2017

Pânico e terror sagrado: sobre algumas figuras do medo

por Jean-Pierre Dupuy

Resumo

A França vem sofrendo regularmente, juntamente com mais de 20 países no mundo, com atentados terroristas reivindicados por grupos que falsamente se denominam representantes do Islã, como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico. Além da extrema violência, do ódio que caracterizam esses atentados têm geralmente uma natureza que dissemina o pânico na população: embora os lugares e os grupos alvejados tenham características mais ou menos definidas, suas vítimas não são escolhidas individualmente. O objetivo é claro: gerar medo. Na França, a opinião pública costuma logo dividir-se em extremos que refletem intolerância e falta de uso da razão. Logo depois de um atentado de grupos ou indivíduos que se proclamam islamitas, a extrema esquerda logo se apressa em apontar toda espécie de causas do tipo sociológico, econômico, político e geopolítico, e até mesmo psicológico ou psiquiátrico. Certamente, “explicar não é justificar, mas a linha que separa as duas noções às vezes é vaga.” Houve quem apontasse como “vítimas” os terroristas que atingiram as Torres Gêmeas e quem recusou essa interpretação passou a ser chamado de islamofóbico. A extrema direita, por sua vez, insiste num conceito geral sobre o Islã: “a recusa em separar a política da religião, sua ambição em estabelecer um califado universal na Terra tornariam o Islã fundamentalmente incompatível com a democracia.” Fixar-se nesses argumentos certamente aumenta a segregação da grande comunidade islâmica francesa no país. Posto isso, queremos neste ensaio nos aprofundar na definição freudiana de multidão, no que ela representa em termos de coesão, com a supressão do “amor de si” ou do egoísmo antissocial por parte da massa para projetar o amor no chefe, este detentor de um egoísmo exacerbado. O pânico, esse medo coletivo e violento, representa justamente a dissolução dos laços que unem a multidão. Ele se dá na ausência do chefe e aparece de forma súbita, imprevisível e inexplicável, como o próprio personagem mitológico. Da parte do terrorista, esse que geralmente dá a vida em nome de uma causa que não pode ser confundida com religião autêntica, ocorre um “simulacro do sagrado”, numa crença pessoal e compartilhada com grupos extremistas na purificação por meio do sacrifício de inocentes e do próprio agente do atentado, ato absurdo, louco e causado pelo ódio.


[1]

A Al-Qaeda ou o Estado Islâmico sabem que jamais poderão

vencer uma nação tão forte como a América, então eles tentam

aterrorizar, esperando que o medo nos colocará uns contra os outros.

Barack Obama, 11 de setembro de 2016

ANATOMIA DE UM ATO TERRORISTA

Quando Adauto Novaes me pediu para tratar do tema do medo, imediatamente pensei em apresentar a face positiva do medo, que nos faz dizer que às vezes “o medo pode ser bom conselheiro”. Por várias vezes expus no ciclo Mutações meus trabalhos sobre as catástrofes que põem em perigo até mesmo a continuação da aventura humana, como a questão da mudança climática, a ameaça nuclear ou os riscos ligados às tecnologias avançadas. De acordo com o filósofo alemão Hans Jonas, é apostando no medo que deveríamos experimentar, mas que não experimentamos diante das catástrofes anunciadas que eu procurei uma solução. Demonstrei que a razão pode e deve nutrir-se do medo, mas não de qualquer medo: não esse que nos cobre de pavor e nos impede de pensar e de agir, mas, ao contrário, o medo simulado, intelectualizado, imaginado, que nos mostra o que é importante para nós, aquilo a que somos apegados, que corremos o risco de perder e que temos o dever de conservar.

Mas fiz essa escolha antes da série de atentados terroristas cometidos em nome do islã que golpearam cruelmente meu país. A França não é certamente a única parte atingida do mundo, mas é, ao que parece, um alvo de escolha para organizações terroristas como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, por ao menos duas razões: porque é o país que, devido ao seu passado colonial, tem a maior população muçulmana da Europa e porque é um país que faz uma separação absoluta, sob o nome de laicidade, entre a esfera pública e a religião, uma verdadeira provocação para o islã, que recusa tal distinção.

Duas séries de acontecimentos particularmente atrozes atraíram a atenção do mundo inteiro. Na noite de 13 de novembro de 2015, três comandos distintos operando em nome do Estado Islâmico executaram, em paralelo, uma série de fuziladas e de ataques suicidas em Paris e arredores. Perto do Stade de France, em Saint-Denis, importante estádio de futebol onde acontecia a partida entre França e Alemanha à qual o presidente da República assistia, três terroristas se suicidaram explodindo uma bomba. Pouco mais tarde, no 11o Distrito, um dos novos lugares “da moda” da capital, três outros terroristas metralharam os terraços de cafés e restaurantes frequentados principalmente por jovens. Ao mesmo tempo aconteceu o ataque mais espetacular e mais mortífero: na casa noturna Bataclan, onde 1.500 pessoas assistiam ao concerto do grupo de rock americano Eagles of Death Metal, outros três jihadistas atiraram ao acaso contra a multidão, provocando um pânico indescritível. O balanço dessa noite foi de 130 mortos e 413 pessoas hospitalizadas.

