2003

A ciência e a ética da responsabilidade

por Giovanni Berlinguer

Resumo

A Ciência possibilita curar doenças, resolver os problemas da esterilidade e superar os handicaps, viver muito tempo, controlar a reprodução; em outras palavras, valorizar a corporeidade humana como jamais no passado. À pergunta mais óbvia – “quem pode ter acesso a estas vantagens?”- acresce outra, que decorre do risco de reificação do ser humano, de sua redução conceitual a um programa genético e da transformação do corpo em mercadoria. Quando se começou a falar de transplantes humanos, Antonio Gramsci sublinhou (1918) o que poderia vir a acontecer: “a vida, toda a vida, não só a  atividade mecânica das artes, mas a própria fonte fisiológica da atividade, se destaca da alma e, em troca, transforma-se em mercadoria”. Isto está agora acontecendo não só no que se refere aos órgãos, mas com gametas masculinos e femininos, úteros alugados, sequências de DNAs que se tornam objeto de patente. O debate filosófico sobre estes temas se mistura a fortes interesses com orientações diferentes que se confrontam nos EUA, na Europa, na Ásia e na América Latina. A notável contribuição que as empresas industriais deram à pesquisa científica (por exemplo, na produção de fármacos) e o fato de que a economia de mercado se tenha mostrado o melhor método para promover a economia não deve induzir a preconizar uma sociedade de mercado, e menos ainda uma ética em que o mercado represente o único valor. Como é possível conciliar liberdade da ciência, equidade social e dignidade dos seres humanos? Prevalecerão tais tendências neste século XXI?


RESPONSABILIDADE E LIBERDADE DA CIÊNCIA

A palavra responsabilidade pode ter dois significados diversos, aliás, opostos. Um é “empenho”, “consciência”, “escrúpulo”, “moralidade”. O princípio de responsabilidade, segundo o filósofo Hans Jonas, precisa estar na base da ética moderna devido ao extraordinário poder adquirido pela espécie humana para modificar o ambiente planetário, os seres vivos e nós mesmos. Depois de afirmar que até agora a teoria ética pouco se ocupou da responsabilidade, ele escreveu:

Tanto o saber como o poder eram demasiadamente limitados para incluir o futuro mais distante nas previsões e a totalidade do globo terrestre na consciência da própria causalidade. Em vez de perguntar-se ociosamente a respeito das consequências remotas de um destino ignorado, a ética concentrou-se na qualidade moral do ato no momento em que é praticado, no qual o direito do próximo que partilha nossa sorte deve ser respeitado. Sob o signo da tecnologia, entretanto, a ética tem a ver com ações (mesmo as que não são praticadas por um único sujeito) que têm um alcance sem igual, acompanhadas de um conhecimento do futuro que, apesar de incompleto, ultrapassa todo o saber precedente. A isso se une a escala das consequências a longo prazo e frequentemente também a sua inevitabilidade. Tudo isso põe a responsabilidade no centro da ética, com horizontes temporais e espaciais que correspondem exatamente aos das ações.[1]

Ações pelas quais cada um, eu acrescentaria, é chamado a responder, em proporção direta ao seu saber e ao seu poder. A palavra responsabilidade, entretanto, na linguagem comum, quer dizer também culpa, a qualidade do réu, o erro. É nesse sentido, mais do que no outro, que hoje se questiona a ciência. É cada vez mais frequente que, apesar de atribuirmos à ciência méritos excepcionais do progresso humano, como o prolongamento da vida, a cura de muitas doenças, o aumento dos recursos alimentares, da capacidade de comunicação e, enfim, do conhecimento a respeito de nós mesmos, por meio do estudo da mente e do deciframento do genoma, apesar de estarmos todos desfrutando dessas vantagens, a ciência seja muitas vezes questionada, sendo evocados cenários de pesadelo e invocados limites à sua liberdade.

Não é a primeira vez que isso acontece, sobretudo diante da evidência de abusos e malefícios realizados com o uso opressivo e desumano de técnicas descobertas. Na tardia primavera de 1918, por exemplo, nos agitados e desesperados meses finais de um conflito que foi definido como “uma chacina inútil”, o mundo se revirou com o sofrimento e o extermínio provocados por gases asfixiantes, ou seja, com as armas de um novo tipo de guerra: a guerra química. Muitos investiram então contra a ciência. Um jovem que tinha em Turim suas primeiras experiências jornalísticas e políticas, Antonio Gramsci, escreveu, contrariando a maioria, um artigo no jornal socialista Avanti!, polemizando com os que haviam “proclamado pela enésima vez a derrota da ciência”:

Química aplicada aos gases asfixiantes, lacrimogênicos, ulcerogênicos, mecânica aplicada aos canhões de longo alcance (…) Sim, mas também a enxada pode ser usada para rachar crânios, a escrita pode servir para falsificar títulos cambiais e espalhar cartas anônimas (…) E não é por isso que se proclama a derrota da agricultura e da caligrafia.

A ciência tem o dever desinteressado de investigar relações novas entre as forças, entre as coisas. Ela falha somente quando se toma charlatanismo. Os homens fazem uso das descobertas para mutilar e matar em vez de se defenderem do mal e da cegueira das forças naturais? Está em jogo uma vontade que é estranha à ciência, que não é desinteressada, mas depende intrinsecamente da sociedade, do tipo de sociedade em que se vive.[2]

Acusar e reprimir a ciência, ele sugeria então, é um modo fácil de absolver a sociedade de suas culpas e de reprimir a inteligência humana. Ontem e hoje, se se parte do fato de que o dever da ciência é “desinteressado”, deduz-se que ela deve ser livre. Essa exigência não nasce apenas de motivos práticos, de benefícios que ela nos deu e pode dar. A cada um desses benefícios, de fato, podem ser contrapostos danos, ainda que pequenos; e sobretudo o fato de que não há simetria entre uns e outros: com muita frequência, na verdade, os benefícios são vantajosos para alguns e onerosos para outros. Bem mais forte é a razão de princípio a favor dessa liberdade: ela deriva do fato de que a ânsia de conhecimento e compreensão é intrínseca à própria evolução da espécie humana, e criar obstáculos a ela constituiria, portanto, uma profunda regressão antropológica. Como a arte, a filosofia, a literatura, o conhecimento científico não pode progredir sem criatividade, e esta não pode se manifestar sem liberdade.

