A deusa Razão
Resumo
A vitória da razão sobre o cristianismo e as medidas descristianizadoras da Revolução Francesa, inspiraram a substituição do culto religioso por um culto à própria Razão. Tais medidas de descristianização se justificavam como respostas às provocações da igreja e, pragmaticamente, expropriaram os bens do clero ajudando a financiar a revolução que precisava de meios para combater seus inimigos internos e externos.
Em Paris e, posteriormente, nas províncias, rituais de culto a razão exibiam alegoricamente uma mulher como representante da razão e foram uma forma de enfrentar o desafio da secularização numa sociedade ainda dominada por valores religiosos.
Entretanto, a essência da Razão se opõe ao universo religioso e vice-versa. Se interpretarmos os cultos como peças teatrais, desaparece o abismo entre o profano e o sagrado. Se compreendidos como festas populares, seriam a carnavalização do logos, com o sentido anti-hierárquico do carnaval, com uma dimensão crítica (denúncia da tirania e da superstição) e uma dimensão utópica (esperança de um mundo sem fronteiras, nem guerras, regido pela razão). Porém, um carnaval sem riso.
A mediação do sagrado e do profano presente tanto no modelo teatral quanto no modelo festivo não elimina a dualidade de intenções, permanecendo assim a tensão entre a vontade de secularizar o mundo leigo e uma certa cumplicidade com aquilo que se quer combater.
Para compreendermos a relação da razão com seus diferentes Outros (o sagrado, a cultura, a história e a pulsão) verificaremos que o culto a razão contém as duas principais doenças do pensamento ocidental: o hiperracionalismo (razão narcísica que se acha soberana), e o irracionalismo (razão niilista, que se deixa absorver por seu outro e desaparece nele).
Finalmente, a razão descobrirá que é preciso evitar os dois extremos: nem a tirania da Razão sobre os Outros, nem a tirania dos Outros sobre a razão. É necessário diálogo com as figuras do Outro. No lugar do despotismo, uma constituição republicana, no lugar da ressacralização a tolerância. Todas as manifestações religiosas são permitidas desde que elas respeitem os princípios da convivência democrática e os direitos humanos. A razão dialógica aceita a importância da cultura na auto-realização do indivíduo mas acredita na possibilidade de transcendência dos limites de toda cultura e tem consciência do peso e da materialidade da história mas a vê como um processo externo ao homem.
A razão dialógica propõe uma conversa democrática com todas as figuras do Outro.
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Desde o início foram tensas as relações entre a Revolução Francesa e a religião. Depois de uma trégua temporária, durante os Estados Gerais e a primeira fase da Assembleia Nacional, em que o baixo clero tinha se solidarizado com a abolição dos privilégios de casta, as crises entre a Revolução e a Igreja não cessaram mais. Em novembro de 1789, foi a nacionalização dos bens do clero. Em novembro de 1790, foi a imposição do “juramento cívico” aos sacerdotes em exercício. Os que se recusaram a prestar o juramento, os “refratários”, foram destituídos de suas funções. Uma das primeiras medidas da Assembleia que se seguiu, a Legislativa, foi declarar “suspeitos” os refratários, em janeiro de 1791. Entre suas últimas medidas está a abolição, em agosto de 1792, de todas as ordens religiosas, e em 20 de setembro, em sua sessão final, o estabelecimento do estado civil e a lei do divórcio. A crise se aprofunda na Assembleia seguinte, a Convenção, responsável, desde sua sessão inaugural, em 21 de setembro, pela proclamação da República. Em outubro de 1793, a Convenção institui o calendário republicano. A terminologia bucólica do novo calendário, idealizada por Fabre d’Églantine — Germinal, Floreal, Prairial, Messidor, Termidor, Frutidor —, revela uma clara intenção anticristã. A mudança foi justificada porque “os padres tinham destinado cada dia do ano à comemoração de um pretenso santo; esse catálogo não tinha nem utilidade nem método; era o repertório da mentira, da fraude e do charlatanismo”.
A descristianização prosseguiu com a ação dos “representantes em missão”, os deputados enviados às províncias para velar pela aplicação da política da Assembleia e da Convenção. O representante André Dumont, por exemplo, proibiu em sua jurisdição as missas dominicais, Laplanche encorajou o casamento dos padres, e o ex-padre Fouché ordenou a destruição dos crucifixos e de todos os símbolos exteriores da fé, assim como a instalação nas entradas dos cemitérios de um cartaz com os dizeres: “A morte é um sono eterno”.
Essas medidas de descristianização estavam na lógica de uma revolução que se legitimava pela ideologia antirreligiosa dos filósofos do século XVIII. Estavam na lógica, sobretudo, da Revolução em sua fase republicana, como bem percebeu Michelet, quando disse que o cristianismo, reino de um só, salvação do mundo por um só, era monárquico por essência. “A vida do catolicismo é a morte da República. A vida da República é a morte do catolicismo.”
Elas se justificavam, politicamente, como uma resposta a iniciativas da Igreja que foram percebidas como provocações. Desde março de 1790, o papa publicara o breve “Quot aliquantum”, condenando a constituição civil do clero e os princípios revolucionários. O clero refratário tinha se comprometido na contrarrevolução dos nobres. O clero constitucional desertara em massa do campo revolucionário, desde o ataque às Tulherias em 10 de agosto de 1792, que levou à destituição do rei, e sobretudo desde a execução deste, em janeiro de 1793.