No dia 14 de julho de 2016, dia da festa nacional, um caminhão em alta velocidade avançou sobre a multidão que acompanhava a tradicional queima de fogos de artifício no Mediterrâneo, na famosa Promenade des Anglais, em Nice, atropelando e matando 86 pessoas (balanço até essa data) e ferindo 458. Novamente seguiu-se um pânico ensandecido. Uma vez mais o Estado Islâmico reivindicou a carnificina.

Nos dois casos, a cena dos massacres foi construída de modo a criar um sentimento generalizado de medo, sentimento que se exacerba pela difusão constantemente repetida das imagens na mídia e nas redes sociais. Dois vídeos disponíveis na internet dão uma pequena ideia do que foram esses momentos de pânico[2]. No vídeo do Bataclan, vemos sobreviventes da carnificina arrastando cadáveres para uma rua situada atrás do prédio. Nas imagens de Nice vemos a inacreditável chegada do caminhão branco – toda a circulação de carros, é claro, estava proibida –, sua aceleração ao se aproximar da multidão e, depois, mais nada… Em seguida, o pânico na Promenade des Anglais e nas ruas de Nice.

A França não é, evidentemente, o único alvo do terrorismo islâmico. Apenas nos dois últimos anos foram atingidos muitas vezes os seguintes países: Alemanha, Inglaterra, Dinamarca e Estados Unidos, isso para falar do mundo ocidental. Mas os atentados mais frequentes e mais terríveis atingem o próprio mundo muçulmano: Tunísia, Líbia, Egito, Arábia Saudita, Líbano, Iraque, Síria, Turquia, Somália, Chade, Mali, Nigéria, Quênia, Camarões, Iêmen, Paquistão, Afeganistão e Bangladesh.

Pareceu-me que o medo, o medo nu, o pavor bruto que esses atos despertam era um tema, não mais importante, porém mais imediato do que aquele que eu inicialmente previra tratar.

O que me interessa aqui é o elo que se pode traçar entre esses atos terroristas cometidos em nome de uma religião – isto que eu denomino terror sagrado – e o fenômeno social muito particular que denominamos pânico. Vou tentar mostrar que essa questão, que pode parecer excessivamente obscura e de interesse limitado à primeira vista, vai nos conduzir a uma discussão antropológica fundamental.

Os atos terroristas que considero implicam uma “encenação” bem precisa, no sentido teatral do termo. Um homem sozinho, ou às vezes um pequeno grupo, toma por alvo uma multidão anônima, dispara ao acaso com uma Kalachnikov ou lança seu veículo a toda a velocidade contra tudo que estiver no seu caminho, ou ainda se explode com um cinturão de explosivos no meio de uma reunião, de um café ou de um mercado[3].

Essas diversas técnicas de carnificina apresentam traços em comum. Primeiro, as vítimas não se tornam individualmente alvos; é o acaso que as “escolhe”, se pudermos dizer assim, à maneira de um tsunami que, também ele, de modo algum se interessa pela identidade daqueles que ele leva à morte e daqueles a quem poupa. Esse traço distingue fortemente tais desastres dos atos do terrorismo político que escolhe suas vítimas.

No dia 7 de janeiro de 2015, os dois irmãos assassinos que mataram doze pessoas, entre elas nove jornalistas na sede do jornal satírico Charlie Hebdo, sabiam exatamente quem queriam atingir, pois anunciaram um a um o nome de suas vítimas antes de abatê-las. Do mesmo modo, o terrorismo anarquista dos anos 1970 e 1980 na Alemanha, com o grupo Baader-Meinhof, e na Itália, com as Brigadas Vermelhas, praticavam, sobretudo, assassinatos seletivos.

Em segundo lugar, no final, o terrorista morre e sabe disso quando comete seu ato, seja porque o suicídio é a arma de seu crime, seja porque ele não tem nenhuma chance de escapar. De fato, dos autores dos quatro maiores atentados que atingiram a França em 2015 e em 2016 – os três que acabo de mencionar e aos quais se deve acrescentar o padre que foi degolado quando celebrava a missa numa igreja na Normandia, no dia 26 de julho de 2016 – somente um ainda está vivo.

Em terceiro lugar, enfim, e este é o traço aparentemente mais evidente, porém mais problemático, esses atentados são praticados em nome de uma religião: o islã[4]. É nesse ponto que se concentra o debate na Europa e, em particular, na França. Ouvimos principalmente e, às vezes, violentamente, o confronto entre duas posições extremas em torno de uma noção vaga: a islamofobia. Na extrema esquerda, toda a espécie de causas do tipo sociológico, econômico, político e geopolítico, e até mesmo psicológico ou psiquiátrico, já foi citada para explicar esses atos insólitos. Explicar não é justificar, mas a linha que separa as duas noções às vezes é vaga. Não foi preciso nem uma semana depois do 11 de setembro de 2001 para que o natural viés de antiamericanismo de certa esquerda francesa levantasse a cabeça e se recusasse a condenar os criminosos com a justificativa de que eles sacrificaram suas vidas. Foi impressionante ver que, a partir desse momento, a palavra vítima começou a ser utilizada não para designar os infelizes ocupantes das torres, mas os próprios terroristas, considerados então duplamente vítimas: da injustiça do mundo e da necessidade de se tornarem mártires. Aqueles que se opõem a esse tipo de interpretação são qualificados de islamofóbicos.

No outro extremo, em particular no seio da direita católica, explicam-nos que há alguma coisa de intrinsecamente violento nas crenças e nas práticas do islã. Sua teologia sacrificial, sua recusa em separar a política da religião, sua ambição em estabelecer um califado universal na Terra tornariam o islã fundamentalmente incompatível com a democracia.