Substancialmente, pode-se dizer que a ética fundamental da ciência está em seu rigor metodológico e em sua liberdade. Esta é perseguida até o fim, seja opondo-se às restrições dogmáticas, seja removendo outros obstáculos. Por exemplo, os que impedem a comunicação científica: um terço de todas as pesquisas é confidencial, isto é, elas são segredos militares, e outras são segredo industrial. Este último pretende impedir a concorrência ilícita, mas muitas vezes é usado para ocultar descobertas de notável utilidade, que poderiam produzir benefícios coletivos mas também lesar interesses privados. Outro exemplo: a falta de recursos para as pesquisas públicas — com prioridades estabelecidas seja pelas ciências de base, seja por aquelas voltadas para o progresso do país — ou ainda a falta de apoio (como incentivos fiscais) às indústrias que pretendem desenvolver pesquisas avançadas que respondam não à exigência de lucro, mas a necessidades gerais. Esse tipo de obstáculo é particularmente notável na Itália, onde, por razões históricas, políticas e culturais, a ciência certamente não é muito desenvolvida, e sim muito pouco, e o país se arrisca, portanto, a ser levado por outros, mais avançados nesse campo. A liberdade da ciência, em outras palavras, não é apenas algo a ser defendido: é algo a conquistar.

O ANTES E O DEPOIS DO CONHECIMENTO

Em 1968, na França e em vários lugares, jovens fizeram uso do slogan: “É proibido proibir”. É possível transferir esse lema para o âmbito do saber científico? A resposta mais persuasiva a essa pergunta pode ser dada pela experiência dos últimos cinquenta anos.

Nesse período crucial foram introduzidos, muitas vezes por iniciativa e com a concordância da comunidade científica, linhas mestras e restrições, permissões ou adiamentos, diretrizes ou barreiras, incentivos ou obstáculos, cujas motivações eram quase sempre válidas e que tiveram consequências práticas e morais positivas, e que contribuíram ao mesmo tempo para um avanço sem precedentes e para suscitar o consenso público com relação à ciência. Apesar de perceber que a distinção pode parecer esquemática, e ser de todo modo arbitrária, gostaria de sublinhar o fato de que essas intervenções se voltaram principalmente não ao saber, e sim ao antes e ao depois do conhecimento científico:

a) o antes é a escolha, também baseada em critérios morais, dos melhores objetos e métodos para atingir o conhecimento;

b) o depois é a orientação e a seleção, com base em critérios sociais e políticos, das aplicações técnicas e práticas do conhecimento adquirido.

Deve-se ter em mente que a primeira fase, isto é, a escolha dos objetos e dos métodos de experimentação, ao longo da história, muitas vezes ocorreu de modo selvagem, sem o consenso dos indivíduos e sem respeito pela dignidade humana. Foi assim até quase meados do século XX, época das crueldades extremas das pesquisas realizadas nos campos de concentração nazistas. A onda de indignação causada por esses métodos levou a própria comunidade científica a estabelecer para si própria, com o código de Nuremberg — proclamado na mesma cidade em que se desenvolvia o processo contra os criminosos de guerra —, normas precisas para experiências com seres humanos; entre essas normas, a defesa da informação e do consenso por parte do sujeito como condição imprescindível para toda pesquisa. Vieram em seguida as regras deontológicas formuladas em Helsinki (e muitas vezes atualizadas, a última em outubro de 2000) pela Associação Médica Mundial e outros códigos de conduta, aos quais se juntaram dispositivos legais na mesma direção. Além disso, nos últimos dez anos, em conformidade com um sentimento difuso de compaixão e com as ações de ambientalistas e associações de defesa dos animais, foram estabelecidas regras precisas também para os experimentos com animais. Agora, enfim, muitos esperam a exigência de regulamentação das pesquisas com embriões humanos.

Muitas vezes essas regras foram vistas com suspeita, como limites e restrições que poderiam cercear a ciência. Na verdade, a pesquisa nunca progrediu tão rapidamente, e nunca teve uma legitimação moral tão ampla aos olhos dos cidadãos, como quando aceitou funcionar de modo transparente, sob o olhar vigilante da opinião pública, no respeito aos seres humanos e aos demais seres vivos.

A fase do depois, isto é, a escolha entre as diversas aplicações das descobertas científicas, é mais complexa, devido, entre outros, ao fato de que ela está embaralhada com inúmeras outras decisões, isto é, nessa fase intervêm interesses poderosos, estatais ou privados, que definem as próprias prioridades da pesquisa científica. Hoje essas prioridades não dependem apenas da livre iniciativa dos próprios pesquisadores, mas também, e amplamente, dos financiamentos e dos estímulos necessários a empreendimentos de grande porte, como o deciframento do genoma humano.

O tema das prioridades ecoou há quase trinta anos, na Conferência Internacional sobre a Responsabilidade da Ciência, organizada pela Fundação Menarini, que antecipou muitos dos temas atuais. Por exemplo, A. O. Lucas, dirigente da Organização Mundial de Saúde (OMS), ressaltou os múltiplos fatores que impediam que a ciência assumisse plena responsabilidade diante do sofrimento humano em cada parte do mundo:

No que diz respeito às doenças parasitárias das regiões tropicais, os progressos científicos foram particularmente lentos, e parece evidente que as ciências biomédicas modernas não se empenham plenamente para enfrentar esses importantes desafios. Isso se deve em parte à dissociação geográfica entre duas situações: de um lado, as ciências biomédicas são mais ativas nos países tecnologicamente desenvolvidos, de outro, as maiores doenças parasitárias, como a malária e a esquistossomose, distribuem-se principalmente pelos países tropicais em desenvolvimento.[3]

Naquela ocasião dr. Lucas anunciou um programa especial da OMS para superar esse desequilíbrio, “to bridge this gap”. Isso não aconteceu, e esse desequilíbrio se aprofundou. Nesse meio tempo surgiu um novo flagelo: a Aids. Os recursos destinados às pesquisas sobre a malária e a Aids mantêm agora uma relação de um para cinco, mesmo que as duas doenças causem um número próximo de mortes. As diferenças são apenas duas: a Aids atinge ricos e pobres, e a malária, quase exclusivamente os pobres; depois, existe um mercado para os remédios contra a Aids, e contra a malária, não. Essas diferenças explicam, mas não podem justificar, nem no plano moral nem no sanitário, a gravidade desse desequilíbrio.

SAÚDE PARA TODOS OU PARA ALGUNS?

O exemplo que citei pode conduzir a uma reflexão de caráter histórico, a uma comparação dos ritmos e das maneiras como ocorre a difusão dos resultados da ciência médica, que muitas vezes podem salvar vidas.

Esses resultados tiveram, sobretudo no século XX, uma distribuição mais ou menos rápida e frequentemente universal. Assim aconteceu com as vacinas, primeiro contra a varíola, depois contra a poliomielite e outras doenças. Foi assim com a penicilina e outros antibióticos. Ao longo do século passado, em conjunto com fatores sociais e políticos, isso contribuiu para a redução das desigualdades entre os seres humanos, dando a muitas pessoas uma vida mais longa e mais saudável.

