2017

Poesia sem palavras

por Michel Déguy

Resumo

O destino da poesia nas sociedades avançadas contemporâneas é ontológico e temático. Passado por esta prova, em breve nem mesmo de Dante restará grande coisa. Ora, a partir do momento em que uma sociedade avança ou, se preferirmos, sobe no vagão do trem capitalista da mundialização, a poesia se extenua, seu valor mercadoria baixa, sua “influência” desaparece. Pode a poesia tornar-se outra coisa? Penso em uma entrevista dada por Eduardo Kac à revista Critique, no número sobre Mutants. O que muda na poesia? Qual sua mutação? Eis o que diz Kac quando teoriza sobre “o uso artístico da mutação”: “Foi a poesia que me levou a usar os novos mídia a partir dos anos 80” … “…somos naturalmente seres trangênicos”… “A bio-arte é uma arte in vivo”… “Não existem normas. Só existem mutantes. O que importa é o que vocês sentem em vida”… “A mutação é inicialmente um médium da mesma maneira que o óleo para a pintura”. Trata-se nada menos que da expulsão da poesia para fora da esfera do lógico, tomado no sentido arcaico grego, da palavra (logos), do linguageiro e linguístico (logikon), ou ainda daquilo que Barthes (no último curso no Collège de France) chamava a frase. Ou seja, do poema enquanto proposição, julgamento, articulação gramatical e lógica interessada em verdades e na verdade. Podemos (nós, herdeiros da poesia ocidental) confiar o destino da poesia a outro médium diferente do seu, ou seja, a linguagem da palavra? Não. Porque a língua não é um médium.

Para fazer com que se possa vislumbrar o alcance dessa afirmação, volto minha atenção para o seguinte: diga a um fiel que a Revelação, que o Alcorão-livro terá sido um meio, a Bíblia um meio, suplementável, até mesmo substituível hoje por uma história em quadrinhos ou por um vídeo (aliás, se Deus fosse fazer de novo, optaria por outro meio) e você verá o que é ira… Caracterizar o livro (por excelência O Livro) como meio entre as mídias é perdê-lo. A questão então é: como profanar as religiões do livro sem perder o livro, tentativa mallarmiana. O livro é a indivisão da letra do espírito. Segundo a tradição, um mata, a outra vivifica. Mas como não pode haver espírito sem escrupulosa literalização, os guardiões da letra tornam possível a vivificação, ou a interpretação (leitura), ou translatio (há outras palavras disponíveis, como ressurreição). Hermenêutica, exegese e heurística fazem o fecho – círculo ou roda que avança em translação. Assim, pode-se dizer que a letra torna vivo e que o espírito, integrista, ameaça a leitura de morte. Vida e morte trocam de lugar.


A situação da poesia em seu mundo e no mundo, a forma como é recebida assim como o papel que ainda lhe é concedido, são integralmente regidos pelo rumo cultural das coisas. Não sendo possível retomar aqui, ainda que brevemente, as minhas análises do cultural[1] como fenômeno social total, lanço mão de dois exemplos para apresentá-lo, representá-lo e contextualizá-lo.

O POETA MUNICIPAL

O “poeta”? No dia a dia do trem da cultura, praticamente um funcionário municipal: lembro que, convidado para um encontro de “poetas” em Quebec – uns tipos bem simpáticos, em uma de suas Casas ad hoc –, notei cartazes encostados na parede. Responderam-me que estavam se preparando para uma greve, para um piquete na greve dos poetas, em frente à Prefeitura. Greve de poetas, como de garis, por uma reivindicação municipal: lazer organizado ou tempo de publicidade na rádio ou algo do gênero.

Poeta na cidade: à margem; em tudo incompetente ( já desde Íon, por causa de Sócrates); não muito antenado (tem a reputação de “distraído”); sem poder; “por fora”, a não ser nas vezes em que, por um curto instante

nas epidícticas franjas de cerimônias, irá debilmente defender seu rarefeito emprego. Pouco cortejado, com exceção de convites a saraus de poesia em salões de festas, e raramente aplaudido – na última hora e em caso de necessidade de uma figura para preencher um vazio.

Uma briga com Aujourd’hui poème (Parinaud, Darras) a respeito da oportunidade de oferecer poemas aos clientes de um grande restaurante parisiense, fez com que eu escrevesse “Un p’tit poème l’addition[2]” no Li- bération.

