2014

A escola do silêncio: acídia e contemplação

por Olgária Chain Féres Matos

Resumo

Trata-se de analisar o silêncio no âmbito da dialética benjaminiana, da lógica dos duplos temporais. Da arrogância da modernidade capitalista, fundada na onipotência da Vontade e na aceleração do tempo, ao ideal da justa vida e do bem viver, são monges e mosteiros que constituem uma cultura de resistência no exercício da contemplação.

No horizonte da tirania da visibilidade que constrange à exibição de si através de opiniões tornadas sempre mais públicas, essa “parrhesia” moderna participa da cultura do excesso e da saturação do pensamento, que prescinde de fundamentação. Diferente de uma arte de calar, o silêncio como “silere” e não “tacere” encontra-se no filme “O Grande silêncio”, de Philip Gröning, que retrata a solidão e o silêncio dos monges no claustro construído no alto da montanha. É o “Mosteiro la grande chartreuse”, ordem fundada em 1084, em Grenoble, na França.

Da acídia medieval ao recolhimento moderno, a duração de um tempo em que o antigo e o moderno não se excluem, é a vida do Espírito que se presentifica em meio às convulsões das ruínas deixadas pelas mercadorias, as do século 17 e as Guerras de Religião, as do século 21 e suas guerras teológico-políticas. Do “logos” subjetivo ao “logos” divino, uma contemplação laicizada se encontra na ideia de “Vexierbild” benjaminiano, no extremo do ser e do nada, entre a comunidade e sua impossibilidade.

Na antinomia entre o comum e o próprio, o rumor da praça pública e a solidão da subjetividade, o silêncio testemunha uma pausa, na contramão da ideologia hedonista e hiperativa da modernidade que, do excesso, conduz à angústia da saturação do tempo.


“Toda natureza começaria por se lastimar se lhe fosse dada a palavra”[1]. Com este enunciado, Walter Benjamin considera o sofrimento de toda natureza, animada e inanimada. No mito fundador bíblico, o Paraíso antes da queda é morada de acolhimento, silêncio e paz. Quietude primordial, ela prepara a comunidade de destino do homem e da natureza. Lugar de cultivo e culto, sua nomeação será o sopro vital que animará a natureza inteira; visão que se altera drasticamente depois do pecado original, quando a palavra de Deus amaldiçoou o trabalho nos campos:

Começa agora para ela um outro mutismo, no qual pensamos ao falar da profunda tristeza da natureza. […] Ser privada da linguagem é seu grande sofrimento. Basta que as plantas murmurem, para que nelas se reconheça uma lástima. Seu silêncio é seu luto. No entanto, penetra-se mais profundamente na essência da natureza, invertendo os termos e dizendo: é a tristeza da natureza que a torna muda[2].

Com o pecado original, adveio o reino da História e, progressivamente, o domínio sobre a natureza. Há, pois, dois silêncios, o da natureza primordial e o de seu mutismo atual. Diferem, assim, o tacere (calar-se), do silere (permanecer silencioso):

Na língua latina clássica, estes dois verbos querem dizer a mesma coisa: “calar-se”, “permanecer silencioso”, mas, anteriormente, no período pré-clássico, havia entre os dois termos uma nuance interessante: tacere remete ao silêncio verbal, isto é, o estado de alguém que não fala, enquanto silere denota de maneira mais ampla uma tranquilidade, uma ausência de movimento e de ruído. De onde silere se emprega para objetos, tacere para seres humanos que falam, ou melhor, que não falam. Pode-se dizer que a noite, o mar, os ventos, sileo, silent, silencia, silenciam, estão tranquilos, silenciosos. De onde as belas metáforas em latim, ao mesmo tempo poéticas e que, no entanto, passaram ao uso comum. Emprega-se, por exemplo, o verbo silere para a lua em seu caso. Diz-se a lua silet quando ela declina, quando se torna invisível; diz-se também que o botão da flor que ainda não desabrochou silet, ele silencia, ou que o ovo que está sendo chocado: silet, ele silencia. Em suma, silere reconduziria facilmente a uma espécie de virgindade atemporal das coisas, antes que nasçam ou depois de terem desaparecido. Com efeito, “silente” quer dizer também “os mortos”.

O silêncio como “virgindade atemporal das coisas” é o ócio e o descanso de Deus, a contemplação da obra da criação.[3]

Em contrapartida, a modernidade se constitui na proscrição da vita contemplativa pela vita activa, do bios teoretikos pelo homo faber, pelas revoluções científicas e pelo progresso[4], encontrando-se em estado de perpétua destruição, mutação e novas montagens da vida social. Sem telos, o progresso é sem orientação porque sem objetivos estáveis ou estabilizadores[5]. A aura do passado, a tradição, cedeu à imediatez e à pressa, da ciência à política, da educação às artes, motivadas pelo sistema de inovações tecnológicas, associadas ao consumo e à publicidade[6]. Isto significa que a faculdade de duvidar, de formar opiniões após o tempo da reflexão, foi destituída pela rápida circulação do mercado científico e cultural:

Insensatos os que lamentam o declínio da crítica. Pois sua hora há muito tempo passou. Crítica é questão de correto distanciamento […]. As coisas nesse meio de tempo caíram de maneira demasiado abrasante sobre o corpo da sociedade humana […]. O olhar mais essencial hoje, o olhar mercantil que penetra no coração das coisas, chama-se publicidade [Rekiame]. Ele desmantela a margem de liberdade reservada à contemplação e desloca as coisas tão perigosamente para perto de nossos olhos como na tela de cinema um automóvel que cresce gigantescamente ao avançar, trepidante, em nossa direção[7].

O desaparecimento das distâncias e o desejo de proximidade produzem a permanente exposição de opiniões e sentimentos através da midiatização crescente da vida pela técnica. A tendência a se mostrar para existir desfaz a separação entre esfera pública e privada: “O silêncio hoje é compreendido como equivalendo à invisibilidade […]. O silêncio, como a palavra, procedia de uma arte, de calar-se como de falar. Era objeto de aprendizados, maneiras, códigos de conduta. Diante da obrigação de falar e a interdição de calar, o silêncio é considerado uma patologia[8]”. No ensaio “A de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”[9] Walter Benjamin observa que a modernidade se refere ao que viria a se denominar sociedade da comunicação, da informação, ou sociedade do conhecimento, que se caracteriza por estímulos que se sucedem tão velozmente que não há mais espaço entre eles para o “menor grau de contemplação”. Esta se encontrava na arte de narrar, inseparável do trabalho de tecer e fiar, realizado enquanto se escutavam relatos nos quais o ouvinte se ausentava de si mesmo e o narrador mergulhava em sua narrativa, circunstância próxima a uma “experiência mística”[10]. Analisando o universo de Leskov e a presença nele da da Igreja Ortodoxa russa e do cristianismo primitivo[11], Benjamin escreve:

As personagens mais simples que figuram em seus Contos dos tempos antigos vão até o fim de uma paixão que nada poderia deter. Mas este extremo é o ponto em que justamente se revela aos místicos uma súbita metamorfose da pior abjeção em santidade […]. No conto A voz da natureza […], o narrador é um entalhador de pedras que levou sua arte à maior perfeição possível. […] pode-se dizer que, para Leskov, o artífice perfeito tem acesso aos arcanos mais secretos do mundo criado. Ele é a encarnação do santo[12].

Artesãos, artistas de circo, domadores de ursos, sentinelas caridosas encarnam a sabedoria, a bondade e o consolo do mundo.

Com o fim da cultura ligada à palavra revelada e religiosa ou à palavra dada e de honra[13], “ela não é mais expressão de conteúdos espirituais, em que se confundiam a palavra pronunciada e a potência moral que ela evocava. Desfazendo-se a introspecção e seu valor simbólico e estruturante, a palavra se tornou mero instrumento utilitário, pobre em experiência, agramatical e antiliterária”[14]. Ao mesmo tempo em que a linguagem perde sua dimensão mágica, também se dissipam o decoro e a discrição. Segredos se expõem, e de tal modo que o “respeito de si” não constitui mais um limite à exposição da intimidade, o que, generalizando-se, anula a própria ideia de exibição[15].