E se justificavam, pragmaticamente, por razões oportunistas, como pretextos para expropriar os bens do clero e despojar as igrejas dos seus sinos e objetos preciosos, a fim de atender às necessidades financeiras de uma revolução cujos gastos só faziam crescer com o fortalecimento dos seus inimigos internos e externos.
Mas descristianizar não é a mesma coisa que substituir um culto por outro. Ora, foi exatamente o que ocorreu no decorrer do ano de 1793.
O coração de Marat, assassinado em 13 de julho, é guardado num vaso, no Clube dos Cordeliers, e venerado com salmodias e ladainhas em que a assimilação ao coração de Jesus é explícita: “O cor Marat, o cor Jesus”. Mais tarde o culto se estende a dois outros mártires da Revolução, Chalier, guilhotinado em Lyon, dois dias depois da morte de Marat, pela burguesia contrarrevolucionária, e Le Peletier, apunhalado em 20 de janeiro por um oficial monarquista, depois de votar a morte do rei. O trio Marat-Chalier-Le Peletier funcionou assim como uma verdadeira Trindade.
Consagrando a vitória da razão sobre o cristianismo, o novo culto, ainda sem objeto claro, se precisou com a fixação dos traços da nova divindade: não mais heróis deificados, mas a própria razão.
Uma primeira festa da razão se realizou em Paris, em 10 de agosto de 1793, na praça da Bastilha, onde se erguera uma estátua colossal da deusa. O principal oficiante do novo culto foi o presidente da Convenção, Hérault de Séchelles.
Uma segunda festa fora prevista para realizar-se no Palais-Royal. Mas aproveitando o ímpeto anticlerical produzido pela abjuração, em plena convenção, do bispo de Paris, Gobel, alguns membros da Comuna decidiram transferir a cerimônia para um lugar que não deixasse dúvida quanto a seu caráter de ritual religioso substitutivo: a catedral de Notre-Dame.
Era o 20 Brumário do ano II, ou 10 de novembro de 1793. Onde ficava o altar-mor, fora construída uma montanha de madeira pintada. Sobre o rochedo havia um templo da Razão, iluminado pelo archote da Liberdade. Em torno do templo, os bustos de Voltaire, Rousseau e Franklin. Os membros da Comuna, escoltados por um coro de meninas vestidas de branco e coroadas com folhas de carvalho, tinham se instalado na base da montanha. A porta do templo se abriu, dando passagem a uma figura feminina, com um vestido branco e um manto azul. Era a deusa Razão, representada por uma atriz, Thérèse-Angélique Aubry. Ela se sentou num banco de verdura, enquanto o coro cantava o “Hino à Liberdade”, com música de Gossec e letra de Joseph-Marie Chénier: “Desce, ó Liberdade, filha da Natureza;/ O povo reconquistou seu poder imortal:/ Sobre os pomposos destroços da antiga impostura/ Suas mãos reerguem teu altar”.
Terminada a cerimônia na Notre-Dame, rebatizada Templo da Razão, o ritual recomeça na Convenção. Os participantes desfilam da catedral até as Tulherias. O presidente acolhe a Razão, abraçando-a e fazendo-a sentar-se a seu lado. Um coro de órfãos da pátria canta o “Hino patriótico relativo à inauguração do Templo da Razão”, com a música da “Marselhesa” e letra de Léonard Bourdon: “Franceses, que metamorfose/ Transforma os santos em lingotes de metal!/ A razão brotou finalmente./ Ela aniquila os devotos;/ De seus ridículos mistérios/ Apaguemos até a memória;/ Que nosso dogma no futuro/ Seja o de sermos felizes com nossos irmãos;/ Franceses, a verdade que brilha em todos os olhos,/ A liberdade, a igualdade, eis nossos deuses”.
A Convenção decide retribuir a visita da Razão, desfilando até Notre-Dame. Era um luminoso dia de inverno. Os passantes se associavam ao cortejo, certos de estarem assistindo a uma nova era de concórdia do gênero humano. O alemão Anarcharsis Cloots, um dos artífices do novo culto, resumiu a impressão geral: “O discordante federalismo das seitas desaparecia na unidade e indivisibilidade da razão”.
O culto se implanta em outras igrejas de Paris. Em Saint-Roch, a festa é comemorada, em 30 de novembro, com um “Hino à Razão”, com letra de Joseph-Marie Chénier e música de Méhul: “Augusta companheira do sábio/ Destrói os sonhos impostores;/ De um povo livre obtém a homenagem;/ Vem governá-lo pelos bons costumes”.
Iniciado em Paris, o culto se difunde por toda a França, com variantes locais. Em Meyssac, a Razão põe vinho num cálice. Em Thiron, ela aperta um enorme buquê de mirta. Em Confolens, é uma pastora, cheia de fitas tricolores. Em Saint-Gatien de Tours, é uma Vitória alada. Em Rodez, aproveita-se a estátua da Virgem, transformando os quatro evangelistas que a rodeavam em Le Peletier, Marat, Chalier e Bayle. Em Chartres, uma figura feminina armada com uma lança e um capacete tricolor incendeia com uma tocha os atributos do fanatismo, ergue-se por meio de uma máquina, em forma de nuvem, até uma estátua da Razão, enquanto os espectadores, à medida que a nuvem se levanta, veem um “novo mundo” composto de pequenas cidadãs vestidas de branco e de pequenos cidadãos com uniforme da guarda nacional. Em Saint-Omer, o véu que cobre a Razão é retirado e reposto no fim da cerimônia, o que desperta a crítica dos cidadãos locais: não, uma vez desvelada, a Razão não pode ser coberta de novo.
