1990

A água e o mel

por José Américo Motta Pessanha

Resumo

A questão do prazer – em seu contraponto com a dor – surge na obra de Platão estreitamente vinculada aos desdobramentos e mutações da dialética. Em seu ímpeto ascensional, inspirado pelo método hipotético dos geômetras, a dialética platônica é sustentada, no Fédon, a partir de considerações sobre o binômio prazer/dor: o prazer que Sócrates começa a experimentar, na prisão, ao ter o tornozelo desacorrentado, em preparação para a morte. O incessante jogo entre contrários sempre interligados – prazer/dor, vida/morte – dá início à construção do eixo vertical que Platão inaugura na “geografia do pensamento” (Deleuze). Pode-se, assim, traçar um itinerário ascendente que conduz do prazer (e da dor) às essências ou “ideias” eternas, passando pela hipótese da imortalidade da alma e apontando, em última instância, para a perfeita Beleza (Banquete) e o perfeito Bem (República). É que a precária positividade do prazer físico – à semelhança da precária beleza dos corpos – sugere a existência de um plano modelar de positividade plena, embora intemporal a incorpórea. Eis por que o caráter ascensional desse primeiro momento da dialética platônica é acompanhado pelo ascetismo ético-religioso (Fédon).

Na etapa final do pensamento platônico, animada pela dialética descendente – que aprofunda a relação entre essência incorpórea e objeto físico, entre modelo e cópia – a questão do prazer e da dor ressurge, reformulada. No Filebo, em oposição às teses de outros socráticos – megáricos, cínicos e cirenaicos –, Platão apresenta uma concepcão renovada de “ideia”: agora entendida, para além da moldura eleática, como um misto. Nesse platonismo que já desenvolvera os temas do intermediário, da mediação e do liame (desmos), a questão do prazer e da dor recebe novo tratamento. E o bem que então é abordado não é mais a superessência intemporal do Bem da República, outra precária nomeação do absoluto Um: é, antes, o bem-para-o-homem, o bem relativo e mutável das escolhas cotidianas, o bem da ética, não o anti-hipotético vislumbrado pela ascendente metamatemática. Esse bem, ligado às vicissitudes da existência humana, é mostrado, no Filebo, não como unidade homogênea, mas como complexidade intrínseca, como misto também, vinculado à “vida misturada”. Sua mistura resulta da bem dosada reunião dos ingredientes fornecidos por duas fontes: a água “austera e salutar” da fonte da sabedoria, o mel da fonte do prazer.


À memória de Alberto Coelho de Souza — psicanalista, filósofo, amigo.

ABERTURA

Assistimos, no interior da obra de Platão, ao confronto entre duas formas de desejo: de um lado, o desejo enquanto aspiração, enquanto anelo, a remeter a alma, ascensionalmente, na direção de sua condição originária; de outro lado, o desejo enquanto apetite, que crava a alma no corpo, prendendo-a à horizontalidade da imediatez, do factual, do empírico. O primeiro é impulso de liberação, o segundo aprisiona. O primeiro é nostálgico anseio de retorno à incorporeidade pura, apontando para alhures; o segundo persegue vorazmente, na sofreguidão do corpóreo, o aqui e o agora. Cada qual subentende um tipo de vínculo com a temporalidade e associa-se a uma espécie de memória. Mais: esse embate entre desejos voltados para objetos de diferente natureza — um, o claro objeto da aspiração, o outro, o obscuro objeto dos conturbados apetites — cria uma tensão permanente, que ultrapassa o nível psicológico e se desdobra nos planos epistemológico, ético, político, constituindo um dos focos irradiantes da sempre reaberta construção do platonismo.

A luta entre as duas formas de desejo — justa filosófica decisiva, que Platão apresenta sob várias modalidades e em diferentes níveis — expressa-se numa encruzilhada semântica onde ressoam questões médicas, fisiológicas, cosmológicas. Do lado do desejo-aspiração ou desejo-anelo situa-se o que no homem é dependência orgânica do pneuma ápeiron, o ar infinito que, segundo Anaxímenes de Mileto (séc. VI a.C.) e, mais próximo de Platão, Diógenes de Apolônia, constitui a origem e o fundamento de todas as coisas;[1] do lado do desejo-apetite encontra-se o que no homem é visceral e reclama reiteradamente satisfação momentânea. No primeiro, o modelo fisiológico é a respiração, que garante a vida na medida em que insere o homem, permanentemente, na amplidão volátil e ritmada do cosmos que, ele próprio vivo, respira; no segundo, o paradigma — mostra Platão no Filebo — é a urgência intermitente, episódica, da sede e da fome.[2]
É o que confirmam os significados mais remotos de alguns nomes do desejo: “Apetite” (lat. appetitu, equivalente ao sentido do vocábulo grego órexis) refere-se basicamente á vontade de comer, ao plano fisiológico da digestão, aos reclamos das vísceras e, em acepção ampliada, à sensualidade, à lubricidade.

Para outra direção aponta a palavra “aspiração” (lat. aspiratione), que os dicionários definem como “desejo intenso de alcançar um objetivo, um alvo, um fim”, mas que é, fundamentalmente, absorção, pois “aspirar” (lat. aspirare) é “atrair matéria gasosa aos pulmões”, sorver, respirar, soprar. “Aspiração” pode significar também “som produzido pelo sopro de ar que acompanha a emissão de determinadas consoantes” ou, ainda, em música, “o espaço menor de pausa quando se respira”. Aqui, como se vê, desejo se vincula a ar, respiração, sopro, alento, voz, fala, canto, música — enfim, a essa animação do corpo que sugere a presença de uma anima, uma alma-pneuma, arfante, falante, cantante, linguajeira. Na mesma direção do sutil e do volátil — ao encontro de realidades aeriformes que tendem a assumir, no limite, a incorporeidade — apontam as palavras “anelo” (lat. anhelu), e “anelar” (lat. anhelare), pois anelo é anseio, enquanto anelar é desejar ardentemente, mas também ofegar, respirar com dificuldade.[3]
Por esses nomes do desejo-aspiração perpassa um ímpeto ascensional, plenamente desvelado pela constelação de palavras que gravita em torno do termo latino desiderium, como o vocábulo português “desiderato”, que designa o desejado, o objeto do desejo (do lat. vulgar desidiu).

A espessura semântica de desiderium — é importante assinalar — abriga um vector temporal, que remete ao passado: desiderium é também saudade, nostalgia. Percebe-se, portanto, a existência de um liame subterrâneo, radical — atado nas raízes das palavras — entre desejo, altitude e nostalgia, que faz de certo tipo de desejo a aspiração de retorno a altitudes perdidas. Esse desejo é o da recuperação de um paraíso perdido num outrora e num alhures não propriamente de antes, mas do alto: desejo de regresso ao reino da imortalidade e da atemporalidade, ao Aion, ao divino sempre, às alturas dos astros-deuses. Por isso, a volta não se cumpre no tempo da rememoração, na horizontalidade da memória do passado, no resgate retrospectivo do anterior, na busca de momentos ou causas antecedentes. A volta não é através da história ou da cosmogonia, às quais Platão recusa estatuto epistêmico.[4] A volta é subida, ascese dialética movida por anamnesis: reminiscência do sempre, retorno ao mundo das ideias, às causas paradigmáticas e eternas.[5] Não retrocesso ao arcaico, mas escalada em direção ao arquetípico. E é justamente para efetivar essa ascese e escapar do labirinto terreno que a alma desenrola o fio da voz e (re)constrói uma linguagem articulada e límpida, sopro harmonioso, flauteio ritmado pela medida e pela proporção: matemática ou música, dupla face da mesma linguagem alante, manifestações intrinsecamente associadas da mesma alma-sopro, do mesmo “diafragma-pensamento”. [6] Ou, mais além: filosofia, essa metamatemática, essa “mais alta música” que Sócrates compõe ao longo da vida (Fédon, 61 a), esse amor à sabedoria que é também ardiloso e insaciável amor à beleza imortal (O Banquete, 207 d/212 a).

Note-se ainda: desiderium envia a sidéreo, a sideral; sidereus é “pertencente aos astros”, enquanto “siderar” significa fulminar (por um raio: de Zeus?). Existe, assim, na nostalgia contida em todo anelo, o apelo de pátria distante, o chamado de uma estrela: Ítaca das alturas. O tema é mítico antes de filosófico, é órfico-pitagórico antes de platônico.[7] Mas é Platão que o trabalha, glosa, amplia e aprofunda incessantemente, colocando-o no centro de seus múltiplos exercícios filosóficos, para legá-lo, multifacetado, à cultura ocidental. O tema é o do ideal distante, permanente horizonte valorativo do real, sempre perseguido e sempre fugidio: aspiração e ideal são sinônimos. O tema é o da nostálgica insatisfação que alimenta várias formas de utopia. O não-lugar da utopia não é um permanente alhures?

No Crátilo , Platão mostra a função da alma-sopro: sua presença é causa da vida do corpo, ela o refresca e lhe propicia a faculdade de respirar (399 d/e). Mais adiante (400 c), jogando com as palavras soma (corpo) e sema (túmulo, mas também signo), afirma ser o corpo o túmulo/signo que encarcera a alma. Dele é que a alma-voz deve se libertar para remontar ao plano das significações puras, incorpóreas, atemporais, incontingentes: ao mundo das significações essenciais, às ideias ou essências que habitam no além-do-signo, no além-da-imagem, no além-das-linguagens. A reconquista dessa plenitude de significação — de significação real — efetiva-se por meio das etapas prescritas pela dialética platônica, que hierarquiza modos de conhecimento e de linguagem correspondentes a diferentes tipos de objeto: os patamares da ascese. Esse retorno constitui uma reversão do olhar que se desengana, que se desvia dos simulacros e do ilusionismo do empírico — reino de sombras, artefatos simuladores e luzes artificiais — e busca a luz real, emanada de um sol de bem e de verdade, que brilha no mais alto.[8]
Trata-se, porém, de árduo e demorado retorno, mostra Platão em mitos que elabora a partir da herança órfico-pitagórica. A demora é inerente ao ritmo da volta através da temporalidade aprisionante. A alma que recobra as asas percorre uma via ascensional de purificação e des-ilusão. Assim: demoradamente, de morada em morada, atravessando as moradas dos corpos que provisoriamente habita, em sucessivos avatares, sucessivas metensomatoses. O desejo-aspiração, que impulsiona nostalgicamente para o alto, incita a alma-sopro a escapar dos cárceres — temporais e temporários — da corporeidade, fazendo-a exercitar, em, linguagens alantes — música, matemática, filosofia —, a ultrapassagem dos signos que tendem a prender os significados em cadeias empíricas de significantes, para afinal — in extremis — voar rumo ao sentido puramente no ético, perene, essencial, luminosíssimo — e etéreo. Esse alvo derradeiro — ao mesmo tempo sede da significação real procurada por nosso intelecto e cidadela da beleza plena perseguida por nosso amor — está inscrito no fundo da alma exilada sob a forma de anelo do mais e do melhor. Surge de dentro do sentimento de falta, do senso de incompletitude; aparece pelo avesso, como falha, insatisfação, carência. Decifrado, esse oráculo interior que se manifesta enquanto ausência e negação, aponta de longe para a existência do objeto erótica e intelectualmente desejado, remete à positividade plena da beleza-em-si e do não-hipotético. Sócrates reconhece: o vazio interior promete a plenitude, a via da sabedoria parte da consciência do não-saber, da consciência da ignorância, do só saber que nada se sabe.[9] Por sua vez, os oráculos que falam nos santuários exteriores, como em Delfos, prescrevem: o caminho de volta ao mais alto, à claridade apolínea, inicia-se no mergulho interior, no “conhece-te a ti mesmo”, no conhecer-se — traduz o Sócrates de Platão — por meio do aclaramento do significado das palavras. Este, portanto, o duplo-e-mesmo exercício que traça o itinerário de regresso às altitudes originárias: exercício da alma que procura em si sua significação e sua verdade através da busca dos significados verdadeiros de sua fala, exercício da linguagem que persegue em si mesma sua significância, sua própria alma.

A persistência do desejo-aspiração, expressa no contínuo anseio humano pelo melhor, pelo mais claro e compreensível, pelo mais justo, pelo mais belo — constante arfar — advém da profundeza de sua fonte — a incompletitude intrínseca à condição da alma decaída — e da lonjura de sua meta: o sempre adiado encontro com seu objeto de direito. Mas resulta também do esforço de progressiva sincronia com o ritmo sereno da respiração cósmica e de progressiva sintonia com a harmonia musical da alma do mundo. [10] Por isso, a persistência do delongado retorno deve aliar-se à heróica paciência que faz Sócrates, no Fédon (61 c/62 a), desejar cumprir integralmente não apenas a lei dos cidadãos atenienses que o condenaram à morte, mas sobretudo sua própria moira, seu destino-missão, seu caminho de volta até o fim, até a cicuta silenciadora.[11] Eis por que ele se recusa tanto a antecipar o emudecimento de sua fala[12] — seu sopro anímico, seu logos aspirante — quanto a fugir da prisão[13] ou a abreviar, pelo suicídio[14] a libertação de sua alma do corpo-cárcere.

