1991

A cultura da vigilância

por Arlindo Machado

Resumo

Habitamos espaços de múltiplas telas, de dispositivos eletrônicos invisíveis. Somos vigiados e submetidos aos olhares técnicos e impessoais das câmeras de observação na maior parte do nosso tempo. Câmeras estão colocadas nos lugares mais estratégicos, ocupando os ângulos mais privilegiados de visão e distribuídas no espaço de modo a não deixar um único ponto livre do voyeurismo automático.

Em 1983, o artista tcheco Michel Klier, monitorando circuitos de vigilância e outros dispositivos de coerção policial, compôs o poema videográfico Der Riese [O gigante], expondo uma visão perturbadora do Estado policial moderno. O objetivo era traçar um mapa do que poderia ser a reencarnação moderna de um Panóptico dissimulado e quase invisível, que se estende por todas as dimensões de nossa vida.

O dispositivo do Panóptico, formulado pela primeira vez pelo jurista britânico Jeremy Bentham, era um projeto de prisão modelar em que os prisioneiros ficariam enclausurados em celas individuais, dispostas em círculo ao redor de uma torre central, onde todos os prisioneiros fossem perfeitamente visíveis àquele que os vigiasse mas, eles mesmos, não perceberiam o vigia. Cumprir-se-ia assim o efeito mais importante do Panóptico: fazer com que os detentos, “por uma simples ideia de arquitetura”, se sentissem vigiados, todo o tempo, independente da presença do vigia. Em outras palavras, o poder não teria mais necessidade de se impor efetivamente; o mais importante era que o detento estivesse imbuído pela ideia de uma permanente visibilidade.

A eficácia do Panóptico reside na despersonalização do poder, na sua transformação em pura figura geométrica, uma arquitetura exemplar de que todos participam em alguma instância. O que são os modernos sistemas de vigilância senão a atualização e a universalização do Panóptico?

Michel Foucault observa que “o esquema panóptico é um intensificador para qualquer aparelho de poder: assegura sua economia (em material, em pessoal, em tempo; assegura sua eficácia por seu caráter preventivo, seu funcionamento contínuo e seus mecanismos automáticos.” Com a expansão do modelo do observatório central, a vigilância eletrônica se transforma também num sistema abstrato de disciplinamento, já que, na prática, é inviável exercer uma vigilância direta sobre instituições sociais dada a magnitude estatística dos observados.

No esquema panóptico vivemos permanentemente sob a suspeita de estarmos sendo vigiados, numa atmosfera de paranoia artificialmente produzida. Assim, a ação transgressiva pode ser coibida antes mesmo de praticada pois o efeito de coerção é permanente mesmo que, na prática, a vigilância seja descontínua ou até mesmo inexistente.


Nossa sociedade, como já observou Michel Foucault,[1] é menos a dos espetáculos do que a da vigilância. Encontro-me num aeroporto qualquer, em qualquer parte do globo, esperando meu vôo para qualquer lugar. Coloco minha bagagem numa esteira rolante; imediatamente ela é bombardeada por um feixe de raios X, que vasculha o seu conteúdo em busca de substâncias ou instrumentos ilegais. Eu próprio devo me encaminhar até uma simulação de porta ou coisa parecida, onde outro dispositivo examina meu corpo e o interior de minhas roupas. Não tendo sido detectado nada suspeito, recebo do olho mecânico o go-ahead que me permite retomar a bagagem e prosseguir minha jornada em direção à sala de espera. Sento-me numa poltrona e, enquanto observo o movimento, noto que há uma câmera, discretamente colocada num canto qualquer da sala, apontada para a minha direção, vasculhando todas as minhas ações. Aliás, não há só uma; são várias, espalhadas estrategicamente por todo o saguão, de modo a não deixar um único espaço livre do escrutínio desse olhar anônimo e onividente. Então me dou conta de que todas essas câmeras já estavam me seguindo desde que desci do táxi à entrada do aeroporto, acompanhando-me ao bar quando pedi um café e quando parei numa banca para comprar um jornal.

Como os demais passageiros da sala de espera, coloco uma ficha na ranhura de um dos braços da poltrona e imediatamente se acende à minha frente a tela de um pequeno receptor de TV de cinco polegadas, que me permite matar o tempo assistindo à programação local. Minha atenção, entretanto, dispersa-se e logo estou olhando para outras telas, enfileiradas em vários pontos do aeroporto: os monitores dos sistemas de vigilância, que me dão as imagens assépticas do próprio aeroporto, de seus outros salões, de seu exterior e de seus campos de pouso e decolagem. Dou-me conta de uma muzak repousante que já estava coçando meus ouvidos desde que entrara e que serve de fundo à voz monótona da locutora de avisos. O aeroporto pode ser qualquer um. O La Guardia de Nova York, o Heathrow de Londres ou o Orly de Paris, pouco importa. Aparentemente neutros em sua placidez, os aeroportos dissimulam seu olhar atento e escrutinador sob a aparência de telas impessoais e simples estruturas arquitetônicas. […] Os aeroportos modernos se tornaram a representação mais poderosa do novo ambiente que habitamos: um espaço de múltiplas telas, de dispositivos eletrônicos invisíveis e de um ruído incessante que ouvimos ao longe. Vamos levar ainda algum tempo para compreender a fundo o impacto em nossos sentidos e em nosso pensamento dessa nova paisagem cultural, cuja relação primeira se dá entre nós e a ubiquidade da tela.[2]

Os sistemas eletrônicos de vigilância multiplicam-se em progressão geométrica por toda a parte. Não apenas os aeroportos ou estações de trem e metrô, mas agora até mesmo as estradas, os túneis, os supermercados, os grandes magazines, os bancos, as fábricas e, no limite, as escolas e instituições psiquiátricas, estão submetidos aos olhares técnicos e impessoais das câmeras de observação. Só na cidade de Hamburgo, sendo Kramer e Klier,[3] há 3 mil câmeras movidas por controle-remoto e espalhadas por toda a zona urbana, para monitoração do sistema de tráfego. Essas câmeras estão colocadas nos lugares mais estratégicos, ocupando os ângulos mais privilegiados de visão e distribuídas no espaço, de modo a não deixar um único ponto livre do voyeurismo automático. Locais ocultos ou de configuração acidentada são refletidos para a câmera através de espelhos convexos colocados na paisagem. Na sala de controle do departamento municipal de trânsito, pode-se dar um close-up em qualquer transeunte que circula pelas calçadas, segui-lo secretamente até o seu destino, “cortando” de uma câmera para outra, penetrar em sua intimidade e desvendar os seus segredos.