Comum a todos esses rituais é a figura feminina como alegoria da razão, o que talvez explique a resistência oposta a esse culto por numerosos contemporâneos e por vários historiadores de hoje. Um leitor dos Annales patriotiques et littéraires exprime gravemente sua preocupação:
Os sentidos e a imaginação do filósofo se chocam igualmente com a ideia de uma mulher representando a razão e com a juventude dessa mulher. Nas mulheres, essa faculdade tão pura se identifica com a fraqueza, com os preconceitos, e mesmo com os atrativos desse sexo encantador; no homem, o império da razão está livre de qualquer erro: nele se congregam a força, a energia, e a severidade. Mas a razão, sobretudo, é madura, é grave, é austera, qualidades que não convêm a uma moça:
O culto da razão é suscetível de uma explicação política. Seria a expressão de uma luta de poder entre Robespierre, deísta e convencido da necessidade da religião para assegurar a ordem pública, e a Comuna de Paris, que teria propugnado o ateísmo de Estado como simples estratégia para desafiar Robespierre.
Ele também pode ser explicado sociologicamente. Seria uma tentativa dos pequeno-burgueses instalados na Comuna, como Hébert e Chaumette, de desviar a atenção das massas, impedindo a articulação de reivindicações perigosas para os proprietários, como as que tinham sido propostas pouco antes por Jacques Roux e outros enragés.
Essas explicações têm o defeito de transformar o culto da razão num fato secundário, num simples epifenômeno, ilusório e derivado, de algo a que se atribui o privilégio da materialidade — rivalidade política ou antagonismo de classe. Penso, pelo contrário, que ele deve ser levado a sério em seus próprios termos, como forma de enfrentar o desafio de secularização, numa sociedade ainda dominada por valores religiosos. Não é um verdadeiro fato religioso, e nesse sentido não é realmente um culto, mas é sem dúvida um espetáculo em que transparece uma relação problemática com o sagrado.
Essa relação problemática se exprime no próprio sintagma “deusa Razão”. A junção desses dois termos não teria nada da paradoxal, bem entendido, para os leitores do Evangelho de são João, segundo o qual no princípio era a razão, e Deus era a razão. Nem para os adeptos do platonismo cristão, que tinha divinizado o logos. Mas pelo menos desde a Ilustração o logos e o mythos eram dois contrários que se combatiam. A essência da razão era opor-se ao universo religioso, a essência do universo religioso era opor-se à razão. Para os atores da Revolução Francesa, que deviam tudo ao pensamento do século XVIII, o culto encenado na Notre-Dame teria que ser, portanto, a mise-en-scène de uma contradição, a ritualização de um oxímoro. A rigor, Thérèse-Angélique não deveria ter sido vista como uma deusa e sim como um fantasma, como a materialização de uma impossibilidade lógica.
O fato de que isso não tenha acontecido, ou só tenha acontecido em parte, mostra que essa contradição de algum modo estava mascarada no ritual, e, mais ainda, que a função do ritual era precisamente a de apagar a contradição, estabelecendo uma ponte entre o sagrado e o profano.
Essa função mediadora pode ser observada claramente, qualquer que seja o modelo explicativo usado para descrever o espetáculo.
Por exemplo, ele pode ser visto como uma peça. Tudo parece teatral no espetáculo da Razão. A deusa é uma atriz de ópera. Os coros são coros de ópera. A montanha e o templo são cenários de madeira e papel. O aparecimento da atriz principal, o desempenho dos figurantes, a sequência dos diversos episódios, o vestuário dos artistas, tudo obedece a uma direção teatral, tudo resulta de um roteiro bem estruturado. Uma peça de teatro pode ser repetida enquanto houver público interessado. Foi exatamente o que aconteceu no espetáculo da Notre-Dame, cuja première se deu na catedral mas foi reencenada na Convenção. Enfim, ao contrário dos regozijos públicos, que se davam ao ar livre, o espetáculo da Razão se dava no interior, como no teatro. Uma vez adotado o modelo do teatro, desaparece o abismo entre o sagrado e o profano. O espetáculo era uma peça alegórica, com intenções didáticas, e não um verdadeiro culto religioso. O culto era ficção, fingimento, faz-de-conta, produzido, encenado e visto por pessoas que tinham passado pela experiência dessacralizante da Ilustração. Era o reino da imaginação profana. Ao mesmo tempo, a personagem principal é uma deusa, e toda a ação representa um ritual destinado a homenagear essa deusa. Mas, desmistificada pelo olhar profano do espectador, essa deusa se revela como uma simples alegoria, e a alegoria como uma personagem de carne e osso. Com isso, o sagrado e o profano podem ser vividos sem incoerência.