Ao contrário, o desejo-apetite, a órexis marcada pela urgência, é impaciente e imediatista. Comandado pelas vísceras e orientado pelos sentidos, arrítmico, exige satisfação inadiável, prazer já. Confunde o bem com o agradável. Mas, justamente por isso, retarda o regresso da alma à pátria estelar, prendendo-a à cadeia do sensível que apenas lhe oferece o aqui e o agora. Introduz, pela entrega à imediatez, o esquecimento das origens: o esquecimento em lugar da anamnesis, da reminiscência do essencial. O prazer — certo tipo ou dose excessiva de prazer, exemplifica Sócrates e demonstra Platão — pode tornar-se, assim, causa da submissão voluntária do prisioneiro à prisão, causa do mórbido apego ao túmulo, ao criar a ilusão de que o agradável de agora é já o bem último, de que um bem-qualquer é já o bem-em-si. Essa imanência ao empírico representa a perda do estimulante senso de transcendência: transcendência das essências e do bem em relação aos objetos físicos (de conhecimento e de desejo). A alma torna-se pesada, incapacitada de voar e de prosseguir a ascese dialética. Aderindo a algum tipo de simulacro que supõe ser já o modelo, o prisioneiro cessa o esforço de fuga e jaz cativo da caverna. Sobretudo a magia das imagens — particularmente as belas e prazerosas — pode prender a alma, oferecendo-se como simulações de essências. Esse o perigo da arte ilusionista, maga Circe. Esse o perigo da encantação das sereias, que simulam, com seus cantos, o final da odisseia da alma, o festivo retorno à ítaca real.[15] O embate entre aspiração e apetite, entre o desejo do aqui e o desejo do alhures, permite-nos discernir o verdadeiro sentido do idealismo platônico, enquanto preeminência do ideal em relação ao “real” imediato, do modelo em relação à cópia, do paradigma em relação à sua provisória e precária imitação concreta, da significação plena em relação aos signos inevitavelmente parciais e incompletos de sentido, do condicionante em relação ao condicionado, do absoluto em relação ao hipotético, da justa medida — justeza e justiça, na matemática, na ética, na política — em relação ao valor aproximado.[16] Ou: da alma em relação ao corpo. A caracterização e a interligação desses dois planos complementares, sintetizadas na relação sensível/inteligível, são as inesgotáveis tarefas que Platão se propõe. Por sua própria natureza, o empreendimento é infindável. Afinal, o que pretende — e se torna exercício perene de filosofar, insaciável amor à sabedoria — é o estabelecimento das vias que vinculam ser e dever-ser, perfazendo a imprescindível distância entre fato e direito, entre a dispersão do empírico e a compreensividade unificadora do racional. Essas vias em permanente construção/desconstrução/reconstrução são um duplo-e-mesmo caminho de ida e volta, de subida e descida, que Heráclito já indicara como sustentador da tensão que alimenta a chama eternamente viva do cosmos: tensão entre a unidade do logos e a multiplicidade de “todas as coisas”.[17] Em Platão, esse caminho se apresenta como duas vertentes da dialética: a ascendente, que parte do sensível inumerável e busca sua unificação inteligível por meio de hipóteses hierarquizadas, à semelhança das construções do “método dos geômetras”[18] até a hipótese condicionadora mais ampla (a existência de arquétipos, ideias, formas ou essências), por sua vez sustentada pela unidade incondicionada, não-hipotética, da super essência do Bem; a descendente, que, por meio de dicotomias sucessivas, deslinda a complexidade inerente às essências e, hierarquizando gêneros e espécies, pro cura estabelecer o modo de vinculação ou participação das ideias entre si e, finalmente, o modo como o singular se liga ao universal, o corpóreo ao incorpóreo, o temporal ao eterno.

Importante assinalar: tanto a dialética ascendente quanto a descendente atravessam a questão do desejo, que desponta da relação pendular entre prazer e dor. É que a dimensão ética, intrinsecamente aliada à política, está sempre presente no platonismo. A dialética platônica não visa apenas ao conhecimento verdadeiro e ao desmonte das ilusões: procura fundamentos estáveis para a ação justa. Afinal, a filosofia ocupa, em Platão, o espaço aberto pela “ação entravada”:[19] o projeto, desde a juventude, de participar da vida política, mas refreado pelo ensinamento e pela morte de Sócrates. O ensino e o exemplo do mestre apontaram a necessidade de se aclarar, primeiro, “o que é” a ação correta, qual o significado da areté ou virtude política;[20] a vida e sobretudo a morte comprovaram a inexistência de regimes políticos justos, pois a oligarquia dos Trinta Tiranos perseguira e a democracia assassinara o melhor e mais justo dos homens. Restava, assim, o ideal de construir uma nova pólis, regida pela justeza/justiça e pela proporcionalidade, onde o governante fosse um sábio à semelhança do pitagórico Árquitas de Taranto,[21] onde a razão se sobrepusesse à insensatez e ao passional, onde o prazer fosse controlado pela medida, onde Apolo contivesse Dioniso. E onde o justo — não réu, mas juiz e métron da cidade — pudesse viver.

Particularmente, em dois diálogos, os temas do prazer, da dor e do desejo aparecem aliados respectivamente à formulação da dialética ascendente e da dialética descendente: no Fédon e no Filebo. Mas o tempo que separa a composição das duas obras — o Filebo é um dos últimos diálogos escritos por Platão — determina profundas alterações nas propostas do platonismo. Pode-se até supor que, enquanto o Fédon ainda se dedica a defender o mestre, pintando seu último retrato, suas derradeiras conversações, sua morte, seu testamento filosófico, o Filebo apresenta o platonismo do próprio Platão, distanciado de premissas eleáticas e mesmo socráticas, após a crise e o “parricídio” expressos no Parmênides.

Primeiro movimento:

“FÉDON” — O CANTO DO CISNE

Há na obra de Platão um convite-desafio: que reorientemos o pensamento, retirando-o da banal horizontalidade da relação causa-efeito (causa antecedente enquanto determinante, como nas explicações genéticas e historicistas), para direcioná-lo verticalmente, buscando a causa na exemplaridade atemporal do ” alto” , no paradigma. Deleuze vê nessa mudança do eixo construtor da filosofia a grande marca impressa pelo platonismo no pensamento ocidental: o pensar como ascensão.[22]

Rafael Sanzio pinta o convite de Platão. No afresco realizado em 1509/11, na Stanza della Segnatura do Vaticano, e depois denominado A Escola de Atenas, lá estão, majestosos, no meio de outros filósofos gregos — mas ocupando o lugar central na cena simetricamente construída, como a estabelecer uma encruzilhada —, Platão e Aristóteles. O discípulo segura numa das mãos sua Ética, enquanto a outra parece indicar o baixo, o chão, o aqui, o mundo concreto e imediato. Já Platão carrega seu famoso Timeu, que contém longo mito cosmogônico (pois sobre o mundo físico e sua gênese não há ciência, apenas conhecimentos prováveis, expressos em narrativas tecidas por imagens que visam à constituição de uma simbólica coerente). Com a outra mão, porém, num gesto multiplamente interpretável, oferece a alternativa: aponta o alto. Aponta o teto, o céu? Na verdade, aponta para além, sempre para mais além. Pois aponta o além do próprio afresco, o além da pintura, o além da imagem, o além de qualquer representação, o além dos mitos, o além dos objetos físicos e de todas as linguagens que neles se fundamentam na tentativa sempre malograda de dizer o sentido pleno, essa verdade, essa promessa.

Sabe-se, no entanto, que a verticalização do eixo de construção da verdade é a retomada por Platão, no nível filosófico, de um modelo que provém do pensamento arcaico. Mostra Detienne: Platão situa-se na linhagem dos arcaicos mestres da verdade — poetas inspirados, o rei de justiça, o adivinho. A palavra desses mestres, independente da aceitação dos demais homens, expressa a alétheia, a verdade atemporal, resgatada pela memória do sempre. Essa verdade vive em permanente luta com léthe, o esquecimento, e com apáte, a astúcia, o engano. É essa oposição que, no nível filosófico, vai reaparecer na relação entre epistéme (ciência) e doxa (opinião), alimentando o combate entre Sócrates/Platão e os sofistas.[23] Assim, segundo Detienne, já no pensamento arcaico aparecem as duas vias contrapostas, que depois ressurgem nos pitagóricos, em Parmênides e em Platão. Mais: desde então, a via do esquecimento e do engano é identificada à via do prazer (hedoné), enquanto

(…) a via da salvação é a via do esforço; é a via do meléte, da longa askésis, do exercício de memória. A outra via é a do prazer, do vício, do Esquecimento. Uma é rude e escarpada; a outra é plana e fácil, pois, uma vez nela, o homem se deixa levar pela inclinação natural, por seu gosto pelo prazer.[24]

A oposição entre as duas vias e a exaltação do caminho de askésis constituem o eixo central do Fédon. O diálogo apresenta os últimos momentos vividos por Sócrates, na prisão, à espera da cicuta, cercado de seguidores e amigos. São as últimas falas do mestre — o logos filosófico in extremis, a encarar de frente e de perto seu limite. São as últimas falas, antes do silêncio. Com extraordinário senso dramático,[25] Platão insere a cena num jogo de ritmos que se entrelaçam, de movimentos que se envolvem e se intercondicionam, de ciclos que se complementam. E de tempos que se entrecruzam: Sócrates está há muito tempo na prisão. Aguarda-se a volta do navio que fora em peregrinação a Delos, cultuar Apolo e Ártemis, em homenagem a Teseu, o herói ateniense que vencera o Minotauro de Creta. Enquanto o navio não regressa, a Cidade não pode ser maculada pela execução de qualquer condenado. Mas, afinal, o navio retorna, trazendo o dia da morte. O tempo do discurso filosófico — do discurso de Sócrates, o filósofo — é, assim, um tempo de espera, que pode se transformar em tempo de esperança. O logos filosófico que se desdobrara na espera, agora vai partir: nau rumo ao desconhecido, após a chegada do navio que atravessara águas de mito. Eis então o último dia, a última luz, a última fala, o último canto. Está prescrito: a filosofia condenada deve calar-se antes que o Sol se ponha, antes que o carro incendiado de Apolo se oculte no horizonte. Luz apolínea ela também, como Teseu ela também adversária da violência e das trevas, seu final deve coincidir, ritmado pelo percurso cósmico da luz, com o fim do dia. Por isso, o logos socrático declina com o Sol do dia derradeiro: o discurso filosófico, em seu heliotropismo, é, in extremis — em última instância — um sol poente.

Mas o canto final não é de tristeza: é de esperança. O próprio Sócrates compara sua fala ao canto do cisne, ave de Apolo, dotada de dom divinatório:

Provavelmente porque são aves de Apolo, possuem um dom divinatório, e é a presciência dos bens existentes no Hades que os faz, no dia de sua morte, cantar de modo tão sublime, como jamais o fizeram no curso anterior de sua existência. Ora, eu, quanto a mim, penso ter a mesma missão que os cisnes, creio que estou consagrado ao mesmo Deus, que os cisnes não me superam na faculdade divinatória que recebi de nosso Soberano, e que, do mesmo modo, não sinto mais tristeza do que eles ao separar-me desta vida. (85 b)

O que adivinha o cisne Sócrates? A possibilidade da luz após a escuridão, a aurora depois da noite. Quem sabe, a vida depois da morte? Por isso, a primeira parte do Fédon é praticamente um longo discurso: longo solo, canto tecido pela alma-pneuma prestes a evolar-se. Para “justificar a esperança” (63 c) — esperança de sobrevivência da alma —, Sócrates utiliza uma série de argumentos,[26] cantando seu ar, sua belíssima ária.[27]

Mas é indispensável acompanhar o itinerário desse canto-sol-poente desde o início. A narrativa dramática de Platão mostra que o começo — e não é sempre o mesmo, entre os mortais? — é dado pelo tema do prazer e da dor. Fédon, que conta a Equécrates os últimos momentos de Sócrates, revela que o tema estava no ar, envolvendo todos os presentes:

— Enquanto estive ao lado de Sócrates minhas impressões pessoais foram, de fato, bem singulares. Na verdade, ao pensamento de que assistia à morte desse homem ao qual me achava ligado pela amizade, não era a compaixão o que me tomava. O que eu tinha sob os olhos, Equécrates, era um homem feliz: feliz, tanto na maneira de comportar-se como na de conversar, tal era a tranquila nobreza que havia no seu fim. E isso, de tal modo que ele me dava a impressão, ele que devia encaminhar-se para as regiões do Hades, de para lá se dirigir auxiliado por um concurso divino, e de ir encontrar no além, uma vez chegado, uma felicidade tal como ninguém jamais conheceu! Por isso é que absolutamente nenhum sentimento de compaixão havia em mim, como teria sido natural em quem era testemunha duma morte iminente. Mas o que eu sentia não era também o conhecido prazer de nossos instantes de filosofia, embora fosse essa, ainda uma vez, a natureza das nossas conversas. A verdade é que havia em minhas impressões qualquer coisa de desconcertante, uma mistura inaudita, feita ao mesmo tempo de prazer e de dor, de dor ao recordar-me que dentro em pouco sobreviria o momento de sua morte! E todos nós, ali presentes, nos sentíamos mais ou menos com a mesma disposição, ora rindo, ora chorando […][28]

E é o próprio Sócrates que faz aflorar o tema da “mistura inaudita”, da pendulação permanente dos dois opostos inseparáveis. Primeiro, por meio da eloquência muda da mão, no gesto de esfregar a perna que fora desacorrentada.[29] Em seguida, pela fala:

Quanto a Sócrates, sentara-se no leito e, tendo encolhido a perna, esfregava-a fortemente com a mão. E enquanto a esfregava dizia-nos: “Como parece aparentemente desconcertante, amigos, isso que os homens chamam de prazer! Que maravilhosa relação existe entre sua natureza e o que se julga ser seu contrário, a dor! Tanto um como a outra recusam ser simultâneos no homem; mas procure-se um deles — tenhamos preso um deles — e estaremos sujeitos quase sempre a encontrar também o outro, como se fossem uma só cabeça ligada a um corpo duplo! Parece-me, mesmo, que Esopo, se nisso tivesse pensado, teria composto uma fábula a esse respeito: a Divindade, desejosa de lhes pôr fim aos conflitos, como visse frustrado seu intento, amarrou juntas as duas cabeças; e é por isso que, onde se apresenta um deles, o outro vem logo. É, assim, que se me afiguram as coisas: devido ao grilhão, há pouco sentia dor na minha perna, e já agora sinto prazer! “. (60 b/c)