Parece impossível encontrar um espaço de concordância entre essas duas posições que dividem cada vez mais a sociedade francesa sempre que um novo atentado criminoso acontece. Entretanto, gostaria de propor um meio de aproximá-las. Não há nenhuma dúvida de que estamos diante de assassinatos coletivos da pior espécie e que o apelo a Deus e à religião é um disfarce. Também não se pode negar que os terroristas se sacrificam, no sentido de que executam seu gesto com plena consciência de que vão morrer, ainda que com o objetivo de causar a morte de um grande número de pessoas. Sob influência do cristianismo, associamos espontaneamente autossacrifício e sacrifício à divindade. A leitura tradicional e sacrificial do cristianismo é a de que o Cristo salva os homens quando aceita o martírio da cruz, oferecendo esse sacrifício de si mesmo ao seu Pai, o que é o sacrifício supremo. Recuamos de pavor diante da ideia de assimilar o assassino louco da Promenade des Anglais a uma figura crística. E, entretanto, aí está uma interessante pista de pesquisa que vai nos guiar.

Sem esperar, digo de imediato que a chave se encontra na distinção entre religião e sagrado. O sagrado são essas “formas elementares da vida religiosa” que o fundador da sociologia francesa, Émile Durkheim, estudou no seu livro do mesmo nome (1912) e que a antropologia religiosa analisou distinguindo três dimensões: primeiro, os rituais, o mais primitivo deles sendo o sacrifício humano; em seguida, os mitos, as narrativas que ligam a sociedade às suas origens imaginárias; e os interditos, que fixam os limites da ação humana. Se admitirmos, de acordo com toda uma tradição de pensamento que tem seu ponto de partida na sociologia de Max Weber, que o judaísmo e, em seguida, o cristianismo são responsáveis pelo desencantamento do mundo, quer dizer, por sua dessacralização, vemos que é fundamental não confundir o religioso e o sagrado.

Etimologicamente, sacrifício é aquilo que torna sagrado. Ora, o judaísmo e o cristianismo dizem: Deus não quer sacrifícios. E o que diz o islã? Ele se origina no religioso ou no sagrado? Não vou opinar sobre isso. Em compensação, vou me pronunciar sobre o que são esses atos que combinam autossacrifício e assassinato coletivo, cometidos em nome do islã.

As palavras têm sua sabedoria. O sagrado – sacer, em latim – é profundamente ambivalente: é ao mesmo tempo aquilo que se venera e aquilo que se teme. Ele protege e destrói. Em francês e em português, utilizo a expressão com duas palavras: terror sagrado. Traduzo desse modo uma só palavra inglesa, awe, que combina os dois aspectos contraditórios do sagrado, como se pode ver com os dois adjetivos que ela engendrou: awful, aquilo que é horrível, e awesome, aquilo que é magnífico. Notemos que existe a mesma ambivalência em inglês com a palavra terror, que dá ao mesmo tempo terrible, ou seja, terrível, e terrific, que quer dizer excepcional, fantástico, esplêndido, impressionante.

Vou abordar agora o outro termo que está no título desta apresentação: o pânico.

O PÂNICO: ENTRE MITO E CIÊNCIA

O pânico, como o nome indica, é um medo coletivo[5], e esse medo remete a um mito grego, o do deus Pã. Pã, deus dos pastores, mantinha seus rebanhos na terra da felicidade calma, a Arcádia. Como o sagrado, ele reunia traços contraditórios. Era meio homem, meio cabra, ao mesmo tempo monstro e sedutor, virtuoso da flauta e insaciável amador de ninfas. Podia aparecer subitamente detrás de um bosque e inspirar um terror súbito: o pânico. Como escreve Philippe Borgeaud nas suas belas Recherches sur le dieu Pan [Pesquisas sobre o deus Pã]: “Herdeiro direto da noite original, o árcade tem o privilégio de poder, a todo momento, reviver seu nascimento para a humanidade. Ele está, culturalmente, no limiar. Um passo adiante, ei-lo absolutamente grego e até mesmo, o que é importante aos olhos da história, democrata; um passo atrás, eis que se torna novamente selvagem. Esta posição liminar dá a ele um certo prestígio[6]”. E Maurice Olender comenta: “A Arcádia mostra então este centro nevrálgico de onde pode, a qualquer momento, ressurgir a selvageria contida no interior da cidade. Daí a ‘terra de Pã’ evocar essa fragilidade inerente às instituições humanas, essa precariedade de toda ordem política dos usos e das convenções que ela coloca em funcionamento[7]”.

Os gregos faziam de Pã a causa presente-ausente de tudo aquilo que, aparentemente, não tem causa; a razão do que é sem razão – em particular, dessas totalizações paradoxais em que uma coletividade de pacíficos subitamente se transforma em horda selvagem. Não acreditamos mais nos deuses – ao menos, nas nossas explicações científicas. Por quem substituímos Pã?

Apesar de sua importância teórica, o pânico é um fenômeno que as ciências humanas e sociais estudaram pouco. Duas dentre elas – dentre as mais importantes e influentes – não puderam evitar o problema que traz o pânico: uma delas é a economia política, porque os mercados financeiros são periodicamente abalados por pânicos que arriscam destruí-los. A outra é a psicologia das massas. Mas o pânico, como Pã, parece confundir todas as pistas. As categorias analíticas que o pensamento racional multiplica de modo a dominar melhor o real dividindo-o, tornam-se inúteis: o pânico as indiferencia do mesmo modo que confunde as diferenças sociais. Com relação às tipologias clássicas, o pânico, como Pã, é um monstro: ele parece que resulta de tipos os mais opostos.