Desde há algum tempo, entretanto, os novos instrumentos de luta contra as doenças não têm tido a mesma distribuição. Ao contrário, os benefícios das descobertas biomédicas não são mais universais, e sim seletivos, e podem contribuir, mesmo que involuntariamente, para o aumento das desigualdades. Um exemplo é dado pelas curvas de sobrevivência dos doentes de AIDS. Antes que se introduzissem remédios suficientemente eficazes, que hoje conseguem retardar notavelmente a morte desses pacientes, os anos de vida após a manifestação da doença eram poucos, mas mais ou menos iguais para todos. Tão logo os remédios se tornaram disponíveis, a distância entre a esperança de vida dos que tinham e dos que não tinham acesso a eles aumentou visivelmente, e esse acesso é definido com base em critérios seletivos fundamentados na renda, no nível de instrução, no sistema de saúde e, obviamente, no custo dos remédios.

Uma situação análoga está se criando para muitos outros remédios, de caráter profilático ou terapêutico. Uma vez que o fenômeno possui causas complexas, eu me pergunto: isso se deve a características intrínsecas aos remédios atuais? Ou a interesses que guiam sua produção e distribuição, e que influenciam também a escolha das instituições? Ou ainda ao aumento das desigualdades de renda da população, ou à maior seletividade dos sistemas assistenciais? Ou, enfim, à insensibilidade moral e ao clima cultural que hoje negligenciam ou põem em segundo plano a questão da igualdade na distribuição da vida e da morte? Provavelmente todos esses fatores agem em sinergia, cada um com um peso específico, variando de acordo com as doenças e as situações.

O que parece certo é que a inversão dessa tendência não será um processo espontâneo, não virá por si só. E que o acesso aos benefícios da era pós-genômica corre o risco de seguir o mesmo caminho, fortemente seletivo, se juntamente com os programas de pesquisa, que são de extraordinário interesse, não houver um programa específico de ação.

A novidade positiva é que a exigência de maior igualdade na saúde e no acesso aos progressos da medicina foi apresentada, ao longo do ano 2000, por fontes diversas e influentes. O G8 manifestou-se a respeito, quatro influentes organizações internacionais (a Organização das Nações Unidas, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial) fizeram promessas, com objetivos e prazos precisos, na declaração Um mundo melhor para todos,[4] chefes de Estado do mundo todo, reunidos solenemente na ou, fizeram esse pedido.[5]

Após o fracasso dos esforços da OMS, iniciados na década de 1970, para assegurar “saúde para todos no ano 2000”, data adiada para o ano 2020 e enfim para o distante final do século XXI (com certeza, nenhuma testemunha dessa promessa poderá constatar seu êxito), não podemos ficar tranquilos com essas declarações. Elas no entanto expressam um incômodo, percebido também pelos poderes que têm influenciado majoritariamente os destinos do mundo, e uma aspiração cada vez mais difundida de corrigir as distorções mundiais.

A RESPONSABILIDADE DA POLÍTICA

O dever de perseguir esses objetivos diz respeito fundamentalmente à política e à cultura, mais do que à ciência, a qual tem sobretudo “o dever desinteressado de descobrir novas relações entre as energias e as coisas”, o que tem feito com resultados extraordinários. A disparidade entre o avanço exponencial do conhecimento e as prioridades políticas diante do sofrimento da população mundial já era evidente há alguns decênios, e foi comentada na já citada conferência internacional de 1976, pelo vice-diretor-geral da OMS:

Infelizmente, muitas partes do mundo ainda não superaram as consequências históricas de quase cinco séculos de dominação colonial, que tiveram como resultado uma concentração avassaladora do poder econômico, nas mãos de um pequeno grupo de nações. Hoje, pelo menos três quartos da renda, dos investimentos e dos serviços e quase a totalidade da pesquisa científica mundial estão nas mãos de um quarto da população. Orgulhamo-nos de pertencer a uma geração que, pela primeira vez desde o surgimento da espécie humana, pôs os pés em outro corpo celeste, mas isso revela a terrível verdade de que pode ser mais fácil viajar até a Lua do que apagar da superfície da Terra as ideologias da necessidade da pobreza, da exploração dos seres humanos, do empobrecimento e da deterioração do ser humano e de nosso ambiente.[6]

Depois de um quarto de século, algumas coordenadas em que essas afirmações se baseavam se modificaram. Hoje podemos substituir ou adicionar à exploração do espaço a exploração de nossa composição interna, o genoma; a dominação colonial foi substituída ou a ela veio se juntar um processo de globalização, no qual a unificação necessária do mundo é acompanhada pela concentração, única na história, de poderes e riquezas. Entretanto, o desequilíbrio no acesso às riquezas não se alterou, aliás, se agravou. Na década de 1980, a relação mundial entre a renda dos 10% mais pobres e a dos 10% mais ricos era de 1 para 30, e agora é de 1 para 100. A deterioração do ambiente tampouco se modificou; ao contrário, hoje sabemos que existe uma mudança de tendência no clima do planeta que pode comprometer gravemente o destino das gerações futuras, sem que as nações que são majoritariamente responsáveis pela situação sintam o dever de liderar os esforços já definidos para reduzir o lançamento de poluentes na atmosfera. As declarações solenes expressas durante o ano 2000 mostram que “as ideologias da necessidade da pobreza” não são tão hegemônicas como nas últimas duas décadas do século XX, e que, ao contrário, hoje se considera indispensável combater a pobreza, com base tanto em motivações humanitárias como na consciência das consequências da pobreza para a convivência humana. O que esses fatos deixam transparecer, no entanto, é expressão mais de um sentimento de má consciência do que de uma real vontade de agir.

A RESPONSABILIDADE DOS CIENTISTAS:
 INFORMAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS

Muitos cientistas declaram querer contribuir para o enfrentamento de tais problemas, “na qualidade de cidadãos”. Esse empenho corresponde a uma tradição positiva de respeito à paz e aos direitos humanos, que teve entre seus protagonistas, no século XX, Albert Einstein, Bertrand Russell, Linus Pauling (prêmio Nobel de química em 1954, e da paz em 1962), Andrej Sakharov e incontáveis outros, menos famosos, mas de igual coragem, que tomaram parte no jogo político com o peso de seus conhecimentos específicos e de sua influência moral. A tradição prossegue hoje, naqueles mesmos terrenos e em outros, como o meio ambiente, os direitos das mulheres, as biotecnologias, e é difícil avaliar se a contribuição dos cientistas, “na qualidade de cidadãos”, é hoje mais ou menos relevante e difundida do que no passado.

Existiria algum campo especifico no qual homens e mulheres de ciência também poderiam, “como tais”, contribuir para corrigir ou inverter as tendências atuais? Creio que isso possa ser discernido não em privilégios ou deveres particulares, e sim na própria natureza do trabalho científico, o qual consiste em alcançar novos conhecimentos antes e melhor do que os outros. Essa vantagem, que se deve às qualidades pessoais e aos recursos coletivos investidos, implica não digo uma obrigação, mas uma responsabilidade particular no campo dúplice da informação e da interpretação dos dados: dois aspectos de uma mesma exigência, a qual deriva do fato de que a descoberta científica é, além de um dado, parte de um sistema de conhecimentos, de ideias e de valores destinado a influir, seja bem, seja ocasionalmente mal, no destino dos seres humanos.

