2017

Utopia e ponto de fuga: fronteira e espaço sideral

por Olgária Chain Féres Matos

Resumo

O pensamento político de Derrida testemunha as consequências da racionalidade logocêntrica de dominação e das guerras que transformaram os indivíduos em seres sem domicílio fixo. Diferente de Heidegger, que respondeu a essa circunstância exilando-se na Floresta Negra, e de Levinas, que exaltou o desenraizamento nos espaços infinitos de Gagarin, Derrida dedicou-se às questões da fronteira. Entre Heidegger e Levinas, ele assume a necessidade de estabelecer fronteiras para aplacar o pavor do homem diante do infinito do espaço ou do vazio metafísico que o ameaça. Por isso, não se trata nem de nostalgia de um pertencimento fixo perdido na época da reprodutibilidade técnica, nem da extensão sem limites do espaço infinito de Levinas, mas de fronteiras, compreendidas por Derrida como limites que, a um só tempo, incluem e excluem, a despeito do binarismo do eu e do outro, do interior e do exterior, do próprio e do impróprio. Isso não significa dissolver o diferente na indiferenciação confusa, mas apurar as nuances e desvelar as diferenças que as oposições homogêneas encobrem.

A fronteira controla a passagem. No limite, ela a obstrui. Por isso, ela é a zona confronto, do cara-a-cara, do front. Mesmo com alfândega, guarda armada e barreiras, ela apresenta schibboleth, ou seja, signos de reconhecimento verbal que possibilitam a partilha e a aliança. Por isso, a necessidade de habitar a língua, com suas passagens clandestinas.


Realidade e utopia, efetividade e ficção, presente e futuro constituem os dualismos regidos pelo[1] preceito que enuncia ou uma coisa ou outra, o princípio de identidade das fórmulas A é A, da afirmação, A é não A, da negação, A não é nem A nem não A, nem afirmação nem negação. Críti­ co dos binarismos e das bruscas rupturas, Derrida desconstrói[2] a noção de utopia, reconhecendo elementos utópicos no real e traços realistas na utopia, encontrando suas nuances, passagens e disseminações. Assim, a própria palavra u-topos oscila entre o não ou o sem (u) lugar e o bom lugar (eu-topia), podendo a utopia ser tanto um não lugar quanto um lugar feliz. Mas também a ideia de lugar (topos) não se separa de khôra (espaço). Ao analisar o Timeu de Platão, Derrida trata de suas contaminações.

Com efeito, Sócrates, no Timeu, considera o espaço com assombro e admiração porque ele não pode ser dito na linguagem da objetividade e da verdade. Pois, para refletir sobre o espaço seria preciso um ponto de vista não espacial, que lhe fosse exterior, com a impossibilidade do que situa ser situado. Nem sensível nem inteligível, o espaço não pode ser classificado segundo a alternativa do mito e do logos, só permitindo um raciocínio híbrido. Sócrates avalia: “Nós o entrevemos como em um sonho[…]. E por causa deste estado onírico, somos incapazes em vigília de fazer todas as distinções […] com respeito à natureza desperta e verdadeiramente existente [dos seres] e assim exprimir o que é verdadeiro[…]; [o espaço] contém o fantasma sempre variável de uma outra coisa”[3].

Sem um sentido unitário, a khôra é o meio amorfo que recebe todos os seres e que participa do inteligível de maneira aporética, pois é uma espécie de forma eidos, sendo o aspecto visível das coisas, mas, ao mesmo tempo, invisível; é uma forma amorfa (anoraton eidos), um visível invisível, que dá lugar a uma oposição, mas sem submeter-se à lei daquilo que ela mesma situa[4]. Entre o sono e a vigília, o espaço é inapreensível, pois, se nos aproximamos da linha do horizonte, ele nos escapa; se nos voltamos para a direita, o lado esquerdo desaparece; para o alto, o baixo se afasta. Impossível defini-lo, o espaço é, para Platão, uma “causa errante”, é o alogon de razão desconhecida. Derrida observa: “O que é esse lugar (khôra)r Ele é nomeável? E ele não teria alguma relação impossível com a possibilidade de nomear?[…] [A khôra] oscila entre dois gêneros de oscilação: a dupla exclusão (nem, nem) e a participação (ao mesmo tempo isto e aquilo)”[5] .

Derrida trata da oscilação de sentido da khôra, referindo-se a Sócrates como um atopos. Com efeito, no Timeu, Sócrates compara sua atividade de filósofo com a de poetas e sofistas, fazendo-se, assim, semelhante aos imitadores falsários criticados por Platão, para os quais não há lugar na cidade virtuosa, de tal forma que tampouco Sócrates poderia ser seu habitante:

[ …] começando por declarar que ele é um pouco como os poetas, os imitadores e os sofistas, incapaz de descrever os filósofos-políticos [que deveriam governar a cidade], Sócrates simula colocar-se entre aqueles que simulam. Simula pertencer ao genos daqueles cujo genos consiste em simular; em simular a pertinência a um lugar e a uma comunidade, por exemplo, ao genos dos verdadeiros cidadãos, filósofos e políticos. […]. Sócrates se apaga, apaga em si todos os tipos, todos os gêneros, tanto aqueles dos homens de imagem e de simulacro, aos quais finge assemelhar-se por um momento, quanto aqueles dos homens de ação e homens de palavra, filósofos e políticos aos quais se dirige apagando­se diante deles. […] Ele chega a um terceiro gênero, no espaço interior de um lugar sem lugar, um lugar em que tudo se marca, mas que seria “em si mesmo” não marcado[6].

Semelhante e não semelhante a sofistas e imitadores, Sócrates se coloca em uma terceira categoria (triton genos) como a khôra, lugar neutro que é a gênese de todo o diálogo sobre o lugar e a pólis. Sócrates é atopos, nem sábio nem ignorante, nem trágico nem cômico, nem grotesco nem sublime, nem feminino, nem masculino. Não é nem-nem, tampouco e, mas entre os dois, participando e não participando, fora de qualquer lugar comum, escapando à localização. Porque o alto não é apenas o espaço abstrato da medida geométrica, há que pensar no “alto celestial” e na moral elevada, no baixo infernal e na “pequenez do caráter”, no lado esquerdo agourento e no direito da boa sorte: “o espaço é antropológico, mítico e onírico”[7]. Familiar ou estranho, o espaço é, assim, simbólico, alucinatório e angustiante.

Ampliando as aporias do espaço e do lugar, Derrida se refere ao Timeu e à ideia de khôra cívica[8], que a designaria como mãe-terra-pátria, simultaneamente lugar de nascimento dos atenienses e espaço para onde voltam depois da morte a fim de encontrarem repouso em paisagens costumeiras:

”A afirmação nacional”, anota Derrida, “não é nunca a constatação de um fato; é a afirmação de um renascimento prometido a partir de uma morte e do desaparecimento do corpo do morto”[9]. Atenas é, na narrativa, a pátria que assegura a continuidade da vida de seu povo, que alimenta seus cidadãos com a superabundância de sua physis ligada à situação geográfica do território, fazendo coincidir khôra física e khôra cívica, inclusão e exclusão. Porque todo espaço nacional nos precede, ele está sempre prestes a acolher, mas também a recusar, já que a autoctonia ateniense indica ao mesmo tempo um limite natural da cidade e o caráter imaginário de todos

os limites, determinando pertencimentos a uma comunidade política e os não pertencimentos. No mito fundador de Atenas, a cena catastrófica da guerra entre atenienses e atlântidas, e o terremoto que submergiu a Atlântida e os exércitos, tece a identidade nacional de Atenas, para superar tal calamidade: “a afirmação nacional”, escreve Derrida, “adquire seu elã e sua força [justamente] pela ausência de nação […]. É quando a nação não existe ou está ameaçada de não existir que a afirmação nacional se exprime”[10]. Uma vez que uma nação não possui ontologicamente um lugar que lhe seja próprio, a história contada no Timeu é a fábula que, verdade ou ficção, permite compreender o que é a pátria. Por isso, tal relato é, nas palavras de Sócrates, “absolutamente verdadeiro”[11]. Assim, Derrida, por sua vez, não se dedica a uma cidade imaginária em um espaço inexistente, pois todo espaço, para se tornar lugar de acolhimento, deve ser espacializado em uma dinâmica patética e emotiva, marcada com a passagem do tempo e com experiências da memória. A recordação é a testemunha, o testamento e a narrativa, que preserva o que passou e se perdeu; ela é o tempo espectralizado, lenta procrastinação e adiamento, différance. Esse conceito evoca a ideia de diferença, uma vez que tanto différence (diferença) quanto différance provêm do latim dijferere, diferir, no sentido de adiar, retardar, como também divergir e discordar. Assim, différance significa que há o diferir do sentido no justo momento em que se poderia encontrar a própria coisa. Essa “presença diferida” não representa uma ruptura temporal[12],porque o tempo é, para Derrida, um “atraso originário”[13] que remete a um elemento passado ou futuro, no qual se encontram traços espaçados, rastros que interrompem a identidade de algo consigo mesmo: “o rastro [indica] uma relação de intimidade do presente com seu fora, a abertura à exterioridade em geral, ao não próprio; a temporalização do sentido é desde o começo espaçamento (o tornar-se espaço do tempo)”[14]. Por não ser um sem lugar ou não lugar, a utopia derridiana não se concebe fora da sociedade, porque o rastro do possível e o do impossível são difusos na sociedade que ela critica e transforma de seu interior[15], a partir de reminiscências e disseminações[16]. Eis por que o não lugar da utopia é, para Derrida, uma modalidade do possível e de sua realização presente, passada ou futura, e não apenas futura, segundo o sentido de uma democracia por vir[17]: “Eis por que propomos sempre”, escreve Derrida, “falar em democracia por vir, não democracia futura[…], uma modalidade futura do presente vivo”[18]. Aqui, o inexistente é o “que está por chegar”, é uma das possibilidades do existente, desconstruindo-se qualquer oposição cristalizada “para restituir-lhes a multiplicidade e fazer surgir novas pistas de reflexão”[19].

