2017

Sobre o caos e novos paradigmas

por Luiz Alberto Oliveira

Resumo

Jamais houve um tempo comparável ao que vivemos quanto ao acúmulo de transformações induzidas pelo homem no curso de sua história. Atrelam-se a esse “momento” sentimentos de inquietação diante de “um novo tipo de casualidade operando sobre a atividade humana, tanto no registro da Natureza (a espécie) quanto no da Cultura (a civilização)”. Nesse contexto, certas decisões e ações têm um alcance potencial enorme, podendo chegar à escala global na cadeia de eventos, pois os sistemas não lineares (base das Teorias do Caos), em que “os efeitos de uma ação não são sempre comensuráveis com as causas” encontram condições favoráveis de expressão. Desses sistemas resulta que, “por mecanismos de reiteração, acumulação e amplificação pequenas causas produzam grandes efeitos”. Sendo assim, é impossível assistir impassível aos avanços do desenvolvimento de inteligências artificiais puras ou interativas com humanos (pela via da hibridação ou de implantes). Se a imprevisibilidade de eventos tem-se mostrado inédita, nenhuma se compara ao que nos reservam as manipulações no campo da genética. Pela primeira vez, desde a origem da vida na Terra, uma espécie interfere diretamente no curso da seleção natural de genomas, sendo difícil crer que mesmo quem esteja à frente dessas ações possa antever suas extensas consequências. O acaso na cultura do Ocidente já encontrava lugar, por exemplo, em Aristóteles em meio às suas Quatro Causas nas relações de matéria e forma dos indivíduos. Para Epicuro, ele aparece principalmente no conceito de climanen (declinação) ou “variação errática da trajetória” de átomos que se precipitavam; com o desvio, a precipitação vertical desses átomos seria perturbada, e choques em cascata produziriam os indivíduos. Temos, no pensamento de Epicuro, um resgate da liberdade de ações do homem que havia sido obliterada pelos filósofos “atomistas”. Mas, diante desse resgate, o problema que hoje se apresenta é: não estaremos nos traindo no exercício da liberdade nas relações com o planeta e suas espécies?


[1]

Podemos partir de um diagnóstico: encontrar-se-ia problematizado, e quiçá em via de esgotamento, na contemporaneidade, o valor conceitual da veneranda figura de “crise” (assim como de seu correlato, a “revolução”). “Crises” tradicionalmente remetem a um dado fundamento que se fraturou: em um domínio estável, abre-se uma fissura, uma fenda que se expande; o suporte se cinde, se instabiliza, e o regime de atividade do domínio entra em crispação. É a ocasião de se deslanchar uma revolução, para soldar a fissura, renovar o fundamento, reestabilizar o regime e assim superar a crise. Mas o próprio de nossos dias seria a continuidade da fratura: a crise é duradoura, o espasmo é incessante… Se agora a fissura abrange todo o território, se a instabilidade recobre o suporte, se a crise se identifica com o fundamento mesmo, trata-se doravante menos de buscar reparar o passado esgarçado e sim de deslocar a atenção em busca de novos operadores que possam dar conta das novas vias de desenvolvimento e de sentido que se expressam na atualidade, substituindo a cansada figura de um fundamento rompido em favor da imagem renovada e renovadora de uma abertura, de uma instauração. O conceito motriz para realizar este realinhamento de perspectivas acerca de nossa contemporaneidade tão atribulada seria o de Mutação.

A figura da mutação, de fato, implica um desvio. Essa declinação ou deriva sugere uma mudança de natureza do processo em questão, um súbito trânsito de fases a partir do qual uma outra base, uma outra estabilidade, viria a se consolidar. A mutação se vincula a uma fundação em andamento, portanto a um dinamismo que o fundamento em crise teve outrora, mas não tem mais. Mudanças por declinação são recorrentes na história de todo sistema evolutivo, quer se trate das formações da matéria, das vicissitudes da vida ou das invenções do pensamento. A originalidade de nossos dias diria respeito à escala da deriva atual: estaria em curso uma mutação civilizacional, em escala planetária, abrangendo a espécie humana. Ora, é inerente ao conceito de mutação a ocorrência de uma indeterminação, associada à casualidade intrínseca do movimento de desvio. Parece apropriado tomar como ponto de partida de nossa análise os avanços das ciências contemporâneas que irão conduzir precisamente a uma nova imagem do acaso, produtiva, positivadora, no âmbito das chamadas Teorias do Caos. Caberia assim reconhecer a entrada em cena, por uma dupla via, de uma imprevisibilidade radical, de amplitude global, que pode ser figurada por um Caos – mas não o caos da dissolução de um fundamento, e sim o caos da abertura de uma fundação.

Necessitamos primeiramente estabelecer as figuras tradicionais do acaso. Aristóteles nos ensina que o mundo é feito de coisas; mais exatamente, que consiste em uma coleção de indivíduos, ou seja, em associações entre uma matéria e uma forma que exibem unidade e identidade (duradouras o suficiente para que a coisa possa ser distinguida, identificada e designada como “isto”). Diz ainda que os indivíduos são gerados pela ação de Quatro Causas ou Princípios Primeiros que, segundo o filósofo, explicam o que são os indivíduos, isto é, dão conta de sua origem, essência e razão de ser. Estes Princípios podem ser ilustrados pelas etapas da criação de uma estátua por um escultor, famosa imagem que o próprio Aristóteles nos legou. Há primeiramente a causa material, uma base ou suporte, análoga a um bloco de mármore bruto sobre o qual nenhuma forma foi ainda esculpida, mas que tem a potência de receber incontáveis formas. A seguir, há a causa formal, que corresponde a um projeto, um diagrama de proporções, concebido na mente do artista, no qual estão definidos os limites que moldarão aquela matéria bruta. Há então a causa eficiente, identificada ao trabalho concreto do escultor ao cinzelar a pedra e imprimir-lhe os contornos da forma desejada. Por último, tem-se a causa final, que é a finalidade ou objetivo da estátua pronta, ou seja, o uso a que se destina, cerimonial, estrutural, ornamental etc. Em suma, as Quatro Causas dizem o que uma coisa é (a causa material), por que é (a causa formal), como é (a causa eficiente), para que é (a causa final). A força do sistema aristotélico está em conseguir explicar, de maneira satisfatória, os acontecimentos do mundo terrestre a partir deste pequeno número de princípios, coerentes com as intuições do senso comum que vigoram em nossa experiência cotidiana.

Mas o próprio Aristóteles foi obrigado a reconhecer que, tanto no surgimento dos indivíduos naturais quanto na produção dos indivíduos artificiais, às vezes parece ocorrer como que uma dissociação entre a causa eficiente e a causa final. Há certos processos ou acontecimentos nos quais algo opera sem aparentemente estar submetido a um objetivo direto, ou seja, como uma causa eficiente em maior ou menor grau desvinculada da respectiva causa final. A esta classe de processos que se desenrolam sem ter um fim estabelecido Aristóteles denomina acaso. O acaso é toda causa eficiente que opere sem visar, ao menos diretamente, um fim. Nesse sentido, todo acaso representa uma possibilidade de enfraquecimento ou distorção da boa ordem natural. Podemos, contudo, distinguir três grandes tipos ou espécies de acaso. O primeiro tipo é o acaso por ignorância, ou seja, se desconhecemos as causas que presidem um dado acontecimento, então tomamos esse acontecimento como ocorrendo “sem causa”. Ao suceder sem nenhum desígnio aparente, tal fato exibe a imprevisibilidade ou gratuidade típicas do que costumamos apelidar de acidente – o mais das vezes, porém, por simples ignorância de que causas perfeitamente determinadas estão em ação. Ora, diante de um acidente do qual não vislumbramos a causa, frequentemente invocamos um imperativo difuso, a que chamamos destino. O destino encarnaria uma contrapartida à contingência do acidente, ou seja, uma necessidade cuja origem não discernimos, e que os gregos chamavam de ananké. O antigo mito das três Moiras ou Parcas representava para eles este império do destino sobre a contingência. Às determinações dessas fiandeiras do destino – Clotho, Lachesis, Áthropos – até mesmo os Deuses imortais estariam submetidos. A imagem célebre é a de que Clotho prepara a lã, Lachesis a fia, e Áthropos mede e corta o fio. O tamanho do fio fixa a duração de cada ser, a extensão de cada acontecimento – por exemplo, a extensão de uma vida humana – e esta predeterminação das durações de todas as existências nem mesmo o Olimpo pode revogar. Com essa imagem os gregos querem predicar a submissão dos Homens mortais a esta Necessidade que nem sequer a onipotência dos Deuses pode violar. Ignorantes do Destino, fazemos escolhas para propiciar ou evitar esse ou aquele acontecimento, e essas escolhas não fazem senão acarretar exatamente o que era necessário, o que já estava prescrito.