A respeito da informação, sendo frequentador habitual de congressos científicos que são, além de ocasião essencial de intercâmbio de ideias e sentimentos, uma forma privilegiada de turismo (não os vi jamais convocados em lugares desagradáveis ou desolados), ouvi muitas vezes durante as conversas da pausa para o café, e algumas vezes nos discursos da tribuna, constantes lamentos sobre o modo como a mídia transmite as notícias, deformando-as ou interpretando-as arbitrariamente, ou mesmo empurrando a opinião pública em direção a uma oscilação pendular entre os extremos do miraculoso e do catastrófico. É preciso entretanto assinalar duas novidades. Uma é negativa: o fato de que alguns cientistas preferem pular o dever obrigatório ou arriscado de submeter suas descobertas à peer review, à análise de seus pares que dirigem as publicações científicas (não isentos, estes também, de defeitos e distorções), e se encaminham diretamente à mídia em busca de um reconhecimento imediato e incontrolável, que será mais vasto quanto maior for a ênfase sobre as proclamadas vantagens coletivas (quase sempre se trata de descobertas que eliminarão logo os maiores males: as doenças cardiovasculares ou o câncer). A outra novidade é positiva: ela consiste na formação de uma numerosa categoria de jornalistas científicos competentes e objetivos, e no comparecimento de publicações que desenvolvem uma divulgação de bom nível.

O papel dos cientistas na informação assume particular relevância com a difusão e com o impacto crescente das biotecnologias sobre a vida humana e a biosfera, sobre as ideias e sobre comportamentos individuais e coletivos. Esse papel foi discernido com clareza pelo filósofo Evandro Agazzi, que sublinhou os três seguintes pontos:

  1. Questão: existe uma obrigação moral, ou um dever, de informar a comunidade social a respeito de pesquisas biotecnológicas e de seus resultados? A resposta é positiva, porque tais pesquisas e resultados dizem concretamente respeito à sociedade e são percebidos pela comunidade social como potencialmente perigosos. Mesmo se os medos do público pudessem não ter fundamento, há a obrigação moral de os levar a sério e de oferecer uma informação honesta sobre sua real situação.
  2. Não apenas há a obrigação moral de dar uma informação concreta a respeito dos aspectos factuais das biotecnologias, mas essa informação deve também permitir às pessoas que exprimam uma avaliação moral desse complexo de fatos. Essa avaliação implica, para cada tecnologia, juízos morais distintos a respeito de seus objetivos, meios, condições e consequências. Portanto uma informação correta sobre as biotecnologias deve compreender todos esses aspectos e não se restringir ao confronto entre “custos e benefícios”.
  3. O objetivo dessa informação deveria ser mostrar que a biotecnologia não pode ser aceita ou recusada “como tal”, ou mesmo “globalmente”, mas (como toda tecnologia) deve ser avaliada em seus diversos ramos, programas e realizações, para alguns dos quais podem ser legítimos os limites inspirados pela ética ou pela sociedade, e admitida uma regulação que não seja tecnofóbica.[7]

Isso se refere aos cientistas, às fontes primárias da informação. Com eles intervêm e influem sobre a escolha e sobre a qualidade das notícias, é evidente, outros atores: os jornalistas, as redes de comunicação, a política, o público, as empresas. Em um debate enérgico ocorrido em Paris por iniciativa do Comité Consultatif National d’Éthique (CCNE) sobre o tema “Ética e mídia”, no qual esses assuntos foram representados, o relator D. Wolton, jornalista e membro do CCNE, propôs como norma fundamental de procedimento (e também de democracia) “a exigência de que cada um dos atores, no âmbito da própria liberdade, competência e responsabilidade, respeite plenamente a autonomia e a especificidade do próprio papel”.[8]

Pode parecer uma banalidade. Usar esse princípio como um prisma, através do qual se evidenciam os diversos comportamentos, pode todavia pôr à luz as distorções de que nascem frequentemente esperanças ilusórias e medos injustificados, ignorância e preconceitos, comportamentos coerentes ou irracionais, entusiasmos e desilusões.

O clamoroso caso da encefalopatia espongiforme bovina (EEB), por exemplo, não nasceu por culpa da mídia, que engrandeceu ou distorceu as informações, mas, ao contrário, nasceu de sua dependência total da fonte. A primeira falta é imputável aos criadores e à indústria de rações. A falta consiste na ignorância injustificável, por parte dos seus dirigentes e consultores científicos, da existência de uma transmissão das doenças entre espécies, a qual acompanha a evolução humana no mínimo desde o neolítico, quando a criação de animais, além das vantagens, nos trouxe a tuberculose de origem bovina, para chegar provavelmente a doenças que surgem agora, como a Aids e o vírus Ebola. À ignorância se uniu a avidez, estimulando-os a transformar animais herbívoros em carnívoros e em canibais, e portanto facilitando (poderíamos até dizer: organizando) a transmissão dos agentes patogênicos dos ovinos aos bovinos, e destes aos humanos.

A segunda falta pode ser imputada à política, e precisamente ao governo britânico, cujo primeiro-ministro John Mayor só em 2000 reconheceu (como agora é moda em política e religião) as próprias culpas: a notícia da encefalopatia bovina foi em realidade escondida para proteger os interesses dos criadores, o que significou facilitar (isto é, organizar) a exportação da doença para meia Europa, onde não apenas os cidadãos e as mercadorias podem viajar sem documentos de identificação, mas também os agentes patogênicos. Quando então se manifestaram os primeiros casos de EEB entre seres humanos, as autoridades britânicas negaram por longo tempo, com o apoio de alguns cientistas, que ela derivasse dos bovinos infectados, afirmando com certeza de que se tratava da típica doença de Creutzfeld-Jacob, que tem transmissão entre homens, e não entre espécies. A importância do alarme disparado então por esses silêncios ou sequestros ou desvios de notícias é facilmente avaliável, como também o dano econômico (em grande parte coberto por ressarcimentos públicos), enquanto não é inteiramente calculável o número de pessoas que pela doença foram ou serão vitimadas.

Em um outro caso, desta vez italiano, o dos remédios contra o câncer do professor Di Bella, o descarrilar do próprio papel específico envolveu grande parte dos atores.[9] Na qualidade de homem de ciência, o professor negou o acesso às cartelas clínicas, isto é, às informações necessárias para que outros cientistas pudessem verificar os seus resultados. Em vez disso ele alimentou a mídia, atropelando o segredo profissional, com os próprios pacientes “curados”. Grande parte dos diretores de jornais, além disso, arrancou dos redatores científicos a pauta do caso, dado o impacto da notícia, e a deu a comentadores fantasiosos e improvisados. A política, enfim, saiu também dos próprios trilhos, sobretudo por obra da direita, que tentou transformar Di Bella em um campeão da liberdade. Resistiu ao acidente, por sorte, a ministra da Saúde, Rosy Bindi, que conseguiu, com algumas perdas, limitar os danos e fechar o triste capítulo.

