2015

Violência na mudança e mudança na violência

por Pedro Duarte

Resumo

Há, de fato, uma mutação na essência da violência? Qual seria sua explicitação histórica? Quando ela passou de paixão transformadora – assim como entendida por Hegel, Marx, Sartre… – a triste? Ou, para usar os termos de Espinosa, de criativa a reativa?

Isso, que certamente aconteceu no século 20, apresenta-se hoje na forma de um enigma que ou é decifrado, ou devora a humanidade.

O marco histórico que prenunciou essa violência contemporânea talvez seja a Primeira Guerra Mundial. Segundo o filósofo Walter Benjamin, o monstruoso desenvolvimento técnico, que sobrepujou o homem, teria dado origem a uma nova forma de miséria. Eis aí a possível chave de decifração da violência atual: seu caráter técnico. Mais do que uma crueldade psicológica interior maligna – embora ela também exista –, a singularidade da violência na atualidade está na perda do destaque individual.

O sujeito da violência é, assim, mais circunstancial. Não é mais o vilão extraordinário – e por isso mesmo raro – que a traz à tona, mas sua trivialidade ordinária, integrada à civilização técnica.

Para empregar um conceito que se deve à pensadora Hannah Arendt, goza-se da banalidade da violência, que não depende de um perpetrador como tradicionalmente se concebia, pois esta integra a engrenagem de sustentação do processo técnico – ideologicamente travestido de um progresso técnico – da vida administrada das massas. Nesse sentido, a violência contemporânea talvez tenha se tornado desapaixonada, até mais do que uma paixão triste, isto é, autônoma perante motivações subjetivas fora do comum, absorvida na rotina impessoal. É claro que paixões continuam a mover grande parte da violência pessoal e social, mas a terrível originalidade contemporânea estaria na independência que a violência adquiriu delas.


Diante do desafio de pensar as fontes passionais da violência, farei uma exposição histórico-filosófica. Vou adiantá-la, embora abruptamente, pedindo a companhia de vocês para o trajeto a seguir. Empregando livremente conceitos do filósofo Baruch de Spinoza[1], do século XVII, con­ sidero duas etapas históricas na abordagem da violência: uma antiga, que a atrelou a paixões tristes, pois ela separaria uma coisa de sua potência natural, mudando a identidade da coisa; e outra moderna, quando ela foi atrelada a paixões alegres, pois aproximaria as coisas de sua potência ainda não desenvolvida, através de mudanças. Por fim, destacarei uma terceira etapa contemporânea, quando a violência conheceu a sua forma desapaixonada, nem triste nem alegre: só banalizada e técnica.

Somos violentos. É preciso começar assim. Mais do que assumir que há violência na sociedade, no mundo e na história, como se estes fossem distintos do próprio homem, precisamos enunciar na primeira pessoa do plural que nós mesmos somos violentos. Talvez até isso seja pouco, e tenhamos que enunciar a sentença, cada um de nós, na primeira pessoa do singular, a fim de evitar sua queda na generalidade abstrata da qual nos excluiríamos como particularidade concreta. Eu sou violento. Reconhecê-lo está distante de qualquer confissão de culpa moral. Pois a violência, em pelo menos um sentido, não é uma opção, não é um arbítrio moral, mas constitui ontologicamente o modo de ser do homem. Na medida em que somos, nós somos violentos. Podemos tentar sê-lo o menos possível, mas estamos, aí, assumindo a necessidade de contrariar algo que há em nós. Não é essa a sabedoria do coro da tragédia Antígona, de Sófocles?

Há muitas maravilhas, mas nenhuma é tão maravilhosa quanto o homem. Ele atravessa, ousado, o mar grisalho, impulsionado pelo vento sul tempestuoso, indiferente às vagas enormes na iminência de abismá-lo; e exaure a terra eterna, infatigável,

deusa suprema, abrindo-a com o arado em sua ida e volta, ano após ano, auxiliado pela espécie equina.

Ele captura a grei das aves lépidas

e as gerações dos animais selvagens;

e prende a fauna dos profundos mares nas redes envolventes que produz, homem de engenho e arte inesgotáveis[2].

Os versos iniciais anunciam que o homem é o mais maravilhoso, porém o que se segue é uma enumeração das violências desse ser maravilhoso, como se justamente elas explicassem tal maravilha. Ele captura e prende, atravessa e exaure. Ele modifica tudo à sua volta. Nada fica como estava. Ele perturba o que seria uma ordem diferente na sua ausência. Por isso, já se traduziu a definição do homem como to deinotaton não apenas por maravilhoso, mas por espantoso e estranho. Diante da familiaridade quieta da natureza guardada em si própria, o homem insere uma estranheza, na medida em que, para viver, ele a domina e a altera. Isso é o espantoso – para o bem e para o mal. Isso é o maravilhoso, é o extraordinário. Rompe a monotonia cíclica da repetição ordinária. É ain­ da, em mais uma outra tradução, o simplesmente digno de temor. Essa ambivalência é a dificuldade de se tratar da violência. Ela é maravilhosa e terrível.

