1991

A construção da notícia (2)

por Claudio Bojunga

Resumo

McLuhan escreveu que a câmera de TV age visualmente como o microfone em relação à voz. Enquanto o ouvinte de rádio tem de adivinhar rostos e paisagens, a TV mostra com suas imagens. No jornalismo televisivo as palavras são escritas para serem ouvidas, logo o estilo da notícia é conciso, preciso, direto e tem como preocupação básica saber se a informação tem importância ou desperta suficiente interesse para ir ao ar.

No jornalismo televisivo, a grande dificuldade é conciliar a retórica referencial da televisão, sua vocação pela superfície e pela fluidez, com as realidades abstratas do mundo moderno. A imprensa escrita, que deverá se tornar mais analítica e interpretativa, compensa essa volatilidade. Nesse sentido, o que a foto fez em relação à pintura, a TV fará em relação ao jornal impresso.

E como é o jornalismo na televisão estatal/televisão pública no Brasil?

No Brasil a questão do patrimonialismo, da apropriação privada da coisa pública, ainda é muito forte. A coisa pública “é do governo”, isto é, algo que pode ser “usado” por quem ocupa o poder de passagem e o clientelismo, a prática do favor, a burocracia, o espírito de repartição e o empreguismo ainda são traços marcantes.

José Sarney, o primeiro presidente civil da Nova República, elaborou um decreto-lei expropriando as finalidades da Funtevê, órgão de comunicação estatal, para transformá-la num apêndice da Comunicação Social da Presidência iniciando, assim, um processo sistemático de destruição de autonomia, de desativação de sua ação cultural e de seu espírito crítico. O decreto-lei afirmava, entre outros pontos, que a Funtevê existia para criar, projetar, produzir e veicular programas de interesse do Presidente da República.

Com esse panorama, como se dá a construção da notícia? Um importante ponto é a necessidade de entendimento do papel político e social, das responsabilidades do jornalista perante as instituições e o público em geral.  Essas questões vão desde o exame dos limites dos códigos de ética ao papel dos ombudsmen, passando pelas propostas de auto-regulamentação voluntária, a necessidade de se pensar o papel do jornalista de televisão, a concentração de poderes na área empresarial, a invasão da privacidade das pessoas, o jornalismo investigativo e o atendimento de diferentes grupos étnicos e minorias.

Na IV Reunião Consultiva de Organizações Internacionais e Regionais de Jornalistas, em Praga e em Paris, em 1983, foram preparados princípios éticos profissionais do jornalismo, como uma plataforma internacional comum e como fonte de inspiração para os códigos de ética nacionais e regionais.


Produzida segundo as normas da fabricação industrial, propagada pelas técnicas de divulgação maciça, a televisão integra o esquema da cultura de massa como uma síntese do cinema e do rádio. Ela surge após a Segunda Guerra e incorpora o imediatismo do rádio à empatia do cinema. Ela tem em comum com o cinema a capacidade de dinamizar o espaço e espacializar o tempo. E isso de maneira corriqueira. Essas definições elementares foram desenvolvidas por Theodoro W. Adorno em 1953. Anos depois, Fellini diria que ela é um eletrodoméstico.

Antes de falar na produção da notícia na televisão, gostaria de exprimir o que sinto diante desse veículo, não como jornalista mas como telespectador. E isso para separar, como muito bem recomendou Silviano Santiago, as limitações inerentes à TV das limitações que lhe são impostas de forma perversa.

Como telespectador, me sinto ambíguo em face da telinha. Não tenho dúvidas sobre o fato de que ela é um dado da modernidade, desse nosso mundo que se constrói e se desfaz no ar, com um dinamismo vertiginoso, impensável até meados do século XX. Sob este aspecto, a televisão é exaltante, incontornável. Insustentavelmente leve e liberadora da nossa percepção e dos nossos sentidos. Ela nos transforma em antenas, ela nos “antena” e, como sou fundamentalmente cosmopolita, nutrindo até uma séria desconfiança em relação ao sombrio culto das raízes, acho isso fascinante.