O outro tema que ocupa os cientistas “como tais” é a interpretação das descobertas, de seu significado e das possibilidades que elas abrem. Comentar e dar sentido às descobertas é um dever de todos, obviamente, mas é dos cientistas que parte quase sempre, juntamente com a notícia, a primeira avaliação do significado delas. Como exemplo das possíveis distorções pode-se ressaltar o fato de que os progressos da genética e da biologia molecular, que suscitam admiração ilimitada, começam a criar críticas e desagrados pelo fato de estarem produzindo, como consequência indesejada e imprevista, o ressurgimento de uma ideia que é tão antiga quanto a nossa evolução como espécie: a de que exista um destino já escrito no nascimento para cada um de nós.

A diferença é que, em vez de vê-lo como predeterminado pelas divindades ou por outras forças sobrenaturais, esse destino nos é mostrado ou nos aparece como escrito inteiramente nos genes. O destino refere-se não apenas a doenças particulares ou à predisposição a outras doenças, o que algumas vezes é mais ou menos verdadeiro, mas também a cada característica de nossas vidas: a agressividade, o amor materno, a criatividade, a inteligência, e assim por diante, incluindo a duração de nossa vida. Que nisso haja algo de hereditário se sabe faz tempo, tanto que era comum dizer que o melhor modo de viver muito tempo era agendar para nascer neto de quatro avós longevos; depois pararam de dizê-lo, porque vivem muito também os descendentes de avós normais.

Ao superdimensionamento do papel dos genes se junta a sugestão de confiar a própria sorte à ciência, enfatizando a esperança de que, quando houver um destino adverso, ele poderá ser corrigido apenas com a terapia genética, que logo estará ao alcance das mãos, e não mais combinando o que podem dar desde hoje a educação, o ambiente, a vontade própria e a solidariedade dos outros com o que poderá dar no futuro a ciência.

No plano científico, deve-se partir dos progressos que a genética pode trazer seja aos conhecimentos etiológicos, seja às modalidades terapêuticas. Todavia a equação um gene = uma doença = uma terapia genética, nascida na onda dos novos conhecimentos, é raramente válida, em sua formulação reducionista: um mesmo gene pode na verdade influenciar mais doenças, e cada uma dessas pode ser ligada a mais genes, além de numerosos outros fatores. Pode-se talvez fazer um paralelo histórico com uma outra equação, que possuía provas científicas bem mais amplas a seu favor com relação às doenças da época, surgida entre o fim do século XIX e o começo do XX, na onda da descoberta dos germes como agentes das doenças mais difundidas: um micróbio = uma doença = uma vacina. Viu-se depois que frequentemente os micróbios eram causa necessária mas não suficiente das epidemias, que não existiam micróbios do câncer e da loucura, por muito tempo buscados, que para muitas doenças era difícil e talvez impossível encontrar vacinas, que para outras o principal remédio era uma alimentação melhor. Então (como amanhã) as soluções mais eficazes foram encontradas por vezes em ações específicas, frequentemente em intervenções coordenadas em múltiplos planos.

Há portanto razões práticas, além de exigências morais, para lembrar a “Declaração universal sobre o genoma humano”,[10] promulgada pela Unesco. Em seu artigo 2a, depois ressaltado no 2b (cada indivíduo tem direito à sua dignidade independentemente de suas características genéticas), ela afirma: “Essa dignidade impõe não reduzir os indivíduos a suas características genéticas e respeitar o caráter único de cada um a sua diversidade”. É justo acrescentar que muitos geneticistas estão empenhados há tempos, com o peso de seu prestígio, em difundir essa orientação, isto é, em valorizar não o destino preestabelecido, mas a liberdade dos seres humanos.

A CIÊNCIA, O MERCADO E AS PATENTES DO DNA HUMANO

O último tema que eu gostaria de desenvolver, referindo-me principalmente à genética e em particular ao patenteamento das sequências de DNA humano, diz respeito à relação entre a ciência e o mercado.

Estou convencido de que o sistema de mercado é desde milênios, hoje de maneira ainda mais dinâmica, o melhor método para promover e guiar o desenvolvimento da produção, assim como para promover nesse campo uma liberdade maior do que aquela que se pode atingir, como demonstra a experiência, em uma economia totalmente estatizada. Estou além disso convencido de que as empresas industriais deram e darão, no futuro, também graças ao sistema de patentes, uma grande contribuição ao desenvolvimento da ciência e de suas aplicações, sobretudo no campo dos remédios. Apoiar uma economia de mercado não implica, entretanto, desejar que a humanidade viva necessariamente em uma sociedade de mercado na qual todas as exigências e prioridades sejam reconduzidas a uma só; em que, por exemplo, a instrução esteja dirigida à formação de “consumidores educados” (como sustentam alguns pedagogos nos Estados Unidos), em vez de cidadãos responsáveis, críticos e conscientes. Implica ainda menos aceitar que seja dominante e ao final exclusiva uma moral de mercado, à qual se devem subordinar todos os outros valores, incluindo o valor moral do corpo humano e de seus conteúdos essenciais.

Utilizo-me novamente, para esse tema, do artigo de Antonio Gramsci que citei no início. Ele, depois de ter defendido a ciência dos detratores desta, lembrava e comentava um desenvolvimento original da medicina, que tinha sido previsto havia poucos anos: “O dr. Carrel abriu uma nova via para a cirurgia: as perspectivas para transplantes humanos se multiplicam”. A lembrança referia-se a Alexis Carrel, que por meio da sutura de vasos sanguíneos, pelo transplante de rins entre cães pela cultura in vitro dos tecidos havia obtido o prêmio Nobel e suscitado amplo clamor. O artigo perguntava-se: “O que acontecerá?”, e a resposta era peremptória: “Ainda não chegamos […] ao uso dos órgãos de cadáveres para substituir nos vivos órgãos que tenham se deteriorado (…) Mas chegaremos”. E então? Então “a vida se tornará ela também uma mercadoria”.