No coro de Sófocles, a violência da presença humana na Terra é oriunda de seu próprio ser. Não é dada uma fonte passional específica para justificar tal presença. Implicitamente, contudo, é oferecida uma definição da violência. Ela é perturbação. O homem perturba a natureza, ou seja, altera o seu destino, nela intervém. Sófocles está então “evocando atividades humanas propositadas que violentam a natureza por conturbarem o que, na ausência dos mortais, seria a eterna quietude do ser-para-sempre”, observou a filósofa Hannah Arendt, “que descansa ou oscila dentro de si mesmo”[3]. Independentemente de paixões específicas, o homem seria violento, só pelas empreitadas de sua vida mortal na Terra. Na filosofia grega, Aristóteles cunhou um conceito de violência no qual ecoa a passagem de Sófocles (e no qual, como ocorre com a tragédia, fica fora a dimensão social do assunto). Foi ao tratar da física que o pensador tematizou a violência. Haveria um primeiro tipo de movimento, que ele chama de natural: é quando uma pedra se desprende e cai para baixo ou o fogo queima e a fumaça sobe. Nesses casos, tais coisas ocuparam os lugares que lhes correspondem: o pesado foi à terra e o leve foi ao ar. No segundo tipo de movimento, ocorre algo distinto: por exemplo, quando atiramos uma pedra com a mão para o alto. Esse tipo de movimento é qualificado por Aristóteles como violento, porque faz a pedra seguir um curso diferente do que seria o da sua natureza. Ou seja, aqui, a violência é, mais uma vez, perturbação, alteração da natureza[4].

Violento é, na origem da tradição ocidental, o que contraria a natureza, portanto. Seja no âmbito simplesmente físico, como tratado por Aristóteles, ou no âmbito mais amplo do homem, como tratado por Sófocles, a violência é uma oposição à organização natural de um indivíduo ou da totalidade cósmica. Em suma, a violência é considerada um abalo que desarranja certa configuração já dada, chamada de natureza. O seu agente por excelência é o homem. Mesmo a pedra tem seu movimento natural violentado pela ação humana. Entretanto, há algo curioso aí. O homem é responsável pela violência à natureza só na medida em que a violência constitui a sua própria natureza. É como se o homem fosse, paradoxalmente, um violento desvio natural diante da natureza.

Mais importante que o agente da violência, contudo, é a identificação, aí feita, da violência com a mudança. Violência seria transformar a terra e alterar o movimento da pedra. O homem, se é um ente violento, o é na medida em que colide com uma ordem estática ou repetitivamente cíclica. Houve, entretanto, um grande pensador, ainda na Grécia antiga, que concebeu a própria natureza – tudo o que existe – governada por um tipo de violência. “De todas as coisas a guerra é pai, de todas as coisas é senhor”[5], escreveu Heráclito. Noutros termos, o combate (em grego, o polemos, de onde vem polêmica) é o princípio de todo ser. Tudo o que existe já obedece à tensão de contrários em movimento, sendo qualquer harmonia oriunda disso, não de um ideal estático. Por isso, Heráclito pôde acolher a mudança em seu pensamento, o que era quase um tabu para o pensamento grego, voltado para a eternidade imóvel.

Na filosofia antiga hegemônica, a associação entre violência e mudança achava sua confirmação no repúdio a ambas. Platão tinha horror à mudança, já que ela denunciaria a falta de identidade fixa do que quer que fosse. Mudando, uma coisa deixa de ser o que é e passa a ser outra. Logo, a verdade escaparia de nós quando há mudança, uma vez que essa verdade não é mais do que o ser de alguma coisa. Daí que Platão a procure em um céu de ideias eternas, e nunca no mundo empírico onde o tempo corrói a estabilidade e a consistência do ser das coisas, a começar pela morte do próprio homem. Ora, a violência, se atrelada à mudança, faz parte do mundo passageiro, por isso nem sequer tem relevância ontológica maior para Platão, sob esse aspecto tão diferente de Heráclito e mais próximo, como se sabe, de Parmênides, entre os pré-socráticos.

Nesse contexto, os gregos costumaram conceber que violentariam, sem problemas, a natureza e mesmo os bárbaros estrangeiros e os escravos, porém nunca os próprios gregos. No contato com a alteridade, fosse ela a natureza em relação ao homem ou outra cultura em relação à grega, a violência seria aceita. Já no contato com a identidade de si mesmo, a violência seria interditada. Isso, em última instância, suscitou o nascimento da política e da metafísica gregas, da democracia e da filosofia. Em um caso a persuasão argumentativa do debate público e no outro caso a autoridade autoimpositiva da verdade eram, ambas, alternativas à prática violenta no convívio dos gregos com os próprios gregos. Conforme anotou Hannah Arendt:

Quando Platão começou a considerar a introdução da autoridade no trato dos assuntos públicos na pólis, sabia que estava buscando uma alternativa para a maneira grega usual de manejar os assuntos domésticos, que era a persuasão, assim como para o modo comum de tratar os negócios estrangeiros, que era a força e a violência[6].

Vê-se que, na origem da nossa cultura ocidental, a política e a filosofia nasceram como formas de evitar a violência, uma pela discussão persuasiva entre iguais via linguagem e a outra pela descoberta de um ideal regulatório universal verdadeiro para todos.

Embora haja, desde o próprio Platão aliás, um conflito entre a solidão do filósofo na procura da verdade teórica e a interação dos políticos na busca de decisões práticas, ambos fundamentam seus comportamentos na razão como a chance de evitar a violência da coerção física. No caso da filosofia, a desavença com a política vinha da ameaça de que ela ficasse refém da retórica dos sofistas – falseadora da verdade e por isso frágil para resistir à violência. Isto é: Platão, em especial após ver o mestre Sócrates condenado violentamente à morte pela cidade ateniense, descreu da justiça da razão política contra a violência. Seria preciso, então, um critério de verdade superior, mais consistente, permanente, a ser encontrado não no debate persuasivo, e sim na ideia absoluta através da razão filosófica. Por isso, ao imaginar a sua cidade ideal em A república, Platão exigiu que filósofos se tornassem reis e reis se tornassem filósofos[7]. O governo da cidade obedeceria à ideia e à verdade. Este seria o modelo metafísico para a organização do mundo comum, um padrão correto, eterno e imune à mudança para formar o Estado – a salvo, portanto, de manipulações efêmeras.