Se a televisão não fosse fascinante (e potencialmente liberadora), não estaríamos aqui tentando pensá-la e sonhando em aperfeiçoá-la. Tomemos, pois, o nosso empenho como uma velada declaração de amor. Por outro lado, trata-se de um amor constrangido, ou mal correspondido, uma vez que ela é também insuportavelmente fútil, diluidora, superficial, manipuladora, interesseira. É a permanente cascata de detergentes, cigarros, eletrodomésticos, cadernetas de poupança; o bombardeio embrutecedor de signos supérfluos, o linguajar pobre, rotineiro, repetitivo. Aí ela nos pede passividade e conformismo: a tela se apresenta como uma banheira quente onde é mais fácil digerir o massacre do hard-selling. Isto é, um grosseiro processo de massificação e normalização pela banalização das imagens. A ideia é fomentar a credulidade do consumidor potencial (é assim que ela nos vê) através de uma “programação” dos nossos desejos reprimidos. Joga-se então com a saúde, a beleza, a aceitação social, o sucesso sexual. Manipula-se o inconsciente em nome do sonho e do consolo: é a tentativa de teleguiar o comportamento em direção às mercadorias. É o espectro do Big Brother disfarçado em Papai Noel (cf. Baudrillard).

Temos, então, de um lado, uma tecnologia capaz de suscitar uma mutação vertiginosa, desprovincianizando o mundo — uma janela eletrônica aberta sobre a realidade. Do outro, como disse belamente Italo Calvino (em Seis propostas para o próximo milênio), temos “a transformação do mundo em imagens, multiplicando-o numa fantasmagoria de jogos de espelhos, imagens que são destituídas da necessidade interna que deveria caracterizar toda imagem, como forma e significado, como força de impor-se à atenção, como riqueza de significados possíveis”.

Acho que o telejornalismo deve ser considerado dentro dessa ambiguidade ampla que caracteriza a televisão dos dias de hoje. É da essência da notícia na TV o modo indicativo e a captação e transmissão do visível imediatamente. McLuhan escreveu agudamente que a câmera de TV age visualmente como o microfone em relação à voz. Enquanto o ouvinte de rádio tem de adivinhar rostos e paisagens, a TV nos mostra o homem descendo na Lua, o atentado ao papa, o acidente da Challenger, a mão trêmula de Sarney jurando a Constituição.

São gestos e atitudes, sequências temporais, agenciados numa determinada escala de importância. É também o “quadro sério” do espetáculo, o momento em que se troca o feérico pelas asperezas do mundo. Como as palavras são escritas para serem ouvidas, o estilo da notícia é conciso, preciso, direto. A preocupação básica é saber se a informação tem importância ou desperta suficiente interesse para ir ao ar. Telejornalismo é um serviço. E não há quem não queira ver a queda do Muro de Berlim.

Acho que esses manuais de telejornalismo, que tanto impressionaram Marilena Chaui, misturam algum bom senso com a mais pura imbelicidade. Como esses livros americanos do it yourself, que ensinam por correspondência como conquistar amigos e fazer sexo numa boa. Meu Deus, ninguém aprende sexo lendo manuais!

Mas estamos aqui para falar no telejornalismo que não está nos manuais. Porém, antes de entrar nos “bastidores”, seria preciso limpar a área.

Marilena Chaui falou sobre cinco características do telejornalismo. Resumindo: 1) a destruição do tempo real; 2) a anulação do raciocínio e da reflexão; 3) a perda de referências do espaço; 4) a triagem de quem pode e de quem não pode aparecer no vídeo; e 5) a banalização, a tendência ao espetacular, fenômenos que massageiam nossa emoção a expensas da inteligência. Quero voltar ao assunto para distinguir algumas características da televisão de certa manipulação que Marilena classifica de “contra-informação” e de “intimidação”.

Estou inteiramente de acordo com duas dessas impugnações: a seleção de quem aparece ou não na telinha (reproduzindo discriminações sociais); e a oscilação permanente entre o banal e o espetacular, processo anestesiante destinado a toldar a capacidade de discernimento do telespectador. Não concordo muito com as outras. Falta nuance.