Mas a cerimônia também pode ser compreendida como uma festa, e mesmo como uma festa popular, no sentido de Bakhtine. O espetáculo seria a carnavalização do logos. Era uma festa popular, porque não era uma criação oficial, ao contrário das outras festas revolucionárias e da festa do Ser Supremo, que Robespierre organizaria no ano seguinte, e sim uma iniciativa da Comuna, mais identificada com os sans-culottes e com as massas proletárias que com os elegantes advogados que detinham o poder oficial, na Convenção e nos comitês. Como no Carnaval, apresentava um mundo invertido, em que a razão é mito, e o mito, razão. Assim como no Carnaval os foliões elegem reis e rainhas, na festa da Razão elegeram uma deusa. Como no Carnaval, essa festa tinha um sentido anti-hierárquico, em que todos os figurantes são cidadãos iguais, separados apenas pela idade, e em que mesmo as relações de subordinação da mulher ao homem se relativizam, na medida em que a razão se feminiza. Tinha uma dimensão crítica, representada pela denúncia da tirania e da superstição, e uma dimensão utópica, representada pela esperança num mundo sem fronteiras, sem guerras, totalmente regido pela razão, como fica evidente no hino de Chénier. Falta, evidentemente, a essência do Carnaval, o riso. Não há nada de mais austero que as festas da Razão, onde o cômico não é intencional, e sim involuntário, aparecendo apenas em negativo, na solenidade derrisória dos ritos e dos hinos. Mas, se o riso esteve ausente em Paris, ele foi frequente na província, e isso em sua forma carnavalesca mais clássica, a paródia. Assim, o agente nacional Hésine fez “procissões cívicas”, em que um burro, envergando todos os atributos pontificiais, com uma mitra na cabeça e uma estola no pescoço, era levado por Hésine, que por sua vez usava uma casula e carregava um báculo. De novo, pensar o culto da Razão sob a forma da festa permite fazer a mediação entre o sagrado e o profano, criando uma espécie de razão arlequinal. Recusando o sagrado, o Carnaval o exalta, na medida em que essa negação assume ela própria o aspecto do sagrado, ambivalência em que o Carnaval da Razão permanece fiel à lei de sua forma, já que todo Carnaval, segundo Bakhtine, “nega e afirma ao mesmo tempo, enterra e ressuscita ao mesmo tempo”.
Mas, se a mediação entre o sagrado e o profano ocorre tanto no modelo do teatro como no da festa, é preciso acrescentar que ela não elimina a dualidade de intenções: permanece a tensão entre a vontade de secularizar o mundo e a vontade de perpetuar o sagrado, entre uma adesão ao mundo leigo e uma secreta cumplicidade com aquilo mesmo que se pretende combater.
É por isso que o sincretismo de uma razão que é também uma divindade autoriza duas leituras. Numa, a razão adquire uma importância desmedida: ela é tão poderosa que pode ser comparada a uma deusa. Na outra, o foco é a divindade: ela é tão dominante que anexou ao sagrado a faculdade mais alta do homem. Na primeira leitura, a razão é tão despótica que não aceita nenhum limite; na segunda, é tão humilde que se anula diante do sagrado.
Esse duplo movimento, a meu ver, subsiste até hoje. Mas, para mostrar sua relevância contemporânea, temos que dar maior generalidade à nossa descrição, falando não somente da relação entre a razão e o sagrado, mas da relação entre a razão e seus vários oponentes, que não se limitam apenas ao sagrado. Em outras palavras, temos que compreender as relações entre a razão e seus diferentes Outros.
Se fizermos isso, verificaremos que o culto da razão contém, in nuce, as duas principais patologias do pensamento ocidental: o hiperracionalismo e o irracionalismo.
O hiperracionalismo é a razão narcísica, que se julga soberana com relação a seu Outro, em qualquer de suas figuras. O irracionalismo é a razão niilista, que se deixa absorver por seu Outro e desaparece nele. São duas doenças da razão.
Vejamos como elas ocorrem, examinando as seguintes figuras do Outro: o sagrado, a cultura, a história e a pulsão.
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O hiperracionalismo é incompatível com o sagrado. Este representa a transcendência. Ora, a razão narcísica é resolutamente imanentista. Seu reino é deste mundo. E esse reino intramundano abrange a totalidade do real. Ela não admite rivais, e não aceita partilhar seu poder com Deus. Em consequência, o hiperracionalismo ou combate o sagrado ou o domestica, privando-o de sua virulência. Ele combate o sagrado, prosseguindo nos séculos XIX e XX a crítica da religião que se iniciara com a Ilustração e continuara com a política de descristianização empreendida nela Revolução Francesa. Mas não é mais sob a forma da filosofia que a razão trava esse combate, e sim sob a forma da ciência. Já a lei da gravitação universal contribuíra, no século XVIII, para tornar redundante a hipótese da Providência divina: num mundo newtoniano, que se move por toda a eternidade segundo leis inalteráveis, Deus é uma complicação inútil. O cientificismo do século XIX leva esse combate às últimas consequências. No vazio deixado pela morte de Deus, a razão instala a ciência. No século XX, mais bem-educado que o anterior, o ateísmo militante é deixado aos fanáticos e aos ideólogos profissionais. A ex-União Soviética, por exemplo, pôde se divertir com esse passatempo. No Ocidente, os filósofos se contentam em afirmar que Deus é uma hipótese indemonstrável, que não pode ser validada por nenhum dos dois critérios admitidos pela epistemologia positivista: a proposição “Deus existe”, não sendo nem tautológica nem verificável empiricamente, não é nem verdadeira nem falsa, é simplesmente desprovida de sentido. O que não impede que as várias igrejas oficiais continuem canalizando, de modo inofensivo, a emoção religiosa dos fiéis. O sagrado, que perdeu seu direito de existir à luz da razão, pode ainda ser posto a serviço dos bons costumes e da ordem pública.
Também a cultura, como figura do Outro, é negada pela razão narcísica. Ela se julga independente da cultura, e sobrepõe-se a ela, como uma inteligência pura. Essa atitude teve sua origem em Descartes, que em sua tentativa de alcançar a certeza pela via da dúvida metódica considerou necessário desfazer-se de todos os preconceitos devidos ao “exemplo e ao costume”, ou seja, de todas as noções transmitidas pela cultura. Mas Descartes, pelo menos, tinha consciência dos condicionamentos culturais sobre o pensamento e queria libertar-se deles. A cultura era inimiga da razão, mas por isso mesmo tinha uma realidade material, produzia efeitos, agia sobre a consciência, e só podia ser neutralizada por um procedimento sistemático de purificação e de ascese. Em sua forma contemporânea, a razão narcísica nem sequer se dá conta do seu enraizamento cultural. Ela formula julgamentos que se pretendem universais sem em nenhum momento perguntar se eles têm realmente validade transcultural ou se correspondem a percepções meramente locais, filtradas pela cultura.
Também a história é um Outro da razão, e também ela é ignorada pelo hiper-racionalismo. Ele se crê independente da história, do mesmo modo que se crê independente da cultura. No passado, a razão era vista como inimiga da história, porque esta era a sedimentação secular de preconceitos e de tradições bárbaras. Cabia à razão proteger-se das investidas dessa história irracional e corrigir seus erros, desenhando uma ordem ideal, além da história, que tivesse a incorruptibilidade de um teorema. Como no caso da cultura, portanto, a história era percebida negativamente, mas era percebida. Assim como havia um diabo cultural, que toldava a razão, havia um diabo histórico, que, colocando o anteparo da tradição entre o sol da verdade e os olhos do investigador, induzia uma cegueira parcial. Também esse diabo precisava ser exorcizado para que o saber se tornasse possível. A razão narcísica dos nossos dias faz a economia desse exorcismo. Ela não imagina sequer que suas opiniões sejam condicionadas por seu próprio presente. O passado é julgado à luz de categorias atuais. Assim como ela é etnocêntrica, na dimensão cultural, ela é por assim dizer cronocêntrica, na dimensão da história.
Enfim, a pulsão é a última figura do Outro da razão. O hiperracionalista não acredita em sua existência. Como não se pode captar o inconsciente pelos métodos das ciências naturais, o inconsciente é uma quimera. Como não se pode medir e pesar o complexo de Édipo, ele pertence ao domínio do misticismo. As proposições da psicanálise, em geral, são empiricamente inverificáveis, e portanto são pseudocientíficas. Não podemos deixar de presumir que uma negação tão veemente da vida afetiva inconsciente seja ela própria um sintoma, o que nos leva à suspeita de que o hiperracionalismo, já vulnerável a influências indesejáveis por parte da cultura e da história, venha a ser agredido, também, por influências pulsionais não percebidas, tornando-se prisioneiro do irracional, à força de querer ignorá-lo.
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Na segunda doença da razão, esta se relaciona com seu Outro de modo rigorosamente oposto. Se no hiperracionalismo ela aniquilava seu oponente, agora ela virtualmente se aniquila diante dele. A abdicação só não é total porque apesar de tudo é através do pensamento discursivo que os adeptos do irracionalismo proclamam o valor do irracional, e por isso falamos em irracionalismo, e não em desrazão, em doença da razão, e não em dementia, ou ausência de mente, no sentido etimológico.
Esse autoapagamento da razão se verifica com especial nitidez na relação com a primeira figura do Outro, o sagrado. O mundo religioso passa a dominar o mundo da razão profana. É o que está ocorrendo cada vez mais, em toda parte. As religiões oficiais perdem sua influência, mas crescem as variantes fundamentalistas dessas religiões. É o caso do fundamentalismo islâmico, evidentemente, mas também do fundamentalismo protestante, nas seitas pentecostais, e até do fundamentalismo católico, na chamada igreja carismática. Avulta o poder das seitas messiânicas, que promovem suicídios coletivos para abreviar a chegada dos seus adeptos ao paraíso. Os políticos de Brasília confiam mais nas videntes que nas previsões macroeconômicas, e não se pode censurá-los por isso. Secundaristas meditam no interior de pirâmides de cristal. Antigas militantes trotskistas vão rodopiar todas as noites no terreiro, transformadas em pombagiras. Artistas de televisão participam de rituais de magia negra. Ex-guerrilheiros fundem o horóscopo com o Manifesto comunista e inventam o astromarxismo. As universidades ainda dão as cartas, mas são as cartas do tarô, e ainda fazem seminários sobre Kant, mas só em dias considerados propícios pelo I-ching. E atenção, mais uma vez a Europa se curva diante do Brasil: Paulo Coelho é traduzido em todas as línguas e provavelmente já está substituindo o Michelin como guia de viagem para o trecho entre Paris e Santiago de Compostela.
A cultura compete com o sagrado como a figura do Outro diante da qual a razão niilista capitula mais entusiasticamente. Não há conhecimento objetivo, não há uma normatividade universal: todas as verdades, cognitivas ou morais, são condicionadas pela cultura. Não existe o homem em abstrato, só existem homens, no plural, sempre situados em suas respectivas culturas, que lhes prescrevem o horizonte do que pode ser vivido e pensado. Como as culturas são incomensuráveis entre si, o que é verdadeiro em uma não o é em outra, e as normas e valores de uma são diferentes das normas e valores de outra. Não somos nós que pensamos, é a cultura que pensa em nós. Existe uma verdade ianomami, como existe uma verdade africana, e não há nenhuma ponte possível entre as duas. Essa posição, que tem sua origem no relativismo metodológico dos antropólogos, onde tinha a sua legitimidade, evadiu-se do campus e transformou-se em senso comum. Fala-se em cultura política, cultura jovem ou cultura da mulher, no mesmo sentido em que Ruth Benedict falava na cultura zuni: não há verdades transversais, elas são todas contextuais, significativas apenas quando inscritas e lidas dentro dos respectivos universos culturais.
A razão niilista abdica, também, diante da história. Não é mais a história que tem que se justificar diante da razão, como para o hiper-racionalismo, e sim a razão que é absorvida pela história. Esta se transforma em instância suprema, em tribunal do mundo, nas palavras de Hegel. Essa razão historicizada é tão grandiosa que assume o aspecto de uma verdadeira transposição da razão divina, e Hegel não faz segredo disso: “Um fim último domina a vida dos povos; a razão está presente na história universal — não a razão subjetiva, particular, mas a razão divina, absoluta”. Como a filosofia cristã da história, de santo Agostinho a Bossuet, a de Hegel também pressupõe um plano, uma teologia, uma consumação dos tempos. Estamos em pleno universo religioso. Assim como a teodiceia cristã justifica o mal invocando os desígnios insondáveis da Providência, a de Hegel recorre a uma hipótese igualmente providencialista, a de uma “astúcia” histórica que ordena em função de fins racionais os acontecimentos aparentemente irracionais que se desdobram na história humana. Em suma, o racionalismo histórico à outrance de Hegel acaba se revelando uma forma refinada de irracionalismo. Mas o irracionalismo histórico se manifesta sobretudo como relativismo, cognitivo e ético. Assim como para o relativismo cultural todas as verdades e todas as normas são condicionadas pela cultura, para o relativismo histórico elas são todas situadas no tempo. São legíveis apenas no contexto de sua época: não têm validade transepocal, como não têm validade transcultural. As épocas, como as culturas, são incomensuráveis. Até recentemente o relativismo histórico afetava principalmente as normas e valores, poupando a ciência, cujos resultados eram vistos como objetivos. A teoria do indefinido progresso moral da humanidade podia estar desacreditada, mas pelo menos aceitava-se como uma evidência a ideia do progresso científico. Nosso século teve o privilégio de historicizar as próprias ciências exatas: nossa física não é melhor que a renascentista, a medieval ou a grega, a teoria de Copérnico não é mais exata que a de Ptolomeu. Todas elas são válidas, dentro do seu respectivo paradigma, para usar a palavra-chave cunhada pelo mais influente desses relativistas, Kuhn. Não há comparações interparadigmáticas possíveis, do mesmo modo que não se podem fazer comparações interculturais. Também aqui a razão é contextual, e só produz verdades contextuais.
A renúncia diante da pulsão é o último exemplo da autodemissão da razão niilista. Essa renúncia se caracteriza por uma interpretação irracionalista da psicanálise. O inconsciente é exaltado, como portador de verdades mais altas que as acessíveis ao ego consciente. Os mecanismos inconscientes de regulamentação pulsional — os mecanismos de defesa — são considerados preferíveis à regulamentação pulsional através da inteligência. A teoria é desvalorizada com relação à clínica. Não é necessário ler Freud. Basta deixar-se guiar pela intuição e pela afetividade. O que importa é essa “singularidade inefável” que é a relação analítica: uma corrente misteriosa que circula entre pessoa e pessoa, um inconsciente à escuta de outro inconsciente.
4
Todos conhecem a gravura de Goya, na série dos “Caprichos”, que representa o artista adormecido, com animais noturnos em seu redor, entre os quais uma coruja, que lhe estende imperiosamente um pincel, e a inscrição: “El sueño de la razón produce monstruos”.
O sentido da obra é claro. Ela representa um sonho, e nesse sonho há visões de pesadelo. Mas quem está sonhando? A palavra sueño, em espanhol, é ambígua. Significa “sono” e “sonho”. É óbvio, pelo contexto, que Goya estava pensando em sono. A frase significa, sem sombra de dúvida, “O sono da razão produz monstros”. Ou seja, quando o artista dorme, sua razão também dorme, e esse duplo sono engendra o sonho. Quem sonha é o artista. Mas podemos usar a liberdade semântica que nos é oferecida pelo castelhano e interpretar a palavra sueño em seu segundo sentido, como sonho. Nesse caso a frase significaria “O sonho da razão produz monstros”. Quem sonha, agora, é a razão, e o artista adormecido seria uma alegoria da razão.
Em termos freudianos essa leitura não seria absurda. A razão não sonha, mas coopera para a formação do sonho, já que este é uma formação de compromisso entre o consciente (razão) e o inconsciente. Mas o que intriga, aqui, não é o conteúdo de verdade da frase, e sim o seu valor afetivo: a metáfora de uma razão que sonha é poderosa, e mobiliza camadas psíquicas extremamente profundas.
Recordei-me do dístico de Goya quando reli em Michelet a descrição do culto da razão, em Notre-Dame. Não pensei nem numa peça de teatro nem numa festa, e sim num sonho: o sonho da razão. Tudo, na cerimônia, transmitia essa sensação de estranheza e de familiaridade, de unheimlich, inerente ao sonho. Havia restos diurnos, representados pelos acontecimentos políticos que precederam imediatamente o sonho (luta de facções, política de descristianização, agitações sociais). Havia um espetáculo visual, em que as imagens predominavam sobre os conceitos. Havia um antagonismo entre duas esferas, a do sagrado e a do profano. Havia o uso da condensação, da Verdichtung, que a serviço da realização de desejo fundia as duas esferas numa figura-síntese. E havia, obviamente, o próprio desejo, como força motriz de todo o processo: o desejo de eliminar a tensão, pela anulação imaginária do conflito.
O cenário onírico construído para satisfazer esse desejo não parecia ter nada em comum com o que aparece na gravura de Goya. O sonho da razão, na Notre-Dame, tinha uma dignidade hierática, com gestos heroicos e poses antigas: o sonho da razão, segundo Goya, era mais barroco que neoclássico, vinha mais de Bosch que de David. O sonho da razão francesa era otimista, o da razão espanhola era um pesadelo.
Mas, depois de interpretado, o sonho de Notre-Dame não se revela assim tão tranquilizador. Também a razão revolucionária, sonhando, produziu monstros: o monstro do hiperracionalismo e o monstro do irracionalismo.
É tempo, portanto, de dar por encerrado o sonho que começou no 20 brumário do ano II do calendário republicano e continua até os nossos dias. É preciso acordar.
Mas é preciso também distinguir, como fez Walter Benjamin, entre o falso despertar e o autêntico. No falso despertar, o sonho é simplesmente negado, e seus momentos verdadeiros são esquecidos. No despertar autêntico, incorporamos no estado de vigília o saber adquirido durante o sonho.
No momento em que a razão humana esfrega os olhos, acordando, podemos perguntar-lhe o que ela aprendeu com seu sonho.
Ela responderá que aprendeu a evitar os dois extremos do autoendeusamento e da autoimolação, da apoteose de si mesma e do suicídio ritual. Os dois são autocráticos: ou a tirania da razão sobre seus Outros, ou a tirania dos Outros sobre a razão. Em vez do despotismo, ela quer agora uma constituição republicana, no velho estilo de Montesquieu, com freios e contrapesos, com divisão de poderes e com uma interação civilizada entre as várias instâncias. Em vez de dois monólogos, ela quer agora um verdadeiro diálogo, uma conversa igualitária com cada uma das figuras do Outro.
Quanto à religião, a razão dialógica não acredita numa ressacralização do mundo, e acha o desencantamento irreversível. Mas adere ao valor liberal da tolerância, não se julga com o monopólio da verdade, e admite todas as manifestações religiosas que não violem os princípios da convivência democrática e os direitos humanos. O que significa que não tem nenhuma intenção de declarar a alquimia fora da lei, desde que a transformação de chumbo em ouro não comprometa a política de combate à inflação, mas não pode aceitar nenhuma forma de fanatismo, nem sequer o fanatismo da razão. Apesar de agnóstica, ela suspeita que não podemos passar totalmente sem a transcendência. Mesmo para quem não acredita em Deus, talvez seja importante postular Deus como limite do homem. É um antídoto contra a soberba e uma forma de impedir a hybris, evitando a onipotência de um humanismo enlouquecido, que não hesita em destruir a humanidade para melhor salvá-la.
No que diz respeito à cultura, a razão aceita sua importância para a autorealização do indivíduo e admite, sem nenhuma ferida narcísica, que muitas opiniões aparentemente objetivas são culturalmente condicionadas. Tem consciência, portanto, da ação deformadora exercida sobre o pensamento pelas ideologias e pelas representações coletivas. Ao mesmo tempo, acredita na possibilidade de transcender os limites de toda cultura, através de um descentramento que permita ao sujeito assumir uma posição de exterioridade com relação à sua própria matriz cultural, compreendendo-a segundo a ciência universal e julgando-a à luz de princípios universais de justiça. O que significa que para ela a comunicação intercultural é possível, desafiando com isso a tese da intransparência recíproca das diversas culturas, e necessária, não só como condição para enriquecimento de sua própria cultura como por considerar tal comunicação um estágio importante em direção a um genuíno universalismo transcultural.