Essa utopia é espera sem horizonte de espera, é advento, um acontecimento singular e sem antecipação profética ou prescrição possível, fora de qualquer programa ou programação[20]:

A democracia por vir[…] implica um outro pensamento do aconteci­ mento (único, imprevisível, sem horizonte, não controlável[…] que se demarque de um “por-vir” que, para além do futuro (já que a exigência democrática não espera – é impaciente), nomeia a vinda daquilo que acontece, a saber, aquele que chega, a quem nenhuma hospitalidade condicional deveria nem poderia limitar a irrupção nas fronteiras de um Estado-nação civilizado [policé][21].

A democracia por vir é puro dom, hospitalidade incondicional, perdão, promessa e advento que já aconteceu, está acontecendo e vai acontecer. Hospitalidade absoluta, ela é um para além do político no político: “Inclusão aberta para a transcendência que [a hospitalidade] comporta, incorporação de uma porta que comporta e abre para além dos muros ou das muralhas que a cercam. Com o risco de fazer implodir a identidade do lugar e a estabilidade do conceito”[22]. Hospitalidade incondicional, a democracia por vir é a política da amizade, da confiança, da lealdade, do cosmopolitismo universal, da paz perpétua, da justiça infinita, no entanto nunca garantidos; sua evolução é, assim, indecidível, sempre contingente, ao sabor dos ataques de homens violentos: “Se todo projeto político”, escreve Derrida, “fosse um objeto tranquilizador, a consequência lógica ou teórica de um saber seguro (eufórico, sem paradoxo, sem aporia, sem contradição, sem indecidibilidade para decidir), seria uma máquina que funcionaria sem nós, sem responsabilidade, sem decisão, sem ética, nem direito, nem política”[23]. A democracia por vir é, assim, um enigma, como o de Bartleby, o escrevente do conto de Melville[24], que certo dia passa a responder ao trabalho que lhe pede seu empregador a fórmula “preferiria não” – “I would prefer not to”. Derrida observa que esse “eu preferiria não” é uma “resposta sem resposta”, pois a expressão pode tanto significar que ele não fará a revisão do texto copiado quanto sim. Essa resposta é uma aporia[25]. Ato de fé, a temporalidade da democracia por vir é a contratempo. Em Voyous, Derrida anota que “não é amanhã a véspera”[26], submetendo a democracia a uma desestabilização cronológica que não permite que o presente coincida consigo mesmo, havendo sempre sua véspera, a vigília, a vigilância e a expectativa, com o adiamento do amanhã que manifesta sua onitemporalidade e sua contratemporalidade. A véspera é a condição de possibilidade da democracia por vir e seu espectro, semi­ presença de passado ainda vivo e de futuro já presente. Com isso, o real

surge sempre a contratempo, sendo essencialmente anacrônico:

[…] a sincronia não tem [aqui] nenhuma chance, nenhum tempo é con­ temporâneo de si mesmo, nem o tempo da Revolução que, ao fim e ao cabo, nunca acontece no presente, nem o tempo que lhe sucede ou que decorre dele. O que acontece? Nada senão o esquecimento. Primeiro, esta tarefa, que era antes de mais nada a tarefa desse tempo, […] já [mostra um tempo] deslocado, disjuntado, “fora dos gonzos” […]. Ele já estava no programa da anacronia, na tarefa desse tempo[27].

Fora de eixo é o tempo desprovido de sentido que lhe conferiria uma direção, aquele regime temporal que combinava continuidade e ruptura, cronologia e acontecimento, instante e duração. A modernidade é “fora dos gonzos”; nela tudo acontece em permanência como evento, sem dis­ tâncias temporais, em um presente carente da gestação de experiências e de memória. No Manifesto do futurismo de 1909, exaltando a velocidade, os aviões, os automóveis e a guerra da técnica com seus espetáculos sangrentos, Marinetti escreve: “O Tempo e o Espaço morreram ontem. Já estamos vivendo no Absoluto, pois criamos a eterna velocidade em todas as coisas”[28]

Tempo sem repouso é o tempo dilacerado, em crise genealógica, sem filiação e, por isso, o passado se apresenta na forma de fantasmas, cuja expressão maior são as aflições de Hamlet. Em Espectros de Marx, Derrida cita Paul Valéry:

[…] agora, no imenso terraço de Elsinor, que vai de Basileia a Colônia, que abrange as areias de Nieuport, os lagos do Soma[…] até osgranitos da Alsácia – o Hamlet europeu observa milhares de espectros. Não obs­ tante ele é um Hamlet intelectual. Medita sobre a vida e a morte das verdades. Seus fantasmas são os objetos de nossas controvérsias; seus remorsos, os títulos de nossas glórias[29].

Do alto das muralhas do castelo, Hamlet rumina seus pensamentos, meditando sobre os espectros, cuja natureza, observa Derrida, é a de não morrerem nunca:

As testemunhas da história [da aparição do fantasma do pai de Hamlet] temem e esperam [seu] retorno, logo, “again and again”, sua ida e vinda (Marcellus: “What! ha’s this thing appear’d againe tonightf[ …] Enter the Ghost, Exit the Ghost, Re-enter the Ghost”). Questão de repetição: um espectro é sempre um (re)aparecido. Não se pode controlar suas idas e vindas porque ele está sempre voltando[30].

Reencontrando os espectros shakespearianos nos de Marx e no marxismo, Derrida compreende as aparições como uma herança cujos perigos é preciso conjurar, isto é, fazer-lhes apelo para não recalcá-los, pois não nos liberamos de uma herança apenas declarando-a coisa morta:

A conjuração é a angústia a partir do momento que ela chama a morte para inventar o vivo e fazer viver o novo, para fazer vir à presença o que ainda não estava nele (noch nicht Dagewesenes). Esta angústia diante do fantasma é propriamente revolucionária[ …]. E quanto mais há vida, mais se agrava o espectro dos outros, mais ele faz pesar sua imposição, mais o vivo deve responder. […] Quanto mais o novo faz irrupção na crise revolucionária, quanto mais a época é de crise, mais ela está “fora dos gonzos”, mais se tem necessidade de convocar o antigo, de “empres­ tar” dele. A herança dos “espíritos do passado” consiste, como sempre, em emprestar[31].

Assim, a herança do pensamento grego, a judaico-cristã, a do drama shakespeariano, a de Marx, a de Freud, a da utopia comunista oscilam entre um passado com sentido e um presente que, em sua fase maníaca, quer enterrá-la sem fazer o luto do mito que se derrubou. Para Derrida, o fantasma revela a tensão entre memória e esquecimento como condição da reminiscência, do rastro, o que faz com que o presente seja assombra­ do por fantasmas que ele recalca, reveladores de que a realidade é sempre ultrapassada pelo que foi encoberto, pelo irreal e pelo ausente:

O presente vivo brota de sua não identidade a si mesmo e da possibili­ dade de um rastro retencial. Ele é desde sempre um rastro. Este rastro é impensável a partir da simplicidade de um presente de que a vida seria interior a si. O rastro não é um atributo de que se poderia dizer que o si do presente vivo o é “originariamente”. É preciso pensar o ser originário a partir do rastro e não o contrário[32].

O espectro de Marx é a relembrança de uma história que se interrompeu, e a reconciliação entre a ideia comunista e a realidade presente tem por condição o luto, luto dos crimes cometidos em nome do comunismo.

Além disso, é preciso que se certifique de que o pensamento de Marx constitui uma herança, isto é, se ele auxilia na compreensão do mundo contemporâneo:

A resposta é sim e não, sim em tal aspecto, não em outro, sendo preciso filtrar, selecionar, diferenciar, reestruturar as questões, para somente então anunciar, de maneira muito preliminar, o tom e a forma geral de nossas conclusões, a saber, que há que assumir a herança do marxismo, assumir o mais “vivo” dele, […] a questão da vida, do espírito ou do espectral[…]. Há que reafirmar esta herança, transformando-a tão radicalmente quanto necessário […]. Somos herdeiros e herdeiros enlutados [de Marx e do marxismo][33].

Porque para Derrida o presente não é puro, mas vem marcado das ausências do que passou, espectros e espíritos constituem a permanência de uma origem cujos sentidos se perderam e de que os vestígios são a herança.