As câmeras de vigilância se distribuem como uma rede sobre a paisagem social, ocupando todos os espaços e os submetendo ao seu poder de invasão branca, à sua penetração invisível e indolor. A elas se acrescentam ainda outros dispositivos de vigilância mais localizados, como os grampeamentos de telefones e os microfones unidirecionais poderosos, capazes de captar um diálogo em voz baixa a longa distância. Depois de Watergate, não pode restar dúvidas de que as esferas do público e do privado se interpenetram cada vez mais. E, em escala mais planetária, os satélites de observação e espionagem estão em condições de obter informações visuais ou acústicas de uma vasta região do globo, a ponto de poderem detectar, a duzentos quilômetros de altura, uma batida de coração ou a posição de uma agulha. Quando estourou, em 1978, o escândalo em torno dos satélites-câmeras norte-americanos Big Bird, que durante cinco anos espionaram áreas militares soviéticas, os técnicos da CIA declararam que esses engenhos eram capazes de distinguir do espaço pessoas em trajes civis e militares, a marca de um automóvel e até mesmo a sua chapa.[4]

Em 1983, o artista tcheco radicado em Berlim Michel Klier, monitorando circuitos de vigilância e outros dispositivos de coerção policial, compôs o poema videográfico Der Riese [O gigante], uma das peças chave da arte de nosso tempo, além de uma visão perturbadora do Estado policial moderno. A ideia básica desse vídeo é construir, mediante o acesso às salas de controle de um grande número de sistemas de vigilância espalhados por toda a Alemanha, uma colagem de cenas aleatórias obtidas por olhos mecânicos espiões, de modo a configurar, segundo palavras do próprio realizador,[5] “um movimento no qual o ordinário e o banal do funcionamento desses sistemas transfiguram-se em imagens assombrosas de um pesadelo”. Registros do dispositivo de controle do trânsito de Hamburgo, do sistema de vigilância de uma empresa de carros blindados para transporte de numerário em Frankfurt, ou de uma loja de departamentos em Berlim, ou ainda de um peep show na mesma localidade, além do aparato de segurança de uma parada militar no lado oriental da cidade, tudo isso é alinhavado com outras imagens, mais emblemáticas ou de função coercitiva menos evidente, como aquelas sintetizadas numa máquina de retrato falado da polícia de Düsseldorf, num simulador de vôo de uma companhia de transporte aéreo em Ulm, ou obtidas de uma câmera oculta numa sessão de psiquiatria legal e até mesmo de dispositivos de penetração em nosso mundo interior, como os gráficos de electroencefalograma. O objetivo implícito é traçar um mapa do que poderia ser a reencarnação moderna de um Panóptico dissimulado e quase invisível, que se estende por todas as dimensões de nossa vida como uma teia esgarçada, porém implacável.

O dispositivo do Panóptico já é bem conhecido. Formulado pela primeira vez pelo jurista britânico Jeremy Bentham, ele era originalmente um projeto de prisão modelar, em que os prisioneiros ficariam enclausurados em celas individuais, dispostas em círculo ao redor de uma torre central, onde estaria colocado estrategicamente o encarregado da vigilância. Cada cela seria dotada de duas janelas, uma que daria para o exterior e através da qual a luz penetraria no compartimento, outra que daria para o interior do círculo e através da qual a silhueta do detento se projetaria para fora, para os olhos da sentinela da torre central. Assim, graças ao efeito da contraluz, todos os prisioneiros resultariam perfeitamente visíveis àquele que os vigiasse. Mas a recíproca não era verdadeira: do interior de sua cela, cada detento só poderia constatar a onipresença constrangedora da torre central, mas não perceberia o vigia, protegido que este estaria por persianas e um sistema de biombos destinado a impedir a visibilidade do interior da sala de controle. Dessa forma, os detentos poderiam ser vistos pelo vigia, mas não poderiam vê-lo em contrapartida, de modo que a sua presença ou ausência seria sempre inverificável. Cumprir-se-ia assim o efeito mais importante do Panóptico: fazer com que os detentos, “por uma simples ideia de arquitetura”,[6] se sentissem vigiados, mesmo quando não houvesse vigia algum na torre central e mesmo quando eles não estivessem sendo diretamente observados. Em outras palavras, o poder não teria mais necessidade de se impor efetivamente, a atualidade de seu exercício se tornaria mesmo inútil; o mais importante era que o detento estivesse imbuído pela ideia de uma permanente visibilidade e que fosse ele próprio, por efeito de um simples dispositivo arquitetônico, o portador de uma relação de poder.

O corolário inevitável de todo dispositivo panóptico é que ele desindividualiza o poder, livra-o do arbítrio do inspetor, do xerife, do chefe, transformando-o numa máquina anônima, num engenho de tecnologia política de que o sistema arquitetônico é o diagrama. “Quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmo; inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se o princípio de sua própria sujeição.”[7] Os próprios vigias tornam-se eles também vigiados. Mas vigiados por quem? Pelo olho do público, que pode ser o olho de qualquer um. O Panóptico é, antes de tudo, uma escola de virtudes, onde personagens odiosas encenam diariamente o drama da punição. Como tal, ele deve ser aberto à visitação pública, deve ser um local de instrução, um teatro educativo para onde os pais levam em passeio os seus filhos, considerados criminosos potenciais. Essa circulação intensa e constante de pessoas (“por lá passarão curiosos, transeuntes, parentes dos prisioneiros, amigos dos inspetores e outros oficiais da prisão, cada um deles animado por um motivo diferente”)[8] faz aumentar para o prisioneiro o risco de ser surpreendido, ampliando assim a eficácia do dispositivo e submetendo ainda o arbítrio do vigia ao controle público. A eficácia do Panóptico reside, portanto, na despersonalização do poder, na sua transformação em pura figura geométrica, uma arquitetura exemplar de que todos participam em alguma instância.