O POETA GLOBAL

Estamos em Shengdhu, capital provinciana de uns 20 milhões de habitantes. Enormes avenidas ainda vazias de carros. Tudo preparado para a invasão, a catástrofe ecológica. É a China – “desperta”, muito mais ainda do que havia sido previsto por Alain Peyrefitte – que devastará a terra. Fracassado o comunismo, destruído o império soviético, abolido o maoismo, começa tudo de novo: Comunismo? Capitalismo. Campesina- to? Proletariado do Livro I do Capital. Empresários? Dirigentes (do Partido Comunista). Objetivo: superpotência econômica da China, só isso. E, se para isso for preciso sacrificar o planeta, assim será.

Quanto ao cultural, eles não têm ideia do que seja, não conseguem compreender do que estamos falando. Por quê? De um lado, os jornais (Cantão 2004) não hesitam em afirmar: “Agora a poesia perdeu toda a influência”. De outro, o município (estamos em Shengdhu…) nos acolhe com pompa cultural, ao som de Tu-Fu, Li-Po, Su-Shi: os Mestres, os Sábios, os Funcionários que inventaram língua e civilização. Justamente a dimensão cultural (que, de novo, não é um aspecto, mas afeta o fenômeno social “totalmente”, no sentido de Marcel Mauss, e nem um pouco uma “superestrutura” ideológica, no sentido marxista) é a dimensão em que se confundem a “cultura” tradicional e a neocultura multicultural, na qual toda minoria vive da imagem de marca de seu fenótipo[3].

O cultural – que a maioria dos interessados entende unicamente por cultura-continuada-por-outros-meios, ditos “modernos” ou pós-modernos (ou mesmo “pós-humanos”, como insiste a revista Critique, que citarei mais adiante) – é, em uma sociedade em que nem as distinções das línguas nem a reflexão crítica filosófica permitem ainda discernir o problema, o que faz com que seja possível a indiferente simultaneidade desses dois lados (“de um lado, de outro”): a permanência-retorno do arcaico na ilusão do mesmo e o irreversível rebaixamento, a insignificância social da poesia e dos poetas. Pode-se prever a curto prazo que, embora “não existindo mais”, a poesia chinesa cada vez mais bem globalizada nos intercâmbios worldwide (traduções, encontros, festas etc.) não cessará de ostentar a sua riqueza, brilho (etc.). Os intelectuais chineses – e, é claro, de todo país que tenha acesso ao mercado liberal global – ainda estão longe de perceber essa concomitância. É preciso que assumam (assumamos) uma perspectiva “de fora do sistema” para se perceberem agentes do cultural “global”. O futuro dessa ilusão comanda a nossa sina social de produtores quais-

quer, por exemplo, em “produções poéticas[4]”.

AFINAL, PARA QUE PODE SERVIR A POESIA?

É necessário um relato (mil relatos) para algo ter acontecido. Por exemplo, um jogo de futebol: os jornais do dia seguinte relatam o jogo (ou Píndaro, as Olimpíadas, caso se recordem). Pois bem, o filme, a película (como dizem os espanhóis) sob todas as suas formas, com uma diversificação e um poder espantosos, atende a essa necessidade. O romance também, mais um pouco. A poesia já não o faz mais, depois de não ter feito outra coisa durante séculos – e até a época de Apollinaire, de Cendrars, de Claudel… e ainda assim, seria mostrado com o surrealismo que, fomentando a Revolução (que foi apenas a sua revolução), pretendia forçar aos poucos a realidade. O “por todos” de Lautréamont viria a gerar o “grupo” surrealista: é preciso um nós para que haja um sujeito da ação e, assim, a ação. O adeus de Rimbaud, sua deserção e sua abdicação foram um aviso que não foi ouvido. Sua posteridade voltou a integrar essa segunda metade de vida à sua obra, vida integral para fazer a sua lenda: uma das últimas lendas da poesia. A derrota transforma-se em mítica vitória.

Resta ainda um presente para a poesia? Seja o que Mallarmé chamava de “o fenômeno futuro”. Mas o eu-lírico contemporâneo, formigamento autobiográfico “autofictício”, decompõe a “circunstância”, a disseca e a refrata em um meio de refringência idiossincrática: como “poemas”, o mais das vezes refratários a um pensamento filosófico ou teórico que se abriria ao presente do mundo, não interessa a quase mais ninguém a não ser ao “autor” (mesmo se declarado falecido nos anos franceses de 1970) e a seu círculo mais próximo.