O que se perdeu foi a pátria, o pai: “o homem moderno”, escreve Derrida, “está confrontado a uma paisagem sem país, aberto para a ausência de pátria, é paisagem marítima, espaço sem território, sem caminho assinalado, sem um lugar designado”[34]. Desenraizamento da pátria significa que o expatriado não tem pai, que ele se tornou estrangeiro, carente dos signos distintivos de uma identidade anterior, a começar pela própria fronteira [que delimitaria um “estar no mundo”], “uma morada legítima que asseguraria as filiações, os nomes, a língua, as nações, as famílias e as genealogias”[35]. Que se pense na personagem de Ulisses na Odisseia e seu retorno, depois de vinte anos, à Ítaca natal:

[…] este tema da circulação pode dar a pensar que a lei da economia

[oikos e nomos, relativos à doçura do costume familiar, da casa, do lar][36]

é o retorno circular ao ponto de partida, à origem, à casa também. […] A oikonomia tomaria sempre o caminho de Ulisses. Este retorno junto a si e aos seus [significa] que ele só se distancia para voltar ao lar a partir do qual a partida é dada[…], o partido tomado, o lote conferido, o destino definido (moira). O estar-junto-a-si[…] seria odisseico no seguinte sentido, o […] de um “‘mal-do-país'”, de um exílio provisório sôfrego de re-apropriação[37].

O retorno às origens não é, para Derrida, uma repetição, mas o recuperar algo a partir de mecanismos comparáveis à cura psicanalítica, pois, no retorno de Ulisses, a volta é um instrumento de deslocamento e de subversão, em particular do kleos, dos valores ligados à glória guerreira e à morte heroica da Ilíada. Recuperar o nostos é retorno de um outro heroísmo, o da volta a si mesmo, circunstância ilustrada no episódio em que Odisseu naufraga na ilha dos feácios, antes de aportar em Ítaca, quando ele ainda não possui um nome próprio, é U-deis, é Ninguém. Com o corpo “maltratado pelo mar”, é acompanhado por Nausícaa da praia ao palácio. O rei Alkinoos o apresenta aos seus: “Doges e conselheiros de Feácia, duas palavras! Tenho aqui um estrangeiro cujo nome ignoro”[38]. E, chegada a noite, quando todos se retiram, a rainha Areté interpela o visitante: “o que quero perguntar-te, meu hóspede, é teu nome e teu povo”[39]. De estrangeiro náufrago, Odisseu recupera sua identidade ao declinar, no amanhecer, sua filiação e as qualidades que constituíram seu renome e fama. Fazendo reviver o passado, Odisseu se torna Ulisses, restabelecendo o vínculo entre o tempo do outrora e o presente.

Eis por que o esquecimento do passado é alienação da dívida que se funda na memória. Neste sentido, o canto XVII da Odisseia- que narra o regresso do herói a Ítaca- é revelador. Sob o disfarce de mendigo, esconde sua identidade de todos, não sendo reconhecido nem por Eumeu, seu guardador de porcos, nem por Penélope; o único a identificá-lo após vinte anos de ausência será seu cão Argos, que guardara a memória sensorial daquele que fora seu mestre. Na emoção do reencontro, depois de tanto tempo transcorrido, Argos, esquecido e enjeitado, expira:

[…] o dono ausente, o cão jazia deslembrado sobre o estrume de boi e o lixo amontoado, na frente de uma porta, até que os serviçais cuidassem de levar o adubo à leiva imensa. Argos, o cão, jazia em cima, carrapatos laceram sua pele. Quando vê o herói, agita a cauda, dobra as duas ore­ lhas, não consegue avizinhar-se do senhor, que faz a vista longe a fim de que o porqueiro não notasse a lágrima caída[…]. “Foi o cachorro de um herói que nos confins morreu[…]; admirarias sua robustez e flama […]. Agora o cão chafurda na miséria […]”. Logo Argos sucumbe à moira negra morticida, ao ver, passados vinte anos, Odisseu[40].

Pela memória, Argos reconheceu, por detrás da silhueta nublada de seu olhar enfraquecido, o corpo de quem ele tinha amado. A memória é simultaneamente continuidade e ruptura temporal.

Continuidade e ruptura se separam com a mundialização tecnológica, a aceleração do tempo e o fetiche da inovação. Nosso tempo, porque carente de memória, é o da obsessão das origens e ansioso de novidade. “Novidade” contém o neo grego e o novus latino, significando a relação do novo com o antigo, sem oposição dos termos. Em Homero, neos é o novo enquanto o último de uma série que já existe, como o jovem por oposição ao velho, no sentido em que, mesmo se não o conhecermos, sabemos de onde ele vem, por ele ser a continuidade e uma descendência. Já kainós é o novo como inesperado, o que nunca aconteceu antes, como Édipo diante de uma circunstância que ninguém conhecera antes dele. Tratando da diferença entre neos e kainós, a International Bible Encyclopedia explica que kainós denota o novo com respeito à qualidade, e neos, o novo com respeito ao tempo, aquele que recentemente veio a existir. No Evangelho de São Mateus, o túmulo deJesus é novo – kainón nemeon – não no sentido de ser recente, mas no qual nenhum morto fora colocado antes.

O mandamento do amor [enunciado por Jesus] não era em si mesmo novo. Ele pertencia às instruções dadas pelo Senhor, através de Moi-sés[41]. O mandamento só era novo no sentido de que uma demonstração tinha sido dada do amor e que os discípulos agora eram convidados a imitar. [Assim],Jesus abriu ao homem um novo conceito do amor de Deus, o novo mandamento, para que os homens perseverassem entre si na relação que Jesus tinha cultivado com eles e com a humanidade em geral. Onde o velho mandamento ordenou aos homens que amassem seus vizinhos como a si mesmos, o novo estimula a amar como Jesus tinha amado. O novo era de fato mais difícil que o antigo, mas a graça para o seu cumprimento seria abundantemente provida[42].

No desaparecimento dessas dimensões do novo, a memória passa a ser sem experiência; é memória sem lembranças, aquelas que garantiriam sermos hoje nós mesmos, por termos já sido. O tempo vazio da modernidade tecnológica que tudo torna homogêneo impede discernir memória e esquecimento ativo, aquele que é necessário para a vida. Na contrapartida tanto da saturação de memória que não esquece – o ressentimento tratado em particular por Nietzsche – quanto ao pouco apreço de Marx pelo passado – “é preciso deixar que os mortos enterrem seus mortos”-, para Derrida a memória é memória da filiação. Com ela se realizava o misto de admiração e gratidão pelo que tem valor e nos precedeu, expresso no sentimento de piedade. Na Eneida, Virgílio relata a piedade filial de Eneias. Ela não significou o ato de ter transportado o pai morto nas costas para o exílio depois da destruição de Troia, tampouco o sentido metafórico deste ato. Seu ponto mais alto foi o momento em que ele dá uma sepultura ao pai, pois é preciso saber enterrar o passado, mas sem esquecê-lo. Saber enterrá-lo, mas sem esquecê-lo é a condição para herdá-lo.

No simétrico oposto encontra-se a contemporaneidade quando, já nos anos 1950, nos Estados Unidos, uma agência de publicidade anunciava o modo de vida norte-americano que viria a se universalizar: “o que faz a grandeza deste país é a criação de necessidades e desejos, a criação da aversão por tudo o que é velho e fora de moda”[43]. Criticar o presente e seu desapego do passado não significa ser constrangido a aceitar a totalidade de uma herança ou ser capturado na rede de uma etnia, de uma religião, de uma cultura, de um nacionalismo, de um idioma, de um colonialismo, porque a origem não é nunca reconhecível, ela só perdura como rastro. Na Gramatologia, Derrida pergunta:

O que é o rastro? Ele já está rasurado antes de ser apreendido, o que o torna não recepcionável [irrecevable] na lógica da identidade. Por quê? Porque ele se encontra no lugar de uma origem que nunca chegou a se constituir como tal. É isso, o arquirrastro: é a origem da origem, só que a origem desapareceu, e assim também a origem da origem. Há um não rastro que nunca esteve presente. […] Enquanto rastro originário, ele já é reduzido e desconstruído, porque a desconstrução faz parte de seu conceito. Aquém e além da archia, há sempre a desconstrução da archia, seja ela arquirrastro ou arquiescrita[44].

A melhor forma de fidelidade a uma genealogia é, assim, a de lhe ser infiel, de recuperá-la, omitindo-a em parte, mas sem a renegar. Nem alienação da identidade, nem vitimologia, trata-se de recusar o dogma de um pertencimento fechado, para reaver os rastros presentes na singu­ laridade de cada destino. Por isso, Derrida se refere à crise de identidade nos comunitarismos étnicos e integrismos contemporâneos, ao paradoxo segundo o qual quanto mais as coisas se dão em mudança incessante, mais se quer fixar identidades[45], ressurgindo nacionalismos, pertencimentos culturais ou religiosos em uma socialização empática, na substituição da pólis – a cidade enquanto ordem política comum – pela thiase – o estar juntos fusional, semelhante ao de seitas. Razão pela qual Derrida diferencia identidade e identificação, compreendendo-se a si mesmo simultaneamente em sua identidade de judeu, sefaradi, francês e argelino[46].

Já as identificações – a identidade na época da perda das “origens” – são forjadas para constituir a memória de um grupo para o qual o sentido da origem já se perdeu. Há, pois, uma diferença entre tradição – a transmissão de conhecimentos e de experiências bem-sucedidos e, por isso, vantajosos para quem os recebe, que assim não necessita recomeçar do zero o enfrentamento de dificuldades, e que por ser uma tradição assimilada, prescindindo de uma origem – e o tradicionalismo – uma tradição cristalizada, produzida como tradição, como patrimônio imune à história. Derrida observa: “Quanto mais em crise uma época, mais se necessita convocar o passado [que se perdeu]”[47].

A incessante mudança nos modos de v.ida e de valores produz uma época anormal, porque sem normas estáveis ou estabilizadoras, resultando em um tempo de desorientação, que marca o fim do projeto moderno cartesiano e iluminista que confiava na luz natural, na razão, no método, na linha reta horizontal do itinerário nas viagens – que protegia da errância, do vagar pela vida como em uma floresta emaranhada e escura – e na linha reta vertical do conhecimento que tem princípios seguros e efeitos certos. A ideia cartesiana de que toda causa tem os mesmos efeitos signi­ ficava que o ponto de partida e o de chegada podiam ser assinalados com clareza em sua filosofia da viagem; tinha o sentido de proteger contra o errar e a errância, a razão e o método protegendo contra os perigos do mar no horizonte aberto e imenso que correspondiam aos “ventos em rodopio da imaginação [desregrada] que os marinheiros temem em suas

grandes travessias, aqueles que vão além do Cabo da Boa Esperança”[48]. O caminhar com medida e método permitia alcançar um ponto fixo e seguro no espaço infinito, o ponto arquimediano constituindo a reta razão, aquela da distinção entre o verdadeiro e o falso, que propiciava “ver claro nas ações e caminhar com segurança nesta vida”[49]. No oposto da medida cartesiana se encontra o homem contemporâneo, tal como caracterizado por Nietzsche: “A medida nos é estranha, vamos reconhecê-lo. Nossa voracidade é justamente a voracidade da imensidão e do infinito. Semelhante a um cavaleiro impetuoso, nós soltamos as rédeas ao infinito, nós, homens modernos, nós semibárbaros”[50].

Tal condição é impulsionada pela desmedida da tecnociência moderna que transferiu para o universo o ponto arquimediano do conhecimento que encontrava seu marco inicial na Terra: “Em 1957 um artefato feito pela mão do homem foi lançado no Universo; durante semanas ele gra­ vitou em volta da Terra conforme as leis que regram o curso dos corpos celestes, o Sol, a Lua, as estrelas”[51]. Em face da imensidão das forças do universo, isto significou uma alienação com respeito à Terra, duplicada pela alienação do homem, às voltas com as forças ilimitadas da técnica. E como Heidegger observa, por falta de um enraizamento na Terra, toda elevação ao éter é factícia. Quando, em 1959, Kruschev anunciou que a sonda soviética Lunik II saíra da órbita terrestre, tendo “traçado um caminho da Terra à Lua”, Heidegger, em um artigo na Neue Züricher Zeitung, denunciou o total desprezo do primeiro secretário soviético quanto ao que realmente significam céu e Terra[52]. Com efeito, o céu ilumina a Terra de hora em hora, de estação do ano em estação do ano, segundo os hemisférios, mas é também ordem invariável, pois a impalpável abóbada celeste tem a firmeza do firmamento e mantém separadas a “água das alturas” – o ar – e “as águas abaixo” – o mar. Espaço empático, ele é vivido e animado pelo divino, deixando, assim, de ser irracional, dominado por acasos e incertezas. Por isso, a morada da família é sua grande expressão. Com abertura no teto, por ela se volatiliza a fumaça da lareira que, abrigada por colunas, constitui o altar doméstico da deusa Héstia, protetora do lar. Lareira é hestié e coluna é histié; as colunas estão como que enraizadas, erguendo-se do chão às alturas do céu, garantindo o contato do humano e do divino, dos pés na terra e dos pensamentos no céu: “Para os membros do oikos”, observa Vernant, “a lareira, centro da casa, marca também o caminho das trocas com os deuses infernais e celestes, o eixo que, de um extremo a outro, comunica todas as partes do universo”[53]. No mundo antigo, a morada é a fixidez como permanência e arraigamento espaçotemporal, garantia de perpetuação da linhagem; por isso, no retorno de Ulisses a Ítaca, o herói evoca a construção do leito nupcial em torno da oliveira “que medrou e frondesceu até engrossar como uma coluna”. O regresso à casa própria é o fim da errância de cidade em cidade, o “alcançar chão firme”, o empedõn, algo “plantado”, que permite “retomar posse” de uma “sede de direito” – o que é “sobre-viver”.

Com a imobilidade do tronco-foste de profundas raízes, o oikos é evoca­ do por sua fixidez e permanência. Coluna, lareira e leito convergem na exaltação da potência imorredoura da progênie. Vitalização e repouso que se acentuam nas figurações do poema, no canto XXIII da Odisseia: “eu diria este homem[…] coluna firme do alto teto, filho único para o pai, terra vista para marujos inesperada, sereno dia a contemplar após tormenta”[54].

No simétrico oposto ao enraizamento grego, se encontram as primeiras imagens de satélite enviadas da Lua em 1966 em que a Terra foi vista como um planeta azul. Em entrevista, Heidegger observa: “Eu não sei os senhores, eu, em todo caso, estou assustado[…]. Nós não precisamos mais de nenhuma bomba atômica, o desenraizamento do homem já aconteceu”[55]. Derrida considera o sentido das declarações de Heidegger, e das de Lévinas acerca das viagens no espaço, a partir da natureza da técnica moderna e do deslocamento forçado de populações inteiras provocado pelas guerras e desastres naturais. Para Heidegger, o indivíduo moderno se tornou um ser sem domicílio fixo; nisto Derrida encontra o sentido do retorno à Floresta Negra, criticando a exaltação do desenraizamento no espaço de Lévinas. Ao horizonte sideral de Gagarin, Heidegger opõe o lugar de origem, o espaço de suas amplas paisagens, o fascínio da natureza e a vida no campo, as raízes permitindo “sentir a unidade que a ponte que liga as margens de um rio e a arquitetura das construções instaura, a presença das árvores, o claro-escuro das florestas, o mistério das coisas: o recipiente de barro, os sapatos surrados de uma camponesa, o brilho de um jarro de vinho sobre uma toalha branca”[56]. O antigo moinho certa­ mente colocava a energia do vento a nosso favor, mas não para acumular e vender o vinho; ele era o oposto dos tonéis que reduzem o solo a um simples entreposto de produção. O camponês de outrora cultivava seu campo, cercando-o de cuidados, confiando a semente às forças de cresci­ mento da natureza e velando por ela. Já a agricultura mecanizada provoca a natureza. Referindo-se a Hebel e à terra suábia, Heidegger escreve: “Que seja agradável ou não, nós somos plantas que, apoiadas em suas raízes, devem sair da terra para florescer no éter e dar frutos”[57]. Assim, uma obra humana verdadeiramente vigorosa e sã deve perfazer-se a partir das profundezas do solo natal, e só então o homem pode elevar-se ao éter, ao domínio aberto do espírito. Escutar o ser anônimo que fala através do homem, ouvir o logos grego, consiste em habitar um lugar, o estar aí que é o enraizamento: “o território [é] o espaço de que se se apropria, defendido de intrusões[…], em que o indivíduo é dono da casa”[58]. O território é o lugar de proteção, espaço de tranquilidade e paz[59], de tal modo que o ser grego, evocado por Heidegger, é o do pagão. Pagão provém de paganus que, por sua vez, deriva de pacus, o “rincão de terra”, e, assim, o paganismo é o sentimento de localidade, faltando-lhe a força de libertação com respeito ao “Espírito do Lugar”[60]. Derrida observa que a procura heideggeriana do lugar e da Terra não tem o sentido de enclausuramento em uma localidade: “O pedido por um lugar e pela terra não tem aqui […]nadada afeição passional ao território, à localidade, nada do provin-cianismo ou do particularismo”[61], antes se aproximando da utopia de um certo messianismo judaico e escatológico da terra prometida[62]; isto por que, na perspectiva derridiana, as análises de Heidegger se inscrevem em uma meditação sobre nossa era planetária e sobre os desdobramentos da técnica, no sentido de indicar que a Terra não é mais arché originária, mas um conjunto de trajetórias e movimentos submetidos ao regime global da eficiência e da maquinizaçãa[63]. A teletecnologia e a conquista do espaço acarretam a perda do mundo como o atestam as imagens do globo enviadas do espaço, a Terra reduzida a um astro errante, um não mundo (Unwelt) da errância. Sobre a conquista da Lua, Heidegger anota: “Pode-se dizer que, quando os astronautas tocaram os pés na Lua, ela desapareceu enquanto Lua. Ela não nasce mais no céu, nem se põe. Ela não é nada mais que um parâmetro do empreendimento técnico do homem”[64]. Os programas espaciais pertencem ao reino do gigantesco (das Riesige) ou do planetário (das Planetarische), sob os auspícios do pensamento técnico de dominação.