Benjamin encontra na linguagem secreta dos salões proustianos a última experiência de uma forma íntima de comunicação na sociedade fin de siècle:

Nem sempre proclamamos em voz alta o que temos de mais importante a dizer. E, mesmo em voz baixa, não o confiamos sempre à pessoa mais familiar, mais próxima e mais disposta a ouvir a confidência. Não somente as pessoas, mas também as épocas, têm essa maneira pudica, ou antes, astuciosa e frívola, de comunicar seu segredo mais íntimo ao primeiro desconhecido. No que diz respeito ao século XIX, não foram nem Zola nem Anatole France, mas o jovem Proust, o esnobe sem importância, o trêfego frequentador de salões, quem ouviu, de passagem, do século envelhecido […], quase agonizante, as mais extraordinárias confidências[16].

Em Proust, escreve Benjamin, o diagnóstico social:

Os problemas dos indivíduos que (lhe) serviram de modelo provêm de uma sociedade saturada […]. Se fosse preciso resumi-los numa fórmula, poderíamos dizer que seu foco é reconstituir toda a estrutura da alta sociedade sob a forma de uma fisiologia da tagarelice. […] O lado subversivo da obra de Proust aparece aqui com toda a evidência. […] Mas não é tanto o humor, quanto a comédia, o verdadeiro centro de sua força; pelo riso, ele não suprime o mundo, mas o derruba no chão correndo o risco de quebrá-lo em pedaços, diante dos quais ele é o primeiro a se desmanchar em lágrimas. E o mundo se parte efetivamente em estilhaços: a unidade da familia e da personalidade, a ética sexual e a honra estamental[17].

A Recherche proustiana detecta nos salões o ethos social. Nela, Combray é um cosmos fechado onde o narrador, quando criança, vivia em meio a divindades familiares, como uma aldeia de província se projeta nas torres de sua igreja, com suas formas de sentir, de ver o mundo e julgá-lo. Modo de vida patriarcal, nele não há, porém, política, autoritária ou liberal, porque todas as coisas aí funcionam por si sós, “por natureza”. Combray, em sua recusa do mundo exterior, é a afirmação de valores próprios, sinceramente professados e vividos no pequeno clã de linhagem aristocrática dos Guermantes. Suas lealdades, o narrador as denomina “patriotismo”. Nessa sociedade em miniatura, as cerimônias são um momento de comunhão real e de “unidade orgânica”. “Existência vegetativa”, no dizer de Ortega y Gasset[18], os heróis proustianos se vinculam a sua origem social de maneira tão cabal quanto determinados pela “posição do sol da graça feudal”, enleados nas “tramas de seu destino pelo vento que sopra dos lados da pequena cidade de Méséglise”:

Dificilmente terá havido na literatura ocidental uma tentativa mais radical de autoabsorção, desde os exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola. Também ela tem em seu centro uma solidão que com a força do maelstrom arrasta o mundo em seu turbilhão. A tagarelice incomensuravelmente ruidosa e vazia que ecoa nos romances de Proust é o rugido com que a sociedade se precipita no abismo da solidão. […] O silêncio que reina no fundo dessa cratera – seus olhos são os mais silenciosos e os mais absorventes – quer ser preservado[19].

Por isso, quando Proust se volta para o esnobismo prolixo dos Verdurin na Paris da Belle époque, o salão burguês funciona como uma ditadura alvoroçada que quer se passar por democracia. A patronne é um chefe totalitário que governa dosando demagogia e exclusões no salão onde reina o “chauvinismo”. No “patriotismo” dos Guermantes, diversamente, professa-se um culto autêntico aos antepassados ilustres – respeitados e admirados – como a heróis e a santos. Já o “chauvinismo” é um sentimento ‘burguês”, fundado no ressentimento, na veneração dissimulada de um Outro – o mundo da aristocracia-, invejado e rival. Por isso, o pertencimento nos salões dos Verdurin é conflitivo, arrogante e belicoso, os ritos de união de seus frequentadores, formas de separação e de competição camufladas. Neste sentido, Benjamin observa:

As dez mil pessoas da classe alta eram para (Proust) um clã de criminosos, uma quadrilha de conspiradores, com a qual nenhuma outra pode comparar-se: a camorra dos consumidores […]. A análise proustiana do esnobismo […] é o ponto alto de sua crítica social. Pois a atitude do esnobe não é outra coisa que a contemplação da vida, coerente, organizada e militante, do ponto de vista, quimicamente puro, do consumidor. […] Proust descreveu uma classe obrigada a dissimular integralmente sua base material e que, em consequência, precisa imitar um feudalismo sem significado econômico e, por isso mesmo, eminentemente utilizável como máscara da grande burguesia[20].

A Recherche proustiana é, para Benjamin, a obra que detecta a fratura do Sujeito na sociedade capitalista e sua exaltação de novidades também no mercado de valores espirituais: “Basta olharmos para um jornal para percebermos […] que não somente a imagem do mundo exterior mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis. Com a guerra mundial tornou-se manifesto um tal processo que continua até hoje”[21].

A sociedade da informação e de massa promove o consumo de notícias e de valores, o que não se separa do advento da “estrutura das redes”, tudo induzindo à ” flexibilização” de tal modo que a permanência e, em particular, o apego durável a valores são criticáveis como rigidez incongruente, até mesmo patológica, e, segundo os contextos, como ineficácia, impolidez, intolerância, incapacidade de comunicação: “A desconstrução da antiga noção de autenticidade – como fidelidade a si, como resitência de um sujeito à pressão dos outros, como exigência de verdade no sentido de conformidade a um ideal – mantém relações com a concepção de um mundo em rede. Em um mundo conexionista, a fidelidade a si mesmo aparece como rigidez; a resistência aos outros, como recusa em se conectar; a verdade definida pela identidade de uma representação a um original, como desconhecimento da variabilidade infinita dos seres que circulam nas redes e se transformam cada vez que entram em contato com seres diferentes”[22]. Todas as questões de privacidade, como sexualidade, raça ou religião, passam a ser objeto de exposição e de livre escolha. As identidades assim estabelecidas constituem pertencimentos mais flexíveis que os do passado, mas também menos protetores[23].

As transformações do mundo moderno ocorrem antes de novas formas de moralidade se desenvolverem, de tal modo que a substituição incessante de conhecimentos e valores que lhes são ligados, antes dotados de estabilidade, resulta na impossibilidade de dominar a própria relação com o tempo, em que tudo se torna transitório, modificável e contingente. O que significa que à aceleração crescente das mudanças sociais contemporâneas não correspondem mais, como nos primórdios da modernização, transformações intergeracionais, mas intrageracionais.

A transmissão de informação entre as gerações se vê ameaçada […] quando orientações culturais das duas gerações que coexistem nos laços estreitos de uma família moderna divergem cabalmente. Os processos de passagem à idade adulta e ao envelhecimento tornam-se precários quando a maior parte das aquisições culturais válidas para o breve transcurso de uma vida desaparecem quase que inteiramente, o que resulta em uma desorientação[24].

A aceleração do tempo anula as distâncias entre as gerações e, ao mesmo tempo, todas as outras distâncias, concorrendo também para o “declínio da aura”, em razão “de duas circunstâncias” estreitamente ligadas à crescente difusão e à intensidade dos movimentos de massa:

Fazer as coisas ficarem “mais próximas” é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através de sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, de tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia[25].

Com a cópia desaparece a aura e seu halo cultual, porque da aura não poderia haver cópia. A proximidade anula a aura, seu elemento contemplativo, passivo, rememorativo, pois, baseando-se em um prinópio de familiaridade facultada pelas mídias modernas, induz ao valor de exposição. Daniel Arasse se refere a este ensaio de Benjamin, considerando as pinturas e afrescos renascentistas de uma igreja nos quais não é possível discernir bem os pormenores pela pouca iluminação do lugar:

Os pintores que representavam seus quadros a quinze metros de altura, os faziam, de alguma forma, invisíveis para os frequentadores. Hoje, esses afrescos podem ser iluminados com uma moeda e um pequeno refletor, como também se aproximam de nós através da ampliação de detalhes em fotografias e reproduções, cartões-postais e livros. A visibilidade sendo, por vezes, melhor na reprodução que in situ não permite, não obstante, ver melhor. Não apenas vemos diferentemente os quadros que viam as pessoas do século XIV ou XVI, vemos também outra coisa […]. Este anacronismo, que nasce das novas condições, fazendo ver o que antes o pintor havia pensado como secreto, abre novas perspectivas para a compreensão da obra e do período. Mas o que importa sobretudo é o efeito de proximidade[26].

