2017

Projeto e destino: de volta à arena pública

por Guilherme Wisnik

Resumo

A utopia arquitetônica moderna e urbanística visava sanitarizar, planejar, eliminar as imperfeições das antigas cidades. Essa pretensão de tudo organizar, massificar e, às vezes, vigiar as construções e os espaços urbanos como um todo, valorizando o concreto como material e as grandes linhas neutras dos edifícios tem características que ferem o humano, o indivíduo/habitante e também favorece o seu cerceamento e controle. Pode-se dizer que essa utopia envolveu arquitetos e urbanistas como Tony Garnier, Frank Lloyd Wright (precursor dos arranha-céus de concreto da arquitetura de Chicago), Albert Speer (arquiteto do Terceiro Reich), e o mais notório deles: Le Corbusier. O ideário urbano da primeira metade do século XX foi expresso na famosa Carta de Atenas (1933), cujos pontos foram elaborados por proeminentes arquitetos e urbanistas. Entretanto, esse documento revela também a ausência total de anseios do cidadão comum quanto ao que seria desejável na cidade. Na esteira da arquitetura moderna, temos o exemplo de Brasília, famoso projeto de Lúcio Costa, a cidade-oásis, segundo Mário Pedrosa, expressão que põe em relevo uma utopia realizada: cidade moderna e planejada construída do zero no meio do Planalto Central do Brasil (a ideia de erguer a capital no centro do país, de forma a proteger geograficamente o poder central, remonta ao século XIX, e seu nome fora proposto por José Bonifácio). O peso da estética arquitetônica moderna segundo os modelos da primeira metade do século XX foi contestado de maneira mais ativa e contundente nos Estados Unidos nos anos 1960-70, por Buckminster Fuller, que valorizou as megaestruturas, o universo comics, filmes de ficção científica e o movimento hippie e suas estruturas geodésicas. Uma revisão radical partiu também de professores da Universidade Yale na mesma época. Estes acusavam o narcisismo do arquiteto e o ideal de pureza da arquitetura da modernidade e preconizavam que o real precisava ser incorporado como valor, o que significava a assimilação de gosto popular. Essas novas bases conceituais promoveram, beneficamente, a incorporação da alteridade, mas levaram também a uma forma de conformismo diante do existente. Convidado pronunciar-se no Círculo dos Estudos Arquiteturais de Paris em 1967, Foucault declararia que o espaço urbano não é vazio nem neutro, e sim um conjunto móvel de relações descontínuas. Passada a euforia neoliberal dos anos 1980-2000, movimentos antiglobalização ganharam força desde o início dos anos 2000. Até hoje, diante das forças hegemônicas manifestam-se formas de heterotopia manifestadas por grupos que se apropriam de espaços públicos com reinvindicações sociais e políticas ligadas aos próprios lugares por eles ocupados, na tentativa de humaniza-los.


Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso (E, sem dúvida, sobretudo o verso)

É o que pode lançar mundos no mundo.

Caetano Veloso

O sentido de transformação para o qual aponta a ideia de utopia indica um vir a ser que baliza o presente por uma determinada direção de futuro. Contudo, trata-se de um devir que ao se constituir no desenrolar de uma experiência temporal ocorre na forma de uma relação de disjunção espacial. Etimologicamente, a expressão cunhada por Thomas More no século XVI, que nomeia uma nação-cidade-ilha imaginária, resulta da fusão do “advérbio grego ou – ‘não’ – ao substantivo topos – ‘lugar’ –, dando ao composto resultante uma terminação latina” (ia)[1]. Trata-se, portanto, de uma palavra criada, e não preexistente, pois, em que pese a extrema erudição de More, a república ideal de Utopia não seria mais aquela de Platão, e sim o produto de um outro momento cultural e histórico. Sua operação, portanto, é de ironia e deslocamento[2]. Utopia, desse modo, refere-se a uma intenção projetiva que se realiza no espaço, fundando um novo lugar ideal.