Em relação à fragmentação do espaço e à destruição do tempo, acho que a gente precisa evitar os preconceitos da cultura tipográfica (na qual, aliás, me incluo). O que hoje dizemos da televisão é o que, provavelmente, diria do jornal impresso moderno um homem do século XVIII. Imaginem como ele reagiria diante de uma primeira página com títulos de tamanho variado, colunas interrompidas, “continua na página tal” etc. Ora, ninguém pode dizer que o New York Times, Folha e o Jornal do Brasil sejam os responsáveis pela “fragmentação da percepção do mundo moderno”.

Mais: acho que, tecnicamente, a fragmentação pode ser saudável e proveitosa. Do ponto de vista do entendimento, uma corrida de Fórmula 1 é muito mais compreensível vista na segmentação das muitas câmeras alinhadas ao longo do percurso do que no autódromo. O mesmo se pode dizer de um desfile de escolas de samba. O que se perde longe do autódromo e do sambódromo não é o entendimento, mas a emoção.

Na minha opinião, a grande dificuldade é conciliar a retórica referencial da televisão, sua vocação pela superfície e pela fluidez, com as realidades abstratas do mundo moderno. Garanto que não é fácil explicar, nos limites estreitos de um telejornal, a lógica do crash financeiro de 1988, ou os meandros dos conflitos no Golfo. Uma pesquisa americana revelou que os telespectadores médios só se lembram de 10% do que foi ao ar no jornal da noite. Essa terrível volatilidade é compensada pela imprensa escrita, que se for esperta deverá se tornar, dia a dia, mais analítica e interpretativa. Nesse sentido, o que a foto fez em relação à pintura, a TV fará em relação ao jornal impresso. Sustento ainda que a fragmentação é positiva, se praticada de maneira ativa, e isso COM o aparelho mais temido pelos anunciantes e donos de canais: o controle-remoto: O zapping é a vingança do telespectador contra a ditadura da antena.

Creio que há muito preconceito nas críticas genéricas à fragmentação, à perda de referências espaciais, à destruição do tempo. O romance moderno já foi vítima disso. Basta lembrar o que Lukács disse sobre Joyce e Proust. Também não estou convencido da total anulação da reflexão na telinha. Acho que os registros interpretativos e analíticos aumentaram depois do fim da ditadura. Sem voltar ao que já disse antes: que a televisão induz aos jornais, o espaço analítico da informação por excelência ao lado das revistas.

Mas há um detalhe: nesse caso é preciso ser alfabetizado. Por isso, estou menos preocupado com os balbucios dos pichadores do que com os milhões que não sabem ler e que constituem a massa de manobra do consumismo desvairado das grandes redes. Sem falar nas crianças.

Eu queria acrescentar uma palavra sobre a questão da televisão estatal/televisão pública, que é bastante sintomática dentro dessa questão mais ampla do patrimonialismo do Estado brasileiro, a famosa apropriação privada da coisa pública. Quando se trabalha em uma rede dita “estatal” — embora mantida com o dinheiro dos nossos impostos —, é possível flagrar no dia-a-dia essa característica histórica do nosso país. Estou falando das redes de televisão educativas controladas até recentemente pela Funtevê (rebatizada Fundação Roquete-Pinto pelo atul governo) e subordinadas ao Ministério da Educação. Não devemos confundir essas emissoras com a TV Cultura de São Paulo, fundação de direito privado sem ligação com o governo federal. Temos aí um bom exemplo do que poderia ser público (e não é), algo que não se submete a qualquer controle social sério.

Sem dúvida, a BBC, por exemplo, é uma TV pública. Basta lembra que, durante a Guerra das Malvinas, houve um debate violento na Inglaterra para saber se o tratamento dispensado ao conflito feria os padrões mínimos de isenção jornalística. Isso é impensável no Brasil, onde a coisa pública “é do governo”, isto é, algo que pode ser “usado” por quem ocupa o poder de passagem.