“Todos poetas?” – perguntava recentemente uma publicidade da coleção Poésie/Gallimard. Tarde demais! É verdade que a ressocialização cultural da poesia (sobre a qual ainda direi algumas palavras) autoriza esse otimismo resgatador, mas é da perspectiva da “animação” (reanimação?), cara aos psicopedagogos, e do “direito à expressão” da “espontaneidade criadora” de cada um, sob a qual todas as “personalidades” se equivalem. Todos iguais sob essa nova lei. Um modo de eufemizar a morte do poeta, o fim da Obra, mesmo se o Gênio rimbaudiano se mantenha no currículo da licenciatura. “E eu! E eu!”, dizem as crianças e os confeccionadores de flyers

Na semana passada, observei o seguinte no metrô parisiense: no lugar reservado à campanha “Um poema no metrô”, onde são apresentadas citações de quatro ou cinco linhas (tem que caber no quadro reservado abaixo do teto) oferecidas a uma leitura flutuante entre duas estações, picharam em letras negras sobre o texto afixado (que fosse de Lao ou Mao, de Char ou Heráclito, ou do quase anônimo “poeta contemporâneo”): ZERO. Meu gosto não é o seu gosto. De fato, zero a zero. Os lugares são caros e os vencedores, arbitrariamente eleitos.

O destino da poesia nas sociedades avançadas contemporâneas é antológico e temático. Passado por tal triturador, em breve nem de Dante restará grande coisa. No entanto, a partir do momento em que uma sociedade “progride” – na China, por exemplo – ou, se preferir, toma o trem capitalista da globalização, a poesia se extenua, seu valor de troca encolhe, sua influência acaba (revista do Cantão).

Um devenir diferente resolveria?

A QUESTÃO DO MEDIUM

Perscruto uma entrevista de Eduardo Kac, recém-publicada na revista Critique[5], para ir direto a O que está acontecendo, em que “muta” a poesia. Qual é a mutação? (E, entre parênteses, aos simpáticos retardatários da revolta antitransgênica, na França atrás dos “verdes”, não faria mal ler esse número inteiro. A “transgenética”, que é o fenômeno “global”, quer José Bové o compreenda ou não).

Eis as palavras de Kac em relação ao “uso artístico da mutação”: “Por causa da poesia comecei a fazer uso das novas mídias a partir do início dos anos 1980”.

“… somos naturalmente seres transgênicos.” “A bioarte é uma arte in vivo.”

“Não há norma. Há apenas mutantes. O que importa é que você se sinta em vida.”

“A mutação é antes de tudo um meio, da mesma forma que o óleo, na pintura.”

Trata-se de nada menos que a saída da poesia da esfera do lógico, no sentido arcaico grego, da palavra (logos), das línguas e do linguístico (logikon), ou ainda daquilo que Barthes (último curso no Collège de France) chamava a frase. Em outras palavras, o poema enquanto proposta, julgamento, articulação gramatical e lógica interessada em verdades e na verdade. A frase, a estrofe, o livro (etc.) tornaram-se modalidades de um “meio”… entre outros! Assim, ejeta-se a terra de seus parênteses letrados (literais e cultivados), diria eu, citando René Char ao contrário.

Podemos (nós, herdeiros da poesia ocidental) confiar o destino da poesia a um outro meio que não seja o seu ou linguagem (Sprache)? Não. Porque a língua não é “um meio”. Teremos que demonstrá-lo amplamente. Para fazer com que se possa vislumbrar o alcance dessa afirmação – que é essencial não confundir com as de ligação integrista regressiva dos religiosos com sua religião –, volto minha atenção para o seguinte: diga a um fiel que a Revelação, que o Alcorão-livro terá sido “um meio”, a Bíblia “um meio”, suplementável, até mesmo substituível hoje por uma história em quadrinhos ou por um vídeo (aliás, se Deus fosse fazer de novo, optaria por outro meio) e você verá o que é “ira”…

Caracterizar o livro (por excelência O Livro) como meio entre as mídias é perdê-lo. A questão então é: como “profanar” as religiões do livro sem perder o livro, tentativa mallarmiana.

O livro é a indivisão da “letra do espírito”. Segundo a tradição, um “mata”, a outra “vivifica”. Mas como não pode haver “espírito” sem escrupulosa literalização, os guardiões da letra tornam possível a vivificação, ou a interpretação (leitura), ou translatio (há outras palavras disponíveis, como ressurreição). Hermenêutica, exegese e heurística fazem o fecho – círculo ou roda que avança em translação. Assim, pode-se dizer que a letra torna vivo e que o espírito, “integrista”, ameaça a leitura de morte. Vida e morte trocam de lugar.