O exemplo mais famoso, naturalmente, é o do mito de Édipo. Um oráculo diz a Laio, rei de Tebas, que seu filho matará o pai e casará com a mãe. Para esconjurar esse horror, Laio ordena que o nascituro seja abandonado aos animais da floresta. Pendurado pelos pés a uma árvore (Édipo significa “pé inchado”), seus gritos atraem um pastor, que resgata o bebê e o leva para os reis de Corinto, que criam aquela criança como se fosse seu filho. Já adulto, Édipo é informado da profecia nefasta do oráculo – que ele pensa dizer respeito a seus pais adotivos, o rei e a rainha de Corinto. Para escapar à realização desse destino terrível, decide partir da cidade. Numa encruzilhada da estrada, tem uma briga com um cocheiro apressado, a quem acaba por matar – ele não sabe, mas esse cocheiro é seu pai, Laio, que buscava o conselho do Oráculo de Delfos para enfrentar uma moléstia que assola as cercanias de Tebas, a Esfinge. O monstro para os viajantes, exigindo que solucionem os enigmas que lhes propõe; se estes não conhecem a palavra-que-falta, a resposta que completa a pergunta, são devorados. Desejando afastar-se o mais possível de Corinto, Édipo toma o rumo de Tebas e acaba por se defrontar com a Esfinge. Mas o herói resolve o desafio que lhe foi lançado, e a Esfinge se atira no abismo; o mal foi extirpado e a harmonia, recuperada. Sanando a falta da qual a Esfinge era porta-voz ou sintoma, a palavra-que-preenche de Édipo manifesta o saber-poder (e a predestinação à catástrofe) de que os deuses o haviam dotado. Pela vitória, ao alcançar Tebas, recebe como prêmio o trono vacante desde a morte de Laio, e com ele a mão da rainha, que era Jocasta, sua mãe. Ou seja, ao tentar evitar o cumprimento da profecia, Édipo não fez senão implementá-la. Ignorante da fatalidade que presidia seu caminho, os encontros aparentemente fortuitos e as escolhas aparentemente razoáveis que Édipo teve e fez foram as vias de atualização das determinações necessárias do Destino.

A segunda espécie de acaso é a da coincidência. Imaginemos duas séries causais autônomas, independentes entre si, que inesperadamente se encontram. Ou seja, podemos acompanhar sequências causais de acontecimentos – cadeias de causas e efeitos – perfeitamente nítidas e razoáveis ao longo de cada série. Mas, imprevistamente, elas se encontram, coincidem, e essa co-incidência fortuita irá modificar as consequências de ambas as linhas de eventos. Um exemplo famoso remete ao próprio Aristóteles, e foi retomado por São Tomás de Aquino. João vai à feira comprar tomates, e aí encontra Agostinho, que tinha ido vender laranjas. Agostinho devia dinheiro a João, aproveita a ocasião e salda a dívida; com a bolsa inesperadamente cheia, João, além de tomates, compra batatas também. Saldar a dívida não era a finalidade da ida à feira de um ou de outro, seu encontro não estava previsto, mas, uma vez sucedido, a salada de João será diferente. Podemos examinar aí duas possibilidades: a primeira é a de que a independência das duas séries causais seja apenas aparente, ou seja, que seu encontro obedeça a uma vinculação mais abrangente, a uma hipercausalidade global. Para além de cada linha causal haveria uma trama que as associa, formando uma tessitura coletiva que faz as linhagens de acontecimentos encarnarem, em conjunto, um desígnio ou propósito. Quer dizer, não há casualidade alguma na coincidência de João encontrar Agostinho na feira. Os antigos concebiam esta hipercausalidade universalmente abrangente sob a figura da Providência. Eis, por exemplo, uma criança presa numa casa em chamas; quando tudo parece perdido, sucede que uma chuva forte cai, ameniza o incêndio e permite o resgate da criança. Os pais celebram: a chuva foi providencial, como se tivesse sido destinada justamente a salvar a criança. A outra possibilidade é a de que só haja causalidade no interior das séries, ou seja, de que sua independência seja autêntica. Nesse caso, coincidências são reais; a trama global que associaria as linhas de eventos ou não existe ou é indiscernível (caso em que recaímos em uma modalidade de ignorância). Os antigos também consideraram a figura conexa a essa concatenação casuística das linhas causais e chamaram a correspondente mescla de necessidade e aleatoriedade de Fortuna. Haveria, no máximo, padrões genéricos de regularidade governando as séries de acontecimentos. À diferença das intervenções pontuais, específicas, dos eventos providenciais, contudo, a Fortuna operaria com ciclos e eras: o que sobe demais vai cair, depois do sucesso vem o desastre, a sorte sorri aos audazes.

O terceiro tipo é o acaso como desvio ou errância, referido a um acontecimento que não provém de um estado determinado, nem exibe finalidade alguma. Esta figura extremamente desafiadora nos é apresentada, na história da Filosofia, pela escola atomista. Consta que, com o fim de se contrapor ao transcendentalismo de Platão, em que reconheciam a persistência de um travo místico-religioso, Leucipo e Demócrito elaboraram uma doutrina estritamente materialista que pudesse servir de base para uma doutrina ética. Como se sabe, Platão pretendia que os seres sensíveis fossem conhecidos e avaliados a partir de modelos extrassensíveis e valores extramundanos, e seria justamente essa preeminência das Ideias transcendentes – que no platonismo vêm ocupar o lugar das antigas alegorias religiosas – sobre a existência concreta que esses pensadores queriam combater. Propõem então uma abordagem rigorosamente materialista, na qual tudo que existe é composto por unidades discretas e elementares de corporeidade, que chamavam de Átomos, e pelo complemento lógico necessário à separação destas unidades últimas, o Vazio. Tudo o que existir é uma mistura de corpos e vazio. Autênticos indivíduos primordiais, incriados, imutáveis e indestrutíveis, os Átomos forneceriam um substrato material para o existir que não careceria de legitimação externa alguma. O preço a pagar é admitir um determinismo mecânico, quer dizer, um automatismo estrito. Se tudo que efetivamente existe são átomos movendo-se no vazio, os corpos sensíveis não passam de arranjos, de constelações de átomos, e em derradeira instância serão os choques mecânicos entre os átomos que irão constituir todos os corpos e serão responsáveis por suas variações e relações. Portanto, nada ocorre, nada pode ocorrer, que não seja a consequência estrita desses choques atômicos microscópicos. Ora, tal automatismo elementar abole qualquer pretensão de arbítrio ou opção no âmbito dos corpos e dos agregados de corpos, ou seja, aniquila qualquer possibilidade real de escolha – ou liberdade. Penso que livremente deliberei levantar neste instante meu braço direito, mas se este foi um gesto real, isto é, um acontecimento concreto, então necessariamente resultou de uma sequência de choques microscópicos dos átomos de que sou feito. Assim, paralelamente ao próprio gesto, teve de operar algum tipo de processo de autoilusão, igualmente de base atômica, de modo a me fazer acreditar que de fato tive escolha, que de fato escolhi… Não apenas meu movimento estava predeterminado, minha sensação de livre escolha foi predeterminada também.

É para evitar esse determinismo rígido do atomismo antigo que Epicuro, dois séculos depois dos pioneiros, introduzirá uma inovação decisiva: a ideia de que, inerente aos movimentos dos átomos, há a possibilidade de que ocorra espontaneamente uma deriva imprevista, uma variação errática de trajetória, que chamará de clinamen ou declinação. Concebe assim uma cosmogênese em que, na ausência do próprio tempo, isto é, previamente a qualquer duração, o mundo principia como uma chuva de átomos, caindo verticalmente no vazio. Mas em uma dada ocasião, impossível de ser precisada – exatamente porque nada ainda aconteceu –, no movimento de um desses átomos se dá um desvio; sem nenhuma causa anterior, espontaneamente, autonomamente, casualmente, ele se afasta da queda vertical. Ora, ao desviar-se da vertical acabará por interceptar a trajetória de algum outro átomo, com o qual se chocará; este choque dará lugar a uma cascata de outros choques, e essa sucessão de cascatas de choques irá produzir adensamentos, concentrações de átomos e rarefações, dispersões de átomos; logo surgem os corpos, os seres, o mundo. Contudo, agora, em todo agregado de átomos, lá num nível fundamentalmente constitutivo, no plano verdadeiramente ontológico dos átomos e do vazio, vigoram tanto a causalidade mecânica dos choques quanto a casualidade imprevisível do clinamen, do desvio. Podemos, portanto, ser efetivamente livres. Nossa liberdade decorre de que, nas profundezas do nosso corpo, está instalada essa deriva inerente. Eis então a noção do acaso como errância, essa perturbadora figura de que algo sucede sem decorrer de uma instância interior. As implicações deste conceito são vastas: admitir a atuação de uma aleatoriedade pura como a do clinamen epicuriano corresponde a aceitar a contínua renovação do próprio Universo. Se, de fato, em um dado momento, algo ocorre que não seja causalmente determinado por nenhum evento anterior, tudo se passa como se nessa ocasião um constituinte ou caminho de ação inteiramente inédito tivesse entrado em cena, e o Universo se recriasse. Tal é a potência radical desse acaso-errância.