A reversibilidade dor/prazer, prazer/dor abre caminho para a alternância compensadora dos pares de opostos, que já Anaximandro de Mileto descrevia como pagando uns aos outros as injustiças cometidas na ordem do tempo. Assim, se a morte nada mais for que “separação da alma e do corpo” (64 c), pode-se bem esperar que à relação vida/morte suceda seu reverso: morte/vida. Eis por que filosofar consiste em “preparar-se para morrer” (64 a), em libertar a alma do entrave do corpo (65 b), para viver plenamente e poder conhecer “o justo em si mesmo”, “o belo em si”, “o bom em si” (65 d): as essências ou formas eternas, o real verdadeiro.
Nesse ponto do platonismo — ou é ainda o socratismo? — a hipótese dualista se expressa de modo radical, reeditando as duas vias descritas no poema de Parmênides: a da verdade perfeita e fechada em si mesma como uma esfera, verdade absoluta e divina (enunciada por uma deusa: a Razão?); a das opiniões múltiplas e divergentes dos “mortais de duas cabeças”. De um lado, o caminho da pureza e da retidão — pureza do só pensar, que alcançaria a pureza das essências; de outro, o caminho da mistura das mutáveis e sinuosas impressões dos sentidos. De um lado, a alma e seu desejo de verdade; de outro, o corpo e sua demência. No Fédon, Sócrates afirma (o que passará, com frequência, a ser identificado com a mensagem de todo o platonismo, sobretudo à luz do comentarismo cristão): legítimo e permanente é o desejo da alma de conhecer a verdade plena, absoluta, divina. Mas esse desejo exige purificação, ascese, ascetismo, mortificação dos sentidos e, no limite — morte, morte do corpo:

Sim, é possível que exista mesmo uma espécie de trilha que nos conduz de modo reto, quando o raciocínio nos acompanha na busca. E é este então o pensamento que nos guia: durante todo o tempo em que tivermos o  corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos! Ora, esse objeto é, como dizíamos, a verdade.

[…] Se, com efeito, é impossível, enquanto perdura a união com o corpo, obter qualquer conhecimento puro, então de duas uma: ou jamais nos será possível conseguir de nenhum modo a sabedoria, ou a conseguiremos apenas quando estivermos mortos, porque nesse momento a alma, separada do corpo, existirá em si mesma e por si mesma — mas nunca antes.

[.. .] E quando dessa maneira atingirmos a pureza, pois que então teremos sido separados da demência do corpo, deveremos mui verossimilmente ficar unidos a seres parecidos conosco; e por nós mesmos conheceremos sem mistura alguma tudo o que é. E nisso, provavelmente, é que há de consistir a verdade. Com efeito, é lícito admitir que não seja permitido apossar-se do que é puro, quando não se é puro! (65 e/67 b)

O princípio preconizado por Empédocles de Agrigento, de que o semelhante conhece o semelhante, sustenta o dualismo defendido por Sócrates. O ódos, o caminho do conhecimento e da salvação, é a trilha que “conduz de modo reto”. Reto, correto — e ascensional. Pois conduz ao incorpóreo, à pureza da verdade essencial que habita além do corpóreo, no alhures. E, no entanto, reconhece Platão, o desejo-aspiração que tende à verdade pode ser amortecido por outro tipo de desejo, resultante da prisão da alma ao corpo: desejo que é fruto de ignorância e de esquecimento, da troca de alétheia por léthe. Explica Sócrates ao pitagórico Cebes:

[…] É uma coisa bem conhecida dos amigos do saber, que sua alma, quando foi tomada sob os cuidados da filosofia, se encontrava completamente acorrentada a um corpo e como que colada a ele; que o corpo constituía para a alma uma espécie de prisão, através da qual ela devia forçosamente encarar as realidades, ao invés de fazê-lo por seus próprios meios e através de si mesma; que, enfim, ela estava submersa numa ignorância absoluta. E o que é terrível nessa prisão, a filosofia bem o percebeu, é que ela é obra do desejo, e quem concorre para apertar ainda mais suas cadeias é a própria pessoa! (82 d/83 a)

Há, portanto, um desejo que faz da alma o carcereiro de si mesma. Absorvida inteiramente pelo jogo sensório entre agradável e desagradável, entre prazer e dor, é arrastada pelo corpo na direção do agora — e se esquece do sempre. Sócrates esclarece:

[…] Todo prazer e todo sofrimento possuem uma espécie de cravo com o qual pregam a alma ao corpo, fazendo, assim, com que ela se torne material e passe a julgar da verdade das coisas conforme as indicações do corpo. (83 d)

Materializada, cravada no corpóreo, desiste da ascese. Jaz na horizontalidade dos eventos e das sensações, já não aspira à verticalidade, à altura, à intelecção. Esquece: esquece as essências, o essencial. Anima o corpo, mas não se nutre a si mesma, noeticamente. Está toda entregue ao domínio dos simulacros da sensorialidade e julga, por isso, que o prazer é o supremo bem. O perigo contido nessa perdição — a alma que se perde de si mesma — não tem sentido apenas religioso e ético, mas também político. Ao combater persistentemente o hedonismo de sofistas, de outros socráticos (como os cirenaicos) e mesmo de amigos e companheiros de investigação científico-filosófica (como o matemático Eudoxo), Platão insiste em mostrar que a identificação do bem com o agradável e o prazer justifica o ilusionismo sofístico (de oradores e artistas) e a demagogia de todos que bajulam o gosto e a opinião do público. Não está aí a base da distinção entre uma retórica venal e perversa, e a outra — a filosófica — que se constrói em função do bem enquanto justa medida e que, assim, seria capaz de agradar e persuadir os próprios deuses (Górgias 453 a/460 c; Fedro 261 a/262 c)? A perda da perspectiva do bem como transcendente, normativo e fundamento dos paradigmas essenciais da realidade, não é, afinal, o que instaura o primado dos apetites e justifica a tirania, o predomínio do apetite do mais forte, a truculência do desejo sem a lei, como pretende a tese “realista” de Cálicles, que Sócrates com-bate?[30]

No Fédon, Sócrates vai ainda mais longe. Mostra que a oposição entre desejo-aspiração, de índole ascensional, e desejo-apetite, que deixa a alma aderente à corporeidade, traduz-se em dois diferentes modos de se explicar fatos e coisas, cada qual determinado por uma concepção de causa. O modelo explicativo que não se desprende do empírico é o tradicional: aquele que, para justificar o estado atual do cosmos, encadeia momentos ou fases de um suposto mesmo processo de transformação, a partir de um começo ou fundamento (a physis ou arké dos pensadores jônicos). Cada etapa decorreria da anterior, numa sequência horizontal que se constitui no “tempo” cosmogônico e no tempo cósmico. Causalidade e temporalidade se vinculam estreitamente: numa realidade constituída pela sucessão causal — racionalização das genealogias mitológicas —, predomina a causa antecedente, traduzida, no mundo físico, em causa mecânica. Eis por que o trabalho de compreensão do presente resulta em se percorrer retrospectivamente as cadeias cósmica e cosmogônica, refazendo — pelo pensamento, mas um pensamento que é memória do antes, do tempo passado — a história do mundo, rumo ao princípio da realidade. E, justamente por isso, toda cosmogonia é uma história, uma história que é lembrada e narrada: um mito, mostra Platão no Timeu. Desse modo, no pensamento pré-socrático, tudo seria predeterminado pela necessidade: a necessidade característica da causalidade físico-mecânica, feita da rígida cadeia de antecedentes e consequentes.

Também dessa cadeia, mostra Sócrates, a alma precisa se libertar: para encontrar-se a si mesma, enquanto alma aspirante, desejante do melhor, do mais inteligível, do mais belo, do mais justo. A causalidade necessitária do corpo e do mundo não basta para explicar as causas da alma. Por isso, Sócrates se decepciona com as teses filosóficas de Anaxágoras de Clazômena, representante do pensamento jônico, que esteve em Atenas no tempo de Péricles e afirmava que “o espírito é o ordenador e a causa de todas as coisas” (97 b). A decepção com Anaxágoras marca a ruptura de Sócrates/Platão com todo o modo de pensar filosófico anterior, levando à proposta de outra via de pensamento: a da ascese, a do estabelecimento do eixo causal vertical, que conduz à formulação da hipótese do “mundo das ideias” como decorrência da superposição de hipóteses interligadas pela relação condicionante/condicionado (à maneira do método utilizado pelos geômetras). Sócrates revela:

[…] Exultei acreditando haver encontrado em Anaxágoras o explicador da causa, inteligível para mim, de tudo que existe. Esperava que ele iria dizer-me, primeiro, se a terra é plana ou redonda e, depois de o ter dito, que à explicação acrescentasse a causa e a necessidade desse fato, mostrando-me ainda assim como é ela a melhor. Esperava também que ele, dizendo-me que a terra se encontra no centro do universo, ajuntasse que, se assim é, é porque é melhor para ela estar no centro. (97 d/e)

A expectativa do jovem Sócrates era de que o comando do espírito (Noús) instituísse no cosmos o finalismo (defendido por Diógenes de Apolônia). Se o princípio ordenador é uma inteligência, deveria agir inteligentemente, introduzindo na realidade uma inteligibilidade que permite a busca não apenas do como, mas sobretudo do para quê das coisas. A incoerência de Anaxágoras em não aliar a inteligência do princípio ordenador ao teleogismo decepciona Sócrates. Apesar do Noús o cosmos de Anaxágoras é regido pelo jogo de causas meramente mecânicas e corpóreas:[31]

[…] Bem depressa essa maravilhosa esperança se afastava de mim! À medida que avançava é ia estudando mais e mais, notava que esse homem não fazia nenhum uso do espírito nem lhe atribuía papel algum como causa na ordem do universo, indo procurar tal causalidade no éter, no ar, na água e em muitas outras coisas absurdas! (98 b/c)

Embora falando do espírito como a causa ordenadora de tudo, Anaxágoras não consegue dizer o que é melhor para a terra. Mais grave, porém, é não dizer o que é melhor para o homem, nem conseguir explicar, por meio de causas mecânicas, o fato de o homem aspirar ao melhor. O antropocentrismo da cultura grega desse momento (sobretudo em Atenas) — expresso filosoficamente pelos sofistas e por Sócrates — não se satisfaz com a dissolução do humano no processo cósmico de transformação da phlisis. A natureza do homem — mostram os médicos — possui reações físicas que lhe são peculiares e a distinguem do todo.[32] Incomensurável ao mundo físico — como um alógon[33]a “medida humana” não pode ser apreendida como um caso particular do corpo do mundo. Anaxágoras, apesar de falar do espírito, trata apenas desse corpo; não pode, portanto, dizer o que é melhor para a terra e muito menos o que é melhor para o homem, para a alma, para Sócrates:

[…] Parecia-me que ele se portava como um homem que dissesse que Sócrates faz tudo o que faz porque age com seu espírito; mas que, em seguida, ao tentar descobrir as causas de tudo o que faço, dissesse que me acho sentado aqui porque meu corpo é formado de ossos e tendões, e os ossos são sólidos e separados uns dos outros por articulações, e os tendões contraem e distendem os membros, e os músculos circundam os ossos com as carnes, e a pele a tudo envolve! (98 c/d)

Não é o corpo e sua causalidade mecânica que detêm Sócrates ali, não são causas físicas que imobilizam seus membros. Poderia, naquele momento, estar tranquilamente em Mégara, junto a seu amigo Euclides. Poderia ter fugido, como Anaxágoras fugiu de Atenas, para livrar-se do processo que contra ele foi instaurado.[34] E, no entanto, permanece ali, à espera da cicuta. É que, na verdade, está determinado por outro tipo de causalidade: por categóricos imperativos éticos, políticos, religiosos. Anaxágoras não sabe, mas ele, Sócrates, sabe o que é o melhor. E melhor, naquele momento, é ficar. E morrer. Pois o bem nem sempre é o agradável, o prazer do corpo: pode ser sua própria negação. Uma causalidade mecânica e necessitária não consegue dar conta do dever-ser, do nível axiológico em que o ético e o político, segundo Sócrates/Platão, se instituem. O reino dos valores se fundamenta noutra causalidade: verticalizante, normativa, paradigmática. Por isso, Sócrates está ali, com ossos, músculos e tendões imobilizados pela consciência do melhor, pela consciência do dever: as causas do espírito podem sobrepor-se à causalidade mecânica e às necessidades do corpo:

[…] Estou aqui porque os atenienses julgaram melhor condenar-me à morte, e por isso pareceu-me melhor ficar aqui, e mais justo aceitar a punição por eles decretada. Pelo Cão. Estou convencido de que estes tendões e estes ossos já poderiam há muito tempo se encontrar perto de Mégara ou entre os Beócios, para onde os teria levado uma certa concepção do melhor, se não me tivesse parecido mais justo e mais belo preferir à fuga e à evasão a aceitação, devida à Cidade, da pena que ela me prescreveu! (98 e/99 a)

Ao achar melhor cumprir a determinação da lei da Cidade e contrariar o que seria melhor e mais agradável para seu corpo, Sócrates proclama a transcendência do Bem. O bem que ele persegue em sua vida e sua ação transcende o bem da pólis e o bem do corpo, ambos relativos e contingentes. O bem para o corpo seria escapar da prisão, do sofrimento, da morte. O bem para Sócrates — enquanto alma que aspira ao bem-em-si — é, ao contrário, morrer, aceitando a pena imposta pela Cidade. Por outro lado, embora aparentemente o melhor para o filósofo coincida com o que a Assembleia dos heliastas achara melhor — que ele morra —, o melhor para Sócrates não é exatamente o que é melhor para Atenas. A Cidade acha melhor que ele morra porque culpado, Sócrates acha melhor morrer porque inocente. A diferença advém de que a lei da pólis real, histórica, é sempre circunstancial e mutável, enquanto o imperativo da consciência voltada para a justa medida ideal (o Bem) é dotado de necessidade atemporal, pois se constrói na retidão vertical da alétheia, não na transitoriedade do nomos (convenção) e na precariedade da doxa. A lei interior, da consciência iluminada pela busca do Bem, tem a imperativa majestade da lei arcaica, a thémis incondicional. Por isso, no nível factual, o melhor para Sócrates e o melhor para a Cidade parecem coincidir, mas estão distantes. Separa-os a distância ontológica existente entre thémis e nomos, entre absoluto e contingente. A categoricidade do imperativo ético transcende definitivamente a prática no nível social e político, já sabia Platão antes de Kant.