O colega brasileiro Volnei Garrafa e eu comentamos essa previsão singular na introdução da segunda edição de um livro nosso, escrito para documentar, passo a passo, o que aconteceu. Em essência, nos decênios sucessivos, à medida que as descobertas e invenções técnicas tornavam acessíveis para o bem dos outros as partes singulares do corpo humano, foram abertas frestas ou grandes janelas em que se trabalhou para fazer de cada uma dessas partes um objeto de compra e venda.[11]

Agora chega-se à sequência do DNA e as preocupações crescem. Já em 14 de março de 2000, quando se aproximava rapidamente o sequenciamento total do genoma humano, Bill Clinton e Tony Blair fizeram conjuntamente um apelo aos cientistas para que estes tornassem plenamente acessíveis as informações obtidas: “Para realizar plenamente a promessa dessa pesquisa, os dados fundamentais sobre o genoma humano, incluídas as sequências de DNA e as suas variações, devem ser livremente desfrutados em toda parte pelos cientistas”. Clinton e Blair desejaram além disso que as pesquisas pós-genoma prosseguissem com base em colaborações multilaterais. Mas já fazia algum tempo que tinha sido iniciada, também por obra dos institutos nacionais de saúde, a corrida às patentes. Os registros feitos nos escritórios adequados não abrangiam apenas, como seria justo, as técnicas, as substâncias e os instrumentos apropriados para o estudo e a eventual modificação dos genes, mas também as próprias sequências de genes, isto é, a informação primária escrita pela evolução natural em nosso patrimônio hereditário.

A situação que está sendo criada parece totalmente nova, sem par no passado. Ainda assim, mesmo se parece bizarro recorrer à comparação com os sistemas feudais do passado para descrever a relação que se está criando entre o poder e a ciência mais avançada, alguma semelhança com os costumes antigos parece evidente. Dentro em pouco, quando todo o território genômico estiver patenteado, adentrá-lo será difícil e caro, como era deslocar-se ou transportar mercadorias na época em que senhores feudais e vassalos partilhavam entre si os direitos exclusivos sobre todo o território de um país. Quem quisesse cruzar uma fronteira ou atravessar uma ponte para chegar a outro feudo deveria pagar um pedágio.

Seria possível contestar essa afirmação dizendo que as patentes impõem tornar públicas as informações, e que essas patentes podem portanto tornar mais fáceis as pesquisas. Mas também os mapas das estradas, dos rios e das pontes não eram secretos. Para seguir o caminho, bastava pagar o tributo nas encruzilhadas e pontes, e depois da primeira taxa havia outra, e depois ainda mais uma. Muito alta era a primeira taxa, muito numerosos podiam ser os pedágios e tributos sucessivos, de forma a desaconselhar o movimento das pessoas e a frear a produção e o comércio das coisas. Do mesmo modo as patentes sobre a informação primária, isto é, sobre a própria constituição do gene, e depois aquelas que se unem ao longo do caminho das descobertas, tornam sempre mais caro e menos encorajante o prosseguimento da pesquisa. Pode-se imaginar o que teria acontecido nas ciências químicas se Cavendish houvesse patenteado em 1766 a sua descoberta do hidrogênio, e Lavoisier, em 1775, a descoberta do oxigênio e de suas funções na respiração e na combustão. A química progrediu tumultuosamente, depois destas e de outras descobertas, também porque todos os pesquisadores puderam utilizar gratuitamente os conhecimentos adquiridos pelos maiores cientistas.

Deve-se acrescentar que na genética como na informática (o caso da Microsoft nos ensina) se podem criar situações de monopólio, que são obstáculos para a competição científica, para a concorrência produtiva e para a difusão universal dos benefícios. Para esse último aspecto, o grave risco de que a sua injusta distribuição produza efeitos seletivos foi claramente ressaltado por um apelo feito pelo comitê ético que acompanhou desde o princípio, com o intuito de evitar exatamente esses riscos, o caminho do projeto internacional de pesquisa do genoma:

As comercializações das informações genéticas são um fenômeno concomitante à vindoura conclusão do Projeto Genoma Humano. Além disso, é altamente provável que as pesquisas futuras no campo genético aumentem as desigualdades entre nações pobres e ricas, assim como entre os pobres e os ricos dentro de cada nação […]. Sem as medidas adequadas, é provável que os benefícios atinjam apenas as pessoas ricas das nações ricas.

Há fortes motivos a favor da equânime partilha dos benefícios. Primeiro, partilhamos 99,9% de nossa estrutura genética com os demais seres humanos. No interesse da solidariedade humana, devemos a todos os outros uma cota consistente de bens comuns, como a saúde. Segundo, a partir da lei sobre os mares formulada por Hugo Grotius no século XVII [a referência é ao jurista e teólogo Huig van Groot, 1583-1645, que com o seu texto Mare Liberum abriu a estrada para a liberdade de navegação nos mares], e prosseguindo em direção às leis que desde o século XX governam o ar e o espaço, esses recursos globais foram considerados disponíveis de forma comunitária, igual e pacífica para toda a humanidade, e protegidos no interesse das gerações futuras. Terceiro, quando há uma profunda diferença de poder entre uma organização que desenvolve a pesquisa e as pessoas que fornecem o material para tal pesquisa (os genes), e quando a organização trabalha para produzir um lucro substancial (também se encara o risco dos investimentos), podem ser legítimas as preocupações com a exploração, e destas podem nascer pedidos de equânime partilha dos benefícios.[12]

O comitê ético propôs, em consequência, medidas práticas a serem adotadas nessa direção, entre as quais o “mínimo moral” que seria constituído pela devolução a um fundo comum, com finalidades redistribuitivas, de uma cota entre 1% e 3% dos lucros. Simultaneamente, ou mesmo antes, é ainda necessário evitar que as bandeirinhas, plantadas sobre o mapa do gene humano, assinalem a sua conquista completa, atingida com a arma das patentes, isto é, que esse mapa se torne um bem privado.

As regras a respeito de patentes estão em profunda transformação, e há sobretudo uma crescente tendência a apagar qualquer distinção entre a invenção e a descoberta. A invenção constituiu tradicionalmente um reconhecimento e uma legítima defesa da propriedade intelectual, enquanto a ideia de patentear aquilo que já existe foi introduzida apenas recentemente, primeiro para o reino vegetal, depois para o animal, e agora se busca incluir a nós mesmos. Há no entanto vozes autorais que tendem a manter a distinção entre invenção e descoberta de algo já existente. Também a Declaração de Okinawa afirma explicitamente em seu ponto 63:

Nós reconhecemos a necessidade de uma proteção equilibrada e equânime da propriedade intelectual para as invenções baseadas nos genes, funcionando sempre que possível mediante práticas e políticas comuns. Nós encorajamos esforços ulteriores nos principais fóruns internacionais para atingir uma ampla harmonização das políticas de patentes com relação às invenções biotecnológicas.

Falei até agora dos dois motivos práticos que dizem respeito ao desenvolvimento multilateral das pesquisas e ao acesso universal às vantagens das descobertas genômicas, sobre os quais se baseia a crítica da tendência a tornar patenteáveis as sequências de DNA humano. Não creio no entanto que esses argumentos práticos, mesmo sendo cada um deles dotado de grande carga moral (uma pesquisa livre de condições no primeiro caso, uma maior igualdade entre os seres humanos no segundo), sejam os mais importantes. Se a “Declaração universal sobre o genoma”, da Unesco, afirma que os genes humanos como tais não podem ser fonte de lucro, e se a diretiva n. 44 da União Europeia, de 1998, se constrange a estabelecer como princípio que os genes não podem ser patenteados “em seu estado natural” (prevendo infelizmente cláusulas aplicativas em contraste com essa afirmação), não é apenàs para evitar a formação de monopólios ou para combater formas desleais de concorrência ou para facilitar o acesso de todos às descobertas científicas. É por uma razão de princípio, que consiste na não-comercialização do corpo humano e de suas partes.