Em suma, desde que Aristóteles identificou o acaso com a operação de causas eficientes indeterminadas, ou seja, em menor ou maior grau dissociadas das correspondentes causas finais, o Ocidente buscou capturar e confinar a casualidade por meio de três figuras redutoras: eventos imprevistos, ou fortuitos, ou acidentais – sintomas ou máscaras do casual – sucederiam quer por desconhecermos causas indispensáveis para a correta descrição da origem de um acontecimento, quer pela convergência fortuita de séries causais independentes, quer, enfim, por desvios, transgressões, na aplicação de regras de outro modo plenamente determinadas. O acaso como ignorância, como coincidência, como variância. Porém, nesse momento na evolução de nossa espécie, nesta circunstância de nossa civilização, algo parece ter acabado de mudar.

Podemos nos aventurar a explorar a noção de Mutação como um guia para a perplexidade de nossos tempos invocando uma nova concepção de acaso que recentemente teria principiado a vigorar, um novo tipo de casualidade operando sobre a atividade humana, tanto no registro da Natureza (a espécie) quanto no da Cultura (a civilização), que de certo modo pode ser imaginada como um compósito ou amálgama das figuras tradicionais: o Acaso da Complexidade ou do Dobramento. Para dar conta das características originais dessa errância contemporânea, precisamos lançar mão de noções inovadoras que foram inauguradas pelos avanços das Ciências no século XX, em particular, pela imensa renovação nas bases da Matemática. Com efeito, desde que David Hilbert apresentou em 1900 no Congresso Internacional de Paris a célebre lista dos 23 problemas fundamentais em aberto (alguns dos quais não resolvidos até hoje), a matemática sofreu profundas modificações, equivalentes, em conjunto, a uma expansão sem precedentes dos territórios até então reconhecidos. Pensava-se que havia uma língua mestra presidindo os enunciados matemáticos, a chamada linguagem linear, ou seja, pensava-se que os chamados sistemas lineares cobriam quase toda a matemática. Mas hoje sabemos que a linguagem linear não é senão um dialeto muito específico: os sistemas lineares não passam de uma gota no oceano das possibilidades matemáticas. O reino da matemática é essencialmente não linear.

O matemático britânico Ian Stewart nos oferece um exemplo esclarecedor. Imaginemos que estamos contemplando a totalidade dos domínios da matemática; identificar o local onde se encontram os sistemas lineares requer precisão análoga à de disparar um tiro e acertar uma moeda no outro lado da galáxia – ou seja, é algo extremamente improvável. Os sistemas lineares são infinitesimais em relação às vastidões não lineares que se estendem pelas matemáticas afora. E, continua Stewart, vê-se com clareza um problema de terminologia aqui: ao designar a imensa maioria dos objetos matemáticos como não lineares, estamos definindo o maior como o não menor. Um contrassenso terminológico semelhante a dizer que os animais se dividem em elefantes e não elefantes, ou seja, que a zoologia compreende a paquidermologia e a não paquidermologia… À falta de designação melhor, prossigamos: constatou-se ao longo do século XX que a matemática é essencialmente não linear. O que isso significa? Primeiramente: o que é um sistema linear?

Um sistema linear é um conjunto de grandezas para o qual vigora a regra de que o todo não é senão a soma das partes. Eis aqui uma porção de fragmentos; associamos, agregamos esses fragmentos até que eventualmente chegamos a um todo, a uma unidade global resultante da integração desses fragmentos-partes. Exemplo: um quebra-cabeça. Temos à mão as partes, as muitas frações do desenho de uma paisagem, digamos; juntamos duas partes, e obtemos uma nova parte – quer dizer, um novo fragmento do quebra-cabeça, correspondente a um outro recorte do desenho. Juntamos mais uma parte, surge um fragmento maior. O que é o quebra-cabeça resolvido? Apenas a justaposição completa das partes. O fato de acrescentarem-se sucessivamente as partes, integrando-as, não muda a natureza dessas partes. O todo, o agregado final, é portanto homogêneo às partes. Dito de outro modo, os sistemas lineares são coletivos de parcelas autônomas, cujas propriedades não dependem da prévia inserção ou não no sistema: em consequência, o todo é sempre redutível à adição das partes, ou – o que é o mesmo – o acréscimo sucessivo das partes não introduz inovação. Consideremos um exemplo de linearidade em um fenômeno natural: estamos à beira de um lago, jogamos uma pedra, vemos se formarem ondulações, padrões de movimentação do líquido que se propagam a partir do ponto de impacto. Em seguida jogamos uma segunda pedra; formam-se novas ondulações, a partir da nova origem. O que sucede quando as ondulações se encontram? Formam-se… ondulações. Nos locais onde as cristas e vales das ondas originais se ajustarem, resultará uma onda amplificada; onde cristas e vales se descompassarem, uma onda atenuada. Mas o mesmo padrão ondulatório vai estar sempre presente: o encontro de ondas não é senão uma onda. Equivalentemente, uma dada onda é sempre decomponível, em princípio, em um consórcio de ondas componentes. A lei que vigora para o todo é a mesma lei que vigora para cada parte; a soma de partes é também uma parte, e o todo é homogêneo às partes.

Vamos imaginar agora a seguinte configuração: um vale fechado, onde cresce uma grama permanente (ou seja, mesmo se é comida, logo renasce). Temos nesse vale um certo número de coelhos, que comem a grama e exibem uma certa taxa de fertilidade e um certo período de gestação. E temos também um certo número de lobos, que comem os coelhos e possuem suas próprias taxas de fertilidade e períodos de gestação. Populações iniciais, taxas e períodos são parâmetros arbitrários do sistema, que podemos livremente especificar. Como vai se desenvolver esse sistema? Suponhamos que haja, no começo, muitos coelhos e uns poucos lobos. Os lobos têm facilidade em caçar coelhos, as lobas ficam bem alimentadas e têm numerosos filhotes saudáveis; como resultado, a cada geração cresce o número de lobos. Mas muitos lobos caçam muitos coelhos, e o número dos coelhos tende a diminuir. Escasseando os coelhos, a caçada torna-se difícil, as lobas têm poucos e malnutridos filhotes, logo nas próximas gerações tende a diminuir o número de lobos. Diminuindo o número de lobos, pode aumentar o número de coelhos, e da capo. Vemos que as curvas de população se acompanham, com crescimentos e declínios acoplados. Verificamos que neste tipo de sistema os resultados da atividade de um agente condicionam esta própria atividade. O comportamento dos lobos rebate-se sobre os próprios lobos, afeta seus próprios números. De fato, não seria incorreto entender os coelhos como um meio para os lobos afetarem a si mesmos, regulando os contingentes das alcateias. Temos agora um tipo de sistema cuja estrutura pode ser modificada pela realização dessa própria estrutura, e não mais uma estrutura independente, associada a um comportamento determinado, que se realiza sobre um ambiente neutro e passivo. Ao realizar suas naturezas de lobo, as alcateias se autoafetam e acabam por modificar-se: trata-se de um diálogo estrutural-funcional entre o operador e o seu comportamento, de tal sorte que a natureza do operador não é, não pode ser, invariável. As propriedades dos lobos são transformadas pelo exercício de sua própria lupinidade; o comportamento de lobo lança os lobos numa variância.