Na era moderna, entretanto, a mudança experimentou uma valorização sem precedentes. Tradicionalmente, ela foi pensada como contrária à perfeição natural, que seria eterna ou cíclica. Era imperfeição, falta de acabamento final, uma incompletude no tempo – posta em contraste com a eternidade divina. Só que o século XIX depois de Cristo, frente ao que determinara a tradição forjada no século IV antes dele, mudou o valor da mudança. Ela deixou de ser contrária à perfeição e virou o modo pelo qual a humanidade poderia chegar à perfeição. Sim, nós seríamos imperfeitos e só por isso precisaríamos mudar. No entanto, esse seria justamente o caminho para passar da ignorância à verdade, ou seja, das agruras de um presente precário até um futuro utópico. O nome disso foi história. O cristianismo a concebera como queda na imperfeição mundana, já a modernidade viu nela uma chance para o homem erguer-se por suas próprias forças até a perfeição futura. O poeta mexicano Octavio Paz explicou a revolta do futuro pela qual a época moderna separava-se da época clássica.

Subversão dos valores cristãos que foi também uma verdadeira conversão: o tempo humano para de girar em torno do sol imóvel da eternidade e postula uma perfeição que não está fora, mas dentro da história; a espécie, não o indivíduo, é o sujeito da nova perfeição, e a via que se oferece para realizá-la não é a fusão com Deus, mas a participação na ação terrestre, histórica. Pelo primeiro, a perfeição, atributo da eternidade segundo a escolástica, insere-se no tempo; pelo segundo, nega-se que a vida contemplativa seja o mais alto ideal humano e se afirma o valor supremo da ação temporal. Não a fusão com Deus, mas com a história: é esse o destino do homem. O trabalho substitui a penitência; o progresso, a graça; e a política, a religião[8].

É fácil adivinhar que a elevação moderna da mudança a motor na busca histórica da felicidade humana teria, como efeito, a transformação do valor da violência, já que as duas estavam atreladas em nossa tradição. O significado da violência, associado ao da mudança, passará a ser eminentemente criativo. Ou seja, a modernidade permanece atada ao vínculo tradicional entre mudança e violência, mas altera o valor filosófico desse vínculo, que passa de pejorativo a benéfico. Tal alteração é acompanhada por uma outra: a contemplação quieta e passiva da perfeição metafísica do ser eterno é substituída pela ação agitada e movimentada da história concreta do devir temporal. O pensamento, que um grego como Platão sonhara não ser violento, ameaçava tornar-se, pela primeira vez desde os antigos talvez, menos importante do que a ação violenta.

Karl Marx, no século XIX, é o pensador mais emblemático dessa inversão da hierarquia tradicional entre contemplação e ação. Segundo a tese final sobre Feuerbach, “os filósofos só interpretaram o mundo de diferentes maneiras; do que se trata é de transformá-lo”[9]. Contrariando a tradição que dera ao filósofo a tarefa suprema de pensar o mundo para conferir-lhe inteligibilidade através da verdade, Marx assevera que não é disso que se trata. Pois a tarefa realmente importante é outra: mudar o mundo. Ora, sua posição só faz sentido porque ele habita o horizonte moderno, no qual a mudança tem valor benfazejo, portanto, a ação que a traz também; enquanto pensar, sendo uma contemplação passiva, carece de tal dignidade histórica, pois deixa tudo como está. Filosofar carece do espírito revolucionário transformador de que estaria impregnado o agir. Não deve espantar, sendo assim, que Marx tenha escrito, numa célebre passagem de seu O capital, que “a violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova”[10]. Se a tradicional vinculação entre a violência e a mudança continua válida na era moderna, então quando Marx afirma que se trata de transformar o mundo é muito coerente que, ao mesmo tempo, assuma a necessidade da violência em tal transformação. Mais ainda, a metáfora usada revela que o nascimento do novo, como o de qualquer criança que vem ao mundo, depende da violência, embora ela não seja sua causa. Ela é só a responsável por deixar vir ao mundo aquilo de que ele estaria grávido, mas que o seu equilíbrio pacífico postergaria. Em suma, a violência é destruidora na mesma medida em que é criadora: morre a velha sociedade e surge, no seu lugar, uma nova.

Evidentemente, essa violência seria, para Marx, específica, distin­ guindo-se daquelas, bem mais frequentes, que visam apenas a manter o mundo como ele está. Em O capital, são mencionadas “reacionárias medidas de violência”[11] e citadas condições violentas do trabalho assalariado. Destaca-se delas, porém, a violência revolucionária. Se aquelas são positivas, ou seja, confirmam os dados positivamente existentes da sociedade, esta é uma potência negativa, ou seja, uma força que criticamente negará tais condições instituídas. Foi assim que o capitalismo ultrapassou a etapa feudal no passado e apenas assim o socialismo poderia suplantar o capitalismo no futuro. Dialeticamente, a violência tem um papel presente de destruição negativa frente ao passado, mas porque é assim que se edificará o futuro, realizando-se a verdadeira humanidade.

Essa dinâmica moderna, a rigor, já havia sido diagnosticada por Hegel, o mestre de Marx. Ele via, em 1807, ao escrever a Fenomenologia do espírito, uma ruptura do presente moderno na história: o passado submergia e dava lugar ao “sol nascente, que revela num clarão a imagem do novo mundo”[12]. Haveria uma violência dialética no movimento progressivo do mundo em direção ao novo. O clarão da história depende da ruptura que o presente faz com o passado para o futuro emergir. Ruptura essa que não é pacífica, como a própria palavra sugere, mas violenta. São as contradições em luta que fazem a história avançar, evoluir, melhorar. O passado é a tese, é a tradição dada. O presente seria a antítese, que se opõe ao passado e é realizada concretamente pela revolução, cujo protótipo seria a França de 1789. O futuro seria a síntese conciliadora, utópica.

Na Ciência da lógica, Hegel definiria o papel da violência em seu sistema filosófico. Olhamos a violência, empiricamente, como a atividade de um sujeito sofrida passivamente por outro, tornado assim seu objeto passivo. Essa relação nem precisa ser entre pessoas. Por exemplo: na dinâmica histórica, caberia ao presente o papel de sujeito ativo a violentar o passado passivo. Reconhecemos, dessa maneira, que a violência é uma potência, mas falhamos em compreender que o presente e o passado são as partes de um mesmo processo total, que eles não são duas dimensões autônomas da realidade e do ser. Eles constituem uma unidade. Sem tal compreensão, enxergamos a violência como imposição de um indivíduo sobre outro estaticamente, quando ela é a maneira através da qual o processo de desenvolvimento da totalidade da verdade histórica se cumpre. Ou seja, a violência é a potência pela qual o próprio violentado pode deixar de ser o que ele, de todo jeito, não mais poderia continuar a ser, transformando-se no que ele tinha que vir a ser. O veredicto da lógica de Hegel é bem direto: “ao que padece da violência, não é apenas possível fazê-la a ele, senão que esta lhe deve ser aplicada”[13]. Em bom português, o violentado tem o que merece, para Hegel. O agente da violência impõe ao paciente somente o que necessariamente tinha que vir dali: sua trans­ formação. Nesse sentido, a violência contra um objeto só é estranha a ele de uma perspectiva que não compreende a sua situação como parte de um todo que exige que ele fique para trás, que ele seja superado; esse é seu “destino”[14], afirma Hegel. Portanto, a negatividade violenta, ao matar uma parte, faz viver o destino necessário da totalidade verdadeira.

Nesse sistema, a violência aparece quando adotamos um ponto de vista relativo, seja o do sujeito que violenta, seja o do objeto violentado. Entretanto, o ponto de vista final do processo absoluto faz desaparecer a suposta violência, pois nada de estranho foi, na verdade, imposto pelo sujeito ao objeto[15]. Diga-se, aliás, que, para Hegel, a violência verdadeira, não apenas aparente, é a da cisão entre sujeito e objeto, entre o si mesmo e o outro, é a “separação mútua”[16]. Isso a tal ponto que o promotor da violência a faz pois, como o violentado, está em uma realidade contraditória, fissurada e cindida, na qual o outro aparece como a alteridade. Portanto, a violência destrói o outro (a tese), mas não pela vitória do destruidor (a antítese), e sim pela vitória da identidade universal dialética justa entre os dois (a síntese). Some o antagonismo.

Ideologicamente, esse esquema foi apropriado, várias vezes, pela direita e pela esquerda políticas durante a época moderna para justificar a violência[17]. Pois Hegel ofereceu a legitimação conceitual da violência prática (embora isso só valesse retrospectivamente, para ele, e não prospectivamente, isto é, valeria na compreensão do que já aconteceu, e não no planejamento do que ainda não aconteceu). Tal violência é como o espírito abole a contradição que o faz sofrer, alcançando, lá no fim, uma unidade pacífica consistente ideal. “Há uma fatídica monstruosidade nesse estado de coisas”, acusou aí Hannah Arendt, “processos invisíveis engolfaram as coisas tangíveis e todas as entidades individuais”, ela afirma, “degradando-as a funções de um processo global”[18].

Eis aí o problema. Hegel só enxerga o particular destruído pela violência com a perspectiva da ideia geral e, por isso, nada tem a lamentar da sua morte – ela é a vida do todo reconciliado. O idealismo reina absoluto. Nada vale por si. Tudo é submetido ao processo universal. Povos e culturas atrasados diante do espírito do tempo devem perecer, sofrendo, através da violência, a mudança que o progresso histórico exige para seu avanço. Na história universal, o direito à existência é exclusivo dos que com ela evoluem. Outros devem ser superados, pois representam uma etapa vencida da totalidade do processo global, segundo a descrição dos Princípios da filosofia do direito[19]. Conforme observou Vittorio Morfino, “estes, ao sofrer violência, não fazem outra coisa que tornar executiva a sentença do tribunal da história”[20]. Na medida em que a história é regida por uma lei necessária de mudança, a violência encarna essa lei.

Marx, por conta de seu enfático materialismo, é mais sensível à violência contra os particulares do que Hegel. É mais atento ao que é imediatamente por ela destruído. Contudo, por ainda endossar uma história concebida de maneira universal e progressiva, permanece próximo de He­ gel quanto ao significado da violência. Ela tem uma dimensão libertadora e revolucionária, possui o papel decisivo de extrair o novo dialeticamente do velho, de parir da barriga grávida da antiga sociedade a nova gestada. O reconhecimento dessa violência marcou a modernidade no fim do século XVIII e no XIX, chegando até o XX.

O comentário corrente segundo o qual “dar esmola atrasa a revolução”, por exemplo, finca raiz em uma interpretação, ainda que simplória, marxista. O que é atestado no comentário é que diminuir o sofrimento particular imediato do indivíduo que recebe a esmola – bem como o alívio da consciência moral do indivíduo que a oferece – somente postergaria o acirramento das contradições entre oprimidos e opressores, entre prole­ tariado e burguesia, o que seria ruim, tendo em vista que tal luta entre a classe que vende a sua força de trabalho e a classe que é dona dos meios de produção levaria, ela sim, até uma verdadeira e violenta transformação na totalidade sistêmica do capitalismo.

Tanto para Hegel como para Marx, tudo se passa como se só através da violência pudéssemos mudar e só através da mudança pudéssemos obedecer a um destino teleológico que nos carregaria até o futuro no qual – finalmente – a violência cessaria, pois, sendo esse futuro um ideal utópico perfeito, nada mais precisaria ser mudado nele. Hegel o chama de Estado da liberdade, e Marx, de sociedade sem classes. Ora, se a história é, segundo Marx, a história da luta de classes, ou seja, da luta, da violência, é claro que, numa sociedade sem classes, tampouco há luta, já que os adversários em litígio – as classes – aí deixariam de existir. Conceitualmente, como preferiria expressar-se Hegel, isso significa que as contradições deixariam de existir, que alcançaríamos o fim da história, mas que isso é mais apote­ ótico que apocalíptico, já que então sim o espírito poderia seguir em paz, sem necessidade de violência e de mudança, em uma bem-aventurança idílica e divina – embora realizada na Terra. É como se a violência aparente se prestasse a solucionar a violência, mais profunda, da alienação cindida entre os homens, causa verdadeira de toda dor e de todo sofrimento.

No final do século XIX, encontramos em Friedrich Nietzsche ainda um canto de enaltecimento da violência como forma de movimento e mudança, embora em sentido muito diferente de seus predecessores Hegel e Marx. Ele declarava, diretamente, como era seu estilo, “não a satisfação, mas mais poder; sobretudo não a paz, mas a guerra”[21]. Inspirado na sabedoria antiga de Heráclito, como o próprio Hegel, aliás, Nietzsche via o combate como pai de todas as coisas, isto é, a guerra em tensão como princípio vital. Sua aprovação da guerra é aprovação da própria dinâmica que caracterizaria a vida, em oposição à morte – repare-se que até mesmo aí temos um contraste em guerra: entre vida e morte. Nietzsche chegou a escrever que “abster-se de ofensa, violência, exploração mútua” seria, se tomado como “princípio básico da sociedade”, apenas “vontade de negação da vida, princípio de dissolução e decadência”[22]. É, como a passagem de Além do bem e do mal[23] esclarece, uma abstenção, uma negação, uma privação o que ocorre com a vida sem os movimentos que implicam violências. Tudo que vive, conclui Nietzsche, “terá de ser a vontade de poder encarnada, quererá crescer, expandir-se”. Resumindo, a violência está do lado da vida e a tentativa de fazê-la desaparecer obedece ao niilismo de ideais ascéticos na história metafísica do Ocidente que sempre desqualificaram a vida, desde Platão. E até quando?

Segundo Nietzsche, até sua própria época. Nisso, ele se destaca, de uma vez por todas, de Hegel e de Marx. Se os acompanha no elogio à violência como forma de mudança, Nietzsche separa-se deles ao afirmá-la não somente como uma fase ainda menos evoluída da humanidade presente, que será superada ali adiante, em um futuro de perfeição e paz que nos aguarda. Tanto Hegel quanto Marx aprovavam a violência revolucionária porque, através das mudanças por ela trazidas, a humanidade escaparia de sua imperfeição até a perfeição. Logo, violência e mudança tinham um estatuto curioso: expunham a imperfeição da humanidade presente mas, ao mesmo tempo, eram as formas de superá-la. Não para Nietzsche. Sua aprovação da violência é autônoma de qualquer finalidade ulterior, é independente de qualquer ideal futuro de perfeição. Ela não tem fim, no duplo sentido do termo: nem tem objetivo nem acabará um dia. É apenas o modo de ser da vida. Movimento. Com Nietzsche, a violência e a mudança são, como para Platão, signos de imperfeição, mas isso é a própria vida, e portanto a sua negação futura, como Hegel e Marx pensaram, tampouco é viável.

Em toda parte sonha-se atualmente, inclusive sob roupagem científica, com estados vindouros da sociedade em que deverá desaparecer o “caráter explorador” – a meus ouvidos isto soa como se alguém prometesse inventar uma vida que se abstivesse de toda função orgânica. A “exploração” não é própria de uma sociedade corrompida ou imperfeita e primitiva: faz parte da essência do que vive, como função orgânica básica, é uma consequência da própria vontade de poder, que é precisamente vontade de vida[24].

Esse clima passará ainda ao começo do século XX. Os desafios estéticos iconoclastas das vanguardas em relação à tradição clássica expressaram-se, muitas vezes, na apologia da violência. Leia-se o Manifesto faturista, de Marinetti. “Lançamos este manifesto de violência agitada e incendiária”[25], anuncia. Ele incita os seus leitores a, literalmente, meter fogo logo nas bibliotecas. O ímpeto é destrutivo. Toda beleza estaria na luta, e nenhuma obra-prima seria desprovida de caráter agressivo. O elogio da tecnologia e da indústria moderna acha-se na conjugação com o sentido criativo que exige a destruição da tradição. É a ambivalência da violência: aniquilação e invenção. O ideal clássico harmônico e equilibrado era deixado para trás, em prol de agilidade, estranheza e choque – os novos valores artísticos. No futurismo, isso ganha corpo no elogio da guerra. “Nós queremos glorificar a guerra”[26], grita Marinetti. Era 1909. E a guerra veio. Literalmente: a Primeira Guerra Mundial. Depois dela, o mundo não seria o mesmo. Nem a violência.