A razão principal pela qual se vê as obras cada vez menos é, segundo Arasse, porque pinturas e esculturas são expostas em uma nova expertise – a cenografia:

[ela] mostra, antes de mais nada, o cenógrafo. Bem entendido, é preciso organizar o percurso da exposição, dispor as obras, iluminá-las de uma certa maneira e, quando isso é bem realizado, se esquece a cenografia. Mas o que ocorre é que a cenografia compete com as obras, como certos tipos de penumbra [nas quais as obras são apresentadas]. É que não se veem mais os quadros mas suas imagens, e o número de visitantes impede que se veja por mais que breves instantes uma obra. […] uma das ciladas destas exposições é que se passa do valor de exposição da obra ao valor de culto da exposição e não da obra, o que resulta em uma invisibilidade da própria cultura: […] não se vai mais render homenagem à pintura que não é mais possível ver, mas antes à mise en scene da cultura[27].

Proximidade e exibição resultam, ainda, no desaparecimento do sentimento da timidez. Em sua “Pequena História da Fotografia”, Benjamin nota que, nas reproduções dos primórdios da fotografia, os retratados se retraíam no momento de ser fotografados, e esse afastamento revelava o essencial: “Dizia-se da câmara de Hill que ela mantinha uma discreta reserva. Mas seus modelos não são menos reservados; eles têm uma certa timidez diante do aparelho […]. O rosto humano era rodeado por um silêncio em que o olhar repousava”[28]. A intimidade assim preservada expressa o que não poderia se tornar “objetivo” e que pertence à aura da imagem, à sua transcendência e a seu silêncio. Nesse rosto que se recusa a nós, “a ausência de quem olha permanece absoluta. Precisamente por isso esses olhos não conhecem as distâncias”[29]. Aqui a aura que envolve o rosto vem da assimetria do olhar do fotografado, um olhar que não se entrega a nós ou que nos olha sem que se possa devolver o olhar subjugante. Com o valor de exibição declina a aura e, ao mesmo tempo, desaparece a separação do público e do privado[30]. A política se torna objeto de sentimentos, prescindindo de fundamentação teórica. Assim, movimentos afirmativos com respeito à sexualidade, por exemplo, não interrogam o mal-estar identitário no mundo contemporâneo, como na fita de Almodóvar A pele que habito, filme no qual ninguém habita o corpo que tem[31]. Com respeito aos movimentos para a liberalização do consumo de drogas, eles não refletem sobre a massificação de seu uso na sociedade “espetacular-mercantil”, sobre a cultura do excesso e do tédio que ela produz: “Que é o tédio? É onde há demais e, ao mesmo tempo, não há suficiente. Insuficiência porque há em demasia, demasia porque não há suficiente”[32]. De onde a ambiguidade ser característica da modernidade: “Todas as coisas”, escreve Benjamin, “em um processo perpétuo de mistura e contaminação, estão perdendo seu caráter intrínseco, enquanto a ambiguidade desaloja a autenticidade”[33]. A sociedade tecnológica e de consumo produz mercadorias e fantasmagorias que, por sua vez, criam consciência, falsa consciência, em questões de identidade sexual, étnica, racial, política e cultural[34].

Na contrapartida da ambiguidade encontra-se o pensamento capaz de ler como simultâneos tempos que à razão moderna seriam divergentes e que sobrevivem na cultura que se esforça em suprimi-los[35]. Em carta a Scholem, Benjamin se refere ao trânsito indeciso e à transformação dos polos e dos extremos ao descrever a disposição de quadros nas paredes de sua nova residência: “Por falar em fisiognomia, fico imaginando o que um expert faria do arranjo de pinturas de meu apartamento. Embora nem tudo já tenha sido colocado no lugar, percebo com algum choque que há – à exceção de um pequeno retrato de aniversário de [meu filho] Stefan – apenas quadros de santos em minha cela de comunista”[36]. O que fora disposto aleatoriamente causa admiração quando contemplado, pois o olhar sobrepõe, de maneira reversível, uma cela de comunista e uma cela de monge, um espaço teológico-político dominado por uma imagem ambivalente e enigmática, uma Vexierbild movente, como a de Jesus que mostra, dependendo do olhar que a apreende, três diferentes representações, dele mesmo e de outros santos. Essa fisiognomia metamórfica da face de Jesus é uma alegoria dessa reviravolta (Umschlag) sem mediação que define uma dialética monádica, em que o rosto de Jesus e o dos santos, como o teológico e o político, são extremos um do outro e simultaneamente permanecem idênticos a si mesmos, mas na latência um dos outros. E, assim como há imagens dentro de imagens em um desenho, o mesmo ocorre na História, em que há vestígios de uma época em outra. Com efeito, porque na economia capitalista o tempo foi expropriado pela mercadoria, perdendo seu valor de uso em proveito do valor de troca, seu alentamento[37] significa sua desalienação.

Resistência à saturação de estímulos do mundo moderno é a vida monástica[38]. Em seus Escritos autobiográficos, Benjamin anota:

História da solidão: “De quanta terra o homem necessita para viver?”, pergunta Tolstoi em uma de suas novelas sobre o povo. Os anacoretas deram a resposta: sua vida confinada na menor parcela de terra se espalhou pelo mundo afora. O nome de todos os anjos e demônios que procuravam apoderar-se de sua alma ou de seu retiro, do alto do monte Athos ou de Montserrat, ingressaram no mundo que se volatilizava no limiar de suas celas[39].

Os mosteiros do monte Athos no mar Egeu e as montanhas de Montserrat[40] reúnem o século IV grego e o século XI francês ao nosso tempo[41]. Secessionistas antigos, os eremitas[42] inauguraram a vida solitária como fenômeno social,[43] buscando elevação espiritual e oração:

A anacorese[44] do patriarca Antão era ainda inteiramente oriental: ele transformara o deserto em uma palestra espiritual, uma sala de treinamento do agon contra os demônios; orientais também, os excessos gimnosóficos e semi-ioguim dos estilitas sírios [com seus jejuns prolongados, imitando a “imobilidade das pedras”], reclusos voluntários[45], cuja reputação alcançou a Bretanha e a Índia; oriental ainda, a transformação do eremitismo em um sistema rígido de mosteiros-casernas, o dos primeiros cenobitas (koinos bios, vida comum), que forneceu a matriz do comunismo devoto[46].

Onde não há nada, os “homens do deserto” podem meditar em autarquia, pois o anacoreta não obedece a ninguém e organiza sua própria vida segundo seu “idiorritmo”[47]. A” idiorritmia” designa o modo de vida dos monges do monte Athos:

A Montanha Santa suscitou um gênero de vida particular que se denomina idiorritmo. Com efeito, a estes mosteiros athonitas pertencem dois tipos diferentes […]. Há aqueles que se denominam cenobitas, são comunitários, tudo executam em comunidade, refeições, liturgias e trabalhos; e aqueles que se denominam idiorrítmicos, os que vivem literalmente com seu próprio ritmo. Os monges têm celas privativas, nelas fazem as refeições (com exceção de algumas festas anuais) e podem conservar os bens que possuam no momento de seus votos […]. Mesmo as liturgias, nestas estranhas comunidades, são facultativas, exceto os ofícios da noite[48].

Ao mesmo tempo autônomos e membros da comunidade, solitários e integrados, os monges idorrítmicos procedem de uma organização situada a meio caminho entre o eremitismo dos primeiros cristãos e o cenobitismo institucionalizado. Nesses agregados cristãos, o telos é a perfeição, a santidade. São Benedito, quando era estudante, foge de Roma e se retira em Enfide, na região de Tibur, para praticar o ascetismo:

Lá, [há] uma colônia de ascetas: […] reunidos pelo desejo de perfeição […]. No Oriente, [há a] idiorritmia “verdadeira”. Seu Telos é de natureza mística: não ser perfeito, mas “respirar”, se unir, como na pneumatologia bizantina, [em que se busca o hesicasma, a tranquilidade]. Em suma: o Telos é contemplativo. Idiorritmia [é] o simples arranjo prático da solidão do eremitismo. O Ocidente sempre foi rebelde à idiorritmia: o Telos contemplativo é reservado aos conventos[49].