O que são os modernos sistemas de vigilância senão a atualização e a universalização do Panóptico? Bentham já havia profetizado, a seu tempo, que o seu modelo “racional” de prisão poderia ser generalizado para qualquer instituição social baseada nos princípios do controle e da produtividade: fábricas, hospitais, asilos, escolas e assim por diante. Esse modelo permitiria reformar a moral dos homens, difundir a instrução, incrementar a produtividade industrial, aumentar a eficiência de todos os ambientes de trabalho, inibindo, em contrapartida, a desobediência às leis, a improdutividade e a subversão da ordem. Em 1797, tendo o Parlamento inglês adiado a decisão de construir prisões panópticas, o famoso jurista se põe a trabalhar numa adaptação de sua máquina polivalente para alojamento de desempregados, com vistas a enfrentar a grave crise social de seus país.[9] O Panóptico pode então ser compreendido como um modelo universal de máquina disciplinar, um dispositivo fechado destinado a definir as relações de poder na vida cotidiana e a preservar as prerrogativas da lei e da ordem. “O esquema panóptico”, conforme observa Foucault,[10] “é um intensificador para qualquer aparelho de poder: assegura sua economia (em material, em pessoal, em tempo); assegura sua eficácia por seu caráter preventivo, seu funcionamento contínuo e seus mecanismos automáticos.” Da mesma forma, os modernos sistemas de vigilância se difundem também e cada vez mais no corpo social, de modo a assumir uma função universalizadora; eles realizam agora, na era da eletrônica e da informática, o mesmo papel paradoxal da máquina benthamiana, ao mesmo tempo difuso e centralizador, alicerçando os mecanismos disciplinares de toda a sociedade.

Tal como o Panóptico de Bentham, os dispositivos eletrônicos de vigilância generalizam para toda a sociedade métodos de coerção nascidos no interior de presídios ou antes utilizados apenas localizadamente, na investigação ou repressão policial. Com a expansão do modelo do observatório central, a vigilância eletrônica se transforma também num sistema abstrato de disciplinamento, já que, na prática, é inviável exercer uma vigilância direta sobre instituições sociais, dada a magnitude estatística dos observados. Imagine-se o aparato que seria necessário para vigiar todas as conversas telefônicas de uma megalópole como São Paulo, ou para censurar todas as cartas que passam pelos seus serviços de correio. A densidade demográfica dos grandes centros urbanos não autoriza mais esquemas de controle direto, baseados no poder repressor de uma autoridade central. A própria teoria dos sistemas — disciplina que manifesta em nível teórico mais ou menos a mesma produtividade do Panóptico em nível prático — tem demonstrado que qualquer rede de distribuição não pode estar submetida a um controle centralizado, assim que ultrapassa um certo nível crítico de magnitude, exigindo, em contrapartida, outras estratégias de operação, de ordem estocástica ou probabilística.[11] Assim, a fantasia orwelliana de uma sociedade centralizada pela autoridade de um Big Brother torna-se inverossímil, largamente ultrapassada pelo modelo benthamiano de sociedade, baseado numa coerção imaginária, ficção de policiamento cultivada pela proliferação inexorável das máquinas de vigiar.

Essas máquinas, a rigor, vigiam muito pouco. Nas salas de controle, para onde afluem as imagens captadas pelos inúmeros olhos mecânicos, nunca há mais que dois ou três vigias acompanhando monotonamente o fluxo das ações cotidianas. Se eles logram flagrar uma transgressão qualquer, isso se dá mais por golpe do acaso do que por alguma pretensa infalibilidade do aparato, já que as máquinas de vigiar não podem funcionar senão de forma aleatória. O filme de Wim Wenders Der Amerikaniscbe Freund [O amigo americano], de 1977, nos mostra um assassinato no metrô de Paris, captado por inúmeras câmeras de vigilância e difundido para uma quantidade ainda maior de monitores espalhados por todo o subterrâneo, sem que, todavia, ele fosse flagrado por qualquer vigia ou transeunte. No limite, a eficácia das redes de vigilância está menos na sua força imediata como agente repressor do que nos efeitos de homogeneidade do campo escópico que elas produzem. É preciso que vivamos permanentemente sob a suspeita de estarmos sendo vigiados, numa atmosfera de paranoia artificialmente produzida, para que a ação transgressiva possa ser coibida antes mesmo de praticada, para que o efeito de coerção seja permanente, mesmo que, na prática, a vigilância seja descontínua ou até mesmo inexistente. A sujeição real decorre, portanto, de uma relação imaginária: a vigilância torna-se função representativa de um código disciplinar, cujos designantes simbólicos são os olhos técnicos espalhados na paisagem.

É possível que, dentro de algum tempo, com os progressos no campo da Inteligência Artificial, a presença do vigia seja suprimida em definitivo, substituída pela prótese da percepção, a visão sintética assistida por computador. Essa “máquina de visão”, como a chama Paul Virilio,[12] permitirá obter algo assim como uma “visão sem olhar”, a percepção de uma câmera de vigilância digitalizada por um computador capaz de analisar os dados ópticos colhidos, confrontá-los com um padrão de referências e interpretar automaticamente o que ocorre dentro do campo visual. Com a automação da percepção — a visiônica, como já se convencionou chamar essa área da tecnologia — estaremos delegando inteiramente à máquina a função disciplinar e, por consequência, despersonalizando em definitivo o exercício do poder. Todo o sistema hierárquico que ainda organiza certas estruturas de poder em nossa sociedade tenderá a se tornar obsoleto, cabendo então à percepção sintética e aos expert systems o controle automático de atividades tão diferenciadas como a produção industrial, o trabalho nos escritórios, o lazer em espaços públicos, a espionagem militar e assim por diante. O Panóptico atinge assim o seu ponto máximo de eficiência, na medida mesmo em que se reduz a uma fórmula inteiramente abstrata, quase uma equação matemática, na medida ainda em que, livre da falibilidade humana, põe-se a constranger os homens com a lógica implacável de seu mecanismo técnico.

Já houve quem fizesse[13] uma aproximação conceitual entre o sistema eletrônico de vigilância e a estrutura de funcionamento da televisão. Ora por causa do uso comum de câmeras e monitores da mesma natureza, ora devido à semelhança entre o regime broadcasting de difusão e a estrutura em teia de aranha do dispositivo panóptico de vigilância, outras vezes ainda pelo fato de, na televisão, os apresentadores se endereçarem diretamente à câmera, dando aos espectadores a impressão de estarem sendo, senão vigiados, pelo menos interpelados por um olhar. A comparação é, na maioria dos casos, apenas metafórica, mas não deixa de apontar para alguma coisa mais funda, menos evidente e mais difícil de formular. Virilio[14] nos sugere que há algo de muito significante no fato de os aparelhos receptores de televisão serem agora instalados nas celas dos prisioneiros em unidades individuais e não mais, como ocorria antes, em salas públicas destinadas a um coletivo. E também no fato de as medidas de audiência televisual serem agora realizadas por um aparelho instalado dentro do próprio televisor e conectado com a central de estatísticas por cabo telefônico. Esse aparelho não apenas registra o canal sintonizado e o tempo de sintonia, mas também, por meio de sensores fotoelétricos, se o telespectador está de fato presente diante da tela, se ele não se ausentou apesar do aparelho ligado. A tática dá às redes de emissão e aos seus patrocinadores alguma garantia de controle sobre os efeitos dispersivos do zapping televisual, mas prefigura também o rascunho, ainda que bastante primário, de um olho fotoelétrico de vigilância. Primário mas destinado a evoluir, e não é difícil de imaginar, dentro de algum tempo, a generalização do procedimento, com os dispositivos de registro de audiência já incorporados a todos os aparelhos de recepção e conectados à central pela mesma via eletromagnética do sinal televisual.