A aspiração humana pelo melhor, mostra Sócrates no Fédon, exige um modelo adequado de explicação causal. E é a descoberta desse modelo que Sócrates apresenta, após o relato de sua decepção com o modo horizontal-retrospectivo-mecanicista de teorizar. Trata-se de um novo caminho, agora ascendente, que lhe permitira “uma segunda excursão” (99 d) em direção à verdadeira causa. A causalidade desvelada pela ascese é capaz de explicar não apenas objetos físicos, fatos, eventos, dos quais são os modelos diversamente imitados, mas também — e sobretudo — valores, pois é a fonte ideal do dever-ser. É capaz de explicar o corpo de Sócrates com seus mecanismos, mas também — e sobretudo — a alma aspirante de Sócrates, com seu senso de missão ou dever e seu desejo imbatível de justiça. Ressurge, assim, no Fédon, a teoria das ideias (que já despontara em diálogos platônicos anteriores): as ideias ou essências, como causas atemporais e exemplares. E somente essa hipótese teórica serve para justificar a natureza da alma-anelo, como serve para justificar sua esperança de imortalidade:

[…] Não estou a enunciar nenhuma novidade, mas apenas a repetir o que, em outras ocasiões como na pesquisa passada, tenho me fatigado de dizer. Tentarei mostrar-te a espécie de causa que descobri. Volto a uma teoria que já muitas vezes discuti e por ela começo: suponho que há um belo, um bom e um grande em si, e do mesmo modo as demais coisas. Se concordas comigo, também admites que isso existe, tenho muita esperança de, por esse modo, explicar-te a causa mencionada e chegar a provar que a alma é imortal. (100 b)

A hipótese de que há modelos-em-si para todas as coisas surge, assim, como condição explicativa da aspiração, que existe na alma, pelo melhor, pelo mais belo, pelo mais justo. E remete a outra hipótese: a da imortalidade da própria alma. Pois se as essências eternas puderem ser (re)conhecidas, por meio da apreensão noética, puramente inteligível, que constitui o ápice da ascese, é porque a alma (sujeito incorpóreo desse tipo de conhecimento que ultrapassa o domínio do sensível) pode escapar das vicissitudes da corporeidade e da temporalidade: o semelhante conhece o semelhante. A reminiscência do sempre não pode ser um ato temporal: a reminiscência do que é imortal revela a imortalidade da alma. Porque deseja o melhor, o mais claro, a justeza e a justiça, a alma constrói as linguagens alantes, idealizantes, da matemática, da música, da filosofia; porque o ideal é a meta de sua aspiração, o semelhante que procura atingir — o Anteros amado que Eros amante busca (O Banquete) —, então a atemporalidade é sua moira, sua destinação, e a incorporeidade incorruptível e imortal sua etérea natureza. Platão sugere: se a matemática existe, se a música existe, se a filosofia existe — a alma é imortal. As hipóteses — o conhecimento enquanto reminiscência, a existência de ideias em si, a preexistência e a sobrevivência da alma em relação ao corpo — se entrelaçam e se reforçam. Mas não é isto que cabe aos humanos: vincular hipóteses numa trama ascendente, como tentativa de aproximação do absoluto?

Pelo menos é quanto basta a Sócrates, no Fédon, para justificar sua esperança de sobrevivência. A respeito do que virá depois, nenhuma certeza demonstrável e irretorquível. Com exemplar modéstia helênica, que recusa aos homens a desmesura, a ultrapassagem de sua medida, Sócrates — o filósofo — com a paciência do perfeito amante (da sabedoria), espera. E, enquanto espera, fala: falar, desenrolar seu discurso, o fio luminoso de seu logos, é seu modo de esperar e de urdir racionalmente a esperança. E porque resta algum tempo até a cicuta, é possível falar ainda — sempre hipoteticamente — sobre o que viria depois. O território da argumentação racional está, porém, exaurido. É a vez do mito: a última parte do Fédon é um mito sobre o destino das almas.[35] Mas, “já o sol estava próximo de recolher-se” (116 b). Chega a hora do ocaso: ocaso do sol, ocaso da fala. Serenamente — ressalta o texto de Platão —, Sócrates segura a taça e bebe o veneno. Suas derradeiras palavras são dirigidas a Críton: “Críton, devemos um galo a Asclépio; não te esqueças de pagar essa dívida” (118).

Críton ainda lhe pergunta se tem algo mais a dizer. Porém, […] a pergunta de Críton ficou sem resposta. Ao cabo de breve instante, Sócrates fez um movimento. O homem então o descobriu. Seu olhar estava fixo. Vendo isso, Críton lhe cerrou a boca e os olhos (118)”.

A boca finalmente — mas só então — cerrada. No ar, até hoje, oraculares, as últimas palavras, a provocar inúmeras interpretações.

Vale, todavia, lembrar: mais que adivinhar, como o cisne, a possibilidade da luz após a escuridão — da vida depois da morte —, o galo anuncia a aurora que desponta, como arauto do novo dia, da vitória da luz, do retorno de Apolo. Quanto a Asclépio, é o deus da medicina e da saúde, vencedor da doença — e da morte.

Talvez as últimas palavras de Sócrates falem de saúde, sejam uma saudação.

 

INTERMEZZO

O Fédon é um dos principais diálogos da chamada fase da maturidade de Platão, à qual pertencem obras como O Banquete e A República. É extremamente difícil, talvez impossível, dizer com precisão o que nessa fase ainda é pensamento socrático ou já é pensamento-platônico. A própria intenção do discípulo de ser o legítimo herdeiro e o fiel continuador do mestre — que o leva a polemizar constantemente com outros socráticos ditos “menores”: cínicos, megáricos, cirenaicos — aliada à construção dramática e aberta de seus escritos, dificultam a distinção entre Sócrates personagem histórico e Sócrates persona, máscara teatral, porta-voz de Platão. Quando é um, quando é outro, onde termina um, onde o outro começa — eis a questão que permanece desafiante, como mais um traço da multifacetada e dinâmica construção do platonismo. Os intérpretes divergem. Há os que vêem no Fédon ideias mais socráticas que platônicas; alguns vão além, considerando que as teses centrais do diálogo — a preexistência e a imortalidade da alma, a reminiscência, a própria doutrina das ideias —, antes que socráticas, são originariamente pitagóricas. Servem apenas de ponto de partida para o verdadeiro platonismo.

A fase final da obra de Platão — em que se situam o Filebo, o Crítias, o Timeu, As Leis — mostra um platonismo que ressurge, remodelado, depois da crise manifestada pelo Parmênides, onde um Sócrates jovem, pela primeira e única vez inseguro, não consegue defender satisfatoriamente, diante das perguntas do velho Parmênides, sua doutrina das ideias. O embaraço do jovem Sócrates — talvez embaraço do socratismo “juvenil” que Platão adotara — marca a exaustão de um modelo de pensamento que o platonismo posterior terá de incessantemente retrabalhar, desde as premissas. Teses novas ou renovadas são então propostas, como:

1) Reformulação do princípio de identidade lógico-ontológico explicitado, pela primeira vez, pelo eleatismo (“o-que-é, é; o-que-não-é, não é”). No Sofista, Como condição para a possibilidade do erro, da ilusão, do simulacro (e, consequentemente, de seu mercador, o sofista), o não-ser absoluto (o absolutamente inexistente) é substituído pelo não-ser relativo, a alteridade (ser outro), sem a qual não se justifica qualquer atribuição lógica além da tautologia e não é possível o conhecimento (verdadeiro ou falso). Assim, os termos do binômio radical ser/ não-ser (absolutos) são remetidos, ambos, para a instância do humanamente impensável e indizível.

2) Predominância do movimento descendente da dialética, que passa a complementar o ascendente e permite o exame da relação — participação, imitação — entre as ideias ou formas e entre estas e os objetos do mundo físico. No Sofista, essa descese aparece como procedimento dicotômico, que hierarquiza gêneros e espécies e é aplicado à apreensão da natureza do sofista enquanto um tipo de caçador ou de pescador. No Fedro, permite o estabelecimento de diferentes tipos de amor. Na dialética ascendente, podia-se passar ao ser supremo (o Bem da República, a Beleza-em-si do Banquete) partindo-se de uma ideia ou de um grupo restrito de ideias não necessariamente interligadas por relação de ordem essencial (a passagem se justificava pelo fato de que as ideias ou formas deviam receber seu ser de um ser supremo que existisse não hipoteticamente). Já a dialética descendente agrupa as ideias com base em sua natureza essencial, enquanto cada qual é essencialmente aquilo que é (o que as aproxima ou distingue), levantando, por isso, a questão da mútua participação, mesmo entre as mais distanciadas ou opostas, como o Um e o Múltiplo (Sofista, Filebo). Vale assinalar, porém, que a dialética ascendente jamais é abandonada por Platão, o que impede a dedução do sensível a partir do inteligível e das essências a partir do Um ou do Bem, ou seja, o que impede o platonismo de se constituir em sistema emanatista,[36] como o neoplatonismo de Plotino. Em Platão, o filosofar permanece exercício de pensar a partir do que é apreendido no mundo: mas não apenas objetos físicos (como o leito da Republica ou a naveta do Crátilo),[37] como também “objetos” culturais, políticos, teóricos, como leis, regimes, instituições, a arte imitativa ou as conquistas da matemática de seu tempo.

3) Ampliação do alcance das categorias de intermediário e de liame que, nos mais diversos níveis, servem para articular o todo da realidade e os graus de conhecimento. O real, considerado um todo vivo, precisa ser destrinçado pelo dialeta, respeitando suas “articulações naturais”. Do ponto de vista do conhecimento há também, necessariamente, uma gradação que permite a passagem do grau ínfimo de opinião (a mera conjetura, baseada em precária percepção sensível) à intelecção mais alta, noética, numa trajetória que atravessa sucessivas etapas intermediárias, como expressa a imagem da linha dividida da Republica (509 d/511 e). Preenche-se, desse modo, o abismo entre não-ser e ser (do lado ontológico) e entre ignorância e sabedoria (do lado gnosiológico e epistemoló-gico), superando-se o impasse gerado pelo caráter absolutizante do princípio eleá-tico de identidade (que, inclusive, justificava a tese sofística da impossibilidade do conhecimento e da autonomia do discurso retórico em relação à epistéme). Nesse sentido, o campo da doxa (opinião) adquire cada vez maior importância no platonismo que, revolucionando os fundamentos lógicos herdados do eleatismo, levanta a possibilidade de uma opinião verdadeira (Teeteto), elo indispensável à superação da distância entre doxa e epistéme, entre sensível e inteligível, e imprescindível também à fundamentação da ação (que se efetiva no campo do relativo e do provável, não no da certeza absoluta). A descoberta do intermediário, que possibilita as interligações, torna-se, assim, fundamental à construção teórica e à vida prática, em todos os territórios. Eis por que a matemática e o amor têm tamanha importância no platonismo. A matemática, enquanto serve de mediação entre o plano sensível e o inteligível, oferecendo o exemplo de uma bem-sucedida construção teórica sustentada por método ascensional feito de articulações inteligíveis e por raciocínios discursivos, encadeados, urdidos por mediações dianoéticas (Republica, linha dividida). Eros, analogamente, como mostra O Banquete, é filosófico, justamente, por “estar entre o sábio e o ignorante” (204 b) e ser, ele próprio, um mediador entre os homens e os deuses, entre as belezas sensíveis e o Belo em si.[38] Como é um gênio (daimon) e “está entre um deus e um mortal” (202 e), seu poder — ensina Diotima a Sócrates — é

O de interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos homens, e aos homens o que vem dos deuses, de uns as súplicas e os sacrifícios, e dos outros as ordens e as recompensas pelos sacrifícios; e como está no meio de ambos ele os completa, de modo que o todo fica ligado todo ele a si mesmo. Por seu intermédio é que procede não só toda arte divinatória, como também a dos sacerdotes que se ocupam dos sacrifícios, das iniciações e dos encantamentos, e enfim de toda adivinhação e magia. Um deus com um homem não se mistura, mas é através desse ser que se faz todo convívio e diálogo dos deuses com os homens […] [39]

A dialética platônica, tanto na vertente teorética quanto na erótica, está, assim, fundamentada na mediação. É o que comprova Pierre-Maxime Schuhl, num luminoso ensaio sobre a função do liame (desmos) no platonismo. Na verdade, mostra, o liame tem dupla função: se, por um lado, prende, aprisiona, encadeia, por outro, ata, junta, articula:

Liames podem ser obstáculos à liberdade, como aqueles que acorrentam Sócrates em sua prisão e os prisioneiros na caverna (Fédon, República), da mesma maneira as leis são consideradas no Político como entraves que limitam a liberdade do legislador; é ainda dessa maneira que se pode imaginar a possibilidade de um liame divino imobilizar o mundo (Teeteto). Mas eles podem igualmente assegurar uma coesão, como faziam as cordas que cingiam os cascos dos navios gregos (Leis). Platão assinala os dois aspectos, e é o segundo que o impulsiona.[40]

4) Surgimento, em decorrência de todas essas alterações, da categoria de misto, que passa a prevalecer sobre a de pureza ou de unidade homogênea. Na fase do Fédon, a essência ou eidos é entendida como unidade puríssima, dotada dos atributos que a deusa do poema de Parmênides aponta no Um: eternidade, finitude (pois se limita inexoravelmente a ser somente aquilo que é), imutabilidade, indivisibilidade, homogeneidade… Justamente por isso, a ascese descrita no Fédon consiste em abandono da multiplicidade e da mistura típicas do corpóreo. Na fase final — da velhice, mas que na obra de Platão constitui um recomeço —, essas que seriam características do corpo e não da alma, do sensível e não do inteligível, são estendidas a todos os seres, inclusive às ideias ou formas. Relativizado o Um, por sua intrínseca relação com o Múltiplo; relativizado o Mesmo, pelo indissolúvel liame que o prende ao Outro; relativizado o Ser pela inevitável vinculação ao Não-Ser (enquanto Alteridade), a própria essência eterna perde a singeleza e adquire complexidade ontológica: torna-se misto, mistura essencial e modelar. Consequentemente, o dialeta deixa de ser aquele que foge da multiplicidade do corpóreo e tenta isolar-se na unidade formal pura, para ser o que lida e convive com o múltiplo e o complexo, tentando organizá-los pela metrética, a arte da medida. Seu pensamento e seu discurso são feitos de misturas bem ponderadas: phármacon — veneno ou antídoto — é a palavra, utilizada por ele, ao contrário do sofista, com senso de posologia e visando à justa medida. Por isso, Sócrates — o filósofo exemplar — é também médico de almas enquanto terapeuta dos discursos: pensa palavras como quem pensa feridas.
Além das modificações que podem ser entendidas como resultantes da evolução interna da dialética platônica — ou como exercícios que utilizam diversas modalidades de dialética, sem necessariamente pressupor uma unidade metodológica, embora dinâmica[41] —, é possível vislumbrar nas diferenças entre as propostas do Fédon e do Filebo algo mais profundo e delicado: a fronteira entre discípulo e mestre.

De fato, é uma tese típica do socratismo a identificação da virtude com a ciência. Desse modo, bastaria conhecer o bem para efetivá-lo, pois ninguém seria mau voluntariamente. Ou, dito de outro modo: a ciência não pode ser vencida pelo desejo.[42] No Protágoras, porém, Platão já assinala as dificuldades inerentes a essa tese. E, pelo menos desde A República, surge a doutrina dos diversos tipos de alma, cada qual com sua virtude correspondente e sua função peculiar dentro da organização dapó/is ideal.

Parece, portanto, que nesse ponto crucial Platão se afasta de Sócrates: enquanto este admite a existência de um único princípio anímico no homem, Platão distingue na alma uma parte racional e outra irracional.[43] É o que confirma a imagem da carruagem do Fedro (253 c/d): a alma é marcada pelo conflito interior, pois, à semelhança de uma carruagem, possui uma parte que funciona como o cocheiro a tentar direcionar as marchas de dois cavalos de índoles opostas: um, branco, dócil, moderado, “associado à opinião verdadeira”; o outro, negro e sanguíneo, “associado à desmesura”. O primeiro parece mover-se em função da aspiração ascensional, o segundo pela órexis, pelo apetite. Escreve Brochard: “Na análise que faz do desejo em oposição à razão, Platão mostra que o fim que aquele persegue não é necessariamente bom “.[44] Assim, se está sedento, o homem não procura uma bebida boa, mas uma bebida qualquer, que lhe mate a sede. O desejo é, portanto, indiferente ao bem e ao mal. Não é somente uma ideia confusa: é irredutível à razão.

Ainda segundo Brochard, Platão permaneceu fiel à teoria — estranha ao ensinamento socrático — de que a virtude supõe uma disposição ou dom que não provém da natureza ou do pensamento reflexivo, só sendo explicável como advindo do concurso divino. E a educação é que desenvolveria essa disposição inata. Donde a analogia entre a virtude do cidadão e a da Cidade: a justiça somente existe na pólis se a lei permanentemente coage cada cidadão a permanecer em seu lugar e em sua função; do mesmo modo, na esfera pessoal, a justiça só é possível se a pressão da educação mantém cada uma das partes da alma em seu lugar e em sua função — o que estabelece influência recíproca entre a lei e a educação (A República, 424 a).

Todavia, vale a pena ressaltar: se Platão se afasta do socratismo é no que diz respeito à concepção da virtude média, popular. Esta, sim, é diferente da ciência, constituindo apenas uma opinião verdadeira e podendo, portanto, ser vencida pelo desejo.[45] Já a virtude suprema, perfeita, pode e deve ser entendida à maneira socrática. Aqui, no nível paradigmático, Sócrates tem razão: bem e conhecimento (noético) do bem se identificam. Como no próprio Sócrates, que oferece em sua vida o exemplo dessa fusão: encarnação do modelo.

O interesse de Platão pela virtude média, vinculada à opinião verdadeira, pode ser explicado em função de sua posição diante da política. Como confessa na Carta VII, desde a juventude aguarda o momento de atuar na pólis; e se essa atuação tornou-se, em grande parte, indireta — enquanto teórico —, na verdade jamais abdicou da participação direta, como mostram suas interferências na vida política de Siracusa. Teórica e praticamente, Platão é um reformador político. Já Sócrates insiste em afirmar que a ação sobre a vida política se realiza, eficaz e profundamente, no plano psicológico e ético: por meio da ação pedagógico-terapêutica que visa ao autoconhecimento, à tomada de consciência de si através da consciência da significação das palavras. E é nesse sentido que ele próprio presta grandes serviços à Cidade, embora, impedido por seu daimon interior, não participe das Assembleias.[46]Seu papel é convocar os cidadãos para a verdade de si mesmos e ajudá-los a nascer, de dentro de seus equívocos, para a luz dessa verdade. Platão reafirma que essa é, de fato, a meta final da ascese de Retorno. Mas considera necessário, também, modificar os equívocos humanos exteriorizados sob a forma de instituições políticas. Eis por que o redirecionamento do ódos de salvação da alma deve ser acompanhado, como propunha o pitagorismo, pela reforma das instituições, pela salvação da pólis.

Nesse sentido, a dialética descendente possui dimensão política. Uma passagem do livro VII d’A República (519 c/520 a) mostra a descida, depois que a ascese levou a alma à contemplação das luminosas essências. O imperativo, agora, é ditado pelo compromisso político e pelo bem dos outros:

Sócrates – Cabe portanto a nós, os fundadores do Estado […], obrigar os homens de elite a se voltarem para a ciência que há pouco reconhecemos como a mais sublime de todas, para verem o bem e fazerem a subida de que falamos; porém, uma vez chegados a essa região superior è tendo contemplado suficientemente o bem, cuidemos de não lhes permitir o que hoje lhes é permitido.

Glaucon – O quê?

Sócrates – Permanecerem lá no alto e não quererem mais descer para junto dos prisioneiros, nem participar de seus trabalhos e honrarias mais ou menos apreciáveis.

Glaucon – Mas então atentaremos contra seus direitos e os forçaremos a levar uma vida mesquinha, quando poderiam gozar de uma condição feliz?

Sócrates – Esqueces outra vez, meu amigo, que a lei não cuida de assegurar uma felicidade excepcional a uma classe de cidadãos, antes procura realizar a felicidade de toda a Cidade, unindo os cidadãos quer pela persuasão, quer pela coação, e levando-os a participar dos serviços que cada classe é capaz de oferecer à comunidade; e se ela se destina a formar no Estado tais cidadãos não é para deixar que dediquem sua atividade ao que lhes agrada, mas para fazer com que concorram para a fortificação do vínculo do Estado.

Glaucon – É verdade; havia esquecido.

Sócrates – Agora, Glaucon, observa que não seremos injustos em relação aos filósofos que se formarão entre nós, e que teremos boas razões a lhes dar, para obrigá-los a se encarregar da direção e da guarda dos outros.

Justamente porque a contemplação, no ápice da ascese, fora contemplação do Um que é Bem, Belo e Justo, ela não pode isolar-se em beatitude, mas se derrama em ação conduzida pela justeza e pela justiça. Liberto, após contemplar o sol boníssimo da verdade, o ex-prisioneiro muda de rumo: desce, volta à caverna. Adversário das trevas, é heróico Teseu, libertador de prisioneiros, pedagogo, médico de almas, político: filósofo.

Segundo movimento:

“FILEBO” — A VIDA MISTURADA

É importante observar que o Filebo, ao ter início, apresenta-se como uma segunda conversação. Antes, Sócrates e Filebo já haviam debatido o mesmo tema — a finalidade da vida humana, a natureza do bem supremo —, sem possibilidade de qualquer acordo: ambos defenderam teses radicais, irredutivelmente opostas. Filebo afirmara que o bem é o prazer; Sócrates, a sabedoria (11 b/c). Essa situação antitética parece revelar a insuperável antinomia entre a doutrina do Sócrates de antes (como o Sócrates/Platão do Fédon) — ascético perseguidor da pureza da alma racional e da pureza das essências — e as doutrinas daqueles que, de várias maneiras, valorizam o múltiplo e o corpóreo, fazendo do prazer o bem soberano.

Na verdade, porém, o grande impasse surgido antes, na conversa a que não assistimos, é também interno ao platonismo. Como conciliar sensível e inteligível, corpo e alma, se cada termo do binômio radical do dualismo permanece como total negação do que se lhe contrapõe? Como ligar algo ao que lhe é absolutamente outro? Como relacionar o absoluto se ele é, por natureza, o irrelacionável, o completamente independente? E, em particular, como entender e orientar o homem imerso nesta vida, enquanto corpo/ alma? Como determinar seu bem aqui, se ele for uma encruzilhada de desejos absolutizados que se anulam reciprocamente, de caminhos que se cruzam sem se tocar? Por isso, as alternativas antagônicas expostas antes — vida apenas voltada para o prazer, vida direcionada somente para a sabedoria — soam não como possibilidades de escolha no nível humano, mas como uma decisão que transcorre no plano divino. Parece um combate entre deusas: entre Afrodite e Atena (11 e/12 a).

O segundo confronto — o que vai ser mostrado no Filebo — constitui, portanto, a tentativa de aproximar o que parecera tão distante, de conciliar o que se revelara inconciliável. Para tanto, é necessário reexaminar as teses contrapostas, modular as duas vozes antes de tentar novamente a interligação, quem sabe o liame da harmonia? Isso é feito pelo procedimento analítico, dicotômico, que desce das essências absolutas — o prazer, ,a sabedoria — e discerne a multiplicidade e a variedade que nelas se abrigam. Basta perguntar pelos tipos ou espécies de saber e de prazer, para a unidade inicial multiplicar-se em modalidades inúmeras: são diversas as espécies de prazer, numerosas e diferentes as ciências (13 a/14 a). Eclode a questão crucial: a da relação entre o um (que contém em si a diversidade) e o múltiplo (que se oculta no interior da unidade). É esse aparente paradoxo que Sócrates mostra a Protarco (que passa a ocupar quase inteiramente o lugar de Filebo, na defesa do hedonismo):

Digo que o um e o múltiplo, identificados pelo raciocínio, circulam por toda parte e sempre, hoje como outrora, em cada pensamento que exprimimos. É algo que jamais cessará e que não data de hoje: está em nós como uma qualidade inerente à própria razão, qualidade imortal e que escapa ao envelhecimento.[47]

O conceito de razão proposto por Platão distancia-se da tradição eleática (e que talvez perdurasse no socratismo do próprio Sócrates e não apenas dos megáricos):[48] a razão subentende, sempre, não a pura unidade, mas o indeslindável liame entre um e múltiplo. Pensar e expressar o pensamento exigem esse vínculo, que urde toda a extensão do real. Todas as coisas existentes provêm da junção do um e do múltiplo, do finito e do infinito: péras e ápeiron, opostos fundamentais desde o pitagorismo mais antigo. Saber lidar com esses dois ingredientes, eis a grande arte dada aos homens pelos deuses, mas infelizmente esquecida:

[…] Os sábios de nosso tempo […] vão diretamente da unidade ao infinito; os números intermediários lhes escapam, e é isso que distingue a dialética da erística nas discussões que mantemos entre nós. (17 a)

Ou seja: aquela grande arte é a de tecer, tramar, fazer ligaduras, articulações que cubram com mediações ou intermediários a distância entre o Um e o Múltiplo: a tarefa outorgada pelos deuses aos mortais é justamente a de tornar relacional o que deixado em si mesmo pairaria como absoluto: impensável, inefável, inatingível, alógon.

Nesse sentido é que a arte do dialeta, distinta da pura combatividade exercida e ensinada pelos sofistas, é construtiva. Constrói à semelhança da arte do gramático (que compõe palavras com letras) e da arte do canto e da música (feita de sons: graves, médios e agudos). O que essas artes têm em comum, exprimindo os fundamentos da sabedoria, é o fato de se constituirem com números, intervalos, intermediários, combinações e ritmos. Explica Sócrates a Protarco:

Quando tiveres aprendido o número e a natureza dos intervalos da voz, tanto para os sons agudos quanto para os graves, os limites desses intervalos e todas as combinações que daí derivam — combinações que os antigos descobriram e que transmitiram a nós, seus sucessores, que devíamos lhes dar o nome de harmonias, do mesmo modo que também nos ensinaram os movimentos do corpo, propriedades do mesmo tipo que, medidas por números, devem, dizem eles, se chamar ritmos e medidas e, ao mesmo tempo que é preciso supor que o mesmo exame se impõe em relação a tudo que é um e múltiplo —, quando, digo, tiveres aprendido tudo isso, então serás sábio […] (17 c/e)

A sabedoria se configura, assim, segundo o modelo pitagórico que, remodelado, ressurge com toda força na fase final do platonismo. Claro, trata-se de um pitagorismo que evoluíra a partir de suas premissas arcaicas e tivera de refazer sua concepção de número em função da crise dos irracionais. Deve-se assinalar que o Filebo e o Timeu são da mesma época em que Platão, em seu ensinamento oral (segundo a Metafísica de Aristóteles), propõe a doutrina das ideias-números ou números ideais. Agora, na hierarquia das ideias, acima de todas as essências referentes a qualidades, situam-se, como as mais genéricas e condicionantes, as ideias-números (a Díada, a Tríade etc.). Esses números ideais (que transcendem os números matemáticos, comprometidos com a sensibilidade, a multiplicidade e a representatividade)[49] são a causa da substância dos outros seres, surgindo da participação do Grande e do Pequeno em relação ao Um.[50]

A nova proposta metodológica decorrente da adoção da dialética descendente critica e corrige a “pressa” com que se tenta passar diretamente do infinito ao um, como na passagem das inumeráveis coisas sensíveis à unidade inteligível do arquétipo. Desenvolvendo, a seu modo, a tese explicitada pela primeira vez pelo pluralismo de Empédocles (a fundamentação de todos os seres nem no Um, nem no Múltiplo, mas no menor múltiplo comum, as quatro raízes — água, ar, terra e fogo, movidas por Philia e Neikos, Amor e Ódio), Platão pode agora superar o impasse gerado pelo eleatismo que propusera a alternativa: ou a unidade e a verdade, ou a multiplicidade e a mera opinião. Ao mesmo tempo, pode superar o impasse interno ao platonismo anterior (ou ao socratismo?), como desvelara o Parménides. Não se trata mais de contrapor o um e o infinito, mas de trabalhar a categoria de intermediário, que os articula, desdobrando o território do plural. Certamente, aqui, porta-voz de Platão, ensina Sócrates:

Quando se toma uma unidade qualquer, dizemos que não se deve dirigir logo os olhos para a natureza do infinito, mas para um certo número. Igualmente, quando, ao contrário, se é forçado a começar pelo infinito, não se deve passar imediatamente à unidade, mas procurar alcançar um número que contém, em cada caso, uma pluralidade, e acabar passando de todas as espécies à unidade. (18 a/b)

A gramática serve de paradigma. Theuth — o mesmo egípcio mencionado no Fedro como o inventor da escrita — é lembrado no Filebo como quem distinguiu os tipos de letras que servem de elementos constitutivos das palavras, percebendo ainda que há entre as letras um indispensável liame, a estabelecer a unidade da arte da gramática (18 b/d).

De forma análoga, deve-se repensar a oposição prazer/sabedoria. Talvez assim se suplante a irredutível divergência que, antes, se estabelecera entre ascetismo e hedonismo, entre Sócrates e Filebo.

O ponto de partida para o segundo confronto — quem sabe, conciliador — deve ser a consideração das várias espécies de prazer e de sabedoria. Mais: é necessário tomar como postulados que o bem, seja ele o que for, deve ser necessariamente perfeito, bastar-se a si mesmo, ser desejado e perseguido por todo ser inteligente (19 b). Ainda: deve-se examinar separadamente o prazer e a sabedoria, para verificar se se ajustam às exigências postuladas quanto ao bem.

O resultado da análise empreendida a partir desses pressupostos deixa claro: nem o prazer nem a sabedoria podem ser identificados ao bem. Nenhum deles se basta. O prazer supõe a inteligência, a memória, a ciência, a opinião, pois se tern consciência do prazer que se tem, se tem lembrança do prazer que se teve e se supõe (opinião) que se terá prazer. No prazer há, portanto, inevitavelmente, consciência do presente, lembrança do passado e antecipação do futuro (21 a/d). Por seu lado, também a sabedoria não existe isolada: é sempre acompanhada por prazer e/ou dor. E chega-se à conclusão: como tudo que existe, o prazer e a sabedoria são mistos, resultantes da mistura, em proporções variadas, dos mesmos elementos constitutivos: o infinito (dpeiron), o finito (péras), o resultado da mistura e a causa da mistura.[51] Esta última não pode ser um poder irracional, fortuito — o acaso —, mas uma inteligência ordenadora, que governa o conjunto dos seres (28 d), um Noús que atue não como o de Anaxágoras, mas tornando sua ação coerente com sua própria natureza.

A essa altura do Filebo, Sócrates introduz um esclarecimento importante: tudo que está sendo dito refere-se ao prazer enquanto vinculado a um tipo de desejo: o desejo-apetite, a órexis, de onde esse prazer nasce (34 d). E revela o modelo iisiológico a partir do qual ele pode ser entendido:

Sócrates –  Todas as vezes que dizemos: “ele rem sede”, dizemos alguma

coisa.

Protarco – Seguramente.

Sócrates – Isso quer dizer: “ele está vazio”.

Protarco – Sem dúvida.

Sócrates – Ou a sede não é um desejo?

Protarco – Sim, um desejo de beber.

Sócrates – De beber e de ser enchido pela bebida.


Protrarco Sim, de ser enchido, parece-me. (34 e/ 35 a)

A urgência do desejo-apetite parte da sensação de vazio, que reclama preenchimento. Mas o que direciona esse desejo e está por trás daquela sensação é a memória, que faz com que aquele que tem sede ou fome tenha simultaneamente a ideia da satisfação, do sentir-se repleto (35 b). Desse modo, o desejo-apetite leva para a direção contrária ao que se experimenta: experimenta-se o vazio, procura-se o pleno. O desejo não conduz para aquilo que o corpo sente, mas exatamente para seu contrário, reapresentado pela memória. A conclusão de Platão é inevitável: não há desejo corporal (35 c), é sempre a alma que deseja. Mesmo o desejo-apetite pertence à alma, é direcionada pela consciência e pela memória (aqui, a memória retrospectiva, que remete para trás, no tempo). O conflito entre esse tipo de desejo e o desejo-aspiração (vinculado à reminiscência, que orienta para o alto e para o atemporal) é interior a essa alma complexa, mista ela também: carruagem de dois cavalos de índoles e rumos divergentes.

A conclusão de que prazeres e dores são somente da alma e de que estão sempre estreitamente vinculados ao conhecimento, à opinião e à memória, acaba conduzindo à questão da representação da mistura que os constitui, quer no teatro, quer na vida. Sócrates observa a Protarco:

[…] Nas lamentações, nas tragédias e nas comédias, e não somente no teatro, mas também em qualquer tragédia e comédia da vida humana, em mil outras coisas, as dores estão mescladas aos prazeres. (50 b)

“Em mil outras coisas”, mas não em todas. Há prazeres puros, embora raros. Sócrates tem razão: existe a pureza, mas só na exceção, não na generalidade, como pretendia, ao fixar-se na idealidade do modelo. Os cínicos é que não têm razão, ao considerarem que todo prazer é tão-somente cessação da dor.

A existência de prazeres sem dor, portanto sem mistura, instaura uma hierarquia na diversidade dos prazeres, na qual o ápice — apenas o ápice — é ocupado pelo prazer ligado à pureza. Essa superioridade do prazer puro, apontado por Sócrates, é estabelecida em analogia com o branco: “Um pouco de branco puro é, ao mesmo tempo, mais branco, mais belo e mais verdadeiro que muito branco misturado” (53 b).

Na hierarquia dos prazeres prevalece a excelência da qualidade, que se sobrepõe à quantidade. Esse critério “aristocrático” aproxima Platão de Heráclito. O que Platão faz aqui, no campo ético, equivale à afirmativa de Heráclito: “Um único homem vale para mim dez mil, se é o melhor” (aforismo D49).[52]

Prazeres puros, mostra Platão, são, por exemplo, no plano sensível, as belas cores, as claras e equilibradas figuras da geometria, os sons harmoniosos, certos odores; no plano inteligível, os prazeres da ciência. E não é na conquista gradual desses prazeres que se move a alma em sua ascese erótica, como revela Diotima/Sócrates n’ O Banquete? Só que, à semelhança do que ocorre com o amor à sabedoria — a filosofia —, estágio final da escalada, esses prazeres puros são acessíveis a poucos. (52 b)

Do lado do conhecimento e da sabedoria existe análoga gradação: há ciências mais exatas e mais puras e ciências menos exatas e menos puras, numa gradação_que se inicia no nível das artes mecânicas e chega, no cume, à dialética, que apreende o fixo e o permanente (59 b). Também aqui, somente no nível extremo superior é que o modelo socrático ressurge: a identificação de conhecimento com conhecimento do puro e do perfeito vale apenas como meta, não para os níveis médios e intermediários em que os conhecimentos de fato vão-se efetivando. 
Mas enquanto não chegamos lá, a essa situação ideal em que prazer e sabedoria sustentam-se na pureza, o que fazemos? Como nos conduzir, itinerantes rumo ao Bem, no meio do caminho, no meio dessa vida misturada, justamente para que o trajeto nos conduza à meta ideal?

O Filebo termina com uma “receita” de vida:

Já que prazer e sabedoria não se bastam isoladamente, como absolutos auto-suficientes, é necessário que a vida seja um trabalho de artesanato (59 e), que produza uma equilibrada mistura com dois ingredientes diversos (60 d/e). Artesãos de nós mesmos, é bom que façamos a obra que é nossa própria vida, invocando um dos deuses que presidem a realização de misturas, como Dioniso ou Hefaistos (61 d/e). E como um artesão-misturador, um escanção, juntemos os líquidos provenientes de duas fontes, juntemos água e mel:

Somos espécies de copeiros que temos duas fontes à nossa disposição: a do prazer que se pode assemelhar a uma fonte de mel, e a da sabedoria, sóbria e sem vinho, que fornece uma água austera e salutar; são dessas duas fontes que se deve misturar os líquidos da melhor maneira possível que pudermos. (61 c)

A “melhor maneira possível” exige uma sequência que subentende hierarquia e, também, medição, posologia. Primeiro, deve-se colocar porções do mais puro prazer e da mais verdadeira ciência. Então verificar se não há necessidade de algo diferente. E, de fato, como não basta para a vida somente o conhecimento teórico, pois “se conhece o círculo e a própria esfera divina, mas se ignora nossa esfera humana e nossos círculos humanos” (62 a), é imprescindível passar para a segunda etapa:

Deve-se agora acrescentar também as artes, mesmo as que incluem a inexatidão, a conjetura, a imitação: as que têm seu modelo na música (não só as que têm por modelo a arquitetura) (62 b/c). Desse modo, entram na mistura todas as artes, mesmo porque “não é de modo algum possível que um gênero puro permaneça só e solitário” (63 b), escreve um Platão idoso, mais flexível, amante das artes e ele próprio grande artista da palavra, encarando-as não enquanto campo de prestígios, ilusões e engodos, mas — como já afirmara no Político — enquanto compensação e consolo para os sofrimentos da vida.[53] Pode-se, porém, perguntar: e quanto aos prazeres, além dos puros e verdadeiros, todos os demais podem integrar a boa vida misturada? Aqui o artesão deve agir seletivamente: além dos puros e verdadeiros, só devem entrar na composição da mistura os prazeres “que seguem junto com a saúde e a temperança e os que formam o cortejo da virtude” (63 e). São excluídos exatamente os maiores e mais fortes, companheiros inseparáveis do vício e da loucura. Essa a condição para se fazer da vida misturada uma obra de arte, para que haja a estilização da vida, para se construir uma estética da existência.[54] O outro requisito para a produção dessa estética está na forma como se faz a mistura. Ressurge aqui o tema da posologia, após a escolha dos ingredientes. A vida, como os seres, deve resultar da ação de uma inteligência que visa a um fim bom e belo e que, portanto, atua por meio da medida e da proporção, utilizando um tipo de metrética. Na hierarquia dos bens, a medida e a proporção ocupam os postos mais altos. O homem, demiurgo de si mesmo, deve, assim, realizar a obra que é sua vida à semelhança do demiurgo que, no Timeu, constrói o cosmos: olhos postos no modelo das ideias, entre as quais, soberana, brilha a medida — a justa medida do Bem.

Eis por que o Filebo termina com uma advertência e uma proclamação, feitas primeiro a Protarco, mas, na verdade, endereçadas a todos os homens. Elas resumem o convite-desafio do platonismo, expresso pelo gesto de Platão no afresco de Rafael:

Então proclamarás por toda parte, Protarco, aos ausentes por meio de mensageiros, aos presentes por teus discursos, que o prazer não é o primeiro dos bens, nem o segundo tampouco, mas que o primeiro é a medida, o que é medido e todas as outras qualidades semelhantes, que devem ser olhadas como tendo participação numa natureza eterna. (66 a)

Não se trata, portanto, de negar o prazer, como o cínico Antístenes,[55] nem de fazê-lo bem supremo, como os cirenaicos.[56] Trata-se de situá-lo adequadamente na hierarquia dos bens, para então inseri-lo na construção da boa vida misturada. Considerá-lo bem supremo e meta da vida é abdicar da aspiração que impele a alma na direção do melhor, do mais belo, do mais verdadeiro, do mais justo. É negar a tensão inerente à condição humana: encruzilhada de desejos antagônicos, carruagem puxada por cavalos diferentes. Mas carruagem com cocheiro capaz de olhar para o alto e compreender que a meta é além, alhures. Recusar essa meta é recusar o que em nós é aspiração, permanecendo-se apenas no nível dos apetites. É anular o que no humano é desejo do além-do-aqui, do além-do-agora, do além-do-homem. E preferir o modelo fornecido pela bestialidade, esse aquém-do-homem imerso no reino da pura necessidade, determinado pelo apetite e pela busca de prazer. Para o homem, mostra Platão, o prazer é bem, sim, mas

[…] não o primeiro, ainda que todos os bois, cavalos e todos os animais do mundo procurem pelo prazer, já que tão-somente o procuram. A maioria dos homens reporta-se a eles, como os áugures aos pássaros, e julgam que os prazeres são o que nossa vida possui de melhor, e pensam que os apetites das bestas são garantias mais seguras que os discursos inspirados por uma musa filosófica. (67 b)

Os discursos inspirados pela musa filosófica repõem a reminiscência no lugar do esquecimento. E ensinam: o aqui não basta à alma cuja origem é uma estrela.