Os cenobitas, diferentemente dos eremitas, levam uma vida conventual e seguem as ordens de um superior, submetendo-se à disciplina monástica: “Céu e cela são moradas que se aparentam, pois o céu se aproxima da cela tanto pelo nome quanto pela devoção religiosa que nela se encontra”[50]. Homens do Absoluto, esses moradores encontraram na vida solitária a maneira de se sentir bem. A hesychia[51] a tranquilidade – é, para eles, um modo de vida, o resultado da vitória contra a potência das perturbações, das agitações e das paixões[52]. Ela não tem por objetivo a apatia do estoico ou a ataraxia do epicurista, pois é um meio de chegar à união com Deus. A hesychia é a “calma interior” fundada na certeza de se estar ao abrigo do Mal. Ela é “a penumbra, a solidão, a simplicidade de um exíguo espaço de habitação, é recanto vazio de objetos onde se mantém a posição sentada, o recolhimento, poucos movimentos, a respiração ritmada, a ausência de precipitação, de curiosidade; a hesychia é atenção, a inexistência de distrações, é inação e silêncio”[53]. No isolamento e na solidão, a acídia[54] é o “delírio do silêncio”, é a sombra que acompanha a solidão, é a tristeza do eremita e do monge[55], que se manifesta na dificuldade de concentração, a tal ponto a instabilitas se apodera do corpo e a agitação da alma, e, assim, não se pode permanecer em tranquilidade onde se está. Neste sentido, Foucault escreve: “[na vida do monge], a contemplação constitui o bem supremo. Tudo é questão de concentração e de atenção. Para Cassiano, a constante movimentação do espírito constitui sua fraqueza. Ela é o que distrai o indivíduo da contemplação de Deus”[56]. Não por acaso, para combater a patologia da vida contemplativa e os fantasmas dos “pensamentos incontroláveis”, os monges da Idade Média se voltavam para a tecelagem de cestos e entrançamento de cordas. Para o monge, o orare e laborare constituíam uma unidade, uma vez que o trabalho representava uma extensão do exercício da meditação no uso material das mãos. Contra as obsessões que perturbam a oração, o remédio é a fiação, ao mesmo tempo meio de subsistência do monge e fio da vida.

Vestígios desse mundo se encontravam, para Benjamin, nas marcas singulares do trabalho das mãos, no tempo em que existiam narradores:

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesãos – no campo, no mar e na cidade – é, ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir um puro “em-si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro no vaso de argila.[…] O próprio Leskov conside rava essa arte artesanal – a narrativa – como um ofício manual[57].

Porque o artesão é senhor de suas mãos, porque possui o saber e o saber fazer, seu trabalho não é apenas fabricação, mas também “animação”, é o sopro vital de sua obra. Artesanal então o exercício do eremita, do cenobita, do narrador, em que se harmonizam solidão e vida comunitária, com o que se questionam os fundamentos da filosofia política que, na tradição, caracterizou o homem como “animal político capaz de falar”, a palavra organizando a vida na pólis[58]. O silêncio no retiro do monte Athos ou em Chartreux se faz no âmbito da scholé como resistência às injunções da contemporaneidade, contrária ao silêncio e à contemplação[59]. Espaço solitário e espaço social confundem-se no topos da distância[60].

A modernidade contribui para o isolamento: “[o mundo moderno] está repleto de cominações, desafios, terrorismos, em um permanente querer capturar, ‘apropriar-se’, ‘dominar’. […] está repleto de exigências de tomadas de posição (intervenções, manifestos, abaixo-assinados etc.), por isso é tão cansativo[61]. Tais incitações não permitem o tempo de “flutuar”, de pensar: “Flutuar, isto é, ocupar um espaço sem se prender a um lugar [é] a posição do corpo a mais repousante, como a do banho de imersão, é [como estar em um] navio[62]. A mobilização infinta da sociedade contemporânea leva ao “cansaço de existir”. Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, em meio à política da social-democracia e seu culto do progresso técnico e do trabalho como “Messias dos tempos modernos”, à ditadura nazista, ao estalinismo, e sob o choque do pacto germano-soviético, Benjamin redige suas teses “Sobre o conceito de História”, próximo do fim da vida. Época de guerras, elas não se restringem mais aos campos de batalha, o mundo todo se converteu em trincheira[63]. Por isso, convém retirar-se, por um tempo, deste mundo: “Os objetos que a regra claustral assinalava à meditação dos monges tinham por tarefa ensinar-lhes o desprezo do mundo e de suas pompas. Nossas reflexões atuais procedem de uma determinação análoga”[64]. Neste horizonte, o retiro para o monte Athos revela a Benjamin as relações da motivação ascética e metafísica[65] com o mundo contemporâneo. Confinada no exterior da coletividade, a vida silenciosa expressa os pontos cegos da convivialidade[66], de que o mais significativo é o “caráter originalmente melancólico, dilacerado, fraturado da comunidade”, [67] comunidade que é “nada em comum”[68]. Com efeito, a palavra “comunidade” contém uma aporia, pois condensa o “comum” ao que lhe é “imune”, ao “próprio”, a imunidade sendo uma reação à comunidade. Do latim “cum” e de munus, a comunidade é munus como “tarefa”, “dever”, “lei”, mas também “dom”, aquele que se faz sem nada receber em troca e, nesse sentido, é uma “obrigação”. Munus é pois dom e dívida. Razão pela qual os membros de uma comunidade só a constituem porque ligados por uma lei comum. Mas, ao mesmo tempo, comunidade comporta sua “imunidade”, porque a comunidade se realiza pelo que é comum e, simultaneamente, se desfaz pelo que é “próprio” e não poderia assim ser “comum”. Não por acaso, dos monges medievais a Walter Benjamin, a Filosofia compreendeu a melancolia não como uma das disposições próprias da vida social, mas como o que a contém e determina,

como algo que fratura a comunidade e a separa de si mesma, constituindo-a exatamente como este corte e este afastamento, como uma falha e uma ferida nas quais a comunidade não experimenta uma condição temporária ou parcial, mas sua única maneira de ser e simultaneamente de não ser […]. É nesta clivagem inicial, nesta fenda da Origem, que se situa a melancholia […] como um afastamento original que separa a existência da comunidade de sua própria essência […]. O que é o “comum” senão a falta do próprio?[69]

A comunidade não é o lugar de encontro entre iguais e potencializa ção de alguma propriedade comum, porque é também a experiência de uma extraterritorialidade, de estranheza, de separação, circunstância de que se trata nas “comunidades anacoréticas” de todas as épocas[70]. Este retirar-se do mundo traz de volta a questão: “A que distância se deve estar uns dos outros para construir uma sociabilidade, uma solidão que não seja exílio?”[71]

A aceleração das mudanças espaciais e temporais desenraizam o homem moderno, abolindo a ideia de território e pertencimento, por um lado, de abertura para o futuro, de outro, criando um “espaço sem lugar” e um “tempo atemporal”. De onde a acídia moderna significar a impossibilidade de se aplicar na vida em comum sem, no entanto, poder investir na solidão. Neste sentido, para a “comunidade de solitários, o exílio é seu asilo”[72]. O que não significa uma negação da vida em comum, mas a distância como maneira de entrar em contato com o mundo. Benjamin observa:

A solidão não é […] tão intemporal que não se modifique, mesmo que lentamente. Ela não é, hoje, senão um produto residual da comunidade. Não há mais eremita hoje, e aquele que se isola descobre não uma nova comunidade, mas, ao contrário, a antiga. Um homem então que não se acomodava no mundo, se retirava na mais remota ilha perdida. Poucos o incomodavam, mas nada espantava mais neste homem do que vê-lo tão informado dos negócios e das intrigas do país vizinho. Era como se a solidão tivesse aguçado seus ouvidos e que o vento tivesse trazido as histórias escandalosas que o morador da cidade grande fica sabendo por telefone. Aquele que tivesse se despedido deste solitário se perguntaria: “De quantas pequenas intrigas o homem necessita para viver?”[73].