Certamente, não se trata de um complô maquiavélico destinado a constranger o cidadão, como em certas ficções pseudocientíficas. O novo dispositivo panóptico permanece, como o antigo, dirigido no sentido de uma otimização dos sistemas legal e econômico: trata-se de extrair a produtividade máxima das redes eletrônicas de difusão já implantadas profundamente na vida social. Nesse sentido, aquilo que, por enquanto, permanece uma promessa apenas hipotética no âmbito do modelo broadcasting de televisão é já uma realidade no terreno das modalidades narrowcasting (televisões “especializadas” e de distribuição seletiva). Um terminal de videotexto, por exemplo, pode ser inteiramente controlado na base de dados: ali são registrados todos os acessos aos seus arquivos, computados os tempos de acesso, tabuladas as preferências de cada usuário e os seus períodos de lazer e de trabalho, confrontando-se os resultados com a faixa etária, a condição econômica e o grau de instrução do indivíduo em questão. Informações, sem dúvida, preciosas para o aprimoramento do próprio sistema de difusão, além de favorecer ainda a constituição de estratégias comerciais (mas às vezes também ideológicas) dirigidas especificamente para cada usuário. Certos regimes de TV a cabo ou bidirecionais favorecem também estratégias semelhantes. É verdade que, em casos isolados, pode haver coerção direta ao usuário, sobretudo quando este, inadvertidamente, desconhecedor da centralização das redes de dados, utiliza seu terminal para finalidades consideradas indesejáveis, tais como o envio de mensagens pornográficas a outros usuários, ou a resposta indelicada a questionários dos programas. O que salta à vista, porém, em qualquer dos casos, é a perda progressiva da privacidade do cidadão, invadida suavemente pelos dispositivos de aferição estatística, a própria essência da formalização panóptica.

Nossa sociedade — retomando novamente Foucault — é menos a dos espetáculos do que a da vigilância. Mas a sua sabedoria está em transformar o próprio espetáculo em observatório de vigilância. “A partir do momento em que os telespectadores ligam seus receptores, são eles mesmos, prisioneiros ou não, que entram no campo da televisão, um campo sobre o qual eles não têm qualquer poder de intervençao.”[15] Mas a recíproca também é verdadeira: em nossa sociedade marcada pelo destino do Panóptico, a própria vigilância resulta também em espetáculo. As telas dos monitores de vigilância, por exemplo, não são mais objetos secretos, reservados apenas às salas de controle e observação. Antes, elas se esparramam pela paisagem vigiada, oferecendo-se como espetáculo aos seus próprios protagonistas, para que o olho público assuma ele mesmo a tarefa da vigilância. Ademais, é de se notar a maneira como a própria televisão consegue transformar em atração situações típicas de vigilância. O exemplo clássico é Candid camera, programa animado por Allen Funt e levado ao ar pela primeira vez na televisão americana em 1948. Nele, “pessoas comuns” eram filmadas por câmeras ocultas em situações ridículas ou humorísticas provocadas pela própria equipe de produção. Colocado na situação de voyeurismo explícito, o público americano se divertiu durante várias décadas com o vexame alheio. No Brasil, Sílvio Santos utilizou procedimentos de câmera cândida em seu programa dominical, mas já inseridos numa situação controlada de gincana eletrônica. Com a generalização da técnica para programas de outra natureza, o telejornalismo acabou por revelar-se o “gênero” por excelência da câmera cândida, a ponto de seus achados de espionagem e bisbilhotice serem saudados como “furos” de reportagens. O assim chamado jornalismo investigativo, aliás, se confunde cada vez mais com a investigação policial propriamente dita, a ponto de realizar, muitas vezes, o sonho benthamiano de uma sociedade autovigiada.

Circuitos fechados de televisão são hoje largamente utilizados em motéis como recursos de estimulação erótica: os amantes se colocam no campo de visão da câmera e, enquanto se acariciam, contemplam-se na tela do monitor, esperando pela intensificação do estímulo sexual. Há casais que já não conseguem mais sentir atração sexual se não puderem contemplar-se, ao mesmo tempo, numa tela de TV. As cenas de estimulação eletrônica são evidentemente privadas, mas já se conhecem muito bem as formas como elas são contrabandeadas pelos motéis. Em alguns casos, o circuito fechado se converte em verdadeiro sistema de vigilância, através do qual a administração do motel controla o que se passa dentro de cada quarto. Em outros, as cenas dos amantes são gravadas através de cabos ocultos e utilizadas no próprio estabelecimento para a estimulação de outros amantes, após terem sido digitalizadas as faces dos primeiros para esconder suas identidades. O mais surpreendente é que, às vezes, os amantes sabem disso e nem por isso se inibem das câmeras; até pelo contrário, a eventualidade de estar sendo vigiados dá um sabor de emoção à aventura.

O que há de paradoxal nesse exemplo é que ele torna evidente a facilidade com que se pode, diante da imagem eletrônica, passar da condição de observador a observado, ou de espectador a espetáculo, dada a reversibilidade das tecnologias de registro e exibição. Na vitrine de uma loja de artigos eletrônicos, contemplo os aparelhos receptores de TV, que me dão a programação das redes, mas contemplo-me também a mim mesmo nos monitores dos circuitos de vigilância, que se misturam àqueles e com eles se confundem. A linha de separação entre o vigia e o vigiado é tão tênue quanto aquela que separava, no Panóptico de Bentham, a sentinela dos enclausurados, de um lado, e dos visitantes, de outro.

No começo do século, Freud[16] já previa a reversão da pulsão do olhar no seu oposto (a pulsão de sentir-se olhado). Isso significa, na linguagem das perversões, que voyeurismo e exibicionismo eram duas faces de uma mesma moeda: olhar não era outra coisa que se mirar no espelho do olho do outro. Posteriormente, Merleau-Ponty e Lacan, para ficar apenas nos nomes mais marcantes, retomaram o tema freudiano da reversibilidade do olhar entre os polos vidente e visível. O mesmo campo escópico que constitui o sujeito — explicaram eles — é também o local onde o sujeito fracassa como fonte originária, como foco, como “ponto de vista”, pois não é o olhar senão um quiasma, ponto de cruzamento e de reversibilidade do eu e do outro, dupla inscrição do dentro e do fora.[17] Toda essa conceituação, entretanto, que no discurso abstrato da filosofia e da psicanálise aparece como esforço de retórica ou jogo de expressão, resulta claramente colocada em evidência nas máquinas de vigiar e concretizada na ambiguidade ocular do Panóptico universal. A multiplicação das câmeras de vigilância na paisagem social põe a nu esse desdobramento do ponto de vista, não sendo mais de ninguém o olho do outro, mas apenas uma virtualidade escópica que pode ser ocupada por qualquer um. Amanhã, quando vier a prótese ocular, o olho sintético e infográfico da máquina, não será mais uma figura de linguagem dizer, como os psicanalistas, que as pedras nos vêem. Os olhos estarão não apenas fora de nós mas também fora do vivente como espécie. “Por detrás do muro, já não vejo mais o cartaz; diante do muro, o cartaz se impõe a mim, sua imagem me percebe.” Não é Lacan quem fala; é Virilio.[18]

O último filme de Fritz Lang, Die Tausend Augen des Dr. Mabuse [Os mil olhos do dr. Mabuse], de 1960, foi construído inteiramente em cima da ideia da onipresença das máquinas de vigiar. Acredita-se que a concepção do filme nasceu de uma informação, veiculada na época de sua realização, de que os nazistas haviam planejado construir um hotel, destinado a diplomatas e personalidades políticas, cujos quartos estariam dotados de microfones ocultos, antecipando em cerca de trinta anos o episódio de Watergate. O novo Mabuse adquiriu um hotel inacabado ao término da guerra e finalizou sua construção, equipando-o com câmeras de vigilância dissimuladas. Assim, colocado na sala de controle do hotel, Mabuse acompanha tudo o que se passa nos quartos através das imagens e dos sons exibidos nos monitores. Desse local, ele executa uma verdadeira mise-en-scène, transformando os hóspedes em personagens de uma trama policial que ele próprio arquitetou. Sem o saber e dirigidas secretamente pelo astucioso bandido, as personalidades do hotel cumprem os planos de Mabuse até as últimas consequências, transformando-se inadvertidamente em seus cúmplices.

O circuito de vigilância de Mabuse, entretanto, resulta imperfeito como dispositivo panóptico. Pois, se há algo que marca a essência mesma da vigilância eletrônica, é que nela nenhum vidente está mais implicado. As câmeras de vigilância não dependem, para funcionar, de um operador centralizado, muito menos de um gênio da manipulação que, da sua sala de controle, rege o destino dos observados como peças de um tabuleiro de xadrez. É bem mais provável que não haja mais ninguém olhando para os monitores de vigilância, a não ser os próprios transeuntes, a título de distração. Ou que os próprios monitores já estejam sendo substituídos por olhos sintéticos regidos por um programa. Sempre dissemos, a propósito da fotografia, do cinema e mesmo da televisão, que não há câmera sem que um olho humano esteja implicado nela, donde o tema romântico do artista atrás da câmera. Os circuitos de vigilância, entretanto, parecem dispostos a dispensar inteiramente o homem que fica atrás da câmera. Tudo neles se automatiza e caminha na direção da prótese perceptiva. Neles não há mais lugar para um mestre regente, nem mesmo para um dr. Mabuse.

Na contramão dos tempos, Michel Klier decide realizar uma obra que é o último traço da subjetividade visual, o “canto de cisne” definitivo do artista atrás da câmera, mas também e paradoxalmente o primeiro exemplar de uma arte da prótese perceptiva, “o ponto de mutação do avanço inexorável das tecnologias da representação, de sua instrumentalização militar, científica e policial ao longo dos séculos”.[19] Tal como Mabuse, mas não mais no nível da fábula e da ficção, Klier senta-se diante dos monitores das salas de controle dos aeroportos, supermercados e serviços de trânsito, coloca sob sua direção os dispositivos de controle-remoto das câmeras e põe-se a reger não uma trama maquiavélica como a de Lang, mas o que bem poderia ser o espetáculo de uma dramaturgia crepuscular deste final de milênio. Estamos falando, é claro, de Der Riese.

Tarefa difícil, quase impossível, pois a máquina resiste a uma abordagem qualitativa, teima em exibir sua natureza mecânica e não oferece elementos para qualquer atribuição desviante de sua finalidade exclusiva de vigilância. Os percursos das câmeras, fortemente marcados, rigidamente estabelecidos, sempre em linha reta e na posição das coordenadas cartesianas (para cima ou para baixo, para a direita ou para a esquerda), não lembram em nada os travellings suaves do cinema, favorecidos pelos tripés de cabeça fluida, ou as suas panorâmicas ágeis e elegantes. Antes, aqui os movimentos são imotivados, o olhar é errático e arbitrário, em geral governado apenas pelas surpresas do acaso. Não havendo intenção significante, o olho mecânico não transmite, a princípio, qualquer informação. Ele se contenta apenas em ficar permanentemente funcionando, registrando em tempo real a banalidade de um cotidiano anódino. “O mais assombroso nessa fita é, sem dúvida, a insignificância, a vacuidade desse olhar cego. Trata-se aqui de um pensamento ou de um olhar vazio, puramente tecnológico.[20] Nenhum sentido; talvez apenas um, secundário, imotivado, resultando de uma associação semântica: na tela dos monitores de vigilância, todos parecem suspeitos; até mesmo o mais vulgar dos homens, como nos romances de Kafka, parece acometido de culpa; os cenários lembram insistentemente a paisagem de um crime que está prestes a ser cometido. Tudo miragem, pois na verdade nada acontece, nada pode acontecer.

Porém, na sala de controle, diante das telas eletrônicas e dos botões de monitoramento, Klier força o sentido: segue longamente o percurso de uma simples pomba na calçada à procura de comida; instaura um esboço de ficção, fazendo simular um assalto num supermercado; edita “com continuidade” o percurso dos transportadores de valores, parodiando um efeito cinematográfico; detém o fluxo das pessoas nas ruas, fazendo-as caminhar em câmera lenta ou congelando-as num único frame. E, quando tudo isso ainda não lhe parece suficiente, salta para o contracampo do dispositivo de segurança, tornando visíveis as câmeras ocultas e os monitores das salas de controle. Numa das sequências mais amargas do vídeo, ele se senta diante de uma máquina de retrato falado e se põe a construir rostos artificiais, rostos que, pelo fato mesmo de desfilarem num banco de imagens fisionômicas da polícia, sugerem uma multidão de deserdados anônimos, criminosos, psicopatas, assassinados e atropelados que talvez nunca existiram, mas que poderiam ter existido ou vir ainda a existir. Metade reais e metade imaginários, esses rostos sintéticos se parecem estreitamente como aqueles que desfilam ininterruptamente nas telas dos monitores de vigilância. Mas eles são, paradoxalmente, as únicas faces “humanas” vistas em close-up no vídeo (a sequência do monitoramento da sessão de psiquiatria é mostrada em plano americano), o que não deixa de ser uma inversão de valores bastante significativa.

Há alguns momentos, entretanto, de pura transcendência, em que as imagens saltam para fora de sua couraça disciplinar. Esses momentos são possibilitados pelo único elemento estranho dentro do campo da vigilância, algo que está inapelavelmente fora do quadro, num espaço off inassimilável ao dispositivo panóptico: a música acrescentada às imagens. A trilha sonora de Der Riese combina som direto, captado pelas próprias câmeras de vigilância, com uma seleção musical criteriosa e significante. Essa trilha sonora, ao mesmo tempo em que sugere o lado dramático de um mundo enclausurado, introjeta também emoção nessas paisagens descarnadas, invertendo a linha de força das imagens. Tais momentos de intensidade expressiva nós os encontramos particularmente na sequência dos rostos sintéticos, ou da gravação do traçado encefalogramático, ou ainda da estação de veraneio, onde até mesmo o ato inocente de tomar sol à beira-mar é dissecado por poderosos aparatos de vigilância.

Dramática, pesada, perturbada, pregnante, repleta de intenção, sacudida por súbitas quedas e pausas, a trilha sonora de Der Riese — verdadeiro arquétipo do que se entende por música de filme — redobra longinquamente o circuito fechado das imagens, mas força também a sua abertura, como decorrência de suas secreções — um feixe de ondas, carregado de certezas e incertezas, prováveis índices e falsas pistas, cadeias forçadas de eventos, conhecimentos assumidos, segredos ameaçados —, sementes de ficção que aspiram ao interior, tensões centrais em direção às margens. A música joga o centro para fora.[21]

Surpreendente é ver nascer uma nova geração de artistas capaz de redescobrir a vida num mundo centralizado pelas máquinas, num mundo que toma para si o destino do Panóptico. Um modesto filme do canadense Atom Egoyan, Family viewing (1987), demonstrou recentemente até mesmo na nossa vida mais íntima estão criando outras relações humanas e até mesmo dando expressão a emoções novas, nunca antes experimentadas. Em escala um pouco mais reduzida, encontramos essa constatação também no Paris, Texas (1984), de Wim Wenders, sobretudo na surpreendente figura do menino que redescobre a comunicação por meio de seu walkie-talkie. Klier faz parte dessa geração emergente de poetas capaz de transformar em exercícios de sensibilidade e paixão (mas também em conhecimento crítico) as novas e intrincadas relações subjetivas e objetivas colocadas pelas sociedades industriais avançadas. Ao invés de apropriar-se das imagens de vigilância apenas como pretexto para uma interpretação semântica distanciada, ele se esforça para torná-las sensíveis em toda a sua intensidade, em toda a sua extensão, em todas as suas contradições, de modo que possamos estar mais maduros para viver, entender e superar o nosso tempo.

QUESTÕES

Todos esses recursos que o senhor citou não poderiam também ser utilizados de forma positiva, em benefício da sociedade? Quero dizer: os dispositivos panópticos não poderiam ajudar as agências de pesquisa e estatística, para tornar as pesquisas mais reais?

Talvez eu não tenha conseguido me fazer entender corretamente. Todo dispositivo de vigilância busca sempre a utilidade máxima, toda a eficiência possível. O fundamento mesmo do modelo benthamiano é a absoluta racionalidade do sistema, o que quer dizer — para os seus articuladores — uma forma de beneficiar a sociedade. No fundo, o que se visa é um contexto social onde tudo funciona bem, onde todos desempenham o seu papel (e nada mais do que isso), onde a lei, a ordem econômica e os agentes sociais estão todos em harmonia. Talvez a pergunta que nós possamos fazer em relação a esses sistemas seja outra: como podemos nós tornar inúteis tais dispositivos? Como podemos nós reverter a sua utilidade programada? Será possível fazer desses engenhos algum tipo de utilização desviante? Uma exposição realizada em Los Angeles em 1987 tentou dar uma resposta a essas questões. A exposição — chamada justamente “Surveillance” [Vigilância] — contou com a participação de artistas de várias partes do mundo e constituiu uma das experiências estéticas mais impressionantes dos últimos anos. A ideia básica da exposição foi convocar algumas dezenas de artistas para trabalhar com essa ideia de uma permanente vigilância. Como desviar a racionalidade dos dispositivos panópticos? Cada artista deu a sua resposta a essa pergunta sob forma de uma utilização insólita e crítica dos aparatos de controle e vigilância. Vários trabalhos interessantes foram realizados sob forma de intervenções ou performances aos aparatos de vigilância já instalados em bancos, supermercados, motéis etc. Por exemplo: um sujeito (Michael Shamberg) entra num supermercado com sua câmera, gravando tudo. A segurança chega e tenta impedi-lo, argumentando que ali é proibido filmar. “Mas então vocês estão violando a lei”, argumenta o artista. “Olha lá, aquela câmera de vigilância está me filmando desde que eu entrei. Aliás, deve ter sido por intermédio dela que vocês me localizaram.” Uma outra artista, Margia Kramer, graças a um mandato judicial, devassou os arquivos da atriz Jean Seberg nos computadores do FBI, revelando como a instituição interpreta e classifica dados referentes à vida privada das pessoas e como procede em relação à diferença em termos de costumes, ética e ideologia. Outros artistas realizaram performances para as câmeras de vigilância das fronteiras dos Estados Unidos com o México. “Surveillance”, enfim, demonstrou com exemplos práticos como agem as instituições modernas em relação aos seus cidadãos e como é possível responder criticamente a elas.

E qual é a eficiência desses sistemas de vigilância?

Não tenho uma resposta precisa para lhe dar, mas, olhando para o que se passa ao nosso redor, podemos dizer que, felizmente, eles não são tão eficientes assim. Há sempre uma margem de mobilização dentro da qual podemos atuar. Acho que nunca houve — nem mesmo por ocasião do nazismo — um aparato suficientemente fechado, ou um dispositivo de controle tão eficiente a ponto de imobilizar inteiramente a capacidade de resposta das pessoas. Um aparato de controle perfeito é uma utopia. Sempre haverá uma margem de ineficiência no sistema, graças à qual podemos agir.

Queria que você falasse de vigilância, mas do ponto de vista do condicionamento que as televisões produzem: padrões de comportamento, formas de agir que são impostas às pessoas, inclusive transformando até a vida íntima em espetáculo. Muitas pessoas se dirigem a determinados programas de auditório para se fazerem notar, para se converterem em espetáculo. Mas, no mesmo momento em que se tornam espetáculo, elas também se tornam ridículas. A televisão só transforma as pessoas comuns em espetáculo na medida em que as pode tornar ridículas. Tudo isso também é uma forma de vigilância. Mediante o controle dos significados, padrões de comportamento, você dita o que as pessoas podem ou não fazer. Gostaria que também falasse do fenômeno do zapping. Como o veem os institutos de pesquisa? Tem muita gente que vê televisão de quatro a cinco horas por dia e fica trocando de canal o tempo todo.

Na verdade, o aperfeiçoamento dos sistemas de aferição de audiência é uma resposta das instituições aos efeitos dispersivos do zapping. Uma vez que o espectador muda de canal com uma frequência cada vez maior, uma vez que o espectador se torna cada vez mais inquieto, é preciso ter dispositivos de aferição cada vez mais finos e rápidos, para que se possa, em cada instante, ter uma ideia do número de pessoas que estão sintonizadas em cada canal. Os métodos antigos já não funcionam mais, são demasiado lentos. O espectador, com seu controle-remoto nas mãos, é mais rápido do que eles. A cada dia que passa, aumentam as opções de canais. A possibilidade de se mudar de canal aumenta na mesma proporção com que aumentam as ofertas de canais. Na menor queda de ritmo, na menor queda de interesse — pronto! —, já se foi o espectador para outro canal. Imagine como é difícil averiguar a audiência quando o espectador não se fixa mais em programa algum, quando ele fica o tempo todo varrendo os canais para lá e para cá. Mas o zapping é também um efeito ambíguo. De um lado, é um trabalho de resistência do espectador, uma espécie de resposta ao rolo compressor da mediocridade que lhe é imposta. Mas o sistema sabe trabalhar inteligentemente com as respostas negativas do espectador. Essas respostas acabam sempre sendo incorporadas à própria produtividade do aparato. Hoje, a gente já vê o zapping incorporado à própria linguagem da televisão. Comerciais são realizados utilizando recursos de zapping. Videoclipes também lançam mão do zapping televisual. Chegamos a um ponto em que o zapping foi absorvido pela própria programação. A resposta do público acaba sendo, mais cedo ou mais tarde, domesticada pela televisão.

Quanto à primeira parte da sua pergunta, na verdade você fez uma colocação, expôs o seu ponto de vista. O que eu sinto é que esses sistemas de vigilância também desempenham um papel ambíguo: eles colocam as pessoas dentro do universo simbólico da televisão, que é, no fim das contas, aquilo que as pessoas querem. Se o sonho da maioria das pessoas é um dia aparecer na televisão, os sistemas de vigilância estão permanentemente colocando-as na televisão. Quando há um sistema de vigilância exposto na vitrine de uma loja, é muito comum ver as pessoas se arrumando do lado de fora para se verem enquadradas no monitor. No metrô de São Paulo, é muito comum ver as pessoas usarem o sistema de vigilância como espelho, por exemplo, para pentearem os cabelos. Por razões dessa espécie, a vigilância se encaixa perfeitamente nesse ponto de reversibilidade do voyeurismo e do exibicionismo, tal como analisado por Freud. Antigamente se colocavam espelhos dentro dos elevadores e também dos banheiros, como um recurso de inibição de pessoas, para evitar que eles grafitassem as paredes, por exemplo. Um espelho na parede — ou, melhor ainda, dois espelhos, um de cada lado — multiplica a imagem do sujeito, de modo que ele se sente tolhido em sua privacidade, como que observado. Essa é a razão por que se colocavam espelhos em banheiros e elevadores: para dar uma impressão de vigilância. Hoje, os sistemas eletrônicos de vigilância substituem os espelhos. Conforme já observou Paul Virilio, os monitores do sistema de vigilância ocupam hoje os lugares que antes eram destinados aos grandes espelhos nos metrôs e aeroportos. Mas trata-se de um espelho traiçoeiro: ele permite que o cidadão mire-se a si mesmo, mas ao mesmo tempo torna-o mirado por outros olhos que não são os seus.

Você fala de vigilância, coloca as observações de Foucault e de Virilio e a gente fica imersa num clima de paranoia. Você não acha que a relação com a onipresença das imagens é uma coisa natural para isso que você chama de “sujeito” e que, no entanto, brinca de ser objeto para as câmeras?

Não entendi. Dá para explicar melhor?

Uma coisa é um sujeito pensar que está sendo vigiado o tempo todo e ficar apavorado com isso, cair na paranoia. Mas hoje, com as pessoas todas vivendo em relação às imagens, com essa onipresença das imagens, esses espelhos todos, não só a gente é vista, como também atua para as câmeras. Eu brinco de ser objeto, sem deixar de atuar como sujeito. Um pouco assim como, no motel, o casal, suspeitando de que está sendo vigiado, transforma essa suspeita num elemento estimulante e acaba fazendo uma performance para a câmera oculta.