Essa razão de princípio foi sustentada por Immanuel Kant, partindo de um princípio laico, que pode ser resumido no conceito de que nós somos o nosso corpo, o qual não é uma coisa, uma propriedade. Essa ideia é partilhada por grande parte do pensamento moderno, que, com base no princípio de autonomia, nega a uma autoridade divina o direito sobre nossas decisões, mas condena (como condenou à sua época o comércio de escravos, corpos humanos vendidos incluindo a sua descendência) a ideia de que as partes de nosso corpo possam se tornar objeto de mercado. Essa orientação tem raízes plurais (como a ideia da sacralidade do corpo como dom de Deus), que convergem nas solenes declarações em que se expressa a vontade dos povos e dos governos. Entre estas, a “Convenção europeia sobre os direitos do homem e sobre a biomedicina”,[13]  que em seu artigo 21 estabelece uma proibição ao lucro: “O corpo humano e as suas partes não devem, como tais, ser fonte de lucro”. A frase é repetida quase textualmente, como “é proibido fazer do corpo humano e das suas partes como tais uma fonte de lucro”, no artigo 3 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

A expressão “como tais” implica a legitimidade do lucro para quem opera no corpo humano ou utiliza elementos deste (por exemplo, o sangue) com finalidades terapêuticas, desde que não entre jamais na conta o valor do próprio corpo e das suas partes avulsas. O “Relatório explicativo”, texto oficial que acompanha os artigos da convenção, explica bem essa distinção, referindo-se ao exemplo dos transplantes de órgãos e ao dos produtos medicinais que contêm tecidos humanos:

Em virtude dessa disposição [o artigo 2], os órgãos e tecidos propriamente ditos, aí incluído o sangue, não podem ser objeto de comércio nem ser fonte de lucro para a pessoa da qual foram retirados ou para um terceiro, pessoa física ou jurídica, por exemplo, um hospital. Todavia as intervenções técnicas [coleta, análise, pasteurização, fracionamento, purificação, conservação, cultura, transporte…] executadas a partir desses elementos podem dar lugar, legitimamente, a uma compensação razoável. Este artigo não proíbe, por exemplo, a venda de tecidos quando estes fazem parte de um produto de uso medicinal ou quando tiverem sofrido procedimentos de fabricação, desde que eles não sejam vendidos como tais.[14]

Mudando o objeto dessas explicações, substituindo nesses exemplos os órgãos e tecidos por sequências de DNA, pode-se compreender como excluí-las “como tais” da possibilidade de patenteamento não significa em absoluto desencorajar a pesquisa e as suas aplicações, não exclui absolutamente o reconhecimento dos direitos de propriedade intelectual para as invenções e para as intervenções técnicas, por meio das quais o mero conhecimento do gene se transforma em algo desfrutável como um bem e comercializável como um produto.

Apesar dessa orientação, que encoraja a criatividade e a inovação sem transformar nossos genes em objeto de compra e venda, continua a tendência a fazer prevalecerem as leis do mercado sobre qualquer outro valor e a tornar patenteável e comercializável cada parte e cada fase de nossa vida. É sobre essa linha que ao “catálogo de mercadorias humanas” se juntaram as sequências de DNA, e podem se juntar no futuro as células estaminais obtidas de tecidos ou de embriões, e já no ano passado o Escritório Europeu de Patentes de Mônaco decidiu pedir a patente para a produção de “embriões de mamíferos, incluída a espécie humana”. A severa crítica do Comitê Nacional de Biotética ao registro (feito no EPE COM o número ER 695 351) foi acompanhada por uma consideração geral e por um pedido ao governo:

Esse episódio acontece em um contexto caracterizado pela alarmante tendência a reduzir toda vida biológica, incluída a humana, a mero objeto de propriedade intelectual patenteável e a bem comercial, e pelo risco de que as estruturas políticas e jurídicas, predispostas à regulamentação da matéria, progressivamente cedam às pressões exercidas pela indústria biotecnológica […].

O CNB, ao saber com satisfação que o governo italiano pretende apresentar um recurso próprio contra a concessão da patente citada, deseja que […] venha a ser definida uma interpretação do texto europeu [a diretiva 98/441 que exclua toda possibilidade de ambiguidade no mérito do caráter ilícito do patenteamento do corpo humano, em cada parte e em cada fase de seu desenvolvimento.[15]

O RISCO DOS FUNDAMENTALISMOS

Referi-me principalmente ao genoma humano, para raciocinar sobre a responsabilidade da ciência. Também outros temas, aqui pouco cuidados, podem ser de outra forma significativos e exemplares: como a análise da relação entre nós, o ambiente e as gerações futuras, ou como as transformações cada vez mais profundas e complexas que se prevêem para as decisões a serem tomadas no início e no fim da vida, no nascimento e na morte. Todavia, creio que a genética humana cause mais esperanças e medos do que qualquer outro ramo da ciência e de suas aplicações.

Esses sentimentos alternados serpeavam havia algum tempo, antes mesmo que houvesse concretude de conhecimentos e possibilidade de ação. Deles se encarregou o grande biólogo francês Jean Rostand, que há cinquenta anos previu, em L’homme artificiel, o risco de que a ciência, tornando-se ativa contra nós mesmos, transformasse o Homo sapiens em Homo biologicus. No início do projeto Genoma, junto a muitas esperanças e a algumas críticas (alguns julgavam que os esforços devessem ser concentrados sobre outras áreas ou que a biologia não devesse se tornar big science), surgiu a mesma preocupação. Dela se encarregou, sempre na França, o Comité Consultatif National d’Éthique:

O uso literal da ideia de um programa genético é coerente com uma descrição da humanidade na qual a noção de pessoa foi eliminada em favor da de uma máquina programada.