Naturalmente, o famoso binômio espírito/letra, em que se replica o duo (o dualismo) idealismo/materialismo, deve ser desconstruído (no sentido rigoroso, derridiano, ameaçado de oca inflação por seu uso vulgarizado). A desconstrução não é uma operação que se termina como uma desmontagem e que aconteceu. É aquilo que não acaba nunca: os grandes pares terminológicos onde se cunham “a metafísica”, a divisão sensível, inteligível, resistente. “Superar a metafísica” é work in progress, ainda interminável. Do qual a minha observação, há pouco, é um minúsculo exemplo.

RETORNO CRÍTICO SOBRE OS TERMOS DE SUA PESQUISA

Sua posição é por demais exclusivamente bourdieusiana. Você acredita que “enquanto os grupos restritos encarregados do patrimônio cultural mantiveram sua posição hegemônica, a poesia pôde conservar seu prestígio, expressando, ao mesmo tempo, a visão de mundo de uma minoria muito exígua (etc.)”. Penso, sem ter aqui nenhum espaço para desenvolver a argumentação adequada, que essa maneira de ver – (que, devo observar, restringe o interesse da poesia à versificação e seu conteúdo à autorreferência), apesar de fortalecer-se exatamente da redução da poesia à sua existência associal ou marginal –, deixa o essencial absolutamente intacto, de fora, e, nessa medida, “não consegue realmente compreender o que faz com que a poesia tenha tido o sentido que teve e que certos escritores pensadores (que aceitam ainda a denominação de poetas, o que alimenta o equívoco) se interessem pela poética e pela escrita parabólica”.

Falta a Bourdieu a mediação, não de uma observação suficiente do cultural, mas de um pensamento radical desse fenômeno “total”.

Ao não assumir (não digo comentar respeitosamente, mas engoli-lo, assimilá-lo) o pensamento heideggeriano e derridiano-stiegleriano do fenômeno cultural, tarefa da qual o famoso sociólogo se desviou violentamente porque perdeu toda crença na filosofia, ele não toma a medida do fenômeno, ou seja, em última análise, da época na fase do niilismo em que nos encontramos. Ele acredita que é a “dominação” da distinção que opera culturalmente, processo e máquina de refazer o apartheid entre classes, dominantes, subdominantes e dominadas. Ele acredita que podemos sair disso, como se o cultural fosse “de direita”: ilusão simétrica à de Fumaroli (colega seu no Collège de France!) que acredita que o cultural malrauxiano-langiano[6] seja “de esquerda”.

Suponho que a sua conjectura a respeito da canção como relé, avatar e “nova cultura” obteria a aprovação de Bourdieu. Meu julgamento é diferente. Que a poesia contemporânea, tornando-se associal, tenha “perdido qualquer legitimação coletiva” não muda em nada o que foi e pode significar e fazer poesia… com a condição de entendê-la à alemã, como Dichtung, e, naturalmente, de tentar favorecer sua translatio, através da invenção de uma “arca” que a transporte (talvez) sobre as águas de nosso “Dilúvio” (os Dark times de Arendt). A poesia não conseguirá sair dessa sozinha, e já se foi o tempo das altercações de confins ou, se preferir, da marcação de gêneros, da redefinição das diferenças entre a poesia e seus outros (quer se chame de prosa, ou romance e outros); mas o tempo é de associação de “artes” entre elas e com novas “técnicas” e de uma escrita generalizada, que chamo de parabólica, que “hesita” (teria dito Valéry) entre mitema, teologema, filosofema e poema.

A “legitimação coletiva” não é o que inventa uma arte. O cultural é também uma resultante do rebaixamento da cultura popular. É até mesmo o nome da época em que se arruína, na restauração ou até na “restituição ao idêntico”, a antiga cultura em que o povo, como se dizia, era profundamente culto. Seria preciso mudar de povo, diz a pilhéria brechtiana. Sim. Infelizmente “as pessoas” substituíram o povo, não há mais “povo” que se possa mudar. A superpotência definitiva do regime ícono-mediático[7] publicitário do consumo de bens culturais estende o monótono (hegemônico) império de uma vulgaridade multicultural “americanizada”.

A canção não é a saída de emergência. Continuemos a procurar.