No afastamento do mundo reside a recusa do “falatório”, da parrhesia, do falar para convencer que prospera na Ágora e que domina a contemporaneidade, com suas imposições extenuantes. A parrhesia “vincula-se a um excesso social da linguagem, a uma arrogância da linguagem”[74]. De onde a importância da afasia na contemplação que se associa à delicadeza:

O princípio de delicadeza, eu o designarei “doçura”. Pessoalmente, não me espanta que uma das orientações filosóficas com mais afinidade com a delicadeza [a não violência, uma espécie de defesa sem armas], a saber, o pirronismo, pode ser definido pela delicadeza: a doçura é a última palavra do ceticismo. E Diógenes de Laércio [escreve]: “Uma história antiga conta que muitos filósofos tinham se reunido com grande pompa na presença de um enviado de um rei estrangeiro, cada um dos quais muito se esforçava para dispor sua sabedoria, a fim de que este enviado, tendo formado sobre eles a mais alta opinião, fizesse um bom relato sobre a grande sabedoria dos gregos. Entretanto, um, dentre eles, não dizia palavra […]. Era Zenão: o enviado voltou-se para ele e lhe disse: “E você, você não teria nada a me dizer de que eu pudesse fazer relato?” “Transmita a seu Senhor”, respondeu-lhe o filósofo, “que você encontrou entre os gregos um homem que sabia calar-se”[75].

Barthes refere-se a Diógenes de Laércio em sua Vida e doutrina dos filósofos ilustres: ”Alguns dizem que os céticos declaravam que a apatheia era a finalidade [da doutrina], outros que é a delicadeza praotés”[76].

Essa delicadeza, Benjamin a encontra em Franz Kafka, nas anotações de seu Diário, nas quais Kafka descreve como lhe vinha o sono. Para dormir é preciso esquecer o peso do mundo e abandonar-se à oração[77]: “Se Kafka não rezava, o que ignoramos, era capaz, ao menos, como faculdade inalienavelmente sua, de praticar o que Malebranche chama ‘a prece natural da alma – a atenção’. Como os santos em prece, Kafka incluía na sua atenção todas as criaturas”[78]. Não por acaso, Benjamin encerra seu escrito associando narração e justiça, o narrador sendo “a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo”, o que não se deve a motivações psicológicas ou éticas apenas, mas à sua maneira de acolher o singular, o insignificante, que Kafka denomina “criatura”, incluindo nela toda a natureza, do homem ao inanimado[79]. Criatura que Benjamin encontra, ao mesmo tempo, em Kafka, Leskov e Karl Kraus, o apego ao animal, ao bicho inócuo, ao coração de cão: “Tão somente o animal que sucumbe ao homem é o herói da vida”. Em seu silêncio sem palavras, ninguém testemunha pelo animal e seu sofrimento mudo.

Esse amor às criaturas está presente nos relatos medievais que o transmitiram por uma reversão da natureza dos animais para a delicadeza:

Leões que sepultaram Paulo de Tebas, o leão que trazia tâmaras para o jantar de Simeão, Elias [quando doente], alimentado por um corvo […]. [E em] Virgílio [encontra-se] a referência a lobos que fogem dos carneiros; o asno [tido como tolo] que toca a lira. […] também, leões vivendo com anacoretas, lobos com ovelhas, aves de rapina com as pombas. Já os gregos conheciam alcíone, o pássaro que faz seu ninho no mar calmo. [A alcíone representa] um estado de paz corpórea e de acalmia psíquica […]. Da mesma forma que se avalia a calma do mar quando sua superfície não é agitada por um mínimo vento, assim também a alma está tranquila quando a menor tribulação não a comove[80].

É desta natureza a delicadeza do Messias benjaminiano. Nem herói que luta com armas e busca o reconhecimento da superioridade de seus atos -, tampouco mártir -que luta sem armas -, o Messias se aproxima do Santo, pois, discreto, chega “por uma porta estreita”: “A vida deformada desaparecerá quando chegar o Messias, de quem um grande rabino disse que ele não quer mudar o mundo pela força, mas apenas retificá-lo um pouco”[81]. Porque a contemporaneidade é febril, o silêncio benjaminiano evoca uma forma peculiar de atenção que traz de volta a contemplação, em um sentido próximo ao que Nietzsche escreveu: “A monstruosa aceleração da vida acostuma o espírito e o olhar a uma visão, a um julgamento parcial falso[…]. Por falta de quietude nossa civilização culmina em uma nova barbárie. Em época alguma, os homens de ação, isto é, os agitados, foram tão estimados. Uma das correções necessárias que é preciso promover no caráter da humanidade será pois o de fortalecer em uma larga medida o elemento contemplativo”[82].

Talvez, por isso, ainda se encontrem vestígios das terapias antigas na cultura contemporânea[83].