Essa ideia não apenas é cientificamente infundada, mas também eticamente perigosa. Na verdade ela dá força à fantasia de que o conhecimento de um programa dará ao homem o domínio completo sobre o homem. Alguns setores da opinião pública, particularmente na Europa, tendo encarado seriamente essa possibilidade, em vez de saudá-la com entusiasmo, reagiram com terror. Como resultado, todos os temas genéticos foram vistos por meio do medo, que obviamente é tão injustificado quanto o fascínio das esperanças suscitadas.[16]

Além da genética, oscilações similares entre esperança e medo são frequentes também em outros campos e têm fundamento, uma vez depuradas daquilo que contêm de irracional, na existência de perspectivas diversas, ótimas ou péssimas. O co-fundador e cientista-chefe da Sun Microsystems, Bill Joy, pôs em foco um futuro totalizante, que ele prevê que poderá se realizar dentro de trinta anos, por causa da combinação, praticamente onipotente, de três tecnologias: computadores que serão 1 milhão de vezes mais capazes que os atuais, instrumentos que usarão moléculas individuais para construir sistemas complexos e enfim biociências que nos permitirão criar ou recombinar cada forma vivente.[17] Esse futuro poderia “não precisar de nós” ou mesmo nos oprimir, porque, diante desses fenômenos, não há nem programas nem sistemas de controle capazes de governar o que pode acontecer. Disso provém a exigência de normas morais (antes mesmo que as legais) aptas a conduzir a aplicação de tecnologias que procedam em um ritmo cada vez mais rápido.

Perspecticas diversas e motivos para inquietação já existem no presente e já são previsíveis no futuro imediato. Nas relações homem-ambiente, por exemplo, profundos efeitos negativos são representados pela redução da biodiversidade e pelas mudanças climáticas, campos em que existem regras morais e tratados bem pouco respeitados, em que a ciência indicou fenômenos, causas e remédios, mas interesses fortes (como também os difusos) criam obstáculos para as medidas necessárias. No que concerne ao homem artificial, duas parecem ser as maiores preocupações. Uma é que ele (isto é, cada um de nós) perca em sentimentos e valores aquilo que pode adquirir em tecnologias. Não vejo entretanto sinais irreversíveis para essa antinomia. A outra é que essa “metamorfose humana” seja heterodirigida e teleguiada. Recorrendo ao exemplo extremo, hoje um microchip introduzido no cérebro pode ter o efeito benéfico de substituir uma função lesada ou ausente, mas pode também operar, girando-se o botão, como estação de recepção, à qual se podem destinar instruções e ordens. De qualquer modo isso já ocorre por meio da mídia, mesmo havendo algumas experiências para e esperanças de torná-la bidirecional. No ano 2000, no entanto, uma das notícias mais alarmantes foi a descoberta de que o planeta é vigiado, em cada um de seus pontos habitados, pelo sistema Echelon, uma rede que capta e registra, sem que se saiba, por iniciativa dos Estados Unidos e do Reino Unido, atos e comunicações de grande parte dos seres humanos. A ideia de que no futuro possa existir um Echelon transmissor, ao invés de receptor, não é despropositada, mesmo porque foram bem escassas as reações públicas e privadas a essa notícia, que deteve a atenção da imprensa por poucos dias e logo foi esquecida. Entretanto tratava-se (e trata-se) da mais vasta e capilar intromissão na vida individual jamais surgida na história humana. É necessário portanto refletir não só a respeito das tecnologias mas também do contexto em que se colocam, dos poderes que as controlam e dos fins para que são utilizadas.

De outra forma corre-se o risco de que prevaleçam os fundamentalismos. O anticientífico, que está ganhando terreno; os religiosos (não apenas islâmicos!), que antepõem “o Livro” à liberdade, aos direitos dos homens (e mais ainda das mulheres) e ao valor do conhecimento; o monetário, que teve uma divulgação rápida e universal no final do século XX como ideologia substituta de todas as outras e que continua a ser dominante no plano científico, por mais que seja menos hegemônico no plano cultural. O científico, sugerem alguns. A expressão no entanto não me parece aceitável, pelo valor intrínseco, reconhecível e documentável, aberto a repensamentos próprios e a outras experiências, que essa forma de experiência tem. Algumas variantes, todavia, podem merecer a alcunha de fundamentalismo. A pretensão de que os problemas do mundo possam ter uma solução única e espontânea com o progresso científico, por exemplo. Ou talvez a ideia de que o cruzamento entre a ciência e o mercado seja sempre virtuoso e que nesse campo todas as regras morais, todos os instrumentos legais, todas as decisões políticas e todas as expressões de vontade popular sejam sempre um arbítrio.

Tradução de Victor Aiello Tsu

Notas

[1] Hans Jonas, II principio responsabilità; un’etica per la civiltà tecnologica. Turim: Einaudi, 1990, p. xxviii.

[2] Antonio Gramsci, “La merce”, Avanti/Turim, 6 jun. 1918. Reproduzido na coletânea de ensaios de Gramsci, Sotto la mole. Turim: Einaudi, 1960.

[3] A. O. Lucas, in “First International Conference on the Responsibility of Science in Modern Societies”, Florença, 3 a 6 de outubro de 1976 (Abstract Book).

[4] un, oecd, imf & wb, A better world for all. Progress towards the international development goals. Jun. 2000.

[5] un, General Assembly, “Millenium declaration”, 8 set. 2000.

[6] T. A. Lambo, in “First International Conference on the Responsibility of Science in Modern Societies”, op. cit.

[7] Evando Agazzi, in Tebio — Mostra e Conferência Internacional sobre Biotecnologia”, Gênova, 24-5 maio 2000 (abstract, os autos estão no prelo).

[8] Journées Annuelles d’Éthique, Université René Descartes, Paris, 29 nov. 2000 (testemunho pessoal).

[9] Ver N. Crotti & G. Gaudenzi, “Le terapie non provate per il cancro e la terapia Di Bella”, La Salute in Italia. Rapporto 1999, org. M. Geddes & G. Berlinguer. Roma: Edies-se, 1999, pp. 67-91.

[10] “Déclaration universelle sur le génome humain et les droits de l’homme”, adotada na Conferência Geral da Unesco em 11 nov. 1997.

[11] Giovanni Berlinguer & Volnei Garrafa, Il nostro corpo in vendita; cellule, organi, DNA e pezzi di ricambio. Milão: Baldini & Castoldi, 2000. No Brasil, O mercado humano. Brasília: Editora da UnB, 1995 (reed.: 2001).

[12] Human Genome Organization Ethics Committee, “Genetic benefit sharing”. Science, vol. 290, 6 out. 2000, p. 49.

[13] Conselho Europeu, “Convenção para a proteção dos direitos do homem e da dignidade do ser humano com relação às aplicações da biologia e da medicina”, Oviedo, 4 abr. 1997. O texto, assim como diversos comentários, está em Bioetica, VI, n 4, 1998, pp. 581-609.

[14] O texto do relatório explicativo está em Pareri del Comitato Nazionale per la Bioetica sulla Convenzione per la Protezione dei Diritti dell’Uomo e la Biomedicina, CNB, 21 fev. 1997, pp. 41-76.

[15] Declaração do Comitê Nacional para a Bioética a respeito da possibilidade de patentear células de origem embrionária humana, 25 de fevereiro de 2000.

[16] ccne., parecer nº 27, 2 dez. 2000.

[17] Bill Joy, “Why the future doesn’t need us”, Wired. 8 abr. 2000.

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