Ninguém expressou com mais força e eloquência o sentimento da época após a Primeira Guerra Mundial do que Walter Benjamin em um famoso texto de 1933, chamado “Experiência e pobreza”. O crítico pensava em sua geração, que, entre 1914 e 1918, viveu uma das mais terríveis experiências da história. Nesse sentido, a guerra marcaria um limiar incontornável entre o período moderno e um outro, que poderíamos chamar de contemporâneo.

Nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a ex­ periência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano. Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem[27].

Eis aí a possível chave para abrir a compreensão da violência atual: seu caráter técnico. Digo “possível chave”, pois, quanto à violência contemporânea, nosso pensamento não pode ser senão tateante. Nenhuma chave é garantia de abertura. Mesmo assim, arrisco dizer que – se a abordagem antiga da violência a atrelou a paixões tristes, pois ela perturbaria a ordem natural, e a moderna a atrelou a paixões alegres, pois sua perturbação nos levaria até uma ordem que ainda não existia – a singularidade da violência contemporânea foi ter passado a existir também de forma desapaixonada, banalmente técnica. Onipresente, tal violência, contudo, não é natural, orgânica e vital, como pensaram Heráclito ou Nietzsche. Sua essência é tecnológica, é a lógica da técnica (por isso, tampouco é a violência como meio puro, com legitimidade independente de fins, que o próprio Benjamin, uma década antes, identificou em greves gerais proletárias de caráter anárquico, desinteressadas do direito instituído e instituinte – e por isso revolucionárias[28]). Trata-se da violência fruto do citado desenvolvimento monstruoso da técnica que sobrepujou o homem, pois ela não serve mais a ele, como tradicionalmente. Ele é que serve a ela, engatado numa engrenagem que não pode parar, pois o movimento sem fim (sem telas) é sua lei tácita.

O problema da violência técnica é que ela nem se reconhece como tal nem é facilmente identificável. Totalmente aderida ao funcionamento da sociedade, é nova e discretamente insidiosa. “Hoje poderíamos acrescentar a última e mais formidável forma de tal dominação: a burocracia, ou o domínio de um sistema intrincado de departamentos nos quais ne­ nhum homem”, notou Hannah Arendt no seu Sobre a violência, “pode ser tomado como responsável, e que deveria mais propriamente chamar-se domínio de Ninguém”[29]. Escrito no fim da década de 1960, o ensaio é profético sobre a situação atual, ao comentar que, se a teoria política tradicional definira a tirania como um governo que não presta contas sobre si mesmo, o domínio abstrato da técnica no qual os sujeitos desaparecem é tirânico, já que não há alguém nele que possa ser questionado e responder sobre o que é feito. “É este estado de coisas, que torna impossíveis”, conclui Hannah Arendt, “a localização da responsabilidade e a identificação do inimigo”. No mais, Sobre a violência continuou preso à abordagem tradicional da violência como mero instrumento, como meio para um fim exterior[30].

Foi em outro momento que Hannah Arendt chegou perto de perceber a novidade da violência contemporânea. Quando tratou do julgamento de Adolf Eichmann, o responsável pela logística do transporte de judeus aos campos de concentração nazistas, ela constatou algo bem peculiar. Eichmann não parecia, ao falar da violência que perpetrara, tomado por paixão, nem mesmo por ódio. Responsável, junto a outros, pelo holocausto, ele desempenhava o seu papel ali só como funcionário, trabalhador, burocrata. Não parecia ser ideologicamente mais convicto dos mitos nazistas que outras pessoas. Nenhuma fonte passional ou compromisso com finalidade objetiva explicam o mal por ele praticado. Pelo contrário, o desligamento de paixões demoníacas e das responsabilidades pelo fim do processo ao qual estava atrelado determina sua mentalidade. Por isso, Eichmann, em sua defesa, alegou não que ignorava para onde os trens levavam os judeus, mas que ele apenas os colocava nos trens, sem ser responsável pelo destino e, portanto, culpado de tais mortes. Desligado de paixão ou teleologia, o mal estaria solto para ser cometido de forma banal, embora, em si mesmo, não fosse banal, e sim terrível[31]. Mais terrível por depender só da banalidade.

Seria possível fazer uma analogia e afirmar que a banalização totalitária do mal tornou-se, contemporaneamente, a banalização técnica da violência. Ela desprendeu-se da necessidade de sujeitos e de emoções: das paixões que antes a moviam. Tornou-se independente e impessoal, via tecnologia. Os artefatos de guerra pós-modernos (que dão ao atacante-operador, mas não ao atacado, uma guerra limpa e distante, semelhante à dos jogos de videogame) alegorizam essa forma atual da violência. Se Eichmann não foi particular nem apaixonadamente mal ao trabalhar para o nazismo – o que não tira sua responsabilidade moral e legal -, nós não precisamos de fontes passionais intensas para a colaboração na violência técnica e sistemática ser efetiva. O paralelo tem lá suas imperfeições, mas auxilia a destacar a autonomia contemporânea da violência burocratizada perante as paixões, coisa que nem o racionalismo moderno de Hegel imaginou, pois, para ele, a violência de ação revolucionária acontecia com as paixões dos homens[32]. O domínio atual do Ninguém não é triste nem alegre, pois só Alguém poderia ser triste ou alegre. Esse domínio é desapaixonado, e daí a sua inaudita eficácia. Embora ainda haja a violência apaixonada, a especificidade da época é sua anônima liberdade das paixões humanas. Literalmente, é desumana.

Em nossa época, portanto, as respostas antigas (via política e filosofia) e moderna (via história) à violência parecem não dar mais conta do problema.

Os gregos acreditavam que a política conteria disputas pela força física entre cidadãos somente na medida em que usasse a linguagem persuasiva fundada na razão e na verdade. Contudo, há agora, como constatou o filósofo italiano Giorgio Agamben, “uma forma de violência – totalmente desconhecida na antiguidade – que consiste precisamente na introdução maciça da mentira na[ …] política”[33]. Isso (cujo exemplo é a publicidade) destruiu a identificação da arena política à não violência. Hannah Arendt nota o mesmo problema na hipocrisia política[34]. Cabe acrescentar que,

quando não é a mentira que corrompe o debate, há outro empecilho: a própria linguagem, submetida à técnica, tornou-se especializada e fechada, incapaz de fazer jus à vocação pública. Refém da linguagem técnica ao discutir o mundo técnico, a política foi reduzida ao gerenciamento com­ petente da sociedade e à administração da vida (assim como a violência).

Se a política, no sentido grego, deixou de ser uma forma convincente de evitar a violência contemporaneamente, tampouco a filosofia, naquele sentido grego, o é. O problema, aqui, é a crise atual da autoridade, atestada por Hannah Arendt[35]. Pois a verdade foi sua vítima, já que foi posta em xeque a ideia de um princípio universal e racional, a servir de padrão para a organização comum e pacífica do mundo público, aceita por todo cidadão, como queria Platão. Não se trata, é claro, de lamentar nostalgicamente a falta da autoridade tradicional; só de reconhecê-la – e o seu efeito enquanto alternativa perdida à violência.

Essa situação histórica atual, que deixou de comportar as saídas antigas para o problema da violência, também não a redime pelo progresso da história, como a modernidade. É que a violência teria seu sentido modernamente salvo apenas porque contribuiria, dialeticamente, para a edificação de um futuro no fim dos tempos, no qual ela mesma deixaria de existir. Kant entendia a cobiça e o desejo de dominar, a insociável sociabilidade e antagonismos, como “passos que levarão da rudeza à cultura”[36]. Essas violências eram os instrumentos das mudanças necessárias para a humanidade evoluir até o futuro sonhado. Só que hoje o futuro não nos insufla esperança otimista, mas temor. Seu signo é a crise ecológica com as previsões de um fim, agora apocalíptico, da humanidade.

Nesse cenário, a Primeira Guerra Mundial, como se disse, foi um marco. Não por ter sido mundial somente, mas por ter atingido, como nunca antes, populações civis, borrando a fronteira que separava onde a violência era legítima, por estar na guerra, e onde não era, por estar fora dela. E mais: tal guerra foi baseada na técnica e na razão, em artefatos modernos e em planejamento. Os fundamentos da ciência e das luzes fugiam da conta original de progresso e paz do século XVIII, eram transportados para o lado oposto: da violência e da guerra do século XX.

Portanto, a sociedade que prometera evoluir pelo autoesclarecimento, e então construir um mundo justo e feliz no futuro, encontrou seu destino pelo avesso. Descobriu, como acusou Benjamin em 1940, que “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento de barbárie”[37]. Sem objetivo e sem teleologia finalista, as violências e as guerras não teriam mais a redenção moderna futura. Eram só a barbárie, em vez de materialização da negatividade destruidora necessária para a criação progressiva. O otimismo iluminista virou pessimismo sombrio. Na Segunda Guerra Mundial, “gritos dos assassinados ecoaram a pouca distância das universidades”, como observou o ensaísta George Steiner, “o sadismo aconteceu a uma quadra dos teatros e museus”[38].

Essas violências e guerras, entretanto, foram absorvidas como partes da técnica. É uma nova e perversa redenção do seu sentido, pois reduz tal sentido a uma função sem um futuro, diferente do que fazia a modernidade. O ponto é que, no horizonte da técnica, tudo não passa de fundo de reserva ou de energia para alimentar a sua própria engrenagem, o seu próprio processo – que apenas ideologicamente ainda recebe o nome de progresso, pois perdeu o horizonte de futuro ao qual estaria destinado, ficando sem telos, sem objetivo que não seja o de se manter funcionando. Ora, se tudo é fundo de reserva, o próprio homem o é também. Benjamin havia cantado a bola: a técnica sobrepujou o homem. Não deve espantar, nesse contexto, que o vocabulário contemporâneo se expresse, sem pudor, falando de material humano, capital humano e recurso humano. Ou seja, o humano está assumidamente a serviço da técnica que, certa vez, em um passado muito, muito distante, pensamos estar a nosso serviço. Tornamo-nos o material empregado para a técnica funcionar, o capital para o mercado jamais interromper seu fluxo, o recurso que mantém a máquina azeitada. Não surpreende que – cansados, exaustos – sintamos que não podemos parar.

Concluindo. Com a violência técnica, a guerra deixa de ser a continuação da política por outros meios, como queria a formulação clássica de Clausewitz, e é a política que passa a ser a continuação da guerra por outros meios. O fator que tornou possível essa inversão foi a diluição da fronteira que diferenciava a violência da não violência. Martin Heidegger – que, na Introdução à metafísica, em 1935, enalteceu que a violência “é o caráter essencial do próprio vigor que impera”[39] -, ao interpretar os versos de Sófocles com os quais abri este ensaio, apontou a técnica como o horizonte histórico contemporâneo mais do que qualquer outro autor. Isso alterou seu diagnóstico sobre a violência. Pois a lógica técnica dilui a solidez da distinção tradicional entre presença e ausência da violência, alterando o que sabíamos dela. Desde que compreendemos o ser de tudo o que é a partir da técnica, então os entes (as coisas) tornaram-se, por sua vez, fundo de reserva para uma maquinaria infinita, inclusive nós mesmos. Nessa armadura, a diferença entre guerra e paz perdeu todo seu sentido, como Heidegger escreveu assustadoramente ainda na década de 1950.