Refletindo sobre a técnica moderna e a violência, Derrida, por sua vez, indica a metamorfose moderna da guerra clássica (aquela que acontecia entre Estados, a guerra civil ou a guerra dos partisans):

A relação entre a terra, o território e o terror mudou, e é preciso saber que isso se deve ao saber, quer dizer, à tecnociência. É a tecnociência que embaralha a distinção entre guerra e terrorismo[…]. Nenhuma geografia, nenhuma determinação territorial é pertinente agora para localizar o assentamento destas novas tecnologias de comunicação ou de agressão. Diga-se de passagem que as agressões de tipo terrorista não teriam mais necessidade de aviões, bombas, camicases: basta intro­ duzir-se em um sistema informático de valor estratégico, nele instalar um vírus ou qualquer [outra] intervenção para paralisar os recursos econômicos, militares e políticos de um país ou continente […]. Isto pode ser feito de qualquer lugar da Terra, com um custo e meios re­ duzidos[65].

De maneira semelhante, Heidegger, em sua Introdução à metafísica, se refere ao “sinistro frenesi da técnica e da organização sem raízes do homem normalizado” que caracterizam tanto os Estados Unidos quanto a então União Soviética. Por isso, para Derrida, o pensamento de Heidegger deve ser compreendido no sentido de uma interminável errância. Com efeito, Heidegger escreve: “Existiria ainda uma terra natal de onde nossas raízes retirassem sua força e onde o homem permanecesse, isto é, onde ele tenha uma morada? Inúmeros foram os alemães expulsos de suas casas, que tiveram de abandonar seus povoados ou cidades, que perderam sua terra natal”[66]. Contrariamente ao abandono de Deus na época do desencantamento do mundo, para Heidegger os deuses do lugar estão presentes, mas inaparentes: “próximo da lareira, neste lugar sem pretensão, em que cada coisa e cada situação, cada ação e cada pensamento são familiares e usuais, costumeiros, neste lugar, os deuses estão presentes”[67]. Já em 1943, em seu curso sobre Heráclito, Heidegger escreve: “Quando o pensador diz ‘kai entautha’, ‘aqui também’, ‘en toi ipnoi’, ‘na lareira’, o grandioso está presente, ele quer em realidade dizer: apenas aí os deuses estão presentes. Onde? No cotidiano inaparente”[68].

No simétrico oposto a Heidegger, Lévinas enaltece a façanha de um Gagarin, fora de qualquer apego à Terra e aos “deuses da paisagem”, o que significou, para o filósofo, a liberação do “mundo heideggeriano” e das “superstições do Lugar”:

O que é admirável na façanha de Gagarin não é certamente seu papel de Luna Park que impressiona as multidões; não a performance esportiva realizada ao ir mais longe que os outros, batendo todos os recordes de altitude e velocidade. O que conta mais é a abertura provável a novos conhecimentos e novas possibilidades técnicas, a coragem e as virtudes pessoais de Gagarin; é a ciência que tornou possível a façanha e tudo que isso supõe de espírito de abnegação e sacrifício. Mas o que conta talvez acima de tudo é ele ter deixado o Lugar. Por uma hora, um homem existiu fora de qualquer horizonte – tudo era céu ao seu redor, ou melhor, tudo era espaço geométrico. Um homem existia no absoluto de um espaço homogêneo[69].

No extremo do enraizamento heideggeriano, o desenraizamento radical de Lévinas procura reaver a tradição judaica que não prendeu os homens a um Lugar. A terra prometida só é vista à distância, nunca diretamente ocupada, porque estar preso a um Lugar é produzir a cisão da humanidade em autóctones e estrangeiros e, por isso, a técnica é menos ameaçadora do que os gênios do Lugar:

O judaísmo sempre foi livre com respeito aos lugares[…]. A Bíblia só conhece uma terra santa, terra fabulosa que expulsa os injustos, terra em que só nos enraizamos sob certas condições. Como o Livro dos Livros é sóbrio em suas descrições da natureza! – “País onde correm o leite e o mel”. A paisagem se diz em termos de alimento, como em seus adágios: “Era então a estação das primeiras vinhas” (Números, 13-rn) […], “brilhou um instante um cacho que amadureceu sob o calor de um sol generoso”[…]. A terra é para isso. O homem é seu mestre para ser­ vir aos homens. Permaneçamos senhores do mistério que ela respira. […]. A catolicidade do cristianismo integra os pequenos e comoventes deuses familiares no culto dos santos, nos cultos locais. Sublimando-os, o cristianismo mantém a piedade enraizada, que se nutre das paisagens e das recordações familiares, tribais, nacionais […]. O judaísmo não sublimou os ídolos, ele exigiu sua destruição. Como a técnica, ele desmistificou o universo[70].

A circunstância enunciada por Lévinas revelaria, para Derrida, uma viagem planetária que não produz pertencimento ou lugar; é uma Odisseia sem Ítaca, na qual se desunem cosmos e pólis[71].

Para Derrida, o homem tem necessidade de fronteiras protetoras contra o abalo que o infinito do espaço provoca, o vazio metafísico que é ameaça de desintegração. Por isso, não se trata nem de nostalgia de um pertencimento perdido na época da reprodutibilidade técnica de Heidegger, nem da extensão sem limites do espaço infinito de Lévinas, e sim de fronteiras, compreendidas por Derrida como um limite que, ao mesmo tempo, inclui e exclui uma passagem, diferentemente da separação do eu e do outro, do interior e do exterior, do próprio e do impróprio. O que não significa dissolver o diferente na indiferenciação confusa, mas apurar as nuances e desvelar as diferenças que as oposições homogêneas encobrem. Com efeito, em seu Schibbolet: pour Paul Celan, Derrida interroga o que é um limite, se é uma linha de demarcação ou de partilha ou se é passar ou atravessar, se é um passo/um não (pas), enfim, seria uma aporia[72]. Eis por que Derrida reflete sobre a aporia:

Diante de uma aporia, um limiar, uma fronteira, uma linha ou sim­ plesmente a borda ou o abordar do outro como tal, [nos encontramos] […] neste lugar em que não seria nem mesmo mais possível constituir um problema, um projeto ou uma proteção,[…] estamos desarmados, entregues ao outro, incapazes até mesmo de nos abrigarmos por detrás de algo que ainda pudesse proteger, [como] a interioridade de um segredo. Aí, em suma, neste lugar de aporia, não há mais um problema. Não infeliz ou felizmente soluções não estejam dadas, mas porque um problema não encontra nem mesmo mais como se constituir como algo que teríamos diante de nós[…], alguma fronteira ainda a atravessar ou por detrás da qual se proteger[73].

Derrida reflete sobre a experiência da não passagem, da provação que comporta tudo o que passa e apaixona nesta não passagem, aquilo que se imobiliza na própria separação. Passagem e não passagem, lugar e não lugar manifestam uma différance – em que o sufixo ência evoca uma duração que faz da ação algo ativo e passivo, ao mesmo tempo:

Aquilo que se deixa designar por différance não é simplesmente ativo nem simplesmente passivo, antes anunciando ou reclamando algo como a voz média, dizendo uma operação que não é uma operação, que não se deixa pensar como paixão nem como ação de um sujeito sobre um objeto, nem a partir de um agente nem de um paciente, nem a partir nem em vista de algum destes termos[74].

A différance é uma aporia, uma fronteira e também uma indecidibilidade entre o utópico e o real; sem uma hesitação não haveria decisão, preferência. Praefare – levar (ferre) para a frente (prae) – afasta do poder que prejulga, que predetermina e que predestina a própria essência daquilo que é avaliado. A preferência, sendo a figura da decisão, é simultaneamente o optar por, decidir em favor de, mas também a indecidibilidade que contém uma insistência daquilo que foi abandonado, uma resistência. A différance é uma aporia. Por isso Derrida, referindo-se a Bartleby, a personagem de Melville que “preferiria não” – “J would prefernot to”-, escreve: “ele era um homem de preferências mais que de pressupostos”[75]. Preferir e decidir constituem um limiar, no sentido da desconstrução:

Isto significa que não tomamos como seguro nem mesmo a existência (natural ou artificial) de nenhum limiar, se por limiar compreende-se uma linha de fronteira indivisível ou então a solidez de um solo fun­ dador. Supondo que nos demorássemos no limiar, isto seria[…] passar pela prova que consiste em sentir o abalo sempre por perto, que ameaça a existência de todo limiar[…]. O abismo – se houver – é que haja mais de um chão, mais de um solo. Mais que um sólido, mais que uma só soleira [seuil], mais que uma só “só soleira”[76].