Notas

  1. Walter Benjamin, “Über Sprache überhaupt und über die Sprache des Menschen”, em: Gesammelte Schriften, V. II, I, Frankfurt: Suhrkamp, 1991, p. 155. Ed. Bras.: “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem”, em: Escritos sobre mito e linguagem, trad. Suzana Kampff Lages e Ernani Chaves, São Paulo: Editora 34, 2013.
  2. Idem, ibidem.
  3. Segundo Gênesis, cap. 1, Deus criou o céu e a terra, os oceanos e rios, florestas e animais e, a cada dia, “viu que era bom”. Sendo um trabalho criativo, por amar o que fazia, foi um trabalho sem esforço. O trabalho sem esforço é contemplação.
  4. Esse período, o mais atarefado da História, foi iniciado no século XIX, o “século do ferro” que, em Passagem, Benjamin dá corpo à taylorização e às máquinas, ao papel impresso e às gravuras nos livros, aos reclames e cartazes, à paisagem publicitária e à moda do vestir-se de negro, à produção de objetos em série e à padronização do gosto e de valores, à multidão anônima e à velocidade de que a locomotiva é a expressão. Na continuidade, a tecnologia se articula com a guerra que inaugura o século XX, e da qual os combatentes voltaram mudos. Essa guerra “é uma revolta da técnica que cobra em ‘material humano’ o que lhe foi negado pela sociedade. Em vez de usinas de eletricidade, ela mobiliza energias humanas sob a forma de exércitos. Em vez do tráfego aéreo, ela regulamenta o tráfego de fuzis, encontrando na guerra de gases letais uma forma nova de liquidar a aura”. Walter Benjamin, “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, em: Obras escolhidas, v. I, trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 196. A tecnologia, associando-se aos meios de comunicação de massa, viria afetar todo o patrimônio cultural porque, com o desaparecimento da aura do passado, destruiu-se a própria ideia de cultura, o patrimônio que parecia dever sobreviver às ruínas. Aniquilamento da cultura é precarização da existência de que é testemunha o “frágil corpo humano”. Com isso, houve a substituição da busca da justa vida e do bem viver pela imersão “no mundo da matéria”. Cf Charles Baudelaire, Mon coeur mis à nu, Paris: Gallimard, 1986; Walter Benjamin, O capitalismo como religiao, Michael Lõwy (org.), São Paulo: Boitempo Editorial, 2013; Michael Löwy, “Prefácio”, em: Walter Benjamin, O capitalismo como religião, op. cit.; Nietzsche e suas análises do niilismo e cultura :filisteia, Deus equivalendo à mercadoria, tudo sendo pesado na mesma balança do preço. Cf. Segunda consideraçao intempestiva da utilidade e da desvantagem da história para a vida, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
  5. Nas democracias, soluções provisórias substituem os projetos de longo prazo, sondagens eletrônicas instantâneas formam maiorias políticas em poucos segundos. As pesquisas não expressam um processo de deliberação durante o qual argumentos poderiam ser discutidos, ponderados e pensados, mas reações imunes à força do melhor argumento. A aceleração compromete a própria ideia de democracia, pois instituições como direitos e leis se tornaram por demais lentas. Cf. Hartmut Rosa, Alienation and acceleration: Towards a theory of late-modern temporality, Suécia: Nordic Summer University Press, 2010.
  6. O fim da experiência é consequência da aceleração do tempo, da redução dos recursos temporais e da elevação do ritmo de vida no capitalismo tardio. Grau zero da experiência não é somente pouca experiência, mas também excesso: “Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem. A angustiante riqueza de ideias que se difundiu entre, ou melhor, sobre as pessoas com a renovação da astrologia e da sabedoria yoga, da Christian Science e da quiromancia, do vegetarianismo e da gnose, da escolástica e doespiritismo, é o reverso dessa miséria. Pois não é uma renovação autêntica que está em jogo, e sim sua galvanização […]; nossa pobreza de experiências é apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval […). Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é apenas pobreza em experiências privadas, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie”. Cf. Walter Benjamin, “Experiência e pobreza”, em: Obras escolhidas, v. 1, trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 115, trad. um pouco modificada.
  7. Walter Benjamin, “Estas áreas são para alugar”, “Rua de mão única”, em: Obras escolhidas, v. n, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa, São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 54, trad. modificada.
  8. Claudine Haroche, “L’invisibilité interdite”, em: Nicole Aubert (org.). Les tyrannies de la visibilité, Paris: Eres, 2000, p. 95.
  9. Walter Benjamin, ‘ti. obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, em: Obras escolhidas, v. 1, op. cit.
  10. Uma afinidade entre narração, arte de tecer e contemplação se encontra em fragmentos de Infância em Berlim, em que a memória infantil das horas de inverno junto à lareira traz de volta a absorção do ouvinte naquilo de que ele é o espectador, com o que Benjamin indica a relação no trabalho dos olhos com os gestos: “Já não conhecemos o fuso que feriu a Bela Adormecida e que a mergulhou num sono de cem anos. Porém, tal qual a mãe de Branca de Neve – a rainha – sentada à janela enquanto nevava, nossa mãe também se sentava à janela com a caixa de costura, e não caíram as três gotas de sangue, pois ela usava dedal para trabalhar. Em compensação, a cabeça do dedal era de um vermelho pálido, e ornavam-na pequenas escavações, vestígios de antigas agulhadas […]. A mãe de Branca de Neve costura, e, do lado de fora, a neve cai. Quanto maior o silêncio, tanto mais honrada a mais silenciosa das atividades domésticas. Quanto mais cedo escurecia, tanto mais frequentemente pedíamos tesouras. Então, ficávamos nós também horas seguindo com o olhar a agulha, da qual pendia indolente um grosso fio de lã. Pois, sem dizê-lo, cada um de nós tomara de suas coisas que pudessem ser forradas – pratos de papel, limpa-penas, capas – e nelas costurávamos flores segundo o modelo. E, à medida que o papel abria caminho à agulha com um ligeiro estalido, eu cedia, de vez em quando, à tentação de contemplar amorosamente o reticulado do avesso que ia ficando mais emaranhado a cada ponto dado, com o quai, no direito, me aproximava da meta”. Walter Benjamin, “A caixa de costura”, “Infância em Berlim por volta de 1900”, “Rua de mão única”, em: Obras escolhidas, v. 11, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa, São Paulo: Brasiliense, 1995, pp. 127- 29, trad. modificada.
  11. Trata-se da herança da filosofia de Orígenes e sua doutrina da apocatástase, segundo a qual haverá a salvação de todas as almas na ressurreição: “Em ligação com as tradições populares de seu país, [Leskov] considerou a ressurreição muito menos como uma transfiguração que – em um espírito muito mais próximo dos contos de fada – como um desenfeitiçamento”. Cf. Walter Benjamin, “O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, em: Obra.s escolhidas, v. 1, op. cit., p. 216.
  12. Walter Benjamin, “Der Erzahler: Betrachtungen zum Werk Nikolai Lesskows”, em: Gesammelte Schriften, v. II, Frankfurt: Suhrkamp, 1991, pp. 462-63. Ed. Bras.: Idem, “O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, op. cit.
  13. Giorgio Agamben, n sacramento del linguaggio: arqueologia del giuramento, Milano: Laterza, 1997, p. 15.
  14. Walter Benjamin, “Über Sprache überhaupt und über die Sprache des Menschen”, em: Gesammelte Schriften, v. II, 1, Frankfurt: Suhrkamp, 1991. Ed. bras.: “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem”, em: Escritos sobre mito e linguagem, op. cit. Tratando do empobrecimento da linguagem na sociedade de massa, Jean Cournut o associa à “cultura jovem”. Carente de elaboração verbal e psíquica, o empobrecimento da linguagem é correlato da pouca capacidade de sublimação e simbolização. Entre a precariedade escolar e os videogames violentos, e o se “dopar” com drogas, música, games, os grupos de jovens organizados na forma de gangues se engajam em condutas de risco, o perigo sendo seu ideal, uma vez que desenvolvem uma “mentalidade de guerreiro e vencedor”. Cf. Jean Cournut, “Les défoncés”, em: L’individu hypermoderne, Paris: Eres, 2004, p. 69. Que se pense, ainda, na linguagem veiculada nas mídias, cujo vocabulário se restringe a trezentas palavras, voltado para a compreensão estimada de uma criança de doze anos; e, também, a matéria divulgada pelo jornal Folha de S. Paulo, de 2013, sobre a proliferação de milhares de expressões difundidas pela internet, cerca de 2.500 novas expressões por dia, rapidamente substituíveis e “pobres em experiência”.