Neste tipo de sistema, claramente não há homogeneidade entre todo e parte. Ao contrário, trata-se de um sistema que, ao se realizar, impõe-se ele mesmo uma modificação: a atividade do todo altera os estados das partes, o que, por sua vez, implica a alteração dos atributos do todo, num vínculo heterogêneo. Há algo no todo que não está presente nas partes, precisamente devido a este poder de afecção entre o todo e as partes, este poder de autoafecção. Neste sistema, o todo será sempre mais (ou menos) que a soma das partes; um sistema não linear, portanto. Qual propriedade dos sistemas não lineares mais nos interessa aqui? O fato de que nos sistemas não lineares, ao contrário do caso linear, os efeitos de uma ação não são sempre comensuráveis com as causas. No mundo linear, uma causa de pequena intensidade dará lugar a um efeito de pequena intensidade; já uma causa de grande intensidade terá um efeito de grande intensidade. Consideremos um exemplo esclarecedor: eis o artilheiro George W., que, ao ouvir falar de cultura, saca logo de sua Condoleeza. Naturalmente, George W. odeia bibliotecas, e maneja assim seu morteiro, querendo alvejar a biblioteca de Bagdá. Para tanto, fixa um ângulo de disparo, e as variações desse ângulo inicial determinarão as trajetórias que o petardo irá seguir até acertar o alvo. George W. sabe que pequenos ajustes no ângulo de mira resultarão em pequenas variações no percurso, que sucessivos acréscimos no ângulo redundarão em alterações cada vez maiores do alcance do tiro, e grandes ajustes ocasionarão, proporcionalmente, grandes mudanças no ponto de impacto. Tipicamente, um sistema de comportamento linear. Mas o caso não linear do ecossistema idealizado do vale dos coelhos e lobos é completamente diferente: uma vez que o resultado de cada etapa de atividade condiciona a realização da etapa seguinte, os agentes são afetados pela sua própria atuação, e isto torna possível que por mecanismos de reiteração, acumulação e amplificação pequenas causas produzam grandes efeitos.

O exemplo mais famoso dessa propriedade não linear é, sem dúvida, o do efeito borboleta descoberto por Edward Lorenz: o bater das asas de uma borboleta na foz do Amazonas muda a direção de um tufão no oceano Índico. Criaturas irremediavelmente lineares que somos, a única forma que imaginamos poder se realizar este enunciado, ao escutá-lo pela primeira vez, é se houver alguns milhões de borboletas batendo as asas em uníssono lá por perto de Santarém, para talvez, quem sabe, porven-tura, conseguir gerar uma ventania capaz de chegar até a Índia. De que outro modo a delicadeza da borboleta poderia afetar a fúria do tufão?! Trata-se, na verdade, de um processo totalmente diferente: ao bater as asas naquela particular direção, naquele particular momento, uma dada borboleta altera, mesmo que apenas num grau infinitesimal, a taxa de evaporação de uma dada flor, num dado canteiro. Quando integramos as taxas de evaporação para as flores desse canteiro, o total será o resultado de todas as correspondentes modificações infinitesimais. Passando agora do canteiro ao jardim, o novo valor integrado incorporará as marcas desse e dos demais canteiros. Do jardim passamos para o vale, a seguir para a serra, depois para o distrito, do distrito para a região, da região para o país, daí para o continente, e para o hemisfério, e enfim para o planeta. Devido a este mecanismo de integrações reiteradas, a minúscula variação causada por nossa borboleta se acrescentou a incontáveis outras ações microscópicas que, acumulando-se, acabaram amplificadas até produzir um efeito de larga escala – o direcionamento do tufão. Desse modo, vemos que pequenas causas podem realmente produzir grandes efeitos.

Contudo, isso implica que temos que abrir mão da pretensão linear, demasiado linear, de determinar de modo estrito o curso dos acontecimentos. Se quero controlar um certo processo linear, o que devo fazer? Basta diminuir a intensidade da causa, proporcionalmente à intensidade desejada do efeito; sempre se pode exercer esse controle, em princípio. Mas, no âmbito não linear, variar uma dada causa, por minúscula que seja tal mudança, pode desembocar num efeito final radicalmente diferente do anterior. Um bater diferente das asas de uma borboleta – e um tufão segue em outra direção. Existe agora um elemento de imprevisibilidade irredutível, que decorre da característica não linear pela qual sínteses de microcausas podem produzir macroefeitos. Não há como aferir, nessa pluralidade de caminhos evolutivos possíveis, minimamente distintos na origem, um particular percurso específico. Uma imensa gama de futuros pode decorrer de um dado estado de coisas em função de infinitesimais variações das condições desse estado de coisas – e George W. pode acabar acertando seu próprio traseiro… O termo escolhido para denominar processos envolvendo tal tipo de imprevisibilidade radical foi caos.

As chamadas Teorias do Caos descrevem processos em sistemas não lineares nos quais, por meio de reiteração, acumulação e amplificação, pequenas causas podem engendrar grandes efeitos. Para nossos objetivos, o aspecto mais significativo desses processos concerne à possibilidade de uma evolução na qual, ao desempenhar seu comportamento, o sistema veja rebater-se sobre si mesmo as consequências dessas atividades. Se o agente é afetado pela ação dele mesmo, pode ocorrer como que uma introjeção dessa indeterminação local, microscópica, na própria estrutura do sistema que está agindo. O sistema evoluirá de modo a modificar a si próprio – imprevisivelmente.

Consideremos então uma dada classe de sistemas não lineares que não sejam autônomos com respeito a seu próprio desempenho, ou seja, sistemas que simplesmente por agir acabam por continuamente redesenhar sua arquitetura, por continuamente reproduzir-se. Recordando que “produção” em grego se diz poiesis, Maturana e Varela denominaram autopoiéticos os sistemas desse tipo. Um exemplo: os seres vivos. De fato, desse ponto de vista, a Vida não é senão uma certa classe de organizações materiais capazes de replicar estas organizações, isto é, uma matéria organizada de tal forma que aprendeu a manter essa forma e a fazer cópias dela, quer dizer, cópias de si. Mas, para perseverarem e se copiarem, esses sistemas interagem não linearmente uns com os outros, com os fluxos de matéria, atividade e estrutura que compõem seu substrato ou ambiente, e consigo próprios, e torna-se possível que derivas minúsculas acabem por modificar a forma a ser reproduzida. Ao repetir-se, a Vida varia, diferencia-se. A abertura indispensável ao exercício da autopoiese requer um potencial implícito de indeterminação. Tal tipo de sistema não linear, autoprodutor, autoafectante, automodulador, resulta inerentemente imprevisível.

Talvez não seja de todo inapropriado, com vistas à elaboração de um diagnóstico do presente estado de coisas civilizacional, transladar do âmbito da Teoria dos Sistemas Complexos esboçada aqui alguns operadores conceituais a partir dos quais pudéssemos reconhecer que estamos vivendo um processo singular de rebatimento das ações humanas sobre nós mesmos – ou seja, em vez de simplesmente agirmos segundo nossa natureza sobre um suporte ou contexto que nos é cabalmente exterior, estaria em curso um duplo rebatimento, um duplo dobramento de nossas ações sobre elas mesmas. Esse duplo rebatimento converteria o estado de coisas atual em um caldeirão não linear de caotizações, em que se emaranham inumeráveis e incontroláveis futuros, por dobramento. Os fundamentos aos quais até agora creditávamos a estabilidade do nosso ser, de nossa humanidade, começaram a deslizar; a forma humana começa a variar, ou por outra, os limites entre humano e inumano a se desfazer. Mutação por caotização endógena, por autodobramento. Em latim, “dobra” se diz “plica” ou “plexo”, assim estaríamos vivendo uma mutação por complexificação.

O que é dobrar? Dobrar é conectar, é pôr em contato o que estava separado. Eis uma folha de papel aberta; dobramos a folha, e regiões até então distantes entram em contato, se conectam. Há agora uma superfície externa explícita que todos podem ver, e também uma superfície interna, implícita, que não é visível – pois está encoberta –, mas que todos podem intuir. Foi acrescentada a esse sistema uma nova dimensão: dobrar a superfície bidimensional deu lugar a uma tridimensionalização, ao surgimento de uma espessura ou profundidade. A produção desta profundidade permite que novas capacidades, novos modos de acontecimento, possam vir a se instalar por sobre esta nova base. Complexificar é o meio de inovar; mutamos porque nos redobramos, nos reinventamos. Por que vias se pode sustentar e explorar essa sugestão? Em duas direções, simultaneamente, correspondentes a um duplo dobramento, uma dupla complexificação. Haveria um dobramento da inerência e um dobramento da abrangência. Examinemos então as dimensões que cada um destes dobramentos parece implicar.