POÉTICA RETOMADA

A constatação, descritiva, é muito simples, desde que se desdobre sua proposta:

Na visão do sociólogo, a poesia como fenômeno, mensurável, portanto, em variadas estatísticas (de vendas-livreiros, de leituras calculadas, de manifestações etc.) expõe-se na justaposição “indiferente” destes dois enunciados exatos, factuais, contraditórios:

1. A poesia já não existe mais: na escala das grandes mídias (Tv prime time e 3G, grandes audiências radiofônicas, publicação nos grandes órgãos da imprensa…) a poesia e, mais especialmente, o poema, não acontecem mais. “As pessoas” podem nunca mais ouvir falar dela, nada saber sobre ela, e até mesmo nem perceberem isso.

2. A poesia pulula. Em uma outra escala: a dos pequenos meios de comunicação (boletins, flyers, recitais, “oficinas”, folhetos etc.) “Y a d’la poésie”, como poderia ter dito Charles Trenet. Small is beautiful. Destinada a esse lugar secundário em todos os aspectos pelo cultural, ela pode levar sua vidinha ali indefinidamente.

O que é permitido esperar agora, como dizia Kant? O que podemos fazer (Lenine)? Para que poetas (Dichter) em tempos obscuros (Heidegger)? A essa altura, e já que optamos por continuar, quer dizer, jogar de novo a rodada das grandes poéticas ocidentais (e, no meu caso, de voltar a Baudelaire e à sua pergunta[8] para novamente passar pela desa- vença entre Celan e Heidegger), não falamos mais de poesia em termos de recepção social, de tiragem, de animação, de lazer, de pedagogia. Se pensarmos a literatura em frases mais filosóficas do que linguísticas, mais históricas do que jornalísticas, mais teóricas do que socioeconômicas, não podemos nos contentar com uma descrição de suas flutuações de existência sociológica.

Condenso em poucos axiomas os princípios que sustentam a possibilidade e comandam o regime original do pensamento dito poético, ou, mais resumidamente, dessa poética.

Nós somos AQUILO com o que somos. A experiência das coisas na língua dá os figurantes existenciais (“a estampa original” diz Mallarmé) que configuram e confeccionam nossa vida.

“Nós somos um diálogo”, a citação de Hölderlin quer também dizer “hoje”, que no elemento do agir (que incluiu o político, os homens “juntos” se opõem uns aos outros. Ora, no final, “no fundo”, em todo diálogo, quer dizer, todo conflito, há muito do julgamento de uma situação, da decisão a respeito da questão de saber se duas (ou várias) “coisas” (os motivos ou teses do contencioso) aproximadas uma da outra são homólogas (podem ser subjugadas sob um “mesmo”) ou não. Em disputa comum: tanto uma quanto a outra têm a ver juntas ou nada têm a ver. O combate do mesmo no julgamento é negócio (práxis) de humanos. O pensamento “prático” é aproximativo. Sua aproximação se faz pelas relações, comparações, relações entre comparações ou analogias. A operação, em seu fundo, é poética.

A responsabilidade de escrever, tomando como testemunhas os contemporâneos nas publicações em que o interesse da existência, e mesmo as verdades, estão em jogo, implica, requer que o poeta (se continuarmos a denominá-lo assim) responda, por ele e diante dos outros, à pergunta “Quand sommes-nous?[9]” (variante trivial: où em sommesnous?[10]).

Minha resposta para a datação: o que terminou apenas começou. Ao movimento de continuar (conservar transformando), cujo leitmotiv hölderliniano havia sido observado por Heidegger (“Was bleibet, stiften die Dichtem”) e que devemos agora reinterpretar completamente, chamo de palinodia. A “ode” (e o caminho…) volta atrás por um passo pós-heideggeriano à frente.

A causa material do poético (a antiga hylé de Aristóteles, transformada em “meio” nas estéticas contemporâneas) é a beleza da língua. Nas pregas e recônditos da idiomaticidade esconde-se o intraduzível – para traduzir; se abastece o pensamento vernacular buscando o poema de sua prosa.

A homonímia “poesia” cobre o formigamento de medidas heterogêneas. Ora, cabe a uma deontologia mínima de poeticrise não “alimentar a confusão”: livre para muitos tentadores “mutarem” pelo “meio”; mas nós (e este nós remete, por exemplo, às afinidades dos colaboradores da revista Po&sie) conservamos o elemento no qual o poema se inventa e se escreve, o logikon – que não é um meio entre outros.

O horizonte é o de uma literatura generalizada, ou escrita parabólica, sublevação que, antes, advém de relíquias da língua e literárias, ou seja, do passado das obras. Resolução que conta com suas próprias forças, figurativas, sem escoras religiosas ou metafísicas.