Notas

[1] Diógenes de Apolônia foi contemporâneo dos sofistas e de Aristófanes; sua akmé, o ponto culminante de sua carreira, parece coincidir com a de Demócrito (c.430 a.C.). Retomou a tese de Anaxímenes de Mileto (séc. VI a.C.) de que o ar infinito, o pneuma ápeiron , é o fundamento ou physis de todas as coisas, fundindo-a, de forma simplificada, com a doutrina dos fluidos, de Anaxágoras de Clazômena. De Anaxímenes toma ainda a concepção da alma como ar, todo o cosmos sendo constituído pelo ar-alma-inteligência. Essa transferência de características humanas para o cosmos é ridicularizada por Aristófanes nas Nuvens, onde a personagem Sócrates aparece como protótipo dos, sofistas e defende ideias que seriam, na verdade, de Diógenes de Apolônia. Embora considerado mais um divulgador de doutrinas alheias, Diógenes exerceu grande e duradoura influência por ter defendido o teleologismo: o finalismo depois desenvolvido por Platão e Aristóteles e que marcou profundamente o pensamento científico-filosófico ocidental. Veja-se, particularmente: Jean Zafiropulo, Diogène d’ Apollonie, Les Belles Lettres, Paris, 1956.

[2] Platão está vinculado à tradição da chamada medicina filosófica, proveniente das cosmologias de jônicos e pitagóricos, e que passa por Alcmeon e Empédocles. A essa medicina especulativa contrapõe-se, na Grécia Antiga, a medicina das escolas de Cnido e de Cos, de índole mais “científica”; sobretudo a primeira manifesta um posicionamento empirista, baseando-se estritamente na observação de fatos e na distinção entre os inúmeros tipos de doença. Veja-se: Robert Joly, Hippocrate — Medicine grecque, Gallimard, Paris, 1964; e Benjamin Farrington, Ciencia griega, Hachette, Buenos Aires, 1957.

[3] Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionário da lingua portuguesa, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1986; Antenor Nascentes, Dicionário ilustrado da língua portuguesa da Academia Brasileira de Letras, Bloch Editores, Rio de Janeiro, 1981.

[4] No caso da história, a questão do estatuto epistêmico aparece hoje, principalmente, ligada à análise das estruturas narrativas, à discussão da diferença entre história e “estória”. Essa maneira de ver o problema resgata, de certo modo, a aproximação platônica entre história e mito, como procuramos mostrar em “História e ficção: o sono e a vigília” (em Narrativa — Ficçdó & História, vários autores, Imago/UERJ, Rio de Janeiro, 1988).

[5] Jean-Pierre Vernant, “Aspects mythiques de la mémoire et du temps”, em Mythe et pensée chez les grecs, François Maspero, Paris, 1965, p. 58 e seg.

[6] Marcel Detienne, “Demônios”, em Enciclopédia Einaudi, vol. 12, “Mythos/Logos, Sagrado/ Profano”, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Portugal, 1987. Ao analisar a questão da alma individual e do sopro respiratório, na Grécia Antiga, Detienne esclarece: “O Fédon dá-nos testemunho de toda essa atividade ascética, ao lembrar sua dívida para com uma velha tradição, segundo a qual purificar-se é  ‘separar o mais possível a alma do corpo, habituar a alma a deixar o invólucro do corpo para se concentrar em si e lá viver o máximo possível, agora e mais tarde, só consigo mesma, liberta das cadeias do corpo’ (67 c/d). As técnicas do corpo parecem ter desempenhado aqui um papel determinante; temos, pelo menos, a prova em relação ao filósofo de Samos, vindo para a Magna Grécia reformar a cidade. Empédocles fala de Pitágoras como de um homem de saber prodigioso, que adquiriu grande riqueza de ‘diafragma-pensamento’ e se tornou capaz de atos sábios de toda espécie. De fato, quando Pitágoras estendia todas as partes de seu ‘diafragma-pensamento’, podia facilmente contemplar todas as partes da realidade, assim como de dez a vinte vidas humanas. A expressão ‘estender seu diafragma’, que também significa ‘estender o pensamento’, alude possivelmente a uma técnica de tipo ioga que permite controlar o sopro respiratório e fazer do diafragma o ponto nodal para o qual todas as forças de natureza psíquica confluem e se concentram”. (p. 50)

[7] Louis Rougier, La Religion astrale des pythagoriciens, Presses Universitaires de France, Paris, 1959.

[8] Platão, A República, livro VII, 517 b/c (La République, trad. E. Chambry, Les Belles Lettres, Paris, 1947).

[9] Platão, Defesa de Sócrates, 21 d/23 b, Trad. Jaime Bruna, vol. Sócrates, col. Os Pensadores, Nova Cultural, São Paulo, 1987.

[10] John Burnet considera um anacronismo atribuir a Pitágoras e ao pitagorismo arcaico a doutrina da harmonia das esferas (L’ Aurore de la philosophie grecque, trad. franc. de Early Greek Philosophy, Payot, Paris, 1952, pp. 124-5). Mas no mito de Er (A República), Platão descreve a máquina do mundo “que pode ser perfeitamente reconhecida por nós, hoje, como uma grande vitrola cósmica: os oito círculos estelares (o zodíaco contendo os sete planetas) giram em rotação suave pendidos de um fuso, em várias velocidades (segundo os diferentes ritmos planetários). Sobre cada círculo gira uma Sereia emitindo um som diferente, ‘e de todas elas, que eram oito, resultava um acorde de uma única escala’, dando a ouvir, podemos dizer, a gama de sons em seu estado idealmente sincrônico ” (José Miguel Wisnik, O som e o sentido, Companhia das Letras, São Paulo, 1989, p. 92).

[11] F. M. Cornford chama atenção para o fato de que moira significa primariamente parte, lote, porção, somente depois assumindo a acepção de destino. Assim, os deuses possuem províncias ou domínios: suas moirai. O sentido de moira é, portanto, basicamente espacial, antes de receber a conotação temporal inerente a destinação. De qualquer modo, o espacial permanece na ideia de que o destino só se cumpre integralmente — e se revela — quando todo o itinerário da vida, o ódos da existência, se completa, mostrando afinal toda a extensão do percurso. E é quando moira se identifica com morte. (From Religion to Philosophy, Harper & Brothers Publishers, New York, 1957, p. 16 e seg.)

[12] Platão, Fédon, 63 d/e (vol. Platdo, col. Os Pensadores, Abril S. A. Cultural e Industrial, São Paulo, 1978, trad. de Jorge Paleikat e João Cruz Costa).

[13] Idem, ibidem, 99 a.

[14] Idem, ibidem, 61 c/62 e.

[15] Na verdade, no final da Odisseia, a música e o canto são usados como mais uma astúcia de Ulisses, para continuar incógnito, depois de se ter revelado apenas a Telêmaco, Euricleia e Penélope; desse modo, pode eliminar os que pretendiam usurpar seu lugar. Nesse momento, a seu mando, “o divino aedo tomou a côncava cítara e despertou nos corações o desejo dos suaves cantos e das danças graciosas” (Homero, Odisseia, trad. de Antônio Pinto de Carvalho, Abril Cultural, São Paulo, 1979, p. 208). A identificação de Ulisses com a alma humana surge no contexto do processo de demitificação das epopeias homéricas, que ocorre justamente no momento do socratismo, inclusive como obra de socráticos; a interpretação alegórica dos poemas homéricos é de grande importância, por exemplo, para as diatribes dos cínicos em defesa de sua ética. (Veja-se: Jean Pépin, Mythe et allégorie, Aubier, Paris, 1958, p. 76 e seg.)

[16] A matemática grega é dominada pelo conceito de exatidão, que lhe confere claridade e rigor. Dentro da concepção da aritmo-geometria do pitagorismo arcaico, todo número é inteiro, constituído por unidades indivisíveis, e cada linha corresponde a determinado número, já que é formada por unidades pontuais descontínuas, discretas. Assim, em princípio, há um número correspondente a cada coisa, cada coisa é constitutivamente um número determinado, um conjunto de unidades. Ou seja, cada coisa é exatamente um número. Essa clarificação apolínea de toda a realidade, feita por Pitágoras “o filho de Apolo” — e seus seguidores, parece encontrar um obstáculo intransponível com a descoberta dos irracionais matemáticos: a não comum medida entre certas grandezas (como entre a diagonal e o lado do mesmo quadrado). Essa irracionalidade coloca em questão o princípio de exatidão, pois o valor dos irracionais não é exatamente apreensível: deles temos apenas valores aproximados. A filosofia de Platão está toda perpassada pelo problema dos irracionais matemáticos; é em seu tempo e como obra de seu amigo Teodoro de Cirene que a questão revela toda sua amplidão, mostrando-se não como exceção “escandalosa”, como de início se pensara, mas como situação inerente a todo o campo das grandezas, subjazendo às variações entre o Grande e o Pequeno (díada que assume função cada vez mais decisiva no platonismo). Platão, filósofo da matemática, percebe a importância do problema dos irracionais e inclusive sugere um encaminhamento que ficará bloqueado pelo culto à exatidão, somente sendo desenvolvido, séculos mais tarde, por Arquimedes de Siracusa: a apreensão do valor do irracional por meio de cálculos aproximados (por excesso ou por falta), o que pressupõe a noção de limite. No Político, com efeito, Platão fala de duas metréticas du artes da medida; uma, que parece identificar com a matemática, trata do grande e do pequeno em relação de reciprocidade (enquanto inter-relacionados e relativos); a outra, que parece identificar com a dialética, trata do Grande e do Pequeno em si mesmos e enquanto referidos à Justa Medida. Esse segundo tipo de metrética ilumina toda a construção, do platonismo e fundamenta a solução de questões centrais, como: a da natureza e do alcance da linguagem (sempre aproximada, sempre dizendo o ser por falta ou por excesso); a da relação entre sujeito e objeto de conhecimento; a da relação (imitativa ou participativa: sempre aproximada) entre cópia e modelo, objeto físico e ideia; a da relação entre as ideias e o não-hipotético Bem; a da ação justa (no campo ético e político) etc. (Veja-se, particularmente: Paul-Henri Michel, De Pythagoré à Euclide, Les Belles Lettres, Paris, 1950, p. 498 e seg.).

[17] Heráclito de Éfeso, aforismos D 50, D 90 e D 10 (John Burnet, op. cit., pp. 148, 150 e

153).

[18] Platão, Ménon, 87 a.

[19] Auguste Diès, “Introduction” a La République, Les Belles Lettres, Paris, 1947, p. V.

[20] A palavra areté é virtude num sentido primeiramente ligado ao virtuose e só secundariamente ao virtuoso na acepção moral; exprime basicamente qualidade, qualificação, habilidade, técnica, mestria, virtuosismo. Está inicialmente vinculada — na moral homérica, aristocrática — a sangue nobre (mesmo no caso de animais, como cavalos), a origem divina, a pertencer a alta estirpe e ser, assim, aristoi, belo e bom. No momento da Sofística e do Socratismo, retoma-se uma outra concepção, originária da ética “camponesa” de Hesíodo, e se discute a possibilidade de se adquirir a areté por meio do esforço, do trabalho educativo. (Veja-se: Werner Jaeger, Paideia — los ideales de la cultura griega, Fondo de Cultura Económica, México/Buenos Aires, 1957, p. 79 e seg., p. 263 e seg.)

[21] Platão, Carta VII, 335 d, 338 c/d. Veja-se também: G. C. Field, Plato and his contemporaries, Methuen & Co. Ltd., London, 1948, p. 14 e seg. As tentativas, malogradas, de aproximar Dioniso, o jovem tirano de Siracusa, do sábio governante pitagórico Árquitas, é um dos motivos principais das viagens de Platão à Sicilia. Preocupado com o avanço dos cartagineses na Magna Grécia, Platão parece sonhar com a criação de uma confederação de cidades daquela região do mundo grego, sob a liderança de Taranto, para resistir à ofensiva dos “bárbaros”.

[22] Gilles Deleuze, Lógica do sentido, trad. Luiz Roberto Salinas Fortes, Perspectiva, São Paulo, 1974, p. 131.

[23] Marcel Detienne, Os mestres da verdade na Grécia arcaica,, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, s/d, p. 56 e seg.

[24] Idem, ibidem, p. 67.

[25] Platão é um crítico implacável da arte de seu tempo, que considera ilusionista. Particularmente no livro X d’A República, combate a estética da ilusão que então prevalece nos vários campos artísticos (a respeito, veja-se: Pierre-Maxime Schuhl, Platon et l’art de son temps, Presses Universitaires de France, Paris, 1952, e “Platon et la musique de son temps”, em Etudes platoniciennes, PUF, 1960). No caso do teatro, sua crítica à sofística na arte se baseia em dois motivos principais: utilizar a simulação, reunindo os recursos ilusionistas das artes plásticas e da música (p. ex., o uso, que já se faz na época, da perspectiva, para criar ilusão de tridimensionalidade e de profundidade nos cenários); ser um teatro das paixões, fingidas porém exacerbadas, no ritual comandado pela incontinência dionisíaca. Todavia, por outro lado, Platão escreve Diálogos que são verdadeiros dramas filosóficos; seus textos podem ser encenados (como o eram, de fato, no tempo de Cícero) e certamente a melhor maneira de lê-los é enquanto peças dramáticas, reencenando-as mentalmente (veja-se: Alexandre Koyré — Introduction à la lecture de Platon, Gallimard, Paris, 1962, pp. 17-21). Nesse sentido, são sempre extremamente importantes os aspectos da ação que os tornam “visualizáveis”: todas as indicações que o texto fornece sobre a luz, o vestuário e a postura dos personagens, o local da cena etc. Esses elementos não são supérfluos ou adicionais, não pertencem à dimensão literária apenas: integram e expressam a “mensagem” platônica. Assim, é possível ver essa dramaturgia filosófica, desilusionista, como contrapartida do teatro das ilusões: como o teatro das ideias que Platão efetiva em seus Diálogos. (Esse modo de leitura dos textos platônicos é utilizado, com excelentes resultados, quanto aos mitos, por Jean-François Mattei, “Le théatre du mythe chez Platon”, em Imaginaires du simulacre, Centre de Recherches sur l’image, le Symbole et le Mythe, cahier n9 2, Université de Bourgogne, Dijon, 1987, pp. 11-48.)

[26] São quatro, basicamente, esses argumentos: a) argumento fundamentado na natureza do devir, da mudança (que não pode ser entendida como tendo só uma direção, mas admitindo a direção contrária); b) o conhecimento das ideias eternas, a partir da consideração dos objetos sensíveis — o que pressupõe um conhecimento anterior à existência presente e, portanto, a preexistência da alma em relação ao corpo; c) a destruição e a decomposição, que atingiriam somente o que é composto, não o simples (como as essências e as almas que as conhecem); d) os contrários que se excluem: a alma, que tem por essência a vida, exclui seu contrário, a morte. (Veja-se: George Rodier, “Les preuves de l’immortalité d’après le Phédon”, em Etudes de philosophie grecque, J. Vrin, Paris, 1957, p. 138 e seg.).

[27] Em francês, a mesma palavra diz ar e ária: air.

[28] Fédon, 58 e/59 a. Os grifos são nossos.

[29] A mão de Sócrates é mencionada três vezes no Fédon, ao fazer gestos que decidem do andamento — também em sentido musical — do texto: a) Em 60 b, quando introduz o tema da alternância prazer/dor, que passa a ser longamente desenvolvido pelo “canto” que ocupa toda a primeira parte do diálogo, como um longo discurso que justifica racionalmente a esperança de sobrevivência (a beleza e a encantação desse discurso argumentativo-sedutor colocam-no na perigosa vizinhança dos longos, belos e sedutores discursos típicos dos sofistas). b) Em 89 b, a mão de Sócrates afaga os cabelos de Fédon (que usava cabeleira longa como os homens do Peloponeso, ao contrário dos atenienses); esse gesto parece exprimir o afeto e a gratidão de Sócrates aos discípulos que, a contragosto, são forçados pelo mestre a expressar suas dúvidas quanto aos argumentos que acabara de apresentar em defesa da imortalidade da alma. Com a mão Sócrates parece agradecer a ruptura que essas dúvidas operam em seu canto argumentativo, porém monológico; o retorno da dialogia que caracteriza seu logos é garantido pelos contra-argumentos de Cebes e Símias: o diálogo se restabelece, Sócrates morrerá como Sócrates, não como um sofista. c) Finalmente, em 117 b, a mão de Sócrates segura a taça de silêncio, num gesto que indica o final, a coda de sua música filosófica. A mais famosa representação pictórica desse gesto foi realizada por Jacques-Louis David, o grande pintor neoclássico francês. Em seu quadro A morte de Sócrates (1787, Museu Metropolitano de Nova York), Sócrates está prestes a segurar a taça. Entre sua mão direita e a taça há um pequeno intervalo: o limitado espaço e o breve tempo que (sempre) restam à fala do filósofo. Porém, se a mão direita obedece a lei — a dos homens e a da consciência — e cumpre a moira, a outra, a esquerda, gesticula eloquentemente, o indicador erguido apontando para o alto: é a mão argumentativa, que resiste e fala até o fim. E mostra a altura: o alhures que, nostalgicamente, o Sócrates de Platão sempre buscara e para onde, afinal, deve ascender, aspirante, sua alma-pneuma libertada de todas as cadeias.

[30] Platão, Górgias, 481 b/ 527 e (trad. franc. E. Chambry, Gamier, Paris, s/d).

[31] Para uma interpretação do pensamento de Anaxágoras sem a interferência das críticas socrático-platônicas e aristotélicas, veja-se: Jean Zafiropulo, Anaxagore de Clazomène, Les Belles Lettres, Paris, 1948.

[32] Werner Jaeger — op. cit., p. 280.

[33] A noção de alógon, irracional, é de origem geométrico-musical e significa “o que não tem medida comum”; subentende, portanto, uma relação, uma comparação (p. ex., entre a diagonal e o lado do memo quadrada). Essa relação existe, pode ser vista empiricamente (como no exemplo dado), mas não pode ter seu valor numérico expresso exaustivamente, com os recursos da aritmo-geometria pitagórica arcaica, fundamentada em ‘unidades indivisíveis e, portanto, em números inteiros. Essa impossibilidade de expressão exata (p. ex., valor de de -V8, de IT) leva à
consideração do alógon como indizível, como inefável. É justamente Platão — em cuja filosofia a questão dos irracionais matemáticos é central, constituindo uma espécie de root metaphor — que muda essa maneira de considerar a irracionalidade. No Teeteto , o alógon é aquilo de que só temos o nome, é o apenas nomeável (o que não sabemos é o que ele vale, o que é, qual sua physis). Ele vive, exemplarmente, a condição da essência e da justa medida em relação às linguagens que tentam apreendê-las de modo sempre precário, apenas aproximado. (Veja-se: Paul-Henri Michel, op. cit., p. 515 e seg.)

[34] Amigo de Pericles e de Aspásia, Anaxágoras levou para Atenas o novo modo de pensar — teorético, científico-filosófico — desenvolvido primeiro em terras da Jônia e da Magna Grécia. Essa nova visão-de-mundo contrapõe-se às tradições religiosas da Ática, que permaneciam sustentando a própria democracia ateniense. Os inimigos de Péricles processam o estrangeiro por impiedade; ele dizia, por exemplo, que o Sol era, não uma divindade, mas uma pedra incandescente. A filosofia aparece enquanto skdndalon Anaxágoras acaba fugindo, certamente ajudado por Péricles, e retorna à Jônia. O processo contra o escândalo filosófico reabre-se mais tarde, em relação a Sócrates. Mais grave é que, agora, o ímpio é um ateniense, que parece contaminado por ideias estranhas, contrárias à tradição da religiosidade política e oficial da Cidade: como perdoá-lo? (Sobre o processo de Anaxágoras, veja-se: John Burnet, op. cit., pp. 293-4.)

[35] Os outros dois mitos sobre a destinação das almas após a morte do corpo encontram-se n’A República e no Fedro .

[36] R. Loriaux, L’Être et la forme selon Platon, Desclée de Brouwer, 1955, p. 171.

[37] O exemplo do leito aparece no livro X d ‘A República para ilustrar os tipos ou graus de mimesis; já a naveta — objeto artefeito usado para artefazer, intermediário-intermediante — surge no Crdtilo, dando oportunidade à primeira formulação explícita do caráter transcendente das ideias platônicas (David Ross — Plato’s theory of ideas, Oxford/Clarendon Press, 1953, p. 19).

[38] Sobre a analogia entre o papel desempenhado pela matemática e Eros, veja-se: Victor Brochard, “Sur le Banquet de Platon”, em Etudes de philosophie ancienne et de philosophie mo-derne, J. Vrin, Paris, 1954, p. 60 e seg.

[39] Platão, O Banquete, 202 e/203 a, trad. José Cavalcante de Souza, vol. Platdo , col. Os Pensadores, Abril S. A. Cultural e Industrial, São Paulo, 1983. Os grifos são nossos.

[40] Pierre-Maxime Schuhl, “Desmos”, em Etudes platoniciennes . Uma tradução desse ensaio, feita por Elena Moraes Garcia e J. A. Motta Pessanha, integra o número dedicado a Platão da Revista Filosófica Brasileira, do Departamento de Filosofia da UFRJ, 1988.

[41] A questão da unidade ou não do pensamento platônico é clássica e divide os intérpretes. Questão semelhante pode ser levantada a propósito da dialética hegeliana, cujo confronto com a platônica é extremamente frutífero, como procuramos mostrar em “Dialética platônica, dialética hegeliana” (nº 3 da Revista Filosófica Brasileira, citado acima).

[42] Victor Brochard, “La morale de Platon”, em Etudes de philosophie ancienne et moderne , p. 171.

[43] Idem, ibidem, p. 175.

[44] Idem, ibidem, p. 176.

[45] Idem, ibidem, p. 178.

[46] Platão, Defesa de Sócrates, 30 d/ 31 e.

[47] Platão, Philèbe, 15 d/e, trad. E. Chambry, Gamier, Paris, 1939.

[48] Embora pouco se saiba sobre o pensamento de Euclides de Mégara e dos demais megá-ricos, parece certo que esse amigo de Sócrates recebeu forte influência do eleatismo. Mas, influenciado por Sócrates, Euclides teria transformado o Ser único de Parmênides, de natureza lógico-ontológica, num ser de natureza ética: o Bem. Teria continuado a considerá-lo, porém, em oposição absoluta ao não-ser, tese que Platão combate no Sofista. O eleatismo que perdura nos megáricos torna-os essencialmente erísticos, não dialetas (diferença que Platão focaliza no Filebo). Além disso, Euclides defende uma teoria das formas na qual as essências são unidades com todas as características do ser eleático, ou seja, verdadeiros átomos formais. Esse atomismo lógico é também combatido por Platão no Sofista, quando se refere aos “amigos das ideias” e lhes contrapõe a noção de não-ser enquanto alteridade. Curioso é que, frequentemente, leituras parciais ou superficiais da obra de Platão atribuem à sua doutrina das ideias exatamente aquilo que ele rejeita na concepção megárica. (Veja-se, particularmente: Léon Robin, La Pensée grecque, Albin Michel, Paris, 1948, p. 196; Jean Humbert, Socrate et les petits socratiques , Presses Universitaires de France, Paris, 1967, pp. 272-7.)

[49] N ‘A República — como mostra a imagem da linha dividida — as entidades matemáticas ocupam o primeiro nível do conhecimento inteligível, servindo de intermediários entre os objetos físicos e as ideias. Essa mediação é possível porque elas ainda manifestam compromisso com o empírico e a multiplicidade; assim, podemos escrever 3 ou desenhar um triângulo, ou então utilizar vários desses elementos (p. ex., 3 ± 3 ± 3 = 9). Os números e as figuras da matemática são, portanto, ainda sensíveis. Já a ideia de três ou a essência de triângulo (a triangularidade) é única e irrepre-sentável: apenas inteligível.

[50] Pierre-Maxime Schuhl, L’Oeuvre de Platon, Hachette, 1954, pp. 199-207.

[51] Nicolas-Isidore Boussoulas, L’Être et la composition des mixtes dans le Philèbe de Piaton, Presses Universitaires de France, Paris, 1952, p. 60 e seg.

[52] A aproximação entre os dois filósofos provém do mesmo tópos ou lugar-comum em que se enraizam seus pensamentos: o lugar do preferível que valoriza a qualidade em detrimento da quantidade, valorizando o raro, o excepcional. Segundo Perelman, essas seriam características do lugar-comum romântico, que se contrapõe ao lugar-comum clássico (Chaim Perelman — “Classicisme et romantisme dans l’argumentation”, em Le Champ de l’argumentation, Presses Universitaires de Bruxelles, 1970). Mas, evidentemente, não se pode falar de romantismo em Heráclito ou em Platão. Neles, a valorização da qualidade é valorização da aristocracia (do espírito) e está inserida num conjunto de valores típicos do classicismo, como ordem, medida, proporção, aos quais acrescentam a exaltação do melhor e a busca do ideal de excelência. Em Platão, os “bons e belos” — os aristoi — não são todos; as almas têm qualidades diversas e diferentes aptidões, pois nem todas contemplaram do mesmo modo as ideias, antes de se unirem aos corpos (como mostra o mito do Fedro); por isso mesmo, devem desempenhar papéis distintos na pólis. Essa diferença no nível psicológico determina diferenças nos campos pedagógico e político, estando na base da crítica que Platão endereça à isonomia democrática (que considera iguais todos os que têm direito à cidadania) e na base de sua concepção de que o leme da nau política deve ser entregue ao mais sábio: o que atinge .3 patamar superior da escalada do conhecimento, o dialeta, o filósofo. Por causa da desigualdade constitutiva das almas nem todos atingem o estágio filosófico do conhecimento: para Platão o conhecimento é conquista pessoal, não há possibilidade de revelação coletiva.

[53] No Político (299 d/e), ao discutir a questão das leis e códigos que regem as artes, Platão mostra que se elas tivessem de se guiar completamente por tais codificações, a pesquisa e a procura ficariam impedidas, e as artes desapareceriam totalmente. E acrescenta: “de modo que a existência, já tão penosa agora, tornar-se-ia absolutamente impossível de ser vivida”. (Le Politique, trad. Auguste Diès, Les Belles Lettres, Paris, 1960.) Sobre essa passagem do Político, veja-se: Pierre-Maxime Schuhl, Platon et l’art de son temps — arts plastiques, p. 99.

[54] Michel Foucault, História da sexualidade, vol. II: “Ouso dos prazeres”, Rio de Janeiro, Graal, 1984.

[55] Jean Humbert, op. cit., p. 231 e seg.

[56] Idem, ibidem, p. 250 e seg. e, principalmente: Gabriele Giannantoni, I Cirenaici, Sansoni Editore, Firenze, 1958.

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