Acho que você tem razão. As relações humanas são cada vez mais intermediadas pelas máquinas de enunciação simbólica. Essas máquinas estão cada vez mais próximas de nós, elas penetram cada vez mais em nossa intimidade. Eu não vejo isso de uma forma puramente negativa. Acho que os homens vão aprendendo a viver sob essas circunstâncias. Alguns artistas têm sido muito sensíveis a essa nova paisagem que agora se descortina diante de nós. Eu já citei os exemplos de Klier e Wenders. Muitas obras recentes estão conseguindo colocar de uma forma inovadora as novas relações humanas que nascem dessa nova paisagem povoada de máquinas. De repente, as câmeras eletrônicas podem funcionar como dispositivos para as pessoas redescobrirem certas emoções que haviam sido perdidas. Aos poucos, nós vamos aprendendo a trabalhar as máquinas enunciadoras para o resgate de uma sensibilidade que supunhamos perdida. Enfim, ao invés de assumir a paranoia, o que é preciso é reinventar o aparato tecnológico que nos é imposto, reverter a sua racionalidade programada.

Você quer dizer que nós não deveríamos tentar mudar o sistema, mas dominá-lo?

Eu penso que nós temos condições de viver da melhor maneira possível, da maneira mais inventiva, povoando com algum tipo de energia o espaço que habitamos. Nem sempre é preciso uma virada radical de modelos econômicos, políticos ou sociais para que isso possa se tornar viável. Não penso mais a história em termos teleológicos.

Eu estava aqui imaginando como deve ser horrível um sistema exaustivo, no qual você está submetido a uma vigilância constante. Mas, por outro lado, pensando na sedução do consumo, da publicidade, as pessoas, na verdade, também estão solidárias com o poder. Quando as pessoas aparecem na televisão, usam a roupa da moda, não têm elas um certo prazer, um certo poder que deriva da própria participação? Ao invés de se sentir vigiado, você não está compartilhando do poder?

Não entendi bem a sua pergunta, mas vou usá-la como gancho para fechar o que estava dizendo a respeito da possibilidade que temos de reverter a racionalidade dos dispositivos panópticos. Acho que a situação de um indivíduo que vive sob coação de um sistema de vigilância não é absolutamente uma situação desesperada, paranoica. Acho que é apenas uma situação conformada. Sempre que entramos num shopping center, num supermercado, num banco, nós estamos sendo vigiados. Não há nada de constrangedor, muito menos de apocalíptico nisso. Nós apenas nos tornamos passivos diante desses dispositivos. Mas nós poderíamos assumir um papel mais ativo em relação a eles. Um pouco como já o faz o office-boy, que passa diante da câmera de vigilância e lhe mostra a língua, faz-lhe uma careta ou um gesto obsceno. Ele não se deixa intimidar pelo dispositivo, ele desafia. Enfim, é preciso saber agir em relação aos dispositivos panópticos com maior energia do que habitualmente o fazemos, é preciso resistir a eles com maior ênfase. Eles são bem menos eficientes e poderosos do que podemos supor. Eles não têm de fato um poder repressor. A nossa sujeição é estúpida, num certo sentido, pois o santo é de barro.

Mas o que dizer de casos como aqueles que você citou do videotexto? Como se poderia reagir a uma repressão direta?

Mas eu disse que o sistema não é usado para controle, muito menos para repressão. Economicamente, não há interesse em se criar um aparato da magnitude do videotexto para reprimir maus usuários. Imagine se o capital vai investir numa mídia apenas para poder flagrar ague-les que transgridem as regras da própria mídia!

Mas ela pode ser usada assim…

De fato, pode. Mas, quando digo que a nossa resposta poderia ser mais ativa, certamente não me refiro simplesmente à resposta solitária do usuário ingênuo que emite mensagens pornográficas ao banco de dados. Penso em coisas como as rádios e televisões livres, quando elas começam a pesar como força social, colocando em questão o sistema inteiro da mídia. Quando a capacidade de resposta à racionalidade do sistema começa a se tornar coletiva, a repressão direta é inviável e a eficácia imaginária dos dispositivos panópticos esfarela como areia entre os dedos.

NOTAS

  1. Michel Foucault, Vigiar e punir: história da violência nas prisões (Petrópolis, Vozes, 1988), p. 190.
  2. Rosetta Brooks, “Seeing with our ears: music for TV”, in The arts for television, ed. Kathy Rae Huffman e Dorine Mignot (Los Angeles/Amsterdam, The Museum of Contemporary Art/Stedelijk Museum, 1987), p. 66.
  3. Brigitte Kramer & Michel Klier, “Der Riese”, in Surveillance, ed. Branda Miller e Deborah Irmas (Los Angeles, LACE, 1987), p. 29.
  4. Hal Glatzer, The birds of Babel (Indianapolis, Howard W. Sams, 1983), p. 197.
  5. Kramer & Klier, op. cit., p. 124.
  6. Jeremy Bentham, Oeuvres (Bruxelas, Louis Hauman, 1829), v. 1, p. 248.
  7. Foucault, op. cit., p. 179.
  8. Bentham, op. cit., p. 249.
  9. Jacques-Alain Miller, “Jeremy Bentham’s panoptic device”, in October (Cambridge), nº 41, versão de 1987, p. 16.
  10. Foucault, op. cit., p. 182.
  11. Hans Magnus Enzensberger, Elementos para una teoria de los medios de comunicación (Barcelona, Anagrama, 1972), p. 14.
  12. Paul Virilio, La machine de vision (Paris, Galilée, 1988), p. 125.
  13. Patricia Mellencamp, “Avant-garde TV: Simulation and surveillance”, in Video, ed. René Payant (Montreal, Artexte, 1986), pp. 197-204. David James, “Intervention: The contexts of negation for video and its criticism”, in Resolution: A critique of video art, ed. Patti Podesta (Los Angeles, LACE, 1986), p. 88. Muniz Sodré, A máquina de Narciso (Rio de Janeiro, Achiamé, 1984), pp. 24 ss.
  14. Virilio, op. cit., p. 136.
  15. Idem, ibidem, p. 136.
  16. Sigmund Freud, “Pulsions et destins des pulsions”, in Métapsychologie (Paris, Gallimard, 1972), pp. 11-44.
  17. Maurice Merleau-Ponty, O visível e o invisível (São Paulo, Perspectiva, 1971), p. 235-7. Jacques Lacan, Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985), pp. 90-115.
  18. Virilio, op. cit., p. 131.
  19. Virilio, op. cit., p. 104.
  20. Florence de Mèredieu, “Le crustacé et la prothèse”, in Paysages virtuels (Paris, Dis Voir, 1988), p. 17.
  21. Jean-Paul Fargier, “The hidden side of the moon”, in Het lumineuze beeld: The luminous image, ed. Dorine Mignot (Amsterdam, Stedelijk Museum, 1984), p. 44.

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