Meu interesse pela TV Educativa do Rio (onde trabalhei de 1980 a 1987), até este ano sede das emissoras educativas, estava ligado às possibilidades de ampliar o campo do jornalismo cultural e político, sem as peias do comercialismo, procurando uma linha de programação entre certas emissoras europeias e a PBS americana. E isso porque, no Brasil, os canais públicos são alternativos, quase marginais, o que permitia um certo descompromisso com os índices de audiência e abria a possibilidade para o experimentalismo.

Bem, quando comecei lá, dizia-se que a TVE era uma mistura de INPS com o exército de Brancaleone. Eu estava interessado no exército de Brancaleone (sempre trabalhei nos grandes órgãos da imprensa escrita), mas não imaginava quão poderoso era o INPS. Quer dizer, o clientelismo, a prática do favor, a burocracia, o espírito de repartição e o empreguismo. Estava convicto de que o importante era trabalhar fora do conceito da massificação abrangente, na linha do que sustentava um dos primeiros diretores da BBC de Londres: que massa não corresponde forçosamente a um conglomerado indiferenciado de pessoas; que os públicos são muitos e variados e devem ser tratados de forma respeitosa, não apenas como alvo de consumo. Em resumo, o meio de comunicação mais acessível num país inculto como o nosso, não um instrumento de coerção do pensamento.

Ora, com todas as suas carências, as TVs educativas vinham mantendo seus compromissos nesse sentido, sobretudo a partir da abertura política, no final dos anos 70. Comecei a trabalhar lá após a morte de seu fundador, Gílson Amado, na gestão do prof. Carneiro Leão, em 1980, sendo ministro da Educação Eduardo Portela. As dificuldades materiais eram enormes, mas havia um espírito público difuso em seus técnicos, diretores, artistas e jornalistas. A emissora se constituíra na gestão do ministro Passarinho e, segundo o depoimento das pessoas mais confiáveis da casa, mantinha sua identidade talvez justamente porque trabalhava um tanto na sombra.

Com a abertura, havia uma grande efervescência, como se o espaço público pudesse ser regenerado. Na verdade, há sempre essa ilusão de que todos os problemas acabam com o fim da ditadura. Sem anúncios, teríamos tempo para aprofundar a interpretação da notícia, as mesas-redondas, os programas especificamente culturais, além de manter em funcionamento o programa de teleducação: programa pioneiro que chamou a atenção da FAO e da UNESCO. Um programa de ensino supletivo aplicado em meia dúzia de estados que conseguia um índice de aprovação de mais de 80% dos que estudavam pela televisão com seus livros de apoio.

Fizemos algumas experiências interessantes, como um programa exclusivamente dedicado à política internacional (impensável nas redes comerciais), no qual dissecávamos as implicações do golpe na Polônia, a crise no Caribe ou as eleições francesas. Debatíamos tudo com diplomatas, correspondentes de jornais, especialistas convidados. Mais tarde, para citar outro exemplo, dirigi em parceria com um colega um programa chamado Os editores, criado por Fernando Barbosa Lima, que contava com um time de comentaristas de primeira linha, como Cláudio Abramo, Jânio de Freitas, Mino Carta, Mílton Coelho da Graça, Tarcísio Holanda, Fausto Wolff, Cacá Diegues, Carlos Chagas, Roberto Drummond e muitos outros. Creio que foi aí que Maurício Kubrusly começou na TV.

Bem, sempre existem problemas: recomendações para não mencionar tal nome, reclamações da embaixada chilena quando alguém chamava Pinochet de ditador, pressões provenientes do Ministério das Comunicações contra os “comunistas” da TV Educativa do Rio etc. Mexia-se aqui e ali na estrutura da rede pública para resolver conflitos internos de poder ou operar nova partilha de cargos a cada mudança no Ministério (foi o que ocorreu depois do Riocentro e, sobretudo, depois que o general Ludwig, à frente da pasta da Educação, começou a trazer para a TVE um numeroso grupo de amigos, oficiais reformados, muitos deles ligados ao SNI). Mas mesmo eles reconheciam o caráter educativo e cultural da emissora, garantindo assim, apesar da “tendência chapa branca”, a cristalização de um know-how precioso em um canal não comercial.

Estranhamente, a coisa começou a piorar com Sarney, no período da Constituição, quando o presidente lutava com unhas e dentes pelo seu quinto ano de mandato. Naquele clima de “é dando que se recebe” (e é bom ressaltar que a concessão de canais foi a moeda daquele tráfico de influências), o primeiro presidente civil da Nova República elaborou um decreto-lei expropriando as finalidades da Funtevê para transformá-la num apêndice da Comunicação Social da Presidência. Iniciou-se, em seguida, um processo sistemático de destruição de autonomia da emissora e de desativação de sua ação cultural e de seu espírito crítico. O mais estranho é que não houve qualquer reação a isso, nem por parte do Congresso, nem por parte dos contribuintes, em sua maioria fiéis à Rede Globo. A essa altura, a Globo já havia passado a produzir os programas de ensino supletivo, e isso por cima do MEC, cujos diretores emitiram na época pareceres contrários a esse take over. Nem assim o governo desistiu: preferiu pagar a uma organização privada cinquenta vezes mais do que pagaria se esse projeto permanecesse nas mãos da TVE, uma emissora criada com essa finalidade. A letra g do decreto-lei afirmava que a Funtevê existia para criar, projetar, produzir e veicular programas de interesse do Presidente da República. Alegava-se que o governo possuía três órgãos de comunicação social: a Radiobrás, a Empresa Brasileira de Notícias (a EBN, ex-Agência Nacional, ex-DIP) e a Funtevê (que controlava as emissoras educativas). Era uma absurda licença poética: as emissoras públicas eram vinculadas ao Ministério da Educação, não podendo ser consideradas “órgãos de comunicação social”.

A TVE foi isolada pela omissão das verbas, suas portas foram abertas às produtoras privadas (que deveriam estar atuando nas redes comerciais). Essas produtoras usavam material e pessoal da TV Educativa para comercializar apoio privado em proveito próprio.

O governo Collor trouxe de volta a TVE para o Ministério da Educação, mas extinguiu a Funtevê. Cerca de oitocentas pessoas foram postas em disponibilidade e o telejornal foi levado para Brasília, onde uma equipe esforçada mas totalmente despreparada faz um jornalismo áulico e provinciano.

Fico perplexo diante da arbitrariedade dessa evolução. Ela me parece refletir o que há de mais arcaico no poder público do Brasil, além de indicar claramente a ausência de controle social — não apenas por parte do Congresso mas também (como ocorre com as redes públicas da Alemanha, por exemplo) pela sociedade civil: OAB, ABI, sindicatos, associações etc. Acho ainda que os governos preferem fazer uma aliança com os poderosos donos das redes privadas a desenvolver um canal não comercial, deixando o campo livre para um verdadeiro monopólio privado da comunicação no Brasil. Acredito firmemente que há um determinado tipo de programação segmentada, inclusive no campo da produção da notícia e de sua interpretação, que só pode ser garantida em um canal público, ainda que contando com o auxílio de patrocinadores privados, como ocorre com a PBS americana. Mas, entre nós, não existe televisão pública, só existe televisão governamental.

Gostaria de abordar um último ponto ligado à construção da notícia: o entendimento do seu papel político e social, as responsabilidades do jornalista (que inclui o profissional de televisão) perante as instituições, o público em geral e diante deles mesmos. Essas questões ligadas à ética profissional e à política da informação foram exaustivamente debatidas no plano internacional em uma série de reuniões consultivas sob o auspício da UNESCO. Elas vão desde o exame dos limites dos códigos de ética ao papel dos ombudsmen, passando pelas propostas de auto-regulamentação voluntária, a necessidade de se pensar o papel do jornalista de televisão, a concentração de poderes na área empresarial, a invasão da privacidade das pessoas, o jornalismo investigativo e o atendimento de diferentes grupos étnicos e minorias.