As guerras mundiais constituem a forma preparatória da marginalização da diferença entre guerra e paz[…]. Para além da guerra e da paz, existe apenas a errância do uso e abuso dos entes no autoasseguramen­ to das ordens, oriundo do vazio propiciado ao se deixar o ser. Alteradas em desvio de essência, “guerra” e “paz” são absorvidas pela errância, desaparecendo no simples curso do fazer potenciador das atividades à medida que se tornam irreconhecíveis em sua diferença. A pergunta – quando haverá paz? – não pode ser respondida. Não porque não se possa prever a duração da guerra, mas porque a pergunta se faz sobre alguma coisa que não mais existe. A guerra não é mais aquilo que pode chegar à paz. A guerra tornou-se uma aberração do uso e abuso dos entes, que progride na paz e em paz. Contar com uma guerra de longa duração é somente uma forma antiquada em que se reconhece a novidade da era do abuso. Longa em sua duração, essa guerra não se encaminha lentamente para uma paz como nos tempos antigos, mas sim para uma situação em que não mais se faz a experiência da guerra como tal, e também tudo o que se refere à paz tornou-se sem sentido e inconsistente. A errância não conhece nenhuma verdade do ser[40].

  1. Baruch de Spinoza, Ética, Belo Horizonte: Autêntica, 2007, pp. 181-99.
  2. Sófocles, “Antígona”, A trilogia tebana, Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 215.
  3. Hannah Arendt, “O conceito de história – antigo e moderno”, em: Entre o passado e o faturo, São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 71.
  4. Aristóteles, Física, Madrid: Editorial Credos, 1995, p. 215a. Edição brasileira: Física I e II, Campinas:

    Editora da Unicamp, 2009.

  5. Emanuel Carneiro Leão (org.), “Heráclito”, Os pensadores originários, Petrópolis: Vozes, 1999, p. 73.
  6. Hannah Arendt, “O que é autoridade?”, op. cit., pp. 130-1.
  7. Platão, A república, Belém: Edufpa, 2000, p. 264 (473d).
  8. Octavio Paz, Os.filhos do barro, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, pp. 49-50.
  9. Karl Marx, A ideologia alemã, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 103.
  10. Idem, O capital, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 370.
  11. Ibidem, p. 60.
  12. G. W F. Hegel, Fenomenologia do espírito parte I, Petrópolis: Vozes, 2000, p. 26.
  13. Idem, Ciencia de la lógica, Ciudad de México: Solar, 1982, p. 258. Edição brasileira: Ciência da lógica, São Paulo: Barcarolla, 2011.
  14. Ibidem, p. 386.
  15. Ibidem, p. 408.
  16. Ibidem, p. 393.
  17. O elogio à violência feito por Jean-Paul Sartre na segunda metade do século XX tem esse feitio, assim como, em menor grau, algumas considerações de Slavoj Zizek no século XXI.
  18. Hannah Arendt, “O conceito de história – antigo e moderno”, op. cit., pp. 95-6.
  19. G. W F. Hegel, Princípio da filosofia do direito, São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 309.
  20. Vittorio Morfina, ”A sintaxe da violência entre Hegel e Marx”, Trans/Form/ Ação, São Paulo, 2008, vol.

    31, n. 2, p. 28

  21. Friedrich Nietzsche, O anticristo, São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 11.
  22. Idem, Além do bem e do mal, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 171.
  23. Sou grato ao protessor Oswaldo Giacoia Junior pela indicação da passagem aqui em questão.
  24. Ibidem, p. 171.
  25. F. T. Marinetti, “Manifesto do futurismo”, em: Gilberto Mendonça Teles (org.), Vanguarda europeia e modernismo brasileiro, Petrópolis: Vozes, 1997, p. 92.
  26. Ibidem.
  27. Walter Benjamin, “Experiência e pobreza”, em: Magia e técnica, arte e política, São Paulo: Brasiliense,

    1994, p. 115.

  28. Walter Benjamin, “Crítica da violência – Crítica do poder”, em: Documentos de cultura, documentos de barbárie, São Paulo: Cultrix/Edusp, 1986, p. 169.
  29. Hannah Arendt, Sobre a violência, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 33.
  30. Ibidem, p. 37.
  31. Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
  32. G. W F. Hegel, “Nada de grande acontece sem paixão”, em:Jacques d’ Hondt (org.), Extratos seleciona­ dos de Hegel, Lisboa: Edições 70, 1984, p. 104.
  33. Giorgio Agamben, “Sobre os limites da violência”, Sopro, out. 2012, n. 79, pp. 1-2.
  34. Hannah Arendt, op. cit., p. 49.
  35. Idem, “O que é autoridade?”, op. cit., p. 145.
  36. Immanuel Kant, Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 8.
  37. Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”, em: Magia e técnica, arte e política, op. cit., p. 225.
  38. George Steiner, Linguagem e silêncio, São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 15.
  39. Martin Heidegger, Introdução à metafísica, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p. 172.
  40. Idem, “A superação da metafísica”, em: Ensaios e conferências, Petrópolis: Vozes, 2002, pp. 80-1.

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