No tocante à história, a razão dialógica tem plena consciência do seu peso e da sua materialidade. Mas não a vê como um processo externo ao homem, animado por um princípio transcendente, por um deus ex machina que a impulsionasse em direção a um telos próximo ao remoto. A história é uma história humana, resultante da ação livre e não coordenada de milhões de seres humanos, e seus rumos não são dados nem pela vontade divina, como na filosofia cristã da história, nem pela razão divina secularizada, como para Hegel e Marx. Ela reconhece, também, a enorme influência da história sobre nossas crenças cognitivas e morais. Mas não acha que isso implique a historicização da verdade. O que é histórico é o processo de descoberta da verdade, e não a verdade. É claro que num momento dado coexistem concepções contraditórias, mas igualmente plausíveis, como o heliocentrismo e o geocentrismo, ou o evolucionismo e o fixismo, mas isso não faz dessas concepções paradigmas, no sentido de Kuhn, não significa que as duas fossem simultaneamente falsas ou simultaneamente verdadeiras, e sim que, embora as duas pudessem ser defendidas, na época, com bons argumentos, a evolução da ciência acabou validando uma das teorias e falsificando a outra. Podemos dizer o mesmo com relação às verdades morais: não são elas que são históricas, e sim o processo que leva à sua aceitação generalizada. O Massacre de São Bartolomeu não é somente uma atrocidade à luz dos valores dos nossos dias, como afirmam os relativistas históricos, mas já era uma atrocidade no tempo de Catarina de Medici, como vários contemporâneos não se cansaram de dizer. O que a história fez foi ter criado condições para a aceitação geral de uma verdade moral que na época das Guerras de Religião não era percebida pela maioria das pessoas. A validade é trans-histórica, a vigência tem uma história. A função da historiografia dos sentimentos morais é descrever o longo itinerário pelo qual um sentimento moral trans-historicamente válido se torna historicamente vigente.
Finalmente, no que diz respeito à pulsão, a descoberta do inconsciente e de sua produtividade na vida psíquica representa sem dúvida uma virada copernicana na história da razão. Sabemos agora que a razão é uma simples diferenciação do id, uma recém-chegada na história filogenética do homem, e como tal uma instância infinitamente frágil, a todo instante sujeita a ser reabsorvida pela força atrativa do inconsciente. Mas isso não significa que a razão deva capitular diante do inconsciente. Uma interpretação irracionalista de Freud seria uma fraude e uma traição. Freud descobriu os limites da razão, desvendou sua origem no irracional, mostrou a facilidade com que ela pode ser recapturada pelo irracional, mas disse também que o processo de humanização implica a passagem do id para o ego, e que a tendência da civilização é que a regulamentação pulsional venha a ser feita pela inteligência, e não pelos automatismos da defesa inconsciente. A clínica não torna supérflua a teoria, mas a pressupõe. A relação terapêutica sem dúvida não é um processo intelectual, mas sem o saber teórico do analista os mecanismos inconscientes da neurose não poderiam ser desvendados.
5
Sim, a razão acordou. E no entanto é preciso sonhar. Não podemos proibir o sonho da razão, porque se o proibíssemos baniríamos também a utopia e a esperança num mundo melhor. Mas vimos que o sonho de Notre-Dame é catastrófico. Paradoxalmente, é no sonho de Goya, contra toda evidência, que encontraremos o modelo de um sonho benfazejo. Ele é o sonho de Notre-Dame, sua crítica e ao mesmo tempo sua superação utópica. Se ele tem o aspecto de um pesadelo, é porque é o avesso bestial do sonho humanitário de Notre-Dame, e como vimos esse avesso era efetivamente assustador. Goya sonha esse avesso. Mas sonha também algo que o transcende. Como todo sonho, o de Goya também é realização de desejo, e esse desejo inclui as duas coisas, a crítica e a utopia, interpretação que Goya confirma explicitamente, quando escreve, num dos estudos preparatórios para a gravura que estamos comentando, que a intenção do autor era rechaçar as quimeras (crítica) e criar condições para o advento da verdade (utopia).
O bestiário de Goya inclui todas essas dimensões. A coruja tirânica que quer impor sua vontade ao artista é a razão narcísica do hiperracionalismo. Os morcegos são as larvas e os fantasmas do irracionalismo. Dois animais deficitários, truncados. O morcego tem uma audição aguda, mas é cego. A coruja enxerga de noite, mas não de dia. Falta um terceiro animal na zoologia de Goya, mais completo. Não, não falta. Ele está no canto direito, enorme, olhando fixamente o espectador. É um gato. O gato ouve tudo e tem uma visão diurna e noturna. Sabe dormir e sabe estar acordado. E sabe relacionar-se com o Outro, sem arrogância, ao contrário do seu primo selvagem, o tigre, e sem servilismo, ao contrário do seu inimigo doméstico, o cão. É a perfeita alegoria da razão dialógica, da razão que despertou do seu sonho, é atenta a todos os sons e todas as imagens, tanto do mundo de vigília como do mundo onírico, e conversa democraticamente com todas as figuras do Outro, sem insolência e sem humildade. Estou certo de que esse grande amante dos gatos que foi Baudelaire concordaria com a escolha do gato como totem da razão dialógica: “Os amorosos ferventes e os sábios austeros/ Amam igualmente, em sua estação madura,/ Os gatos poderosos e meigos, orgulhos da família,/ Que como eles são friorentos, e como eles sedentários”.
E no entanto essa razão acordada está dentro de um sonho, e é simbolizada pelo mais sonhador de todos os animais, o gato. Pesquisas experimentais recentes mostram que o gato é o campeão dos sonhos. O chimpanzé sonha em média noventa minutos por dia, o homem, cem minutos, e o gato, duzentos minutos.
Será que minha interpretação da gravura de Goya teria também o estatuto de um sonho, o sonho do sonho de um sonho? Se for assim, sou eu que tenho que acordar, porque já é hora de terminar esta palestra. Com isso, autorizaremos também a deusa Razão, mademoiselle Thérèse-Angélique Aubry, a descer, finalmente, do seu trono de madeira. Depois de 202 anos, ela deve estar urgentemente necessitada de repouso. Tenhamos a caridade de desejar-lhe um sono reparador. De preferência sem sonhos.