Na IV Reunião Consultiva de Organizações Internacionais e Regionais de Jornalistas, em Praga e em Paris, em 1983, foram preparados os seguintes princípios éticos profissionais do jornalismo, como uma plataforma internacional comum e como fonte de inspiração para os códigos de ética nacionais e regionais:

OS PRINCÍPIOS INTERNACIONAIS DA ÉTICA PROFISSIONAL NO JORNALISMO

1. O direito do povo a uma informação verídica

O povo e os indivíduos têm o direito de receber uma imagem objetiva da realidade mediante uma informação precisa e abrangente, assim como a expressar-se livremente através de diversos meios de cultura e de comunicação.

2. O devotamento do jornalista à realidade objetiva

O jornalista tem como dever supremo servir à causa do direito a uma informação verdadeira e autêntica mediante um devotamento honesto à realidade objetiva, mediante uma apresentação responsável dos fatos em seu contexto apropriado, enfatizando seus vínculos essenciais, sem promover distorções, desenvolvendo devidamente a capacidade criadora do jornalista de modo a oferecer ao público um material adequado que lhe permita formar uma ideia precisa e global do mundo, e no qual a origem, a natureza e a essência dos acontecimentos, processos e situações sejam apresentados com a maior objetividade possível.

3. A responsabilidade social do jornalista

No jornalismo, a informação é considerada um bem social e não uma mercadoria, isso significa que o jornalista deve compartilhar a responsabilidade pela informação transmitida e, por conseguinte, responder não apenas àqueles que controlam os meios de informação, como também, no final das contas, ao público em geral e a seus diversos interesses sociais. A responsabilidade social do jornalista exige que, em quaisquer circunstâncias, este atue de acordo com sua consciência pessoal.

4. A integridade profissional do jornalista

O papel social desempenhado pelo jornalista exige que, no exercício de sua profissão, ele mantenha um elevado grau de integridade, que inclui o direito de recusar um trabalho contrário a suas convicções e o direito de não revelar suas fontes, assim como o de participar na tomada de decisões na empresa em que trabalha. A integridade da profissão não permite que o jornalista aceite suborno de qualquer espécie ou promova qualquer interesse privado contrário ao bem-estar geral. Por outro lado, faz parte da ética profissional o respeito à propriedade intelectual e, em particular, o repúdio ao plágio.

5. O acesso e a participação do público

A natureza de sua profissão exige que o jornalista promova o acesso do público à informação e sua participação nos meios de comunicação, incluindo o direito de retificação e o de réplica.

6. O respeito à privacidade e à dignidade humana

É parte intrínseca das normas profissionais do jornalista o respeito ao direito do indivíduo à privacidade e à dignidade humana, de acordo com as determinações legais e o respeito à reputação dos outros, proibindo-se o libelo, a calúnia, a maledicência e a difamação.

7. O respeito ao interesse público

A ética profissional do jornalista prescreve o respeito à comunidade nacional, às suas instituições democráticas e à sua moral pública.

8. O respeito aos valores universais e à diversidade cultural

O jornalista íntegro defende os valores universais do humanismo, sobretudo a paz, a democracia, os direitos humanos, o progresso social e a libertação nacional, respeitando ao mesmo tempo o caráter próprio, o valor e a dignidade de cada cultura, assim como o direito que todo povo tem de escolher e aperfeiçoar livremente seu sistema político, social, econômico e cultural. O jornalista participa ativamente, assim, das transformações sociais voltadas para uma democratização mais ampla da sociedade, e contribui, por meio do diálogo, para a criação de uma atmosfera de confiança nas relações internacionais, propicia à paz e à justiça em todas as partes, à distensão, ao desarmamento e ao desenvolvimento nacional. Faz parte da ética da profissão que o jornalista leve em conta as determinações contidas nos acordos, declarações e resoluções internacionais.