O que é uma soleira, uma fronteira? A porta de Adriano, que fixava no passado os limites de Atenas, era destinada a separar a antiga cidade de Teseu da nova cidade construída por Adriano no período romano. As inscrições antigas não se referiam ao passado, eram do presente, ou melhor, para o presente. Artemision, a divindade das margens, indicava também aquela fronteira entre o passado e o presente. Uma fronteira controla uma passagem, vigia e pode impedi-la e, então, é espaço de confrontos, do cara a cara, do front. No entanto, a fronteira, mesmo com sua alfândega, sua guarda armada e suas barreiras, tem sempre seus schibboleth[77] e suas passagens clandestinas, seus signos de reconhecimento verbal em cuja voz se inscrevem partilha e aliança, marca que manifesta que se fala uma mesma língua e se pertence a um grupo por seus valores comuns a todos. Isto significa que as fronteiras interferem umas com as outras sem fronteiras entre suas diferentes frentes, mas também são aporias, o sem saída, o sem passagem: “pois o que é uma fronteira? Tantas desaparecem ou tornam-se incertas, tantas outras que se acreditou terem desaparecido retornam à superfície, tantas novas surgem, delimitando territórios nacionais, ‘étnicos’, culturais, ou campos do pensamento, da pesquisa, da invenção”[78].

Neste sentido, também entre realismo e utopia há fronteiras. Por isso, em. vez de unir utopia e realização, como o fazem as utopias modernas[79]. Derrida prefere associar a utopia ao impossível, mas em um sentido sui generis: “o impossível de que falo frequentemente não é o utópico; ele dá, ao contrário, o movimento ao desejo, à ação e à decisão, ele é a própria figura do real. Ele tem a proximidade para com ele, a urgência”[80]. Entre o real e o impossível, há dijfirance, por isso as utopias conhecidas são fantasmagorias da unidade, recalque da alteridade e esquecimento do conflito[81]. Derrida, “corajoso homem de paz” nas palavras de Alain Badiou, não participou da “cartografia das situações de fato”, fossem os “anos vermelhos” de 1968 e pós-68, como não tomou partido da Argélia contra a França ou da França contra a Argélia na questão colonial, porque, para ele, todo acordo de paz não se faz sobre o que existe, mas sobre o ponto invisível de toda paz. Recusa dos dualismos cabais-da distinção entre cidade e campo, montanha e vale, interior e exterior, judeu e árabe, argelino e francês, Derrida toma a inexistência como inscrição, como uma forma de existência, o que põe as coisas em movimento: o impossível é o fora do lugar no lugar. Caracterizando essa espectralidade, Derrida escreve:

Espera sem horizonte de espera, espera daquilo que não se espera ainda ou daquilo que mais se espera, hospitalidade concedida sem reservas à surpresa absoluta daquele que chega ao qual não se pedirá nenhuma contrapartida, nem de firmar um compromisso segundo contratos domésticos de nenhuma ordem de acolhimento (com família, Estado, nação, território, solo ou sangue, língua, cultura em geral, humanidade mesmo) […], abertura messiânica ao que vem, isto é, o acontecimento que não se poderia esperar enquanto tal, nem portanto reconhecer antecipadamente, ao acontecimento como ao próprio estrangeiro, àquele para quem se deve deixar um lugar vazio, sempre, em memória da “esperança”[82].

Por isso, pode-se dizer que o real é utópico; elementos da utopia se realizam mas não como imagem preestabelecida e fixa[83], até porque um ideal, tornando-se real, necessariamente trai, desfazendo-se ao se realizar (Platão prisioneiro em Siracusa, a Cidade do Sol de Campanella e a repressão dos insubmissos, a Ideia comunista). Para Derrida, a utopia já está sempre inscrita no real e no presente como ponto de fuga, como o que escapa ao real mas, ao mesmo tempo, pode ser localizado, sem ser, no entanto, capturável: “O que é, então, um ‘ponto de fuga’?”, pergunta Alain Badiou.

Não é localizar o que escapa[…], é um gesto de mostração, é mostrar delicadamente o ponto de fuga ao mesmo tempo que se o deixa escapar, ele só pode ser dito como em um murmúrio, um “psiu”. Talvez ele esteja aqui, não tente agarrá-lo, deixe-o fugir. Derrida é o contrário do caçador que imobiliza a caça para atirar[…]. Ele espera que a fuga não pare, a fuga em seu incessante desaparecer. Todo aparecer se sustenta no desaparecer, é aquilo que no próprio lugar já saiu desse lugar; a lo­ calização é uma não localização, é o fora de lugar, por isso não se chega efetivamente a localizá-la[84].

Por isso, a utopia de Derrida se esquiva das imposições e doxas dominantes na sociedade. Porque alcançá-la seria perdê-la, a utopia “se faz mais bela quanto mais distante”.

  1. Não havendo indicações em contrário, as traduções dos trechos citados são da autora. [N.E.]
  2. Afastando-se da ideia de destruição, a desconstrução, para Derrida, nada suprime: “Desconstrução e destruição significam uma operação que se exerce sobre a estrutura ou a arquitetura tradicional dos conceitos fundadores da ontologia ou da metafísica ocidental. Mas, em francês, o termo destruição implicava muito claramente um aniquilamento, uma redução negativa mais próxima da demolição nietzschiana, talvez, do que […] do tipo de leitura que eu propunha. […] Lembro-me de ter-me inter­ rogado se esta palavra desconstrução (tendo-me chegado de maneira aparentemente espontânea) era mesmo francesa”. Jacques Derrida, Psyché, Paris: Galilée, 1987, p. 338.
  3. Platão, Timeu, Lisboa: Instituto Piaget, 2004, pp. 52C-SS.
  4. Jacques Derrida, Khôra, Nícia Adan Bonatti (trad.), São Paulo: Papiros, 1996. Também Augustin Berque observa: “topos designa sempre o lugar em que se encontra um corpo, em que ele está situado. […]. Mas quando Platão explica que cada realidade sensível possui por definição um lugar, um lugar que lhe é próprio quando nele exerce sua função e nele conserva sua natureza, então Platão utiliza a palavra khôra […] o pertencimento de uma extensão limitada e definida de um sujeito. Distingue-se assim o lugar físico relativo da propriedade ontológica que funda essa localização”. Augustin Berque, “La chôra chez Platon”, em: Thierry Paquot; Chris Younés (org.), Espace et lieu dans la pensée occidentale, Paris: La Découverte, 2012, nota 4, p. 22.
  5. Ibidem, p. 13.
  6. Platão, op. cit.
  7. Marilena Chaui, Da realidade sem mistério ao mistério do mundo, São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 46.
  8. A partir da leitura de ”L’autocthonie: une topique athénienne”, de Nicole Loraux, em Enfants d’Athéna: idées athéniennes sur la citoyenneté et la division des sexes, Derrida propõe aproximar o Teeteto do Menexeno de Platão, diálogo em que este trata da khôra cívica. Cf. Marta Hernandez, “La khôra du Timée: Derrida, lecteur de Platon”, Appareil (on-line), n.11, 2013, nota 17. Disponível em: <https:/ /appareil.revues. org/1780>. Acesso em: 26 fev. 2016.
  9. Marta Hernandez, op. cit., nota 21.
  10. Ibidem, nota 25.
  11. Platão, op. cit., p. 37, 20d.
  12. A différance é diversa da descontinuidade temporal do Jetztzeit benjaminiano e sua ideia de ruptura, de salto tigrino, de explosão violenta do continuum da história. Cf. Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história” e “Crítica do conhecimento, crítica do progresso”, em: Passagens, Belo Horizonte/São Paulo: Editora UFMG/IOESP, 2006.
  13. Jacques Derrida, Positions, Paris: Minuit, 1972, pp. 76-SS. Ver também, do mesmo autor, De la Grammato­

    logie, Paris: Minuit, 1967, pp. 97-8. Ed. bras.: Gramatologia, Renato Janine Ribeiro; Miriam Schneiderman (trad.), São Paulo: Perspectiva, 2008

  14. Nishant Alphonse Irudayadason, “Penser un monde par-delá les frontiêres: Derrida et Trimular, essai de philosophie comparative”, Université Paris-Est, Paris, 2008. Disponível em: <https:/ /halshs.archives-ouvertes.fr/ tel-00462179 / document>. Acesso em: 26 fev. 2016.
  15. Porque só existe o real, não se busca um refúgio em cidades ideais, concebidas sob cálculos ordenadores do espaço, do tempo e dos homens, de uma evasão com respeito a um mundo insatisfatório, de tudo que ele frustra e de que ele priva. E, de maneira mais essencial, não se trata de imaginar outra geografia na qual a justiça reinaria, por não ser possível um critério único do justo e do injusto, um olhar de Sirius que conhecesse a justiça em si.
  16. Também Deleuze considera disseminações no real como na palavra delírio. Delirium, do latim lira,

    “o sulco traçado pelo arado”, com o prefixo de, que indica o “sair do sulco”, é o afastamento. Delirium tem por referência a história de Roma, quando Rómulo traçou um sulco às costas do monte Palatino, delimitando assim as fronteiras da cidade. Por tê-las ultrapassado, Remo, seu irmão, foi por ele punido com a morte e, assim, delirium veio a significar, por extensão, perda do reto caminho da razão, extravagância que escapa à linha reta. Para Deleuze, em Critica e clínica, a razão não necessariamente segue uma direção contínua, sendo capaz de fenômenos oblíquos, como a linha transversal que pode atravessar paralelas heterogêneas cruzando-as, ou como a vespa faz com a orquídea disseminando o pólen.

  17. Sobre a questão das relações entre democracia e utopia, pense-se ainda na invenção democrática de Claude Lefort, na democracia selvagem de Pierre Clastres, na democracia insurgente de Miguel Abensour, em particular.
  18. Jacques Derrida, Spectres de Marx, Paris: Galileé, 1993, p. rn. Ed. bras.: Espectros de Marx, Anamaria

    Skinner (trad.), Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.

  19. Marc Crépon; Frédéric Worms (org.), Derrida, la tradition de la philosophie, Paris: Galilée, p. 174.
  20. Jacques Derrida, “Signature, événement, contexte”, La Communication: Actes du xve Congres de l’Associa­ tion des sociétés de philosophie de langue française, Montréal: Éd. Montmorency, 1971-1973.
  21. Idem, Voyous. Deux essais sur la raison, Paris: Galilée, 2003, pp. 12-127.
  22. Idem, Adieu à Emmanuel Lévinas, Paris: Galilée, 1997, p. 144. Ed. bras.: Adeus a Emmanuel Lévinas, Fábio Landa (trad.), São Paulo: Perspectiva, 2004.
  23. A possibilidade do mal radical é o fantasma da democracia por vir, a facilitação técnica do acesso a armas letais e os terrorismos contemporâneos. Cf. Jacques Derrida, Força de lei: o fundamento místico da autoridade, São Paulo: Martins Fontes, 2007; e Séminaire la bête et le souverain, v. I, (2010-2002), Paris: Galilée, 2008.
  24. Herman Melville, Bartleby, o escrivão, São Paulo: Grua Livros, 2014.
  25. Cf. Jacques Derrida, Donner la mort, Paris: Galilée, 1999.
  26. Idem,Voyous, p. 106.
  27. Idem, Spectres de Marx, p. 111.
  28. Filippo Tommaso Marinetti, “Manifeste du futurisme”, Le Figaro, Paris: 20 fev. 1909.
  29. Paul Valéry; “La crise de l’esprit”, em: Oeuvres, t. 1, Paris: Gallimard, 1957, p. 993, apud Jacques Derrida,

    Spectres de Marx, p. 19.

  30. Jacques Derrida, Spectres de Marx, p. 25. Derrida aprecia as construções ousadas de Freud sobre o inconsciente e a tendência à repetição, mas não aceitava sua teoria sexual, centrada em um “familiarismo teatral” (o complexo de Édipo); tampouco a exclusão da telepatia e dos vestígios arcaicos de seu judaísmo, nem a parte mais especulativa de Freud, a pulsão de morte. Mas considerava a importância de seu pensamento para a democracia, uma vez que o essencial em Freud é mostrar de que maneira todo discurso sobre a razão deve levar em conta a “noite escura do inconsciente”.
  31. Ibidem, pp. 177-9.
  32. Idem, La Voix et lephénomene, Paris: PUF, 1967, p. 73- Ed. bras.: A voz e o fenômeno, Lucy Magalhães (trad.), Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
  33. Idem, Spectres de Marx, p. 65.
  34. Idem, Parages, Paris: Galilée, 1993, p. 15.
  35. Idem, Apories, Paris: Galilée, 1993, p. 66.
  36. Nomos, em grego, significa, em suas origens, os campos, os prados, sendo o nômade o chefe ou o ancião de um clã que presidia a justa distribuição dos pastos, estabelecida pelos costumes e base do direito ocidental. O verbo nemein, desde Homero, tem mais de um sentido: é partilhar ou distribuir a terra, as honras, os alimentos e também “conhecer os costumes”: “O homem multiversátil [Ulisses], ó Musa, canta,/ aquele que muitos males padeceu, destruída Troia, pólis sacra, aquele que visitou as cidades de tantos homens e conheceu o espírito [costumes, noon] de muitos mortais” (Homero, Odisseia, Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 12). De nomos provém Nêmesis, a deusa que administrava a justiça divina, cf. Émile Benveniste, Dictionnaire des Instituitions indo-européennes, Paris: Minuit, 1969, pp. 102-3.
  37. Jacques Derrida, Donner le temps I: la fausse monnaine, Paris: Galilée, 1991, p. 18.
  38. Homero, Odisseia, Trajano Vieira (trad.), São Paulo: Editora 34, 2011, pp. 217-9.
  39. Ibidem, livro 11, pp. 207-9.
  40. Ibidem, pp. 522-3.
  41. [Lev. 19: 18.]. Cf Pedro Apolinário, Explicação de textos difíceis da Bíblia, Editora Universitária Adventista,

    1990, p. 242.

  42. Ibidem, p. 242.
  43. Vance Packard, La Persuasion clandestine, Paris: Calmann-Lévi, 1958, p. 17.
  44. Jacques Derrida, Gramatologia, Renato Janine Ribeiro; Miriam Schneiderman (trad.), São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 92
  45. Idem, Spectres de Marx, p. 178.
  46. Lembre-se de que os ancestrais de Derrida chegaram à Argélia em 1492, quando da expulsão dos judeus da Espanha durante a Reconquista dos reis católicos Fernando e Isabel. A presença dos judeus na Argélia data da Antiguidade, antes da conquista romana. A dominação árabe se faz progressivamente a partir do século XVII. Quando os franceses chegam, nos anos 1830, ao território disperso entre tribos e regiões, que viria a ser a Argélia, a população judaica urbana era de 80% e a árabe, de 5%. Sob a dominação francesa, os judeus tiveram garantida sua liberdade religiosa e obtiveram iguais direitos aos dos muçulmanos. De onde o apreço dos judeus argelinos pela França, tendo-se tornado franceses com o decreto de 1870. Cf. Catalogue de l’exposition Juift d’Algérie, curadoria de Anne Hélene Hoog, no Musée d’Art et d’Histoire du Judaïsme, 2013.
  47. Jacques Derrida, Spectres de Marx, p. 178.
  48. Cf. Valentin Boibessot, L’Erre Derrida; e René Descartes, Météores, Paris: Alain et Tannéry, AT VI, 1992, p.

    233.

  49. Cf. René Descartes, “Segunda Parte”, Discurso do método, Jacob Guinsburg; Bento Prado Júnior (trad.), São Paulo: Abril, 1973, p. 33.
  50. Friedrich Nietzsche, Para além do bem e do mal, Porto Alegre: L&:PM, 2008, § 224.
  51. Hannah Arendt, A condição humana, São Paulo: Forense Universitária, 2014, p. 7.
  52. A concepção heideggeriana do céu, da Terra e do exílio do homem no mundo sublunar se constrói sob a égide da Grécia antiga. Em diversas obras, como em seus Ensaios e conferências, Heidegger se refere ao impacto da leitura dos escritos de Karl Reinhardt sobre Heráclito em seu pensamento. Suas reflexões se esclarecem também a partir da obra de Walter Friedrich Otto sobre a religião grega. Se, para esse autor, os deuses gregos insistem na dimensão do lugar e até mesmo ctônico da religiosidade grega arcaica, será Hölderlin o poeta do retorno à choupana e à lareira. O sentido da religião não se encontra em uma esfera sagrada separada do profano, mas em uma ligação com o divino, presente em todo lugar, uma religação com os deuses, como nos poemas “O Reno” e “Religação com os deuses” de Hölderlin. Voltando a habitar a Terra, o homem pode de novo abrir-se à potência dos deuses, em uma epifania no interior do próprio profano e não segundo uma ressacralização do mundo.
  53. Jean-Pierre Vernant, La traversée des frontieres, Paris: Seuil, 2004, p. 32.
  54. Ésquilo, Oresteia I – Agamêmnon, Jaa Torrano (estudo e tradução), ed. bilíngue, São Paulo: Iluminuras, 2004, vv. 896-900, p. 165), apud M. H. S. D’Agostino, “Columna, vultus: réflexions sur la maison dans l’histoire”, Humanística: An International Journal of Early Renaissance Studies, V. VIII, 2015, pp. 9-52.
  55. Martin Heidegger em entrevista concedida à revista Der Spiegel em 1966 e publicada após sua morte,

    em 1976. Disponível em: <http://www.lusosofia.net/ textos/heideggger_ja_so_um_deus_nos_pode_ ainda_salvar_der_spiegel.pdf>. Acesso em: 1 mar. 2016.

  56. Emmanuel Lévinas, Difficile liberté: essais sur le judafsme, Paris: Albin Michel, 1976, pp. 200-303.
  57. Martin Heidegger, Hebel, der Hausfreund, Pfullingen: Neske, 1957, p. 314.
  58. Roland Barthes, Como viver junto, Leyla Perrone-Moysés (trad.), São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 219.
  59. Martin Heidegger, Remarques sur art, sculpture, espace, Paris: Payot & Rivages, 2009.
  60. Cf. Martin Heidegger, Hebel, der Hausfreund, op. cit.; também Emmanuel Lévinas, Difficile liberté, op. cit.;

    e Quelques réflexions sur la philosophie del’hitlérisme, Paris: Rivages, 1997.