Vinculada ao ideário socialista nascente, a linhagem utópica novecentista estabelece uma tradição importante no campo do urbanismo, através de figuras como Robert Owen e Charles Fourier, dando a base para as vanguardas modernas do século XX, de Tony Garnier, Le Corbusier, Frank Lloyd Wright e tantos outros. Fazendo tabula rasa do presente e do passado em direção a um futuro radioso e ideal, o projeto utópico da cidade moderna recusa a instabilidade e a imperfeição do mundo existente, isto é, da dinâmica histórica, isolando um ou alguns de seus aspectos constitutivos – em especial a sua dimensão pública – para desenvolvê-los in vitro. Daí a idealidade do modelo de cidade utópica moderna, cuja maior virtude foi criar referências de exemplaridade em relação ao mundo decaído da realidade ordinária, simbolizada naquele momento pelo subúrbio da cidade industrial.

Não é por acaso que a ilha utópica de Thomas More seja, via de regra, associada à Atlântida de Platão. Nem é fortuito o fato de Mário Pedrosa ter caracterizado Brasília como uma civilização-oásis[3]. Pela sua própria condição de existência, a utopia assume a forma recortada de um círculo, de uma ilha, ou de um oásis[4]. Progressista, ela se separa do real decaído, constituindo uma mônada autônoma, autossuficiente e exemplar, que funciona, pelo menos a princípio, segundo as leis que ela mesma instaura, permanecendo imune à contaminação do mundo real ao redor. Situada no reino do absoluto, a utopia extrai elementos da realidade e os analisa, isola e purifica, segregando-os em funções lógicas. Daí que o panóptico de Bentham, tão bem analisado por Foucault, constitua um dos paradigmas mais explícitos da utopia tornada distopia totalitária: um sistema fechado, circular, todo voltado para o seu centro, onde se situa a torre de vigilância.

Ao mesmo tempo, a utopia é guiada por um ímpeto essencialmente narcísico, que se declara capaz de instaurar um mundo melhor do que o existente, dotado de forte exemplaridade. Nesse sentido, alguns projetos utópicos às vezes transcendem a sua insularidade, pretendendo-se definir como focos de contaminação positiva da realidade, por um lado, ou como postos vanguardistas capazes de serem fertilizados pelo mundo real, por outro. Mais uma vez, é essa a interpretação que Mário Pedrosa faz da Brasília de Lucio Costa, logo após a divulgação do resultado do concurso para o plano piloto da nova capital, em 1957. Sua aposta, naquele momento, é que a capital-oásis plantada no coração despovoado do planalto central pudesse ser fecundada pela vitalidade do país litorâneo, dotado já, àquela altura, de uma cultura autóctone[5].

A melhor definição que conheço para o páthos utópico moderno vem de Giulio Carlo Argan. Segundo o raciocínio do grande pensador italiano da arte, é a noção edificante e exemplar de projeto que encarna o ideal humano de emancipação em relação à resignação diante dos fatos ordinários da vida, isto é, diante dos acontecimentos cegos do destino. Em suas palavras:

Não se projeta nunca para, mas sempre contra alguém ou alguma coisa: contra a especulação imobiliária e as leis ou as autoridades que a protegem, contra a exploração do homem pelo homem, contra a mecanização da existência, contra a inércia do hábito e do costume, contra os tabus e a superstição, contra a agressão dos violentos, contra a adversidade das forças naturais; sobretudo projeta-se contra a resignação ao imprevisível, ao acaso, à desordem, aos golpes cegos dos acontecimentos, ao destino[6].

É significativo o fato de que essa tentativa de escapar à aleatoriedade do destino, evitando o conformismo conservador, segundo Argan, se faça a partir de um conjunto de negativas (não, nunca, contra), equivalentes ao u (não) da palavra utopia. Afinal, o que esse projeto contradefendido por Argan pretende construir, como forma mais alta de emancipação humana, é exatamente o não lugar da utopia. Um u-topos que possa, de alguma maneira, premido pela paixão pelo real que alimenta o século XX, segundo Slavoj ŽiŽek[7], romper o casulo da utopia e finalmente existir, instaurando-se revolucionariamente no mundo.

Na segunda metade do século XX, aquela idealidade moderna de matriz utópica – que tem o seu apogeu e crise em Brasília – é criticada e pressionada por vários lados. Uma das formas de ataque mais profundas vem das diversas formas de distopia. Já não exatamente as distopias totalitárias de antes – espécies de superutopias sem promessa de emancipação, como nos casos do referido panóptico analisado por Foucault, ou dos projetos grandiloquentes de Albert Speer para o Terceiro Reich –, e sim as distopias pós-modernas, que deram origem a um hiperespaço no qual não conseguimos nos orientar fenomenologicamente, perdendo a dimensão de distância crítica fundamental para realizar a conexão hermenêutica entre sujeito e objeto. Em termos concretos, como mostra Fredric Jameson, esse hiperespaço pós-moderno representa a substituição do espaço urbano por enormes edifícios que são como que minicidades em si mesmas, enclaves que entronizam em seu interior a experiência urbana, substituindo-a como simulacro no capitalismo tardio[8]. Aquilo que o arquiteto holandês Rem Koolhaas, um antiutópico declarado, caracterizou como bigness (grandeza), o maior protagonista da assim chamada cidade genérica[9].

Essa passagem, contudo, não é direta. Pode-se dizer que a grande revisão da utopia moderna é feita ao longo da década de 1960 – incluindo um pouco das décadas anterior e seguinte – por uma série de correntes divergentes entre si, das quais gostaria de destacar três: o movimento megaestruturalista, em primeiro lugar, a crítica ao urbanismo moderno através do exemplo de Las Vegas, em segundo, e a concepção de cidade por fragmentos, em terceiro, à qual associaremos o conceito de heterotopia.

Protagonizada por coletivos de arquitetos, como o Archigram, o Archizoom e o Superestudio, entre outros, e tendo Buckminster Fuller como guru, o movimento das megaestruturas representa uma espécie de canto do cisne da utopia moderna. Partindo do imaginário pop e misturando o universo dos comics, dos filmes de ficção científica e da cultura hippie com o otimismo tecnológico da “era de ouro” do capitalismo, as propostas megaestruturalistas confrontaram a utopia de redenção social moderna com uma superutopia técnica, feita de enormes cápsulas, domos geodésicos e pontes. Fundindo arquitetura e urbanismo em imensas estruturas contínuas, os projetos megaestruturalistas aprofundam a crença na autonomia dos objetos construídos como forma de negação do mundo ao redor.

No seu exemplo mais irônico e corrosivo, as Walking cities (1964), do Archigram, cidades-robôs se deslocam a esmo, com suas patas metálicas, por sobre um planeta destruído pela bomba atômica. Utopia negativa? Nem tanto. Em meio aos delírios escatológicos da década, esse projeto não se distancia muito, inclusive esteticamente, do Yellow submarine (1968) dos Beatles, uma comunidade de pessoas vivendo felizes, em uma cápsula metálica amarela, a milhas de profundidade abaixo do nível do mar.

Certamente uma das críticas mais contundentes e decisivas à utopia urbana moderna veio à tona com a publicação do livro Aprendendo com Las Vegas, em 1972[10], de Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour, professores na Universidade de Yale, no mesmo ano em que se demolia o conjunto habitacional de Pruitt-Igoe, em Saint Louis, considerado por muitos o funeral do movimento moderno[11]. Sistematizando o material coletado em viagens de campo à cidade, realizadas com estudantes em 1968, o livro lança dardos venenosos contra o narcísico ideal de pureza moderno. Colocando-se frontalmente contra a torre de marfim utópica da modernidade, os autores defendem uma aceitação do real como algo dotado de valor em si. Um valor que precisa ser compreendido e aceito pelos arquitetos, argumentam os autores, daí o título do livro. Guiada por uma visão antropológica, que funda um lugar discursivo no outro, a perspectiva crítica defendida no livro destitui o arquiteto do poder de afirmar e decidir unicamente a partir do seu juízo, ou do próprio umbigo, como deve ser organizada a vida das pessoas.

Advogando em nome do vernáculo – o vernáculo comercial de consumo norte-americano, bem entendido –, os arquitetos autores do livro adotam uma posição classificada como populista, já que defendem, em tese, o gosto icônico do povo por oposição ao gosto erudito e abstrato dos arquitetos modernos. Essa posição é de fundamental importância no debate em questão. Contra a tendência purista, exemplar e autonomizante da utopia, com seu universo de excelência apartado do mundo existente, Venturi, Scott Brown e Izenour propõem uma anistia do real, reconhecendo o valor do existente como manifestação legítima de uma certa vontade coletiva. Do ponto de vista metodológico, temos aqui uma guinada radical: a fonte de ensinamento é encontrada no mundo ordinário, e não em construções modelares.

Com efeito, se de um lado a visão dos polêmicos professores de Yale se torna, desde aquele momento, o importante emblema de uma perspectiva antropológica de análise urbana nascente, abrindo caminho para uma valorização da alteridade que é muito relevante no debate cultural até os dias de hoje, por outro, ela não deixa de mostrar-se extremamente problemática à medida que instaura, com isso, uma espécie de conformismo diante do existente, ou, em outras palavras, uma tautologia do mesmo. Quer dizer: se uma coisa ganha valor à medida que existe, esse valor faz com que mais coisas semelhantes a ela passem a existir, reproduzindo-se de forma autojustificável. Assim, se a perspectiva utópica opera pela exceção exemplar, a defesa populista do existente favorece a reprodução ad nauseam daquilo que já é. Daí a genealogia antiutópica que vai da Las Vegas de Venturi, Scott Brown e Izenour, nos anos 1960-70, à cidade genérica e aos espaços-lixo teorizados por Rem Koolhaas nos anos 1990-2000, baseando-se em Cingapura e em Shenzhen.

Aqui chegamos à terceira linhagem interpretativa referida anteriormente: aquela que interpreta a cidade por fragmentos não totalizáveis, criticando a utopia moderna de uma forma muito distinta da que é posta em prática tanto pelas megaestruturas, surgidas em diversos lugares do mundo, quanto pelo populismo comercial e antropológico norte-americano. Refiro-me aqui a um conjunto de práticas revisionistas que têm origem nas cidades-cluster do grupo Team X e nas experiências de deriva e psicogeografia situacionistas, desde os anos 1950, e que ecoam em autores como Henri Lefebvre e Guy Debord – estes, integrantes do grupo situacionista francês –, e também Jane Jacobs, Kevin Lynch e Christopher Alexander, entre outros, em contextos distintos.

É nessa chave interpretativa, embora sem nenhuma relação direta, que surge a conceituação fundamental de heterotopia, feita por Michel Foucault entre 1966 e 1967, em explícito diálogo polêmico com o círculo arquitetônico francês do momento[12]. Conceito que se tornou central para a crítica urbana contemporânea, após sua recuperação por Edward Soja, nos anos 1990[13], e sua articulação com a revalorização do direito à cidade lefebvriano por David Harvey[14], no contexto de uma expressiva emergência de movimentos de contestação antiglobalização nas ruas e praças de diversas cidades do mundo desde o raiar do novo milênio[15].

Convidado a se pronunciar no Círculo dos Estudos Arquiteturais de Paris em 1967, após ter feito duas emissões radiofônicas sobre o conceito de heterotopia, Foucault se contrapõe ao conceito moderno de cidade como um espaço homogêneo e pontuado por elementos legíveis, base da chamada Carta de Atenas. Segundo sua posição, o espaço urbano não é vazio nem neutro, e sim um conjunto móvel de relações descontínuas. Claramente, àquela altura dos acontecimentos históricos, às vésperas da ebulição estudantil de 1968 em Paris, estava claro para Foucault que a ideia de cidade como uma totalidade legível e controlável havia sido definitivamente destruída pelo capitalismo avançado do pós-guerra. E, como ficaria mais evidente alguns anos depois, com a publicação de Vigiar e punir (1975), a arquitetura desempenhava um papel crucial na sociedade disciplinar. Sendo que o modelo do panóptico, em termos arquitetônicos, terminava não sendo muito diferente das cidades patronais utópicas, como o falanstério de Fourier (1832), ou o familistério de Godin, em Guise (1880).

Assim, se a distopia parece ser uma versão sinistra da utopia, e as formulações antiutópicas a sua sequela ou verdade mais pragmática, a heterotopia, tal como teorizada por Foucault, surge como uma forma progressista de crítica interna à concepção utópica. Uma negação da utopia que, no entanto, parece apontar para uma recuperação dialética da sua promessa de emancipação. Pois, abandonando a perspectiva centralizadora da utopia moderna, as práticas heterotópicas incorporam as fricções da realidade em sua dinâmica de projeto, apontando para lugares outros latentes, espaços da alteridade, contraespaços inabarcáveis em uma mirada única, complexos, relativos, e próprios a situações e condições sociais e culturais não hegemônicas. São, em grande medida, lugares da fantasia próximos ao universo infantil, tais como o fundo escondido do jardim, a cabana de índios, ou a cama dos pais. Lugares à margem da vida produtiva, tais como, também, o cemitério, o prostíbulo, a prisão e a colônia de férias. Lugares limiares, oscilando entre a liberdade e o confinamento, e que supõem outros tempos de experiência.

Hoje, contrariando profecias antiutópicas “realistas”, como as que consideram haver um refluxo dos espaços públicos para as telas de televisão e para o ciberespaço da internet, caracterizando a atividade do consumo como a forma final e tardia da esfera pública[16], uma série de movimentos ativistas organizados em rede e autogestionários surgem pelo mundo inteiro reivindicando os espaços públicos – entendidos como comuns – como lugares por excelência da realização política contemporânea[17]. Refiro-me aos vários movimentos contra a globalização e o neoliberalismo, que apareceram tanto nos acontecimentos contestatórios ocorridos na periferia de Paris em 2005, por exemplo, quanto depois nas praças Syntagma (Atenas, 2010-11), Zuccotti (Nova York, 2011), Tahir (Cairo, 2011), Porta do Sol (Madri, 2011) e Gezi (Istambul, 2013), assim como nas ruas de muitas cidades brasileiras nas chamadas jornadas de junho em 2013.

Seriam esses movimentos contestadores do século XXI materializações de um novo espírito utópico que teria frutificado hoje, mais ou menos cem anos depois de ter sido fertilizado in vitro pelas vanguardas modernas? Penso que sim e que não. Pois se, por um lado, esses movimentos parecem ser movidos por um idealismo político e social fundado no desejo da diferença, semelhantes àqueles dos projetos utópicos modernos, por outro, eles se definem por uma aderência extrema aos seus lugares específicos e ao momento histórico presente, ao contrário do que está contido na gênese da definição de utopia e no caráter antecipatório, e algo demiúrgico, das vanguardas. Em especial, substituem o modelo de pacificação harmônica da vida social, base da genealogia filosófica que vai do falanstério à Ville Verte de Le Corbusier, chegando a Brasília, por uma compreensão do espaço urbano como um lugar heterogêneo de fricção e conflito, dominado por forças em choque permanente.

Parece claro, portanto, que a potência heterotópica dos movimentos sociais que eclodem hoje pelo mundo atesta a crise do modelo antiutópico que parecia dominar a cena nas décadas de euforia neoliberal (1980-2000). “Um outro mundo é possível”, diz a máxima criada no Fórum Mundial de Porto Alegre, em 2001. A beleza dessa frase está em contestar altivamente toda a insidiosa e pragmática tirania do possível, que invariavelmente acusa a intenção utópica de delirante[18]. Movidas pela imaginação e pelo desejo, nossas ações artísticas e ativistas não podem se resignar a aceitar o estreito horizonte do mundo que já existe no presente. Pois, sem tirarmos os pés do presente, evitando assim abandonar-nos a hipotéticos futuros, mas olhando para eles, precisamos ser capazes de lançar mundos no mundo.

Notas

  1. George M. Logan; Robert M. Adams, “Introdução a Thomas More”, em: Utopia, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. xiii.
  2. “Os mesmos leitores helenistas que reconheceram a etimologia de ‘Utopia’ também encontrariam a sugestão desse significado no fato de a palavra ser um trocadilho com outro vocábulo composto grego, eutopia – lugar ‘feliz’ ou ‘afortunado’” (Ibidem).
  3. Ver Mário Pedrosa, “Reflexões em torno da nova capital”, em: Guilherme Wisnik (org.), Arquitetura: ensaios críticos – Mário Pedrosa, São Paulo: Cosac Naify, 2015, pp. 131-46.
  4. Significativamente, a Carta de Atenas, considerada a cartilha do urbanismo moderno, foi escrita em uma viagem de navio, a bordo do Patris II, em 1933, no trajeto entre Marselha e Atenas.
  5. Ver Mário Pedrosa, op. cit., p. 136.
  6. Giulio Carlo Argan, Projeto e destino, São Paulo: Ática, 2001, p. 53.
  7. Cf. Slavoj ŽiŽek, Bem-vindo ao deserto do real, São Paulo: Boitempo, 2003.
  8. Ver Fredric Jameson, Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, São Paulo: Ática, 1997, pp. 27-79.
  9. Ver Rem Koolhaas, “A cidade genérica”, em: Três textos sobre a cidade, Barcelona: Gustavo Gili, 2010.
  10. Robert Venturi; Denise Scott Brown; Steven Izenour, Aprendendo com Las Vegas, São Paulo: Cosac Naify, 2003.
  11. Cf. Charles Jencks, The Language of Post-Modern Architecture, New York: Rizzoli, 1977, p. 9.
  12. Em dezembro de 1966, Michel Foucault fez duas conferências radiofônicas sobre os temas “O corpo utópico” e “As heterotopias”, ambas reunidas em Michel Foucault, O corpo utópico, as heterotopias, São Paulo: n-1 edições, 2013. Em março de 1967, fez uma conferência no Círculo de Estudos Arquiteturais de Paris, depois publicada em parte com o título Des espaces autres.
  13. Ver Edward Soja, “Heterotopies: Remembrance of Other Spaces in the Citadel la”, Strategies: A Journal of Theory, Culture and Politics, v. 3, 1990; e Thirdspace: Journey to Los Angeles and Other Real and Imagined Places, Cambridge: Blackwell, 1996. A reconstrução de todas as leituras desses textos de Foucault está em Daniel Defert, “Heterotopia: tribulações de um conceito entre Veneza, Berlim e Los Angeles”, posfácio a Michel Foucault, op. cit.
  14. Ver David Harvey, “A visão de Henri Lefebvre”; “O direito à cidade”, em: Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana, São Paulo: Martins Fontes, 2014.
  15. Podemos nos lembrar da importante manifestação contra a Organização Mundial do Comércio em Seattle, em 1999, e na grande marcha zapatista que cruzou o México em 2001. Além, é claro, dos ataques terroristas de 11 de setembro daquele mesmo ano nos Estados Unidos.
  16. Ver Rem Koolhaas, Conversa com estudantes, Barcelona: Gustavo Gili, 2002, p. 43.
  17. A propósito das diferenças entre público e comum, ver Michael Hardt; Antonio Negri, Multidão: guerra e democracia na era do império, Rio de Janeiro: Record, 2005.
  18. Referência a observações feitas por Pedro Duarte em sua sinopse para a conferência “A utopia do pensamento”, neste mesmo ciclo Mutações: o novo espírito utópico.

    Tags

  • Albert Speer
  • alteridade
  • antiglobalização
  • antiutopia
  • arquitetura moderna
  • Brasília
  • Buckminster Fuller
  • Carta de Atenas
  • Chicago
  • civilização-oásis
  • controle
  • David Harvey
  • Denise Scott Brown
  • descontinuidade
  • Edward Soja
  • Foucault
  • Frank Lloyd Wright
  • Frederic Jamenson
  • Giulio Carlo Argan
  • globalização
  • Guy Debord
  • Henri Lefebvre
  • heterotopia
  • Jeremy Bentham
  • Le Corbusier
  • Mário Pedrosa
  • megaestruturas
  • neoliberalismo
  • panóptico
  • planejamento urbano
  • populismo
  • Rem Koolhass
  • Robert Venturi
  • situacionismo
  • Slavoj Žižek
  • Steve Izenour
  • tautologia
  • thomas more
  • Tony Garnier
  • urbanismo
  • utopia
  • vigilância