No pânico, a sociedade se desagrega, se decompõe, se pulveriza. Entretanto, e como a própria palavra indica, o pânico é também totalização, constituição de um todo. De um lado, aparece como a formação de um novo ser de natureza coletiva, quase um sujeito, dotado de autonomia, de personalidade, de vontade, de desejos próprios mesmo, transcendendo as consciências individuais, e cuja marcha cega em direção à catástrofe nada parece capaz de deter. De outro lado, o pânico se apresenta como um processo de individualização violento no qual tudo aquilo que faz do indivíduo um ser social com seu estatuto, com suas relações e seus papéis, ligado aos outros por múltiplos laços de conflitos e de cooperação socialmente regulados, tudo isso se rompe, é aniquilado. Lá um processo de desindividualização extremo, aqui um processo de dessocialização não menos radical[8].

O mito nos diz que o pânico é um mal que vem do exterior. Ele nomeia o culpado: Pã. Essa imputação, entretanto, carrega uma ambiguidade. A exterioridade e a desumanidade de Pã não são firmemente estabelecidas. Pã é uma criatura liminar, situada nas fronteiras. Seu próprio nome pode levar-nos a pensar que ele é um substituto de toda a comunidade: um bode expiatório, de algum modo. O projeto de procurar o pânico nas situações de catástrofe é o equivalente moderno do mito. Nada vale mais do que um “bom terremoto”, podemos pensar, para desencadear a epidemia do terror. A exterioridade do mal e sua rapidez bem valem a súbita aparição de Pã. Entretanto, os especialistas não estão de acordo: em situação de catástrofe, o pânico é extremamente raro. Coisa interessante, os fatos mostram que ele tem tanto mais chances de se produzir quanto mais a exterioridade do mal for mais duvidosa. Significativo a esse respeito é a comparação quanto ao modo pelo qual um estádio reage segundo a perturbação venha de fora ou brote do seu seio. Por ocasião do terremoto de São Francisco em outubro de 1989, uma multidão considerável, amontoada no estádio Candlestick Park, se preparava para ver uma partida importante de beisebol entre Oakland e São Francisco. Os violentos abalos que causaram o colapso, não longe dali, da ponte que ligava as duas cidades, não produziram o menor pânico. Que contraste com os numerosos exemplos de massas se atropelando, se esmagando contra as grades, ou as saídas de um estádio por ocasião da debandada provocada pela febre da competição que, nas arquibancadas, faz eco à violência simbólica da partida. Estou pensando em particular no pânico do estádio do Heysel, em Bruxelas, no dia 29 de maio do ano 1985. Trinta e nove pessoas morreram esmagadas e 450 saíram feridas.

O pânico é um nó de paradoxos. Encontramos esses paradoxos no coração da teoria do pânico que, ainda hoje, tem força: a que Freud elaborou no centro da sua Psicologia das massas publicada em 1921[9]. Nessa obra, a multidão está do lado da ordem, e o pânico, do lado da desordem. A multidão é o modelo de toda ordem social. Mas essa multidão, que Freud chama de artificial, está construída em torno de e na pessoa de um chefe. As duas multidões que Freud considera são a Igreja e o Exército. Quanto ao pânico, ele é a decomposição dessa ordem. Freud, entretanto, é o primeiro a falar de paradoxo a propósito dessa oposição excessivamente forte entre ordem e desordem. É pena que seus discípulos tenham antes preferido sacralizar esse paradoxo a tentar resolvê-lo, quer dizer, fazê-lo desaparecer. Quanto a mim, proponho um método para conseguir isso.

Para Freud, a massa se caracteriza principalmente por três dimensões.

Em primeiro lugar, seu princípio de coesão, de natureza libidinal ou erótica. Para que uma coleção de indivíduos se torne massa, é preciso que uma força por excelência antissocial seja vencida: o egoísmo, o “narcisismo”. É o que se observa na multidão, afirma Freud: “se a vantagem pessoal constitui quase o único móvel da ação no indivíduo isolado, esse fator só raramente determina o comportamento das multidões”.

Nas multidões é frequente ver os indivíduos sacrificarem seu interesse pessoal e seu amor de si em nome de um interesse coletivo que os supera. “Tal restrição do narcisismo só pode resultar de um único fator: do apego libidinal a outras pessoas. O egoísmo só encontra um limite no amor pelos outros, o amor pelos objetos.” É então “Eros, que assegura a unidade e a coesão de tudo o que existe no mundo”, que dá à massa sua consistência.

Segunda dimensão, o ponto focal desses apegos libidinais é a pessoa do chefe. Para cada um dos membros da multidão, o ideal do eu é substituído por um mesmo objeto libidinal externo, o líder, o chefe, de maneira que todos se identificam uns com os outros. Sim, existem multidões sem chefe, reconhece Freud, mas aquelas que o têm talvez sejam “as mais primitivas e as mais perfeitas”. Na história da psicologia das massas, marcada pelas obras de Le Bon, Tarde e Freud, observa-se um deslocamento dos centros de interesse, da reunião espontânea e passageira para a multidão artificial e, em paralelo, da massa para seu líder. Em Freud a multidão não é mais o produto anárquico da decomposição social; ao contrário, é, graças ao chefe, o arquétipo de toda formação social duradoura. O chefe é o operador da totalização do coletivo, é seu ponto fixo.