A paixão intelectual ou a sublimação se prende pelo alto, “dá um sentido à vida”. Mais enamorada e estável torna-se ela (quaisquer que sejam as suas ocasionais recaídas, fracassos e, em geral, sua “melancolia”) quando seu objeto, “genial invenção”, parece descobrir o novo, um “novo continente”. O que modificaria a vida dá um sentido à vida.

Tomemos o exemplo de Lou Andrea Salomé – e da “psicanálise” –, que se correspondeu com Freud durante um quarto de século. Abro a correspondência à página 57: “[…] quando cada ano se encerra mais rico, mais fecundo, durante o qual é preciso não perder o menor aporte, toda melancolia chega ao fim e, ao final de uma nova década, haverá uma festa nova e feliz[11]”. Coadjutora de Freud, que a considera aquela que compreende (Versteherin), ela participa de uma revolução antropológica.

Pode acontecer algo semelhante na “poesia” agora? Do lado da poesia, essa coisa muito velha, pode advir hoje algo parecido, um “futuro vigor” (Rimbaud)? Que descoberta reapaixonaria? Para muitos, a resposta é positiva, o tom, entusiasta, e justamente, a mutação do meio é o novo continente. Dessa mudança, os primeiros tremores se fizeram sentir há trinta ou quarenta anos, como se nada fossem, com declarações (não teorias, ainda) sobre a oralidade. Na França, dizia o clichê, não se lê muito em voz alta, em sessão pública de reading etc. Ora, a poesia é a voz… que é preciso vociferar para ouvir. Não discuto aqui o equívoco profundo do programa de tal insurreição (ressurreição?) oculta no uso de “voz” – mas, antes de resumir a frase histórica, faço estas duas observações:

Muitos na época acreditaram dar o troco ( Jean-Pierre Faye) em outra direção. Do lado da Tel Quel, teoria e textualidade ancoradas no pensamento político dos grandes trabalhos da revelação revolucionária dos séculos XIX e XX, uma revista, portanto, completamente cega para a questão da Técnica (ao mesmo tempo em sua linguagem heideggeriana e em sua fantástica revolução tecnológica), ladeada de alguns auxiliares (revista Tx5 e outras), lançou-se na “produção dita texto”. É sabido o que aconteceu com o “texto”. Aposto que nenhum aluno de hoje tem uma visão sobre os anos textuais ou têxticos. O conceito de “texto” foi devorado pelas oficinas da “genética textual” e engolido pela impressora. O texto é o que sai da impressora ou se amontoa na internet, em blog ou a varejo, e cuja infinidade irá provocar problemas de arquivamento.

A gentil esperança, legível na pesquisa de Semicerchio (“a canção nascida na área da comunicação de massa [conquista] uma dignidade no- tável […] desenvolvimento de uma nova cultura […] destinada a invadir o território ocupado pela cultura tradicional”), não parece ter considerado a medida do fenômeno cultural total. A canção, tecnologia do concerto, do CD, do download (etc.) é o próprio canto, a sonorização vitoriosa defi- nitiva do cultural. Quanto à cultura pós e transcultural, esta está por ser inventada e talvez não possa acontecer.

A mutação se anunciava nas invocações da oralização, da dicção e do espetáculo, quer dizer, em última análise, do corpo: insurreição do corpo por demais “negligenciado”, fatalmente acusadora, portanto, da intelectualidade, e ornada de citações anti-“metafísicas” fáceis de conseguir na loja nietzschiana. Os pródromos da mutação do meio em direção à bioarte terão sido o elogio da vociferação tecnoassistida em sessões sonoras muito bem-sucedidas, muito aparelhadas, inovadoras, de fato, e sedutoras. Dicção e tecnologia, oralidade de vozes captadas, transformadas, reproduzidas e eletroacústicas; “leituras”, sound poetry e sintetizador etc. Tudo isso preparava a era em que nós estamos en- trando, a do corpo protético, da simbiose inteiramente nova (“pós-humana”) do vivo “genético”, e na digitalização em geral (informática). Em outras palavras, tudo o que acontece é pilotado pela bioquímica e pela medicina: os progressos espantosos e incessantes das imagens, do escaneamento, da engenharia, da nanotecnologia genética, comandam não apenas a metaforicidade estética, importada da ciência, mas as sín- crises efetivas que fazem a arte entrar “dentro do corpo”: o ciberdevir do corpo. Não diremos mais com Nietzsche “a alma é o corpo”, mas “o espírito é o corpo”. O dualismo metafísico (res cogitans, res extensa) se funde; o dualismo religioso (corpo mortal, alma imortal passível de salvação) persiste, protesta, se fortalece, se “integriza”. Uma espécie de dualismo materialista supostamente humanista, triunfante, apodera-se da esfera ideológica publicitária mundial, o corpo que se salve, se puder. Os dois corpos do “homem” são:

