anos 1990, Sun usou a baixa indenização que recebeu para construir um edifício multifuncional na cidade, misturando sua residência a comércio e apartamentos para aluguel, um cibercafé e uma cobertura-jardim com horta, miniaturizando sua antiga fazenda. É o que, como explicam os autores, se chama na China de “a aldeia na cidade”[21]

Figura 8. Chongqing, 2013. Foto: Valentina Tong.

Trata-se de um estágio intermediário daquela selvagem urbanização capitalista em uma economia de Estado.

Nessa etapa, os antigos produtores rurais se tornam empreendedores imobiliários, dando origem a uma cidade marcada pela mistura de usos e por extensões informais e orgânicas dos edifícios. Ocorre que, em um segundo estágio, que não demora muito a chegar, o planejamento estatal coletivista vem derrubando essa cidade vibrante e caótica para erguer grandes empreendimentos estéreis no seu lugar, feitos de imensas torres e shopping centers.

No caso de Mr. Sun, como em muitos outros, o comitê da antiga aldeia foi subornado e, em 2009, os camponeses-empreendedores foram obrigados a entregar seus imóveis para a companhia urbanizadora em troca de dois apartamentos nas novas torres. As pessoas que resistiram foram espancadas por bandos de mercenários, como ocorre em muitos outros casos, que deram origem a um popular videogame na China (Stubborn Nail versus Gang of Thugs), no qual o jogador, posto na posição dos moradores atacados, usa armas do exército para exterminar tais gangues[22]

A extrema atualidade das questões levantadas pela urbanização voraz da China de hoje, com suas contradições violentas, é a matéria-prima de muitos dos filmes do jovem e extraordinário diretor chinês Jia Zhangke. Especialmente em Em busca da vida (Still Life, 2006), ele flagra a situação de dramática transformação de Fengjie, um lugarejo milenar no sul do país, à beira do rio Yang-Tsé, que seria, a seguir, em grande parte alagado pela represa criada com a barragem de Três Gargantas, uma das obras mais fáusticas do nosso tempo. Os dois personagens principais do filme são desterrados, figuras de outras localidades que ali desembarcam em busca de pessoas que não encontram. Enquanto isso, enormes contin­ gentes de homens trabalham em condições penosas – sem instrumentos adequados e sob condições de calor e umidade extenuantes – para demolir os edifícios da parte da cidade que será alagada. Eles estão empenhados em apagar a própria cidade. Suas ações são negativas. Todo o esforço é empregado na destruição, destituída, aqui, de qualquer caráter criativo. E, enquanto o cenário urbano é apocalíptico, a paisagem natural em volta é esplendorosa, edênica. Com grande poder poético, o filme trata da incomunicabilidade e da impermanência, mostrando o descompasso brutal entre a extrema mobilidade física das pessoas – migrantes de todas as partes que erram pelo país em busca de trabalho – e a sua atávica condição de imobilidade social e psicológica.

NOT TO BE

Quando olhamos para o vertiginoso fenômeno atual da hiperurbanização chinesa, em que aldeias rurais se tornam cidades com dois algarismos de milhões de habitantes em muito pouco tempo, enxergamos processos extremamente violentos, nos quais a destruição massiva, tanto de construções antigas quanto de vilas rurais ou paisagens naturais, parece completamente destituída de qualquer pathos heroico ou regenerador. A destruição da natureza e das pequenas e antigas construções é um imperativo inteiramente fáustico: vamos começar tudo do zero! Com isso, o princípio da

Figura 9. Xangai, 2or3. Foto: Valentina Tong.

obsolescência programada parece deslocar-se dramaticamente das mercadorias de uso comum para o próprio território do planeta. Estamos consumindo tudo de maneira cada vez mais inces­ sante e voraz e destruindo o mundo à nossa volta em nome da eterna abundância, valor supremo do animal laborans. “Perecibilidade é saber que vamos morrer”, escreve o artista Cildo Meireles em um pequeno texto aforístico, enquanto a “descartabilidade é suicidarmo-nos por causa disso”. E conclui: “Not to be or not to be, eis a questão”[23]

  1. Marshall Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade, São Paulo: Companhia das Letras, 1986. A edição original em inglês é de 1982.
  2. Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 106.
  3. Ibidem, p. 109. O diálogo “Fala o martelo” (Assim falou Zaratustra, 3, 90) foi republicado como epílogo em Crepúsculo dos ídolos cuja edição é a referida aqui.
  4. David Harvey, A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural, São Paulo: Loyola, 1993, p. 26.
  5. Marshall Berman, op. cit., p. 70. Os trechos citados do Fausto de Goethe são: 10 202-5 e 10 218-21.
  6. Ibidem, p. 73.
  7. Ibidem, p. 77.
  8. Ibidem.
  9. Ibidem, p. 85. Impossível não pensar que essa premonição se revela cada vez mais atual, assim como a ameaça da cobrança pelo pacto fáustico da industrialização, com a escassez de água e outros recursos naturais no planeta, bem como as violentas e recentes reações do planeta à dominação humana, como o buraco na camada de ozônio, o efeito estufa, as erupções vulcânicas, os tufões e tsunamis que assolam o mundo nos últimos anos.
  10. Adrián Gorelik, “Políticas de representación urbana: el momento situacionista” (Políticas de representação urbana: o momento situacionista), em: Correspondencias: arquitectura, ciudad, cultura (Correspondências: arquitetura, cidade, cultura), Buenos Aires: Nobuko, 2011, p. 73.
  11. David Harvey; “O direito à cidade”, Piauí, n. 82, Rio de Janeiro, jul. 2013, p. 39.
  12. Ibidem.
  13. Giulio Carla Argan, Arte moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporâneos, São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 199.
  14. Le Corbusier, ”Arquitetura ou revolução”, em: Por uma arquitetura, São Paulo: Perspectiva, 2002, pp. 189-205.
  15. Giulio Carla Argan, ”A crise da arte como ‘ciência europeia”‘, op. cit., pp. 507-649.
  16. A famosa tríade vitruviana é composta por: firmitas (estabilidade estrutural), utilitas (acomodação espacial adequada) e venustas (aparência atraente, beleza). Cf. Vitrúvio, Da arquitetura, São Paulo: Annablume/Hucitec, 2002.
  17. Giulio Carlo Argan, op. cit., p. 509.
  18. Segundo Hannah Arendt, promovido a sujeito social aquele que é, por definição, alienado do mundo, o animal laborans mina pelo consumo a durabilidade do artefato humano à sua volta, transformando objetos duráveis em mercadorias expostas a taxas de obsolescência simbólica cada vez mais altas. Cf. Hannah Arendt, A condição humana, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
  19. Harvey Molotch e John Logan, “The City as a Growth Machine” (A cidade como uma máquina de crescimento), Urban Fortunes: The Political Economy of Place (Fortunas urbanas: a economia política do lugar), Berkeley: University of California Press, 1987, pp. 50-98.
  20. Cf. Guilherme Wisnik et al., “China, o mundo renderizado”, Monolito, n. 17, X Bienal de Arquitetura de São Paulo, São Paulo, out.-nov. 2013, p. 55.
  21. Michiel Hulshof e Daan Roggeveen, How the City Moved to Mr. Sun: China’s New Megacities, Amsterdã: Sun, 2011, p. 45.
  22. Ibidem, p. 57.
  23. Cildo Meireles, “Obscura luz” (1984), em: Paulo Herkenhoff et al., Cildo Meireles, São Paulo: Cosac Naify, 2000, p. 128.

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