Enfim, terceira dimensão, a dialética da identificação e da libido explica por que a multidão é o suporte por excelência de fenômenos de contágio. Freud evoca este contágio afetivo que faz com que a “carga afetiva dos indivíduos se intensifique por indução recíproca: encontramo-nos como que levados e obrigados a imitar os outros, a nos colocarmos em união com os outros”.

Ora, dois paradoxos estão no coração dessa teoria.

Há, primeiro, a figura do chefe, esse umbigo da massa. O fundador da psicossociologia francesa, Serge Moscovici, define esse caráter paradoxal nos seguintes termos:

As multidões são compostas, em princípio, por indivíduos que, para delas participar, venceram suas tendências antissociais ou sacrificaram seu amor de si. Entretanto, no centro das multidões se encontra um personagem que é o único que conservou essas tendências e que até as possui exageradas. Por um efeito estranho – que, entretanto, pode ser explicado – do laço que as une, as massas não estão dispostas a reconhecer que renunciaram a algo que o líder preserva intacto e que se torna seu ponto de atração: justamente o amor de si […]. Todos os líderes simbolizam esse paradoxo da presença de um indivíduo antissocial no cume da sociedade. Porque a qualquer um a quem falte narcisismo falta também poder[10].

Em suma, as massas amam seu chefe, e o chefe ama a si mesmo. A multidão permanece unida graças a um elemento singular que lhe escapa.

O segundo paradoxo é o do pânico. Freud caracteriza o pânico muito simplesmente: é o que acontece a uma multidão quando ela perde seu ponto fixo, quer dizer, seu chefe. É a um verdadeiro retorno com força do narcisismo, do amor de si e dos interesses egoístas que assistimos então, “cada um se preocupando apenas consigo mesmo, sem nenhum cuidado com os outros”. Cada um “tem, então, a sensação de se encontrar sozinho diante do perigo”. Freud insiste: “Está fora de dúvida que o pânico significa a desagregação da multidão e que tem como consequência o desaparecimento de todo laço entre os seus membros”. Privada do centro regulador, composição anárquica de átomos que somente enxergam sua vantagem privada, o pânico aparece como a negação da multidão. E, no entanto, reconhece Freud – evidentemente nós todos sabemos –, é nesse momento preciso em que desapareceu tudo aquilo que faz com que a multidão seja a multidão – o chefe, os laços afetivos –, é nesse momento que a multidão nos parece mais multidão. Chegamos assim a “esse resultado paradoxal em que a alma coletiva se dissolve no exato momento em que manifesta sua propriedade mais característica e por meio desta manifestação[11]”.

O princípio geral da solução que proponho consiste em renunciar à separação brutal entre multidões espontâneas e multidões artificiais, entre massas anárquicas e massas construídas em torno de seu líder. É preciso sair do paradigma do ponto fixo exógeno, programa e produtor da multidão, para considerar o paradigma do ponto fixo endógeno, produzido pela multidão quando ela se imagina ser produzida por ele.

Tratar o chefe como um ponto fixo endógeno é afirmar que não são suas qualidades intrínsecas (seu pretendido narcisismo ou, na versão de Max Weber, seu carisma) que lhe asseguram sua posição central, mas sim o processo pelo qual o sistema-multidão se fecha sobre si mesmo. O narcisismo é apenas uma ilusão, o que existe é apenas pseudonarcisismo, no sentido de que alguém só pode amar a si mesmo na medida em que os outros o amam. No pseudonarcisismo, se o chefe pode amar a si mesmo, é porque ele imita o amor que os outros têm por ele. Inversamente, os outros o amam porque eles imitam o amor que o chefe tem por si mesmo.

O pseudonarcisismo é produzido por aquilo mesmo que ele produz: o amor dos outros. Vemos aqui como a substituição da oposição libido/ narcisismo por um único princípio mimético faz emergir a distinção entre o chefe e a massa. A singularidade do chefe não se sustenta nas suas características individuais intrínsecas; ela não é uma causa, é um efeito. É assim que eu resolvo o paradoxo do chefe.

Dizer que o chefe (o poder) é um ponto fixo endógeno, é dizer que o coletivo humano tem como ponto de referência exterior algo que provém, de fato, dele mesmo, pela composição das ações interdependentes dos seus membros. Ora, o mesmo mecanismo de autoexteriorização ou de autotranscendência opera no pânico. Este não se opõe à multidão da qual, entretanto, ele se origina apenas se considerarmos a multidão do modo artificialista de Freud. Numa visão sistêmica, a decomposição da multidão no pânico não coloca nenhum problema lógico, porque ela simplesmente se acompanha da substituição de uma forma de ponto fixo endógeno por outra.

No pânico, quando o líder foge, emerge no seu lugar um outro representante da coletividade, aparentemente transcendente aos seus membros. Não é nada mais do que o próprio movimento coletivo que se separa, toma distância e autonomia com relação aos movimentos individuais, sem entretanto deixar de ser a simples composição de ações e reações individuais. É um efeito do sistema. Como Durkheim bem percebeu, a totalidade social apresenta nesses momentos de “efervescência” todos os traços que os homens atribuem à divindade: exterioridade, transcendência, imprevisibilidade, inacessibilidade[12]. No seu grande livro Massa e poder, Elias Canetti observa por seu lado que “a massa precisa de uma direção”, de um objetivo que lhe seja dado “fora de cada indivíduo”, “idêntico para todos”: pouco importa o que seja, desde que “ainda não tenha sido alcançado”[13]. Na fuga do pânico, é exatamente o que o processo de totalização realiza, sozinho.

Concluo esta sessão sobre a multidão e o pânico sublinhando que, contrariamente às aparências, nós não deixamos a questão do religioso e do sagrado. Toda teoria que se diz científica, logo não religiosa, sobre o religioso e sua presença universal nas sociedades humanas, necessariamente reencontra a figura da autotranscendência. Ela deve dizer que os homens criam os deuses que, eles acreditam, os criaram. A exterioridade que atribuem ao sagrado, foram eles mesmos que a engendraram. Ora, como acabamos de ver, o pânico é resultado de um fenômeno análogo de autoexteriorização. Os gregos tinham razão de atribuí-lo à ação de uma divindade.

INTERLÚDIO

Antes de tratar da terceira parte, quero fazer menção a um curto extrato do primeiro filme que o diretor austríaco Fritz Lang realizou quando chegou aos Estados Unidos. Estamos em 1936, e Lang já era famoso por

obras-primas como Metrópolis e M, o vampiro de Dusseldorf. Seu sucesso foi tal que Goebbels, o ministro da propaganda nazista, lhe propôs que assumisse a direção do cinema alemão, apesar de sua ascendência judaica. Lang preferiu fugir na mesma noite para Paris, de onde partiu depois para Hollywood.

O filme a que me refiro se intitula Fúria[14]. Trata da vingança, primeiro coletiva, depois individual. Mostra uma fúria coletiva que termina num linchamento. A ação se passa nos Estados Unidos, mas é preciso ter em mente que Lang pensa também na Alemanha e naquilo a que ele assistiu com a ascensão do nazismo.

O extrato para o qual desejo chamar a atenção está no fim da primeira parte. Não direi nada a respeito da segunda para não estragar o prazer daqueles que não conhecem o filme e teriam vontade de vê-lo. A segunda parte introduz um efeito surpreendente que faz refletir muito. Vou dizer o mínimo do que é preciso saber para compreender o extrato.

Joe Wilson, magnificamente interpretado pelo grande Spencer Tracy, é o americano médio típico, segundo Hollywood, honesto e trabalhador. É apaixonado por Katherine, mas não podem se casar por falta de dinheiro. Decidem então se separar durante um ano. Ele abre um posto de gasolina com seus dois irmãos, enquanto ela volta ao Oeste americano para retomar sua profissão de professora. O fim do ano se aproxima, e Joe inicia uma viagem de carro que vai levá-lo ao encontro de sua noiva. Logo na entrada de uma cidadezinha denominada Strand, a via foi fechada pelo auxiliar do xerife. Aconteceu um sequestro. Alguns indícios fazem com que as suspeitas recaiam sobre Joe, que é colocado em prisão preventiva na cadeia de Strand. Indiscrições desencadeiam rapidamente um rumor de que Joe é o sequestrador procurado. Forma-se uma multidão que se dirige para a prisão, diante da qual está o xerife, o representante da lei.

A ligação entre o extrato e os temas da minha conferência se encontra primeiro no mecanismo de constituição da multidão. Ele se opera aqui em torno da pessoa não do chefe, mas da vítima expiatória, o bode expiatório. Mas é sobretudo a expressão de terror sagrado (awe) que aparece nas faces. Toda a força do expressionismo alemão que Lang dominava perfeitamente está aqui colocada a serviço de uma ideia que já podemos encontrar em Durkheim: a multidão assassina está na origem do sagrado. Cada um de seus membros vive uma experiência extraordinária, na qual se misturam o gozo da raiva, o sentimento de participar de algo maior do que cada um de si e o medo que causa esse exercício de onipotência.

O SAGRADO ESTÁ DE VOLTA, MAS COMO SIMULACRO

Nesta última parte volto às interrogações da primeira. Que ligação pode-se estabelecer entre os atentados terroristas e o islã, em nome do qual esses atentados são cometidos? O fato de que os assassinos paguem por seus crimes com suas vidas faz disso um sacrifício no sentido religioso do termo? Eles derramam sangue dos outros e o seu próprio para servir, para honrar uma divindade? E, enfim, qual é a relação entre esse terror sagrado e o pânico?

Talvez vocês se lembrem da horrível imolação de dois soldados israelenses por uma multidão descontrolada num posto de polícia de Ramallah, nos territórios ocupados por Israel, fato que marcou tragicamente o conflito no Oriente Médio no outono de 2000. A foto abominável que percorreu todo o planeta, aquelas mãos manchadas do sangue derramado para não se sabe qual deus vingador, aquele corpo jogado, desarticulado, desmembrado do qual se arrancaram os pedaços, tudo isso evocava com uma força inacreditável os ritos mais sangrentos do sagrado primitivo. Os fanáticos de Ramallah evidentemente não tinham a menor ideia de que reproduziam os atos do diasparagmos, ritual próprio do culto dionisíaco, que consistia em matar a vítima por desmembramento para então devorá-la. O homem que pôs as mãos no sangue de sua vítima não tinha nenhuma ideia de que reencontrava o gesto do sacerdote asteca no topo de sua pirâmide. Os ecos religiosos estavam bem presentes, mas seria odioso ou ridículo dizer que remetiam às religiões dos protagonistas, o islã e o judaísmo. O eco é enganador e é preciso inverter sua fonte e sua destinação aparentes. O que vem em primeiro lugar, esse verdadeiro universal da violência fundadora, é a dinâmica espontânea da multidão perseguidora, como o linchamento que vemos no filme Fúria. É sobre essa base que o religioso vai prosseguir em seguida no seu trabalho de interpretação, de simbolização e de ritualização.

Esta é, em todo caso, a tese do antropólogo francês René Girard que apresentei no ciclo Mutações no ano de 2010 e que alguns de vocês talvez ainda se lembrem. Segundo Girard, o sagrado primitivo não é outra coisa senão a violência dos homens expulsa, exteriorizada, coisificada. No paroxismo de uma crise, quando a fúria assassina destrói o sistema das diferenças que constitui a ordem social, quando todos estão em guerra contra todos, o caráter contagiante da violência provoca um deslocamento catastrófico, fazendo convergir todo o ódio para um membro arbitrário da coletividade. Sua morte restitui brutalmente a paz. Disso resulta o sagrado nos seus três componentes constitutivos. Os mitos primeiro: a interpretação do acontecimento fundador faz da vítima um ser sobrenatural, capaz de ao mesmo tempo introduzir a desordem e criar a ordem. Os ritos, em seguida: estes, sempre no início sacrificiais, mimetizam em um primeiro momento a decomposição violenta do grupo para melhor encenar o restabelecimento da ordem pela morte de uma vítima de substituição. Por fim, o sistema dos interditos e das obrigações, cuja finalidade é impedir que se desencadeiem os conflitos que incendiaram a coletividade numa primeira vez. Compreende-se por que o rito faz o oposto dos interditos: antes ele deve representar a transgressão dos interditos com a desordem que resulta disso, para aí então reproduzir o mecanismo sacrificial que restabelece a paz.

O sagrado é fundamentalmente ambivalente: faz obstáculo à violência por meio da violência. Isso fica claro no caso do gesto sacrificial que restaura a ordem: é apenas um assassinato a mais, mesmo que se apresente como o último.

O cristianismo destrói o sistema sacrificial revelando que a vítima, que chamamos desde então de bode expiatório, é inocente. Mas esse dom que é a revelação é uma armadilha, já que retira dos homens a única proteção que tinham contra sua própria violência. A máquina de fabricação do sagrado é irremediavelmente avariada, estragada, já que repousa na crença da culpabilidade da vítima. A violência tem, assim, cada vez mais dificuldade em se autotranscender e se autolimitar no e pelo sagrado. Ela agora tem o campo livre. Assim se explicam estas palavras enigmáticas de Cristo que Mateus (10, 34-36), nos traz: “Não acrediteis que eu vim trazer a paz sobre a terra: eu não vim trazer a paz, mas a espada”.

Entre 1930 e 1934, aconteceram mais de sessenta linchamentos públicos nos Estados Unidos, e Fúria se baseia em um deles. O filme mostra bem esse furor sagrado que captura os protagonistas mas não chega à sacralização da vítima. É que o cristianismo passou por ali, seguido de sua secularização sob a forma particular da instituição judiciária, aqui representada pelo xerife.

À luz dessa análise, a abjeta encenação dos atentados terroristas cometidos em nome do islã pode ser assim analisada. Desmistificada pela revelação cristã, hoje a violência pura não pode ter a aparência do sagrado para se justificar, a não ser tomando emprestados os costumes de uma religião estabelecida, no caso, o islã. Isso é tão absurdo e tão lamentável quanto o são os simulacros de casamento católico que os grandes hotéis do Japão organizam. Falsos padres contratados por agências especializadas agem exatamente como faria um padre autêntico nessa cerimônia, rezando as mesmas preces, executando os mesmos gestos (com exceção, entretanto, da eucaristia, essa conexão entre a religião e o sacrifício). Dizem que 60% dos casamentos realizados no Japão são desse tipo, e que, frequentemente, os recém-casados nem sabem que o celebrante não é um padre verdadeiro.

Referi-me a esses crimes odiáveis como absurdos. Isso pode chocar algumas pessoas. Mas o que estou fazendo é tão somente seguir o modelo daquilo que podemos denominar, sejamos ou não cristãos, a grande sabedoria do papa atual, Francisco. Como ele reagiu ao assassinato do padre Hamel, decapitado por dois jovens que se diziam islâmicos na sua igreja na Normandia, quando celebrava a eucaristia no dia 26 de julho de 2016? Muitos membros eminentes da Igreja francesa viram no velho padre um mártir que deu sua vida para sua fé, como se esse crime horrível marcasse o início de uma guerra de religiões. O papa simplesmente disse que era um ato absurdo, louco, causado pelo ódio. Mas era tudo o que o papa tinha a dizer, questionaram muitos cristãos, indignados com esse minimalismo?

O Evangelho de João (15, 25) faz dizer o Cristo: “Ἐμίσησάν με δωρεάν”, que se traduz frequentemente por “eles me odiaram sem causa”. É um erro. É preciso dizer “eles me odiaram sem razão”. A palavra grega, dorean, se refere à gratuidade do dom e, mais precisamente, ao dom que Deus dá aos homens, amando-os sem razão. Essa violência gratuita tem certamente causas, e numerosos são os estudos que as analisam, como eu disse desde o início. Mas, no caso dos crimes de que falamos aqui, não há nada que se pareça com um início de razão: nada que supere a imbecilidade assassina. Isso é o que o papa Francisco queria apontar.

Uma melhor tradução ainda seria “contra a razão”, esta razão sendo o conhecimento do mecanismo do bode expiatório. Formulo então minha hipótese: tudo se passa como se assistíssemos hoje a uma revanche desse mecanismo contra a revelação, essa revelação que o privou de sua produtividade.

Proponho um pouco de geometria. Imaginemos dois cones partilhando o mesmo eixo horizontal e o mesmo ápice. Aquele da direita é como o reflexo no espelho daquele da esquerda, mas é um reflexo monstruoso, como no quadro de Picasso Jovem diante do espelho (1932), o reflexo transformando a virgem em prostituta.

O cone da esquerda representa o mecanismo vitimário de todos contra um, o linchamento primordial, como em Fúria. Sua base é a multidão indiferenciada pelo contágio da violência. Todos os ódios convergem para o ápice que é a vítima, uma vítima que é sacralizada. Esse mesmo ápice se torna o sujeito no cone da direita, sujeito no duplo sentido da palavra: aquele “subjugado” (sub-jacere), quer dizer, que ainda é a vítima mas também o sujeito da metafísica moderna, ou melhor, é a sua caricatura, o

assassino que atira ao acaso na multidão indiferenciada, indiferenciação desta vez resultante da indiferença do assassino com relação à identidade de suas vítimas. Seu sentimento de onipotência pode lhe dar o sentimento de que é Deus, ainda que isso dure dez segundos. Passamos por simetria do “todos contra um” ao “um contra todos”. Essa simetria em espelho é a marca da vingança. A ambivalência do ápice comum aos dois cones reflete a dualidade da noção de autossacrifício: de um lado, o paradigma do mecanismo do bode expiatório, culminando para os cristãos na Paixão de Cristo na cruz; do outro lado, seu reflexo abominável na morte autoinfligida dos terroristas.

Essa multidão indiferenciada que encontramos na base dos dois cones é, de um lado, a multidão que lincha e, de outro, a multidão em pânico. Encontramos aqui a chave da relação entre o terror sagrado e o pânico.

Em conclusão, podemos dizer o seguinte: se os atentados cometidos em nome do islã provocam esse terror sagrado, não é a religião, que lhes serve de pretexto, a sua causa. É que, através da encenação, eles evocam e despertam os antigos medos associados ao mais primitivo sagrado.

Notas

  1. Tradução de Ana Maria Szapiro.
  2. “Attentat à Nice de 14 juillet 2016”, disponível em: <https://youtu.be/wG75LhluPaQ>, e “Tragedy Bataclan Theatre Paris”, disponível em: https://youtu.be/nCSxoYrcgNM. Acesso em: mar. 2017.
  3. No momento em que escrevo estas linhas, 20 de agosto de 2016, soubemos que um menino de 12 anos explodiu-se no meio de um casamento na cidade turca de Gazantiep, perto da fronteira síria. Gesto atroz que fez uns cinquenta mortos, um deles o terrorista, e uma centena de feridos.
  4. Os dois primeiros traços podem se apresentar na ausência do terceiro. É o caso dos assassinatos que acontecem muito regularmente nas escolas ou em outros lugares públicos dos Estados Unidos. Pensamos também no massacre cometido pelo norueguês Anders Behring Breivik, no dia 22 de julho de 2011.
  5. Sem dúvida, sob a influência do inglês, a palavra pânico, em francês como em português, veio a significar também uma angústia individual, razão por que falamos, por exemplo, em crise de pânico.
  6. Philippe Borgeaud, Recherches sur le dieu Pan, Genève: Institut suisse de Rome, 1979.
  7. Maurice Olender, “Análise da obra de P. Borgeaud: Recherches sur le dieu Pan”, Le Nouvel Observateur, 25 septembre 1982.
  8. A todo mito corresponde um ritual. O ritual do pânico é, por excelência, o Carnaval. Como bem mostrou Roberto da Matta no seu livro Carnavais, malandros e heróis (1979), o Carnaval pode ser triplamente considerado como um ritual de pânico: primeiro, porque mimetiza o pânico, colocando em cena a individualização radical da sociedade; em seguida, porque é uma festa da totalidade social; e, finalmente; porque descende das lupercais, as festas romanas de inverno que celebravam Luperco, o equivalente latino de Pã. Da Matta descreve o Carnaval como um “processo violento de individualização”, afirmando simultaneamente que é um dos momentos no qual o brasileiro sente mais profundamente o peso e a força da totalidade social.
  9. S. Freud, Massenpsychologie und Ich-Analysis, Wien: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 1921.
  10. Serge Moscovici, L’Age des foules, Paris: Fayard, 1981.
  11. S. Freud, op. cit.
  12. Émile Durkheim, Les Formes élémentaires de la vie religieuse, Paris: puf, 1979 (orig. 1912). [Edição brasileira: As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2003.]
  13. Elias Canetti, Masse et puissance, Paris: Gallimard, 1966.
  14. Título original: Fury, Estados Unidos, Metro-Goldwin-Mayer, 1936, 92’. Disponível em: <http://cinema livre.net/filme_furia_1936.php>, acesso em: ago. 2016.

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