9. O fim da guerra e de outros grandes males que afligem a humanidade

O compromisso ético com os valores universais do humanismo obriga o jornalista a abster-se de qualquer justificação ou instigação à guerra de agressão e à corrida armamentista, especialmente a nuclear, e outras formas de violência, ódio ou discriminação, especialmente o racismo e o apartheid, a opressão dos regimes tirânicos, o colonialismo e o neocolonialismo, assim como outros males que afligem a humanidade, tais como a pobreza, a subalimentação e as doenças. Atendendo-se a este princípio, o jornalista pode contribuir para eliminar a ignorância e o desentendimento entre os povos, chamando a atenção dos cidadãos de um país sobre as necessidades e os desejos de outros povos, assegurando o respeito aos direitos e à dignidade de todas as nações, povos e indivíduos, sem distinção de raça, sexo, língua, nacionalidade ou convicção filosófica.

10. A promoção de uma nova ordem mundial da informação e da comunicação

No mundo contemporâneo, o jornalista atua no quadro de uma tendência a novas relações internacionais em geral, e a uma nova ordem de informações em particular. Esta ordem nova, entendida como parte integrante da Nova Ordem Econômica Internacional, está voltada para a descolonização e a democratização na esfera da informação e da comunicação, em escala tanto nacional como internacional, baseando-se na coexistência pacífica dos povos e no respeito pleno a sua identidade cultural. O jornalista tem a especial obrigação de promover o processo de democratização das relações internacionais no âmbito das informações, salvaguardando e respaldando as relações de paz e amizade entre os Estados e os povos.

Adendos (28 de janeiro de 2019)

* Pelas referências aos eventos políticos e problemas analisados em meu texto original, nota-se aqui e ali desatualização: pela inexistência de menção presença às redes sociais, blogs, canais de informação a cabo, Facebook, (a revolução digital ainda estava em germe). O artigo se detém no governo Collor.

A apropriação privada de uma emissora que deveria ser pública continuou a progredir com o tempo, como veremos. Para deixar claro o que isso significa, quero reiterar que o jornalismo público (da BBC e da PBS, por exemplo) tem como marca o descompromisso comercial, ou seja, não é administrado por empresa orientada pela lógica do mercado. Seu objetivo é procurar o fortalecimento da cidadania.

Nesse sentido, politizar os cidadãos não equivale a doutriná-los, direcioná-los segundo critérios ideológicos, mas valorizar a análise, o sentido crítico e questionador, respeitando a inteligência do telespectador, tratando-o como um ser moralmente responsável.

A classificação do público segundo critérios sócio-econômicos, adotada por institutos de sondagem e agências de publicidade voltadas para o consumo é enganadora. Para ela, bicheiros podem ser classe A, enquanto um médico da rede pública fica no grupo C ou D. Os preços se sobrepõem aos valores e o cidadão é reduzido a consumidor.

De Collor em diante, houve claro retrocesso no sentido da re-estatização da antiga TVE. Enquanto a TV Cultura continua entidade pública de direito privado, controlada pela Fundação Anchieta, a tentativa de retirar a TVE da administração direta e do oficialismo, transformando-a em “organização social” não prosperou.

Nossos governantes retomaram o hábito de se intrometer na orientação da programação do canal público. Nos anos 90, Fernando Henrique Cardoso transferiu a Rádio MEC e a TVE, do Ministério da Educação, para a Secom (Secretaria Especial de Comunicação Social) órgão da Casa Civil da Presidência da República, com o objetivo de controlar politicamente a comunicação do governo.

Lula, que o sucedeu, juntou tudo do setor, criando a EBC (Empresa Brasileira de Comunicação), com um conselho consultivo de fantasia, em seguida aparelhando a nova TV Brasil de alto a baixo, transformando-a em canal de propaganda partidária e governamental, com audiência diminuta.

A TV Brasil retomou sua orientação equilibrada nos últimos tempos pós PT. Agora o governo Bolsonaro anunciou que pretende acabar com a EBC, que controla a TV Brasil que ele chama de “TV do Lula”.

Arrisca-se de apagar os inestimáveis serviços prestados pela Rádio MEC (fundada por Roquette-Pinto) e a antiga TVE (fundada por Gilson Amado), em vez de devolvê-las ao Ministério da Educação, de onde nunca deveriam ser retiradas.

Voltamos à estaca zero em termos de emissora pública.

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