  • o body: a imagem de marca da humanidade unissexo bissexuada, imagem Benetton, L’Oréal, como queira, milhares de pôsteres no balcão das bancas, do macho-e-fêmea, atlético, esbelto, bronzeado, imortal… a imitar, a construir (building), a cultivar.
  • o cérebro: o homem neuronal. Também aqui um grande comparecente, o do computador, que tudo leva: o supercomputador pós-hu- mano não é mais o “senhor do mundo”… mas o universo: todas as “energias” são meus “suportes”, minhas próteses. E, à espera da ordem suprema orwelliana, minha paranoia apropria-se desse universo.

O teatro torna-se coreografia. Os dançarinos nus fizeram pés e mãos para fazer com que se esquecesse o texto. Os computadores regulavam o espetáculo de som e de luz.

Que fortes razões temos nós agora, os tradicionais, para manter o futuro-que-virá-a-ser da escrita, a perenidade do logos-livro, a eternidade da verdade, diria Badiou, recusando a saída do logikon para outras “mídias”. No final, não vejo outra senão a que é extraída da identidade do pensamento e do falar. O se-falar é o estofo da consciência. O “silêncio” com que nos acenam repetidamente é o ideologema inimigo desse pen- samento do pensamento-palavra que faz a humanidade; e não o silêncio de quem cala o seu monólogo, mas o silêncio fisiológico respiratório do aprendiz guru. O silêncio, refúgio das almas e dos matadores, abriga o mal sob o álibi do “sentir”. Silêncio, matando! “Eu senti que, e que…” Não se deve sentir, meu caro, deve-se julgar, comparar para compreender, elaborar, antecipar…! Não há pensamento que não seja intimamente ligado à língua, em julgamentos concatenados, e não no “isso se sente”. A intuição é uma faculdade totalmente distinta da “impressão”-sensação. O livro e a escrita repousam sobre esse fundamento, princípio tirado da experiência “íntima”… Falar (consigo próprio) não é um meio facultativo da consciência, um suporte cambiável. É o em que do de si. Nenhuma outra justificativa para o lógico e para a literatura ou a poesia (“pérola do pensamento”, dizia outrora Vigny) está incluída. A revelação, “a iluminação”, não é silenciosa. É um livro (o que não implica a crença de que “Deus” seja o autor livresco da criação tipografada; a revelação é que ele fala; é a do pensamento para si próprio em linguagem de língua “materna”). Nós deixaríamos a humanidade e entraríamos, efetivamente, no pós-humano, deixando-o expirar.

É por essa razão que convém que, ao mesmo tempo em que tais ou tais outros (tal outra “geração”, como se diz agora, com um ar beato, como se bastasse ter nascido quinze anos depois para inventar as saídas de emergência) inventam e propõem em toda liberdade uma outra etiologia (material, fonal, final, eficiente) para a “poesia”, na homonímia, “nós” (os conservadores) façamos passar o escrito: escrita parabólica, parábola da escrita.

Volto a insistir um pouco no motivo dessa resistência: o que mais importa com a consciência, sua virtus e sua enteléquia, não é tanto a sua intencionalidade [pois poder-se-ia supor a mesma abertura aperceptiva-apetitiva (se eu retomar os atributos leibnizianos da mônada) de muitas espécies vivas] quanto à consciência da consciência: a qual tem a sua condição de exercício, no (se)-falar. Essa consciência, ipseidade “moral”, não é apenas desdobramento reduplicador, diálise do de dentro, mas desmembramento, deiscência genitiva, afastamento de uma “vista” desprendida (arquimédica) e de uma vista particular (correlacionada com o seu “objeto”). Princípio: é preciso haver um de dentro dentro, para que haja um dentro: uma consciência da consciência, para que haja consciência. Essa “vista” de si própria (ou esse divisar por sobre si mesma) só pode ser obtida se ela se disser, se falar, se tematizar em linguagem: esquematismo “lógico” constitutivo. Toda consciência é consciência da consciência ao se dizê-lo. A “vista” por sobre si mesma da consciência é a voz da consciência, como disseram os filósofos, sábios, moralistas. O que faz uma voz? Ela fala; o se falar é o elemento da interioridade. O silêncio interior, lembrava Merleau-Ponty, é cheio de murmúrios de palavras. Falar é falar em língua. Com ou sem maiúscula, dramatizada ou não pelo Vigário, saboiano, bretão ou esquimó, a Voz da consciência, de Sócrates a Montaigne, de Rousseau, de Kant a Heidegger, a Merleau-Ponty, não é o exógeno “baixo-falante” de um “demônio” episódico, mas a escuta de si no meio do logos. Imediatamente, ou identicamente, instância de julgamento, do mim pelo eu.

O mais “humano” – e que não se verifica no avestruz ou no camundongo – é que “eu” e “eu sou e faço” não são a mesma coisa. Eu sou outro, sim, muito intimamente. Sou outro, distinto do que sinto, significo, expresso. “Eu” julga “mim”; Rousseau julga Jean-Jacques, ou como você preferir dizê-lo. Vista da parte pelo todo que “sobrevoa”, dirá o filósofo Raymond Ruyer. Essa capacidade é a mesma do se-falar em uma língua, que torna isso possível – e que aliena os homens uns dos outros de forma irreparável. A consciência íntima do tempo que passa “em mim” (vale dizer, no qual eu passo…) é espanhola ou francesa, inglesa ou tâmul. Monolinguismo de si. Somos estrangeiros “entre nós”.

Eis uma crença humana, densamente relatada por Christian Jambet, iranologista. “Seriam necessárias páginas para falar da história desse tema xiita maior, o da escrita divina das letras, constitutiva do livro do mundo, do livro da alma e do livro santo, todos os três simbolizando entre eles” (A grande ressurreição). Vá, então, explicar a um muçulmano que o seu Livro é um suporte cambiante, que o Alcorão poderá ser visto em vídeo ou em história em quadrinhos…

Nós, modernos, não acreditamos – não pensamos – mais que o mundo é um livro escrito em alfabeto divino; nem mesmo como um livro. Uma religião é arquivo de crenças, relíquias que aguardam, não a sua destruição ou esquecimento, mas sua tradução, sua transformação. O religioso integrista é aquele que recusa esse trânsito. Ele até separa a letra da língua. Ele regride.

Ele é responsável por professar tal descrença, ou in-crença, porque “eu”, sujeito cartesiano que se tornou moderno, só posso propor uma “verdade” se a considerar passível de ser universalmente compartilhada.

A escrita divina do livro cósmico é essa grande fábula, instituidora da humanidade, sem dúvida, mas que se tornou in-crível; a ser, portanto, indelevelmente transposta. No entanto, o escritor é um que não crê que o livro (o livro que virá, a escrita) tenha se tornado um suporte, um meio. A dificuldade está, portanto, em compor com estas duas verdades adquiridas; inventar um pensamento que as valide juntas; que renuncia a Deus tipógrafo e não abandona a gramatologia.

Um crer-sem crenças.

Tradução de Lucia Melim

  1. A mais recente encontra-se no capítulo“Du culturel dans l’Art”, do livro La Raison Poétique. Paris: Galilée, 2000.
  2. “Um poeminha a conta.” [N.T.]
  3. Em outro lugar, observei que a patrimonialidade em termos de (re-)rastreabilidade do genótipo é o que agrega valor cultural identificador a tudo o que é: caracterização em nada superficial, portanto, mas exatamente “onto-lógica”.
  4. O uso de aspas aqui, e em geral, indica a homonímia, isto é, a diferença do todo oculta no mesmo, a “vampirização”.
  5. Entrevista de Eduardo Kac em Critique, número dos “Mutants”, jun.-jul. 2006, p. 553.
  6. André Malraux e Jacques Lang, “inventores” da instância política (ministério) das questões culturais.
  7. O artefato mais recente, em que não se distinguem meio e fim, é o aparelho de terceira geração (3G) que permite baixar vídeos e música, jogar on-line e ver televisão, tudo o que é “tele”, apenas o “tele”.
  8. Michel Deguy, Réouverture après travaux, Paris: Galilée, 2007.
  9. Jogo de palavras em que essa pergunta pode tanto significar “Como estamos?” quanto “Que dia é hoje?” (caso em que, literalmente traduzida, resultaria em “Quando estamos?” ou, ainda, “Quando somos?”). [N.T.]
  10. Jogo de palavras em que a pergunta “Em que pé estamos?”, literalmente traduzida, resultaria em “Onde estamos?” ou, ainda, “Onde somos?”. [N.T.]
  11. Tradução livre. [N.T.]

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