A dobra da inerência diz respeito ao fato de que hoje, mercê dos avanços da tecnociência, nos tornamos capazes de analisar, descrever e manipular os elementos básicos constitutivos de praticamente todas as formações materiais; em particular, começamos a elucidar e a operar sobre os arranjos materiais específicos que definem os organismos vivos. Podemos na atualidade agir sobre o “texto” bioquímico dos genomas, os “manuais de instrução” em que a evolução inscreveu as regras para a produção dos organismos; cada indivíduo, de fato, encarna um “parque gráfico”, pelo qual será assegurada a reimpressão do manual correspondente a sua espécie. Sabemos inserir letras, alterar linhas, mesclar páginas de um texto com as de outro, sacar ou acrescentar capítulos de tomos diferentes, reeditar volumes inteiros. O físico britânico Freeman Dyson nos chama a atenção: uma tal transferência direta de genes era uma regra geral nos primórdios da vida, quando a membrana celular não havia ainda surgido. As moléculas autocatalisadoras e autorreprodutoras primordiais compartilhavam o mesmo ambiente, e assim se encontravam e amalgamavam livremente. Depois da aparição da vida celular, o intercâmbio direto de material genético encontrou obstáculos crescentes, e a seleção natural – através do mecanismo da hereditariedade – tornou-se o principal meio de continuidade e propagação da carga genética, particularmente para os organismos macroscópicos (para os quais algum compartilhamento sucede somente pela intermediação dos vírus). Encontros diretos entre genomas distintos deixaram de ser frequentes há uns dois bilhões de anos. Mas hoje, assinala Dyson, estamos fazendo tais encontros voltarem a acontecer: coelhos misturam-se com águas-vivas e brilham no escuro… Ao atuar no nível constitutivo básico dos organismos, passamos a suplementar a seleção natural na função de desenhar as formas das espécies vivas. Este fato não tem precedentes.

Evidentemente, esta capacidade de intervenção e modificação das bases da vida se estende hoje a eles mesmos. Nossa própria definição, a herança que especificaria nossa natureza de mamíferos primatas, seria suscetível de ser modificada. Ora, sempre houve modificações; a evolução das espécies não é outra coisa que a história cumulativa das mudanças dos desenhos dos organismos vivos, e somos nós mesmos o legado de uma longa sucessão de transformações. A diferença, a novidade, é o ritmo com que as variações passaram a acontecer. Há cerca de cinco milhões de anos os ancestrais do gênero Homo se distinguiram do ramo dos nossos primos primatas, os chimpanzés e os gorilas. Há cerca de 120 mil ou 150 mil anos surgimos nós, o Homo sapiens. Mas há cerca de 12 mil anos – uma mera fração, portanto, da duração completa de nossa linhagem – desenvolvemos a civilização, acontecimento singular que podemos assinalar pela aparição praticamente simultânea da agricultura, da cidade, da escrita e da matemática. Os ritmos da cultura vieram se sobrepor aos vastos andamentos da natureza – mas estes ritmos, em virtude dos sucessivos avanços da ciência e da técnica, tornaram-se de tal modo condensados que hoje impõem uma aceleração vertiginosa às variações possíveis da espécie humana. Em décadas, ou anos, ou dias, seremos capazes de produzir, de fazer surgir, variantes inteiramente inéditas de Homo. E não a partir da casualidade inerente à seleção natural, mas de objetivos e finalidades estabelecidos no presente. Esta possibilidade não tem precedentes.

Uma abordagem especulativa poderá nos ajudar a esclarecer o calibre dos problemas que principiam a se descortinar, a partir da dobra da inerência, em nossos dias. Em algum momento do futuro próximo, podemos vir a entender ser conveniente, para lidar com as vastas dificuldades de toda a sorte que estaremos enfrentando – boa parte criada por nós mesmos –, nos tornarmos mais inteligentes. Parece razoável aceitar que, se formos mais inteligentes, seremos mais capazes de lidar com as questões políticas e ambientais que encontraremos. A história de nossa espécie certamente sanciona essa conjectura: há cinco milhões de anos, nossos ancestrais hominídeos tinham crânios com uma capacidade de cerca de um terço da atual, proporcional portanto à de um de nossos bebês. Se o aumento do tamanho do cérebro, evidenciado pelo crescimento da capacidade craniana, é assim um traço marcante de nossa evolução, e se o desenvolvimento da inteligência acompanhou esse processo, então uma intervenção pela qual suscitássemos uma ampliação ainda maior da quantidade de neurônios em nosso sistema nervoso possivelmente daria lugar a mais inteligência. Com efeito, nosso cérebro deve sua eficácia ao assombroso número de componentes e interligações entre eles, as chamadas sinapses, que partindo de cerca de cem bilhões de neurônios, cada um compartilhando aproximadamente mil conexões com outros, perfazem cem trilhões de conexões!

Por outro lado, o ritmo de trocas é lento, pois a velocidade de propagação de sinais eletroquímicos ao longo das sinapses é pequena (quando um sinal neuroquímico é disparado de um neurônio para outro, viaja a aproximadamente 150 m/s; parece muito, mas não passa de 540 km/h – nem sequer é supersônico!). Em comparação, num processador eletrônico como os que estão instalados em nossos computadores pessoais, os sinais elétricos movimentam-se quase à velocidade da luz, por volta de 300 mil km/s (ou 1,8 bilhão km/h!) – alguns milhões de vezes mais rápido. Além disso, nossos neurônios disparam umas poucas centenas de vezes por segundo. Os sensores ópticos de nossas retinas, por exemplo, disparam sessenta vezes por segundo (e portanto nossa percepção, de fato, é descontínua, estroboscópica; a continuidade de nossa experiência sensível é, por assim dizer, “fabricada” pelos centros sensoriais do cérebro). Vamos admitir um limite de duzentos disparos por segundo, ou seja, uma frequência de ativação sináptica de duzentos ciclos por segundo, ou duzentos hertz. Em contraste, os processadores eletrônicos caseiros de hoje operam a dois giga-hertz, ou 2 bilhões de ciclos por segundo. Novamente, uma diferença de milhões!

Tendo em conta esses dados, vislumbramos três vias pelas quais se poderia contemplar um upgrade do, digamos assim, Projeto Homo Sapiens 1.0. A primeira via é a das biotécnicas: através de manipulação genética e engenharia celular, aumentarmos o volume cerebral, porém não em milhões de anos e milhares de gerações, como sucedeu em nossa evolução desde os hominídeos, mas em poucas décadas ou mesmo meses, quem sabe. Uma outra possibilidade biotécnica é usarem-se drogas ou algum outro meio para acelerar a velocidade das trocas neuronais. Ora, para aumentar-se o tamanho do cérebro, seu envoltório, o crânio, precisa ser ampliado, mas há um limite óbvio a respeitar: o quadril das mães. Parece conveniente, em princípio, que esse cabeçudo mais esperto seja engendrado artificialmente, fora do corpo materno. Outro limite concerne à capacidade que tem o pescoço, essencialmente um cilindro, de suportar um crânio mais pesado. Essa capacidade é proporcional à seção transversal do cilindro, logo, para sustentar um crânio maior, é preciso que o pescoço engrosse. Para isso, a estrutura muscular do torso, bem como a espessura das vértebras da coluna, teria de ser ajustada… Seria portanto necessário concatenar uma série de mudanças do design básico humano para produzir um cérebro maior, ou seja, ainda que não fosse esse o propósito, o resultado seria equivalente ao desenvolvimento de uma variante da espécie: uma nova raça.

É preciso observar: não existem raças humanas. Biológica e antro-pologicamente, a noção de raça humana é um equívoco. E o racismo, a pretensa superioridade de uma raça sobre outra, é o quadrado desse equívoco. A razão é que somos recentes demais para termos nos diferenciado em subvertentes, que seriam as raças. Surgimos há 150 mil anos no norte da África, mas há cerca de 70 mil anos uma mudança climática brutal – possivelmente devido à explosão de um supervulcão na Indonésia, com uma câmara de magma três vezes mais ampla que a de um Vesúvio – dizimou os grupamentos de Homo sapiens então existentes, sobrando desse cataclismo uns poucos milhares, ou quem sabe até mesmo umas poucas centenas, de indivíduos. Todos nós descendemos desse número muito restrito de ancestrais muito recentes, portanto, somos todos próximos – como se diz no Oriente Médio, somos todos primos. Não há raças. No entanto, poderão ser criadas. Ainda nos discriminamos por traços insignificantes – tipo de cabelo, tons de pele, pálpebra dobrada ou não; reconheceríamos as criaturas que criaríamos como humanas?

Se a primeira via é a do upgrade biotecnológico do humano, a segunda é a da hibridização, ou seja, a da suplementação das capacidades limitadas de nossa matriz biológica por meio da incorporação de dispositivos artificiais. Em vez de portarmos dispositivos de processamento, interfaceamento e comunicação – de celulares a iPods –, passaremos a tê-los inscritos em nós mesmos, os assimilaremos. Já foi patenteado, por exemplo, um sistema de processamento que atua por meio de microcondutores tatuados sobre a pele – a tatuagem faz as vezes de uma placa-mãe, e a própria bioeletricidade do organismo é usada para acioná-la. Uma expectativa óbvia é a de que comece a haver entrelaçamentos progressivamente mais íntimos, interfaces cada vez mais diretas entre processadores eletrônicos e processadores biológicos. Freeman Dyson estima que em cinquenta anos será possível desenvolver técnicas de sensoreamento do funcionamento do cérebro tão minuciosas a ponto de permitirem que se mapeie com precisão os processos cerebrais de produção de sensações, de tal maneira que tais sensações venham a se tornar efetivamente registráveis e até transferíveis. Quer dizer, um padrão de sensações experimentado por uma pessoa seria gravado e inserido em outra, que poderia experienciar essa vivência como sua, qualquer que tenha sido. É difícil imaginar uma droga mais potente e sedutora… Se não surgirem obstáculos técnicos concretos que venham a impedi-la, pode-se até conceber a aparição de mentes compartilhadas, comunais, por meio da interconexão direta entre sistemas nervosos. É difícil imaginar o que seria, quem seria, essa pessoa multiplicada, e que tipos de experiência um sujeito coletivo como esse poderia realizar; certamente, trata-se de uma entidade pós-humana, embora feita – parcialmente – de seres humanos. Tal seria o surgimento dos borgues, criaturas de carbono e silício, e parece certo que os limites do humano também estariam sendo extravasados aí.

A terceira via, enfim, é a da produção de uma outra inteligência, puramente artificial. Imaginemos um super-hiperultracomputador de ultimíssima geração que tivesse acesso ao seu próprio código fonte, ou seja, a possibilidade de redesenhar sua própria programação, sua própria natureza. Numa sucessão de estágios cumulativos, evidentemente não linear, cada geração desse supercomputador se autoaperfeiçoaria, aumentando a potência de processamento da geração seguinte. Em contraste, observemos que nossas unidades básicas, tanto biológicas quanto cognitivas, são dificilmente reprogramáveis. Para reprogramar o conteúdo genético ou funcional de uma célula é preciso usar vírus como mediadores, portadores das novas instruções, para nas gerações seguintes obter-se a modificação desejada. Por outro lado, nascemos com muito poucas ligações neuronais preestabelecidas, e as experiências ao longo do crescimento é que sistematizarão e cadenciarão os disparos dos neurônios em redes sinápticas, fixando padrões neuronais que manifestarão as especificidades dessas experiências. Assim, embora em termos do hardware biológico sejamos praticamente indistinguíveis, somos diferentes uns dos outros em função das experiências distintas – como a língua natal, por exemplo – impressas desde cedo. Mas, uma vez fixados esses padrões, ou seja, uma vez educados, sabemos bem, é difícil aceitar ideias novas, é difícil reeducar…

Assim, tanto nossas células quanto nossas sinapses não são reprogramáveis diretamente desde fora. Contudo, a entidade artificial encarnada nas sucessivas gerações de super-hiperultracomputador seria endogenamente autorreprogramável – uma vez que foi concebida exatamente para este fim. A cada versão, ela se reestrutura e se aperfeiçoa, num crescendo cada vez mais acelerado de gerações cada vez mais poderosas, até que sejam alcançados – e logo ultrapassados – os limites de processamento do próprio cérebro humano. A partir de então, sucederia o mais arrebatador acontecimento da história da nossa espécie: o encontro com outra entidade inteligente no Universo. O contato com um alien – mas não na forma de um marciano verde descendo de um disco prateado! Embora essa entidade autodesenvolvedora não seja extraterrestre, e sim terráquea, será um Outro. Ray Kurzweil chama essas entidades inteligentes não humanas, ainda que produzidas por nós, e a partir de nós, de “nossos filhos espirituais”. Se olharmos bem para nossa história, esse acontecimento vai nos encher tanto de temor quanto de curiosidade. Se o excesso de temor não abolir a curiosidade, esses filhos não humanos poderão nos dizer algo que nem sequer saberíamos perguntar. A dobra da abrangência, por sua vez, requer que revisemos um pensador fundamental: Karl Marx. Há exatos 150 anos, Marx anteviu com presciência espantosa o fato de que, uma vez surgido o sistema capitalista, seria criada uma tal modificação em suas próprias condições de atuação que eventualmente este alcançaria um limite, um horizonte. Marx havia percebido que, com a Revolução Industrial, foram convertidos em mercadoria certos componentes fundamentais da produção econômica que até então não pertenciam ao jogo mercantil, quais sejam, a terra, o trabalho humano e os utensílios e ferramentas de produção. Uma vez incorporados esses elementos, passa a ser comercializada não somente a produção ela mesma, como ainda os meios de produzir. Por exemplo, um dos fatores decisivos para essa conversão foi a crescente disseminação na Europa Ocidental, desde o século XV, de um extraordinário objeto técnico: o relógio mecânico. Com efeito, ao serem instalados nas torres das igrejas e em outros monumentos públicos, o tempo metrificado fornecido pelos relógios mecânicos libertou os negócios humanos dos ciclos da natureza e passou a ordenar toda a vida social e econômica das cidades à sua volta, permitindo, em particular, que o trabalho humano fosse quantificado. Assim, a atividade do trabalhador torna-se ela mesma um valor, conversível em dinheiro, referente à quantidade de horas (fixas) trabalhadas, permitindo a acumulação (e extração) de mais-valia. O capital – os recursos necessários para a realização de um certo empreendimento, inclusive o valor equivalente ao trabalho despendido – torna-se a fonte de mais capital…

O sistema-capital, ou capitalismo, opera pelo assenhoreamento de parcelas crescentes de valor a partir da própria produção, acumulando-se não linearmente (este vocabulário, é claro, ainda não era o de Marx). No entanto, ele distinguiu com clareza uma tendência inerente a esse sistema acumulativo, que se daria segundo três eixos: 1) A tendência de transformar tudo em mercadoria, de uma produção sem limites de mercadorias; 2) A tendência de expandir fronteiras do mercado até os limites planetários, vazando todos os limites, geográficos, nacionais, culturais; em toda parte, o mesmo sistema operando; e 3) A tendência de instituir um novo homem, fazer uma revolução cultural, paralela à Revolução Industrial, para que esse novo homem, sob o modelo do burguês, possua novas necessidades. De que os homens precisam? Quais são as necessidades naturais, verdadeiramente básicas? Alimento, abrigo, afeto e alegria. Essas necessidades são muito poucas! Para contentar a ânsia de expansão do mercado, é preciso criar novas carências, inventadas, fundadas não na natureza mas no desejo, pois este sim é infinito. Um novo homem, com uma urgência ilimitada de consumir um sem-número de mercadorias, em todos os quadrantes do globo: não é este o mundo que presenciamos hoje? A chamada “globalização da economia” não é exatamente o fato de que não há mais barreiras geográficas, territoriais ou culturais para a operação do mercado – não importando as drásticas assimetrias entre os agentes “globalizados”? O “sucesso” pessoal não corresponde a lograr ter acesso a um repertório incalculável de produtos, quando nos convertemos em consumidores, seres unidimensionais a que basta a linha boca-pança-ânus? Mas será que não somos convertidos também em consumidos?

Se esse é nosso mundo, Marx o anteviu há 150 anos. E Marx também nos diz: o momento em que o capital alcançar esse auge será quando vai se apresentar do modo mais puro, com a maior nitidez, porque não precisará mais dos andaimes, das mediações ideológicas, de que precisou para se instalar. Será o mercado nu, despido de máscaras ou ornamentos ideológicos, diante do qual nenhum outro sistema de valor, seja espiritual, sagrado, tradicional, político ou social, resiste: tudo que o capital toca converte em capital. Nessa ocasião, porém, esse capital solvente-de-todos-os-valores terá alcançado uma tal escala que o suporte da produção estará sendo recoberto pela própria produção. O que antes era contexto para a atividade produtiva doravante se identifica ao domínio do próprio produzido. Dito de outra maneira: não há mais “natureza”, ou seja, os rincões profundos, as zonas de floresta, as profundezas do mar, o gelo dos polos, não são mais exteriores à produção: já estão precificados, já são estoque. Os limites geográficos, espaciais, foram vencidos: o sistema produtivo recobre seu próprio suporte, o planeta. Neste auge, nesta culminância, o capital absorve o que lhe servia de fora, de além, e passa a agir sobre si mesmo; um sistema cujo comportamento se confunde com seu próprio contexto. E assim um novo problema se coloca: não mais o da expansão no espaço, mas o da extensão no tempo. Os horizontes espaciais foram alcançados, os horizontes agora são os da perpetuação, da duração: o mercado infinitizado contemporâneo do capital é compatível com a continuidade do capital – e com a sustentação da vida? Se a produção se redobra, se açambarca o seu próprio ambiente, temos então o dobramento da abrangência.

A dobra da abrangência coloca a questão da sustentabilidade, ou seja, é possível que tal dispositivo produtivo infinitizante possa prosperar sem se suicidar, sem corroer suas próprias bases e raízes, de tal modo a inviabilizar seu funcionamento? Vejamos um exemplo. Cada vez mais vemos acentuar-se uma distinção, um descompasso, entre o crescimento da riqueza de certos grupos – grandes operadores de capital e capazes, portanto, de influenciar decisivamente os rumos e tendências dos afazeres econômicos – e o crescimento correspondente de uma legião de despossuídos cada vez mais subordinados aos humores dos “mercados”, cujo controle lhes escapa. O poder de consumir diante do despoder de se nutrir. Acentua-se progressivamente, adverte a onu, esse contraste de possuídos e despossuídos, sendo aqueles muito poucos e estes muito numerosos. A dúvida, evidentemente, é sobre a manutenção do sistema num estado tão tensionado, tão desequilibrado. Basta uma instabilidade súbita, uma modificação do clima, digamos, como já estamos vivendo, e as perspectivas escurecem. Três anos de monções sucessivas em Bangladesh: 150 milhões de pessoas são obrigadas a migrar. Para onde iriam? Para a Índia, que tem 1 bilhão de habitantes – e armas nucleares. Como lidar com essas imensas massas de humanos excluídos, que não conseguiram ascender ao patamar zero da cidadania capitalista, que é o consumo? Como manejar – o uso do termo é proposital – essas massas ineficientes, inúteis mesmo, a cada vez mais incômodas? No limite, descartá-las, porque agora ser humano, apenas, não vale mais? Problemas nessa escala nos indicam que esse sistema produtivo autorreprodutivo, cujo horizonte se identificou com o próprio contexto, não poderá prosperar indene, sem refazer sua essência. Uma vez que o capital venceu, uma vez que alcançou sua culminância, talvez agora ele possa perder.

Seria esse, então, o diagnóstico sugerido pela aferição não linear do pulso da contemporaneidade. Teremos à frente esse duplo dobramento: a dobra da inerência, pela qual vigora dentro de nós a errância de nosso poder de autotransformação, pois cada minúsculo gesto de modificação que fizermos sobre nossa própria forma reboará de maneiras imprevisíveis, incalculáveis. E a dobra da abrangência, pela qual o sistema macroprodutivo que subsume o conjunto dos afazeres humanos instabiliza, modifica indeterminavelmente as condições dessas mesmas atividades. Em ambos os casos, por ambas as vias, apresentam-se as condições para um desenvolvimento caótico.

Podemos talvez dizer que esse duplo dobramento implica a introjeção dessa caotização, a internalização dessa imprevisibilidade, naquilo que até então presumíamos ser o humano. E a partir disso suspeitar que um novo acaso, uma nova errância fundadora, uma fortuna que é também Parca, nos brindará em breve com uma visita. Possivelmente, esse renovado acaso exigirá de nós uma posição de artista. Porque cada gesto que o artista faz sobre a tela condiciona o gesto seguinte, em cada movimento um leque de futuros se abre e se altera. Não é este o presente estado de coisas civilizacional? Tanto interna quanto externamente, tanto íntima quanto coletivamente, entramos em deriva. Reconhecendo essa errância que flexibiliza os limites, que põe em variação nossa própria natureza, nos vemos obrigados a abandonar a fixidez dos fundamentos e apostar tudo, apostar a vida, numa nova fundação, numa nova abertura, em algo que ainda está por vir.

Vivemos, sem dúvida, um momento trágico, de impasse e dissolução disso que pretendíamos reconhecer como nossa natureza, e de expansão para algo além de nós, que desconhecemos. Essa constatação tanto nos amedronta quanto nos entusiasma. Mas José Miguel Wisnik nos adverte com perspicácia: “Não façamos da tragédia um drama”. Encontramo-nos num estado de gravidez, o que nos perturba é a abundância, o excesso, e não só a lacuna, a carência. Nosso problema é a multiplicidade indeterminada em que nos reconhecemos espelhados. Quantos futuros se enraízam aqui, neste momento? Os dobramentos nos trazem um agente de ruptura, esse acaso profundamente inovador, com o qual talvez possamos lidar da forma com que os artistas, os pensadores, os filósofos lidam com o imprevisto, o inacabado, o incerto, que é sua matéria-prima. Lembremos uma página de Jorge Luis Borges, extraordinária como tantas, chamada A loteria em Babilônia. E ele começa afirmando que, ao contrário dos gregos, que só entendem o certo e justo, os babilônios conhecem a incerteza, porque já foram cônsules e já foram escravos, já provaram os caprichos da sorte. Dizem que a alta cultura babilônia, especialmente esse delicioso gozo do imprevisto, foi devida a uma instituição que em outros povos se desenvolveu de modo muito insuficiente: a loteria. Na Babilônia, como em toda parte, a loteria surgiu como um sistema de prêmios. Cada jogador empenhava uma moeda de cobre, havia um sorteio de plaquetas marcadas, o vencedor recebia moedas de prata. Os babilônios, como em toda parte, não tinham maior interesse sobre o jogo. Mas alguém teve a ideia de incluir castigos, e não só prêmios, nas extrações, e todos se fascinaram pela possibilidade não só de ganhar, como também de ver algum outro levar a breca. Diante do enorme mobilização dos jogadores, foi necessário estabelecer-se uma comissão para administrar o jogo – a Companhia –, cujos membros logo tiveram de esconder-se no segredo e no anonimato para gerenciar a loteria sofisticada sem serem influenciados ou perseguidos.

Surgiu, porém, um problema; os que recebiam multas deixavam de pagá-las, preferindo até mesmo ir para a prisão para desafiar a Companhia. Mas como entregar os prêmios se as multas não eram pagas? Então, em certo momento, deu-se a virada: em vez de prêmios e castigos em dinheiro, as punições passaram a vir diretamente na forma de dias de prisão. Pela primeira vez um elemento não pecuniário entrou na loteria. Mas logo deu-se uma revolta, de fundo social, porque os ricos podiam se dedicar à vontade às delícias do acaso, desfrutando a seu bel-prazer do risco de castigos, mas os pobres tinham seus limites. Era preciso haver uma isonomia. Depois de algumas efusões de sangue, decisões drásticas foram tomadas. Todo o poder político foi entregue à Companhia, doravante totalmente secreta e invisível, e encarregada de implantar e operar uma loteria universal. E foram instituídos sorteios dentro de sorteios, de tal maneira que alguém pode receber como prêmio, ou como castigo, participar de um outro sorteio, e de outro. A vida na Babilônia se tornou o resultado dessa vasta e incomensurável loteria: não é surpreendente se comprarem 12 ânforas de vinho de Damasco e em uma se encontre um topázio – ou uma serpente. Tudo segue os desígnios inescrutáveis da Companhia – os assassinatos, as honras, as vilanias, os triunfos, as desgraças, tudo é resultado de sorteios encadeados com sorteios. É graças a ela que os babilônios amam a vida com um ardor que em nenhuma outra parte se encontra.

Mas consta que, muitos séculos já passados, ninguém mais conhece membros da Companhia ou sabe como são eleitos. Existem certos lugares em que a tradição diz que mensagens para a Companhia devem ser entregues; assim, em certos muros de pedra arruinada, em uma latrina sagrada chamada Qaphqa, depositam-se pedidos e delações. O silêncio já secular da Companhia dá lugar a rumores, alguns francamente heréticos: uns insinuam que a Companhia já há muito tempo não existe; outros, que a Companhia a tudo supervisiona e gere, mas só interfere em acontecimentos aparentemente insignificantes, como tirar ou acrescentar um grão às areias do mar. As consequências, parece, podem ser devastadoras. Ou então a mais terrível, a mais inominável das heresias, que afirma que a Companhia não existe nem nunca existiu. A vida na Babilônia não é senão esse infinito jogo de espelhos, esse infinito jogo de acasos. Borges nos sugere que uma loteria suficientemente complexa, um jogo de acasos suficientemente vasto seria indistinguível da vida, não nos pareceria outra coisa senão esta vida que vivemos. Se assim for, estamos sempre e desde sempre lidando com o acaso. O acaso é nosso barco, ou melhor, é nosso mar.

Por outro lado, será a presente uma situação sem paralelo, ou poderemos examinar a história em busca de ocasiões nas quais logremos discernir um indício, uma diretriz que nos elucide uma ética conforme a estes tempos magníficos, mas árduos? Recordemos por um instante o período de 70 mil anos atrás, quando os Homo sapiens sobreviventes à erupção do supervulcão indonésio se viram sob risco de extinção e tiveram que estreitar ainda mais seus já fortes vínculos sociais, solidarizando-se de forma ainda mais coesa. Um dos recursos associativos de que dispunham, mas do qual aparentemente faziam uso esparso, começou a ser explorado em profundidade: a capacidade de simbolizar e comunicar uns aos outros esses símbolos, por meio da fala. Premidos pela urgência do momento, passaram a empregar de modo prolixo essa faculdade até então latente, pouco exercida, e enfim um certo patamar quantitativo de uso da palavra foi alcançado. É difícil determinar qual o valor desse patamar. Os babuínos, por exemplo, têm uma sociedade altamente estruturada e sofisticada, para cuja realização manejam em torno de quarenta signos e vocábulos expressivos, não mais. Mas cada falante de uma das línguas modernas dispõe de um repertório de cerca de 4 mil palavras, e no léxico de uma dessas grandes línguas encontramos mais de 1 milhão. A diferença de escala é enorme, e o resultado, qualitativamente diferente. Como esse salto se deu de fato é um mistério que talvez nunca venhamos a resolver.

Podemos imaginar, todavia, que pelo uso ampliado e progressivo da fala um certo limiar foi ultrapassado; e, partir de então, cada palavra adquirida e praticada se tornou o gérmen de mais palavras. Cada geração humana deixava um legado de designações para a geração seguinte, que enriquecia por sua vez essa herança com novas nomeações, cada nova palavra servindo sempre de atrator para outras. Tantas coisas nomeadas já havia que, num certo momento ímpar, foram inventados nomes para falar de outros nomes. Das linhas de nomes-de-coisas, ou perceptos, passou-se para os núcleos de nomes-de-nomes, ou conceptos. Estabeleceu-se assim o campo do Simbólico, o quadro coletivo de fundo a partir do qual concebemos a realidade e atuamos nela. Esse seria também o momento no qual as capacidades de abordar o mundo e resolver problemas com que a evolução tinha nos dotado – vamos chamá-las de inteligências – começaram a ser flexibilizadas e intermediadas por essa capacidade linguística muito aumentada. Tornou-se possível desde aí começar a produzir híbridos cognitivos, ou seja, nossa inteligência naturalista (que nos permitia, por exemplo, reconhecer a passagem de um antílope a partir dos vestígios de sua pegada, embora o corpo concreto do animal estivesse ausente e, como não fora visto, só pudesse ser imaginado) pôde se vincular com nossa inteligência social (pela qual reconhecemos rostos e posturas e intercambiamos signos expressivos, significados de dor, afeto, alerta etc.) de modo a fazer surgir um animal-homem, um animal-ancestral, figurado no totem da tribo. Um ancestral que era um animal, mas era um humano: aí surge, afirma Steve Mithen, a religião.

Ou então consideremos a inteligência técnica, a capacidade de tomar uma imagem ou recordação, e com as mãos, o gesto técnico, exportar essa imagem, esse diagrama ideativo, para um suporte material, que agora passa a portar essa ideia, e, com isso, fazer com que um machado seja pedra, pau e corda para outros animais enquanto para nós signifique: “Sou um machado, use-me para cortar”. Não deixou de ser coisa, mas passou a ser também ferramenta, passou a falar. Cada artefato que criamos fala conosco porque é uma ideia que exportamos, e seu próprio formato ao mesmo tempo guarda a história de sua produção e insinua o uso a que se presta – para quem souber ver, quer dizer, escutar. Quanto mais artefatos produzimos e dispomos à nossa volta, mais pensamento exportado, inscrito nas matérias do mundo, passamos a encontrar. Assim, passamos a pensar também com o que está fora de nós. Isso torna possível vincular a inteligência técnica à naturalista, de modo a que façamos com minúcia e destreza irretocáveis a imagem de um animal, para que essa imagem nos vincule a ele, nos conecte com ele. Dá-se, assim, a arte.

Tais sínteses de inteligências naturalistas, sociais e técnicas, pela mediação da inteligência linguística ampliada, permitiram a instauração dos domínios da arte e da religião, e também as bases da observação sistemática das regularidades da natureza que, muito tempo depois, iremos chamar de ciência. Se de fato as coisas ocorreram mais ou menos assim, podemos entender uma variação altamente significativa: até cerca de 40 mil anos atrás, nossos ancestrais sapiens e seus primos, os neandertais, encontravam-se essencialmente no mesmo patamar técnico e econômico. Nenhum dos dois povos, por exemplo, ornamentava seus utensílios. Mas desde então os Homo sapiens – mas não os neandertais – passaram a gastar tempo inscrevendo marcas e signos em suas ferramentas, decorando os corpos e vestes com padrões e pinturas, passaram a enterrar ritualmente seus mortos, recobertos por objetos simbolizando nobreza, valor ou saudade. Quatro mil perolazinhas de marfim, penosamente esculpidas uma a uma, unidas num manto majestoso, que ainda recobrem os restos de uma jovem. Não têm função objetiva, não servem para proteger, ou abrigar, mas tão somente adornar, para dizer “veja como sou nobre, veja como sou bela!”. Nossos ancestrais haviam se tornado artistas. Os neandertais desapareceram.

Esse desvio, causado pela intensificação imprevista de nossa inteligência linguística, que exerce a partir de então a função de catalisador de sínteses entre elementos e funções de outras inteligências, foi a ocasião na qual passamos a ser definidos não só por nossa natureza material, orgânica, mamífera, mas igualmente por uma segunda “natureza”, sobreposta à primeira, que é a cultura. Abrangendo a coleção de todos os objetos, procedimentos, dizeres, ideias e imagens que produzimos, forma à nossa volta um ambiente artificializado e artificializante em cujo interior podemos nos tornar esses extraordinários animais palradores, com enorme capacidade de gerar e trocar grande quantidade de termos e significados uns com os outros. Ambiente indispensável para a real humanização: doravante o desenvolvimento de uma criança sapiens requer, simultânea e inseparavelmente, crescimento do seu corpo e sua imersão nesse contexto linguístico riquíssimo. Ela precisa se apoderar desse instrumental e manejar esses recursos cognitivos a contento, caso contrário não será inteiramente humana. Biologicamente, organicamente, somos os mesmos desde 120 mil anos; mas o processo de geração e acumulação da cultura, expandindo-se e realimentando-se, engendrou essa segunda natureza simbólica, sobreposta à natureza material, e desde então seu andamento não deixou de acelerar: a cidade, a escrita, o alfabeto, a filosofia, as ciências, a imprensa, os computadores, a internet… Quem sabe se possa vislumbrar em nosso atual estado de complexificação o estabelecimento das bases para um outro salto, de algum modo homólogo a esse que nos fundou; quem sabe, novas camadas de linguagem e cognição pudessem vir a se sobrepor sobre as atuais? Não seria um mau destino, pelo contrário; se assemelharia a uma criação. Coletivamente, criativamente, participaríamos do surgimento de algo que é parte o que somos e parte algo que nos supera. Mas os filhos não são sempre assim?

Na aurora cada vez mais próxima disso que extravasará de nós, que irá para além de nós, talvez se possam vislumbrar feições do humano, que reconheçamos como dádivas ao futuro, como invenções criativas que pudemos extrair do Indeterminado. Em Galápagos, o grande escritor Kurt Vonnegut especula que, daqui a 1 milhão de anos, os humanos terão evoluído para a forma de focas, roliças e luzidias focas que se banham nos penedos de Galápagos. De repente, sem querer, uma delas solta um traque – e todas as outras focas caem na risada, e ela também. Reconheceremos o humano, nos diz Vonnegut, na foca que ri de si mesma, daqui a 1 milhão de anos. Basta que sejamos artistas bons o bastante para nos reinventarmos até lá.

Notas

  1. Agradecimentos são devidos ao “Círculo de Tiradentes” – Adauto Novaes, Franklin Leopoldo e Silva, João Camillo Penna, José Miguel Wisnik, Maria Rita Kehl, Oswaldo Giacoia, Paulo Sérgio Duarte, Renato Lessa, bem como a Hermano Taruma e Anna Parsons – pelas discussões que qualificaram enormemente estas páginas.

    Tags

  • acaso
  • Aristóteles
  • autopoiese
  • causalidade
  • clinamen
  • David Hilbert
  • Epicuro
  • filósofos atomistas
  • Freeman Dyson
  • genética
  • Ian Stewart
  • inteligência artificial
  • Jorge Luis Borges
  • Karl Marx
  • matemática
  • Ray Kurzweil
  • sistemas complexos
  • sistemas lineares
  • sistemas não lineares
  • tecnociência
  • teoria do caos