  61. Jacques Derrida, “Violência e metafísica: ensaio sobre o pensamento de Emmanuel Lévinas”. em: A escritura e a diferença, Maria Beatriz M. N. da Silva (trad.), São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 209. Cf., ainda, Michel Haar, Heidegger e a essência do homem, Lisboa: Instituto Piaget, 1997.
  62. Derrida se afasta dos que acusam Heidegger de antissemitismo. Para melhor compreender a questão, consultar os “Cadernos negros” de Heidegger, nos quais se encontra sua concepção do judeu errante e dajudeidade (Judentum), associados à ausência de solo (Bodenlosigkeit) e à mentalidade instrumental: “Uma das figuras mais ocultas do gigantismo e talvez a mais antiga é a habilidade obstinada do cálculo, do tráfico e da mistura, sobre que se funda a ausência de mundo do judaísmo” (Martin Heidegger, Gesamtausgabe,1v. Abteilung: Hinweise und Aufzeichnungen, Band 96: Überlegungen XII-XV (Schwarze Hefi:e 1939-1941). Vittorio Klostermann, Frankfurt-am-Main 2014, S. 56). Em declarações publicadas por Frédéric de Towarnick.i em Martin Heidegger: souvenirs et chroniques (Paris: Rivages, 2002), o filósofo se afasta do biologismo e determinismo racial que não passam, para ele, de uma versão entre outras do pensamento reducionista próprio da racionalidade calculista: “Todo pensamento racial é o resultado do maquinamento (Machenschaft). O eugenismo e a engenharia racial pertencem à fé cega na possibilidade de modificar indefinidamente os seres vivos, sem nenhum ancoramento no mundo da vida” (ibidem, p. 56). O deslocamento da ideia de judeu para a de judeidade a reúne à do bolchevismo e do americanismo. Em entrevista transmitida pelo rádio, “Por que permanecemos na província”, quando de sua recusa, em 1933 e 1934, a lecionar em Berlim, escolhendo Freiburg e a Floresta Negra, a atitude de Heidegger se encontra no simétrico oposto das “Cartas provinciais” de um Pascal. Nestas é o citadino que se dirige à periferia, enquanto em Heidegger é a periferia que é chamada a tornar-se o verdadeiro centro da renovação. Por ocasião de uma declaração pública em favor dos trabalhadores desempregados em Freiburg, Heidegger os conclama a retornarem “à terra e ao povoado natal” (Land der Siedlung) (entrevista de Martin Heidegger realizada em 23 set. 1966 pela revista Der Spiegel, publicada em 31 maio 1976, traduzida e anotada por Krajewski, Martin Heidegger, Rt!ponses et questions sur l’histoire et la politique, Paris: Mercure de France, 1988).
  63. Jacques Derrida, “Violence et métaphysique”, L’Écriture et la difference, Paris: Seuil, 1967, pp. 117-228.
  64. Emmanuel Alloa, “Gagarine et la Forêt-Noire: Métapolitiques du déracinement chez Heidegger, Lévinas et Blanchot”, em: A. Bodenheimer; M. Fischer (ed.), Lesarten der Freiheit: zur Deutung und Bedeutung von Emmanuel Levinas’ Difficile liberté, Freiburg: Alber, 2014, p. 3.
  65. Jacques Derrida, “Qu’est-ce que le terrorisme?”, Le Monde diplomatique, fev. 2004.
  66. Martin Heidegger, “Sérénité”, em: Questions III, André Préau (trad.), Paris: Gallimard, 1990, p. 138.
  67. Daniel Rache (ed. ), Heidegger et Heraclite. Traduction du cours de Heidegger de 1943 “Le Commencement de la Pensée Occidentale”, paru dans le tome55 de l’édition complete allemande, Paris: Univesité de Paris 1, 1986, p. 50.
  68. Martin Heidegger, Heráclito, Márcia de Sá Cavalcante (trad.), Rio deJaneiro: Relume Dumará, 1998, p. 24.
  69. Emmanuel Lévinas, “Heidegger, Gagarine et nous”, em: Difficile liberté, Paris: Albin Michel, 1995, p. 302.
  70. Ibidem, pp. 299-303.
  71. O espaço cósmico onde não há fronteiras é um não lugar, sem nenhuma possibilidade de orientação. A questão do desenraizamento foi também elaborada em particular por Simone Weil em seu O enraizamento, obra na qual trata do enraizamento como uma das necessidades mais essenciais do indivíduo, enraizamento compreendido também como necessidade essencial de continuidade e de herança, cujos rastros se encontram nas instituições, nos costumes, nos valores que devem ser interpretados, à distância dos revolucionários de 1789 e de todo pensamento da tábula rasa.
  72. Jacques Derrida, Schibboleth: pour Paul Celan, Paris: Galilée, 1986.
  73. Ibidem, p. 31.
  74. Idem, Marges de la philosophie, Paris: Minuit, 1972. Ed. bras.: Margens da filosofia, Joaquim Torres Costa (trad.), Campinas: Papirus, 1991.
  75. Idem, La bête et le souverain, v. 2, Paris: Galilée, 2010, p. 57.
  76. Ibidem.
  77. Schibolleth é a palavra presente no Livro dos Juízes da Bíblia, por meio da qual os gileaditas reconheciam seus inimigos efraimitas, que não conseguiam pronunciar a letra sin. No pensamento de Derrida, schibboleth significa tanto a senha do reconhecimento de um grupo e, assim, pertencimento e partilha, quanto diferença e não partilha. Cf. Jacques Derrida, Schibboleth: pour Paul Celan, op. cit.
  78. Le Passage des Frontieres: autour de l’oeuvre deJacques Derrida, Colloque de Cérisy, Paris: Galilée, 1994.
  79. Diferentemente da Cidade de Deus transcendente de Santo Agostinho, que a separava da “cidade dos homens”, as utopias modernas são seculares. Seu ideário de realização neste mundo provém da substituição do ideal antigo e medieval da vita contemplativa pelo da vita activa, o homo faber fabricando seu próprio destino, em uma nova relação com o tempo, que valoriza o ativismo e o futuro. (Cf. Alexandre Koyré, Do mundo fechado ao universo infinito, Donaldson M. Garschagen (trad.), São Paulo: Edusp, 2006; Paul Hazard, La crise de la conscience européenne, Paris: Fayard, 1994. No que tange ao fenômeno da Reforma protestante e da mundanização, cf. Giacomo Marramao, Poder e secularização, Vítor Matos (trad.), São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1995; Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo. José Marcos Mariani de Macedo (trad.), São Paulo: Companhia das Letras, 2004.) Que se pense na Cidade do Sol de Campanella – que antecipava o uso da energia solar – e Nova Atlântida de Bacon e seus aviões e submarinos, na Utopia de Morus e na de Marx, assim como na dos incas da América recém-descoberta no Renascimento, que tentaram um comunismo igualitário; também os jesuítas e suas missões na confluência com Paraguai, Argentina e Brasil procuraram criar em suas primeiras colônias o paraíso terrestre. Em Aguirre, a cólera dos deuses, de Werner Herzog, há esse desejo de encontrar o Eldorado, contrariado por todos os perigos da floresta, por todos os excessos da imensidão da natureza. A sociedade sem classes de Marx, a raça pura de um Hitler e a revolução erótica e sexual de Reich podem ser consideradas utopias.
  80. Cf. Derrida, Papier machine: le ruban de machine a écrire et autres réponses, Paris: Galilée, 2001,

    pp. 360-1.

  81. As utopias clássicas, incluídas as de Hegel e Marx, abolem a dimensão temporal, pois a passagem do tempo e as transformações que ela comporta ameaçam com as imperfeições, aquelas que o não tempo quer corrigir. Camus já observara que “os homens fazem sua própria história e a história desfaz o que os homens fizeram”. Por isso seu pensamento era o da prudência e da moderação. Cf. Albert Camus, O homem revoltado, Rio de Janeiro: Record, 1996.
  82. Jacques Derrida, Spectres de Marx, p. rn.
  83. Cf. também Benjamin, para quem o inexistente é o que põe em movimento o possível. Assim, grafólogos, quiromantes, astrólogos, cartomantes não possuem um saber antecipado de nossas vidas, mas imagens de nós mesmos e desse eu movente que nos é apresentado como máscaras: “a pretensa imagem interior que nós trazemos em nós de nossa própria essência é, a cada minuto, pura improvisação. Ela se orienta por inteiro pelas máscaras que lhe são apresentadas. O mundo é um arsenal de tais máscaras[…]. A [um] jogo de máscaras aspiramos como a uma embriaguez, e é o que faz viver até hoje as cartomantes, os quiromantes, os astrólogos. Eles sabem nos colocar em uma dessas pausas silenciosas do destino, nas quais só mais tarde se nota que elas continham o germe de um destino completamente outro do que o que nos foi reservado”. (Cf. tese I7 em W Benjamin “Sobre o conceito de história”, op. cit., p. 231.) Para capturar o inexistente e futuro no presente, é preciso, para Walter Benjamin, “presença de espírito”, ser um profeta do presente. Cf. “Madame Ariadne, segundo pátio à esquerda”, Rua de mão única, Rubens Rodrigues Torres Filho; José Carlos Martins Barbosa (trad.), São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 63.
  84. Alain Badiou, apud Marc Crépon; Frédéric Worms, Derrida, la tradition de la philosophie, Paris: Galilée,

    2008, p. 174.

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