  15. A exposição de si corresponde à dissolução da interioridade do sujeito, como consciência reflexiva e sujeito moral, com o fim das noções de privacidade e intimidade. O autorretrato, diferentemente da exibição “hedonista” de si, voltava-se à interioridade de um Sujeito, estudioso da relação do rosto com o espírito. “Espelho da alma”, o rosto era o efeito móvel da agitação íntima das paixões, como nas pinturas de Le Brun no século XVII, antes das divagações fisionomistas do século XVIII e das diferentes caracteriologias e tipologias dos séculos XIX e XX. Nestas, o retrato perde-se na identificação classificatória a cujo serviço se estabelece a fotografia. Em seguida, a fotografia e as mídias visuais propiciaram, induzindo-a, a imitação de comportamentos, em particular de excessos – no consumo de drogas ou esportes radicais. A exposição de si comporta ainda uma mutação da ideia de escândalo – própria a sociedades cujos valores são fortemente estruturados, como as sociedades aristocráticas ou religiosas – em sensacionalismo, com impactos de notícias tão superficiais quanto passageiras, logo substituídas por outras. Cf. Walter Benjamin, “Pequena história da fotografia”, em: Obras escolhidas, v. I, trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 2008;Jean-Jacques Courtine, Claudine Haroche, Histoire du visage, Paris: Rivages, 1988; Lilian Santiago-Ramos, Pequena história do mal-Anselm Kiefer e Walter Benjamin, no prelo. [Tese (Doutorado), Departamento de Filosofia – FFLCH-USP, São Paulo, 2009, 362 páginas]; Maria Perniola, Desgostos novas tendências estéticas, trad. Davi Pessoa Carneiro, Florianópolis: Editora UFSC, 2oro, e também Byng Chul Han, Agonie des Eros, Berlin: Matthes e Seitz, 2013.
  16. Walter Benjamin, ‘:A imagem de Proust”, em: Obras escolhidas, v. I, trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 40.
  17. Walter Benjamin, “A imagem de Proust”, em: Obras escolhidas, v: I, op. cit., p. 41.
  18. José Ortega y Gasset. “El arte de Marcel Proust”. Revista La Pluma, n. 24, maio 1922.
  19. Walter Benjamin, ”A imagem de Proust”, em: Obras escolhidas, v: I, op. cit., p. 46.
  20. Idem, ibidem, p. 44.
  21. Idem, “O narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, em: Obras escolhidas, v., op. cit., p. 198.
  22. Eve Chiapello e Luc Boltanski, Le nouvel esprit du capitalisme, Paris: Gallimard, 1999, p. 547.
  23. Denis Dufour, Le divin marché: la révolution culturelle libérale, Paris: Denoel, 2007.
  24. Hermann Lübe, “The contraction to the present”, em: Harmut Rosa e William Scheuermann (orgs.), High-Speed Society. Social Acceleration, Pensilvânia: Pennsylvania State University, 2009, pp. 159 e 178.
  25. Walter Benjamin, “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, op. cit., p. 170.
  26. Daniel Arasse, “On y voit de moins en moins”, em: Histoires de peinture, Paris: France Culture/ Denoel. 2004, pp. 172-73.
  27. Idem, ibidem.
  28. Walter Benjamin, “Pequena história da fotografia”, em: Obras escolhidas, v. I, op. cit., p. 95.
  29. Idem, “Alguns temas em Baudelaire”, “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”, em: Obras escolhidas, v. III, trad. Hemerson Alves Batista, São Paulo: Brasiliense, 1989.
  30. Na reversão do público e do privado, a noção de cidadania se desfaz substituída pela de identidades. Não mais direitos iguais a todos e acessíveis a todos, mas uma forma mais arcaica do direito, porque lhe falta o limite entre o eu e o outro. Cada grupo quer ser visto pelo Outro, mas não o vê, de onde decorrem direitos “privatizados” em comunitarismos étnicos, raciais, religiosos, culturais, nacionais. Cf. Hector F. Montserin, “Dos respuestas a la actual exigencia comunitaria: la deconstrucción de la comunidad ideal perdida em J. L. Nancy y la fantologia derrideana”, em: Mónica B. Cragnolini (org.), Extrañas comunidades: La impronta nietzscheana en el debate contemporáneo, Buenos Aires: Lalabra, 2008, p. 83.
  31. Cf. Dany-Robert Dufour, La cité perverse: libéralisme et pornographie, Paris: Denoel, 2009.
  32. Cf.Jean-Paul Sarte, La legende de la verité, Bruxelas: Ousia, 2005, p. 32.
  33. Walter Benjamin, “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, em: Obras escolhidas, v. I, op. cit.
  34. Se, nas Passagens, Benjamin observa que, com o capitalismo moderno, um sono mítico se abateu sobre a Europa, é porque a própria consciência se tornou um instrumento para a reprodução de comportamentos a serem consumidos segundo os gadgets da publicidade e do marketing. A democracia, em particular, oscila entre estado de direito e estado de exceção: “O valor venal de cada poder é calculável. Neste contexto, só se pode falar em corrupção onde este fenômeno for excessivamente instrumentalizado. Ele tem seu sistema de comando em um sólido jogo entrelaçado de imprensa, órgãos públicos, trusts, dentro de cujos limites permanece inteiramente legal”. Walter Benjamin, “Moscou”, “Imagens do pensamento”, “Rua de mão única”, em: Obras escolhidas, v. II, op. cit., parágrafo 12, p. 172.
  35. Benjamin refere-se a astrólogos e quiromantes, cartomantes e prestidigitadores que resistem à ordenação mercantil do tempo. Cf. Walter Benjamin, “Kurze schatten”, em: flluminationen, Frankfurt: Suhrkamp, 1980.
  36. Carta de 28 de outubro de 1931. Cf. Walter Benjamin, Correspondência: Walter Benjamin, Gershon Scholem, trad. Neusa Soliz, São Paulo: Perspectiva, 1993.
  37. A perspectiva anti-hegeliana e antimarxista da dialética benjaminiana se dá pela substituição da “inquietude” e da ideia de Aufhebung – que a visão dialética pressupõe enquanto “visão beraclitiana” da História – pela contradição que não supera nem suprime mas que permanece na forma da “ambivalência” (Ambivalenz), na atitude de espera silenciosa, de meditação, na oração, na narração.
  38. Para a vida monástica e vocabulário do monaquismo, cf. Roland Barthes, Comment vivre ensemble, Paris: Seuil, 2002, e Pierre Miquel, Lexique du désert, Bégrolles-en-Mauges, Maine-&-Loire: Abbaye de Bellefontaine: Diffusion, Editions monastiques, 1986. Na cultura em que proliferam estímulos, o jejum do santo se converte em anorexia nervosa. Se, para ele, o jejum é purificação e ascese espiritual, o do anoréxico é performance e recorde no domínio do próprio apetite. A anorexia é uma forma de purificação do excesso de ofertas de consumo, mas como “desespiritualização da ascese”. Cf. Eric Bidau, Anorexie mentale et ascese mystique: une approche psychanalytique, Paris: Denoel, 1997; Franz Kafka, Un artiste de la faim et autres rédts, trad. Claude David, Paris: Gallimard, 2001; Peter Sloterdjik, Tu dois changer ta vie, trad. Olivier Mannoni, Paris: Libella, 2011. Para a ascese espiritual no mundo contemporâneo, cf. as personagens “anoréxicas” das estatuetas de Giacometti; cf. Roland Barthes, Le neutre, Paris: Seuil, 2002.
  39. Walter Benjamin, Autobiographische Schriften, v. VIII, I, Frankfurt: Suhrkamp, 1991.
  40. Recorde-se que o retiro para as montanhas sobre o mar tem longa tradição, uma vez que o alto significa proximidade com o céu estrelado e o divino, sendo lugar de contemplação. A etimologia exprime a relação entre templum e contemplação. A palavra templum aproxima-se do termo grego temenos (“perímetro sagrado”), de temnein, “cortar”, de onde as palavras “tomo”, “corte”. Templum é uma palavra da linguagem dos augúrios, designando o espaço quadrado delimitado pelo áugure no céu e na terra, no interior do qual ele recolhe e interpreta sinais e presságios. Por extensão, diz-se templum do céu inteiro, das planuras do mar, como de lugares ou edificações dedicadas a um deus. De onde a palavra contemplare ter o duplo sentido de “olhar atentamente” e “considerar pelo pensamento”, em uma mes ma evolução e sentido que considerare – de cume sidus/sidera, astro/astros – é olhar para o alto, para as estrelas e ser guiado pelo alto, pelas estrelas. Cf. Alain Rey (dir.), Dictionnaire historique da la langue française, Paris: Le Robert, 2010. Lembre-se também que “espetáculo” e “especulação” (de spectare, olhar) também possuem raiz comum, como operação do olhar e da linguagem. Spectare é olhar com respeito. Respeito é respectare, voltar a olhar, olhar novamente, é olhar com cuidado, é prestar atenção, sendo, simultaneamente, olhar e pensamento. Este campo semântico compõe as noções de contemplação, consideração, especulação e meditação. Como a contemplação abrange a ideia de verdade como aletheia, revelação, a teoria reúne filosofia e experiência religiosa: “No que concerne às origens religiosas do termo, o theoros era aquele que tinha o dever de reportar verbatim à cidade as palavras do oráculo”. Cf. Kenneth Schmitz, Josef Pieper et le concept de tradition”, em: Joseph Pieper, Le concept de tradition, Genebra: Ad Solem, 2006, p. 24.
  41. Cf. o documentário de Philip Gröning O grande silêncio, de 2005, sobre o mosteiro La Grande Chartreuse, em Grenoble, cujo pedido para filmar lá feito em 1990 obteve resposta dezesseis anos mais tarde, segundo a temporalidade religiosa que reflete sobre o sentido e os impactos da midiatização do mosteiro tanto para a vida conventual quanto laica; e um pequeno documentário do início dos anos 1950 na internet sobre o monte Athos.
  42. Os eremitas, no âmbito do cristianismo oriental, foram os primeiros cristãos que no século IV se retiraram para os desertos do Egito, e o fizeram na busca da ascese pelo silêncio e pela solidão. Desconheciam hierarquias e um poder central, pois o superior era tão somente aquele em quem se reconhecia sabedoria e experiência. Já os cenobitas (koiné-bios, vida em comunidade), que originariam o cristianismo ocidental, viviam nos mosteiros, sob a autoridade de um superior. Se a vida social exige ordem e racionalidade, o retraimento para o exterior da sociedade busca o aperfeiçoamento da alma e também aprofundar seus objetos de contemplação, ordenando a vida subjetiva. Cf. Roland Barthes, Comment vivre ensemble, Paris: Seuil, 2002, e Pierre Miquel, Lexique du désert, op. cit.
  43. Ao fim do Império Romano, sob o domínio das invasões dos bárbaros, a coerção do Estado, do fisco ou do serviço militar fazem a vida nas cidades parecer tão aprisionante que se manifesta em seus dissidentes o desejo de separação da comunidade política. Peter Brown refere-se à situação social desastrosa das aldeias do Egito copta, província romana, núcleo do movimento ascético, pondo em evidência as tensões de vizinhança, a crise de solidariedade e de segurança coletivas. Camponeses rudes e violentos, confinados num mesmo espaço, se matam por nada, tanto lhes pesam os laços obrigatórios. Cf. Peter Brown, “The Rise and Function of the Holy Man in Late Antiquity”, Journal of Roman Studies, London: 1971, v. 6, pp. 80-101.
  44. Ana-chorein: Ana significa um movimento de baixo para o alto e chorein é retirar-se, afastar-se, de onde haver na anacorese um distanciamento de baixo ao alto, um elevar-se ao longe. A designação “sis”, sendo um sufixo para a formação de substantivos abstratos, é uma separação do mundo por uma elevação na direção de um longínquo profundo, íntimo e secreto. Santo Antão e seus discípulos são solitários que, distanciando-se do mundo, moram em choupanas, não em um estado de solidão absoluta, mas em raros contatos com o mundo. Além da separação da cidade e de objetores tácitos do poder, há, nos eremitas, indiferença por si mesmos e renúncia a projetos pessoais. Suas vestimentas são mínimas, como seus alimentos frugais. Roland Barthes, Comment vivre ensemble, op. cit., p. 57.
  45. A experiência do “autossequestro” se encontra em diversos exemplos de anacoretas que só se comunicavam com quem os visitava por uma estreita janela e, em sua forma extrema, os estilitas: “Simeão, o estilita (390-459), filho de um pastor da Síria, [é exemplar] no furor de uma ascese por autossequestro; ele se enterra até o pescoço em um fosso de seu jardim durante todo o verão, tendo ainda passado quarenta dias em um porão sem luz, fazendo-se emparedar e cimentar a porta, além de passar quarenta dias sem alimentação. Em 423, próximo a Antioquia, Simeão instala-se em cima de uma pilastra [stulos, coluna] no início baixa, que depois irá se erguendo progressivamente e, em 430, a coluna já alcança quarenta braçadas, uns vinte metros. No alto, coloca uma balaustrada, de onde converte pecadores, dá conselhos, não descuidando dos interesses cristãos contra idólatras e judeus, informando o Imperador”. Roland Barthes, Comment vivre ensemble, op. cit., pp. 96-97.
  46. Peter SloterdjiK, op. cit, p. 365 – Cf. Antoine Guillaumont, Un philosophe au désert: Evagre, le Pontique, Paris: Vrin, 2009; Roland Barthes, Comment vivre ensemble, op. cit.
  47. Em grego, idios é o que é “separado”, “solitário”, “isolado” da comunidade política. Já o rythmos revela diferentes significações na filosofia antiga. De rhéo-correr, fluir, rythmos significa “ordem no movimento”, não o fluxo, mas o que o limita, sua interrupção, como a torrente da cachoeira que, antes de cair, se detém por um instante. Reunindo as diversas variações no sentido grego, dos pré-socráticos a Aristóteles em particular, Giles Deleuze observa: “Não se trata apenas de uma questão de música, mas de maneira de viver: é pela velocidade e lentidão que se desliza entre as coisas, que se combina com outras coisas. Não se começa nunca, nunca se faz tabula rasa, desliza-se entre, entra-se no meio, se adota ou se impõe ritmos”. Spinoza, Philosophie Pratique, Paris: Minuit, 1981, p. 166. Cf. Pierre Sauvanet, Le rythme grec: d’Héraclite à Aristote, Paris: PUF, 1999. Cf. Roland Barthes, Comment vivre ensemble, Claude Coste, “Préface”, p. 24. Barthes considera os idiorrítmicos religiosos uma forma de nova abadia de Teleme. Na obra de Rabelais, uma tabuleta se encontra em sua entrada com a inscrição “Aqui, faça o que você quiser”. Esta forma de harmonização idiorrítmica é um contrarnodelo à conjugalidade e a seu oposto, a vida das massas, quer se a considere massa anônima ou indiferente, ou massa agressiva. Contrafação do idiorritmo – em que cada um ordena sua vida segundo o autogoverno da utilização do tempo – são as comunidades em que jovens de Berlim, frequentadores das festas rave, vivem. Em estado de grande desordem de objetos nas casas, não têm possibilidade de auto-organização externa e interna, sendo “comandados” pelos valores de consumo, em especial, o de drogas . Cf. Tales Ah-Saber, A música do tempo infinito, São Paulo: Cosac Naify, 2013
  48. Jacques Lacarriere, L ‘Été grec, Paris: Plon, 1976, p. 37.
  49. Roland Barthes, Comment vivre ensemble, op. cit., p. 79.
  50. São Basílio. apud Anne Larue, L’autre mélancolie: acédie ou les chambres de l’esprit, Paris: Hermann, 2001, p. 34.
  51. No léxico grego, os ideais de tranquilidade se expressavam na hesychie: “Em Heródoto hesychos significa ‘silencioso’ e hesychié ‘silêncio’, mas encontra-se também o sentido de ‘tranquilo’, ‘à vontade’, ‘em paz’. No dialeto jônico do final dos séculos v e rv é ‘repouso’, tendo como sinônimos scholé, rathymié e como contrários ponos [sofrimento, esforço]; talaiporié é ‘imobilidade’ (sinônimo atremié), ‘calma’ e ‘silêncio’. Quase sempre a palavra se opõe ao combate e ao esforço doloroso e significa ‘sem agitação’, descrevendo o fato de permanecer sentado em uma assembleia sem tomar a palavra”. Paul Demont, La cité grecque archafque et classique et l’idéal de traquilité, Paris: Les Belles Lettres, 2009, p. 26. Na poesia dos séculos IV e V, a preocupação da cidade, já essencial na fliada, faz intervir, mais que antes, o papel dos valores morais de todos os cidadãos: “Com o desenvolvimento da poesia gnômica (uma poesia feita, sobretudo, de ‘sentenças’), observa-se o aparecimento de um ideal de tranquilidade cívica […]. O papel do poeta é aqui notável. A delicadeza de suas palavras tem praticamente a mesma eficácia que a doçura das palavras dos ‘reis’. Uma faz cessar, por justas sentenças, as maiores querelas, a outra, cele brando os homens do passado ou os deuses, faz cessar as aflições”. Idem, ibidem. Esse ideal, revisitado pelo vívere civile da Renascença florentina foi abandonado pela modernidade, a busca do Sumo bem substituída pelos benefícios da técnica e pela sociedade do conhecimento, sociedade da comunicação e sociedade da informação.
  52. Na Vida retirada, a acídia é o rfaco maior. Cf.São Basílio, apud Anne Larue. op. cit.. p. 34.
  53. Considere-se que há sons que aprofundam o silêncio e outros que o perturbam. A música sacra se associava ao silêncio e à fé, como a sonoridade repousante e sem angústia dos sinos do Angelus da manhã, tarde e noite que conclamavam às preces pequenas comunidades, ritmando a vida cotidiana e as sensibilidades. Eis por que Cioran observava o quanto a fé em Deus devia à música de Bach. Na Revolução Francesa, no processo de laicização política, as badaladas foram substituídas pelo grito de guerra do tambor revolucionário em que desaparecia o “divino”. Cf. Alain Corbin, Les cloches de la terre: paysage sonore et culture sensible dans les campagnes au XIXeme siecle, Paris/Manchecourt: Flammarion, 2000. Os cultos religiosos contemporâneos, movidos a som techno, não poderiam propiciar qualquer contemplação.
  54. A acídia é o mal da alma que assombra o solitário com “maus pensamentos”, suscitando o tédio, o desânimo, a aversão ao estado monástico, fazendo a vida parecer monótona, dolorosa e inútil. O eremita tomado pela acídia vem a desprezar a vida que leva e o monge a abandonar a cela e, por fim, a vida monástica. O desinvestimento dessa maneira de viver é ao mesmo tempo o luto por esse desinvestimento. A solidão deve ser, então, interrompida de maneira regrada. Para não ser vencido pela acídia, o “demônio do meio-dia” que se apodera do religioso quando o sol está no zênite, eremitas e monges devem conhecer seu comportamento, seus costumes e, sobretudo, sua psicologia, sua concupiscência e irascibilidade. Cf. Roland Barthes, Comment vivre ensemble, op. cit., p. 57. Para uma recensão do vocabulário da anacorese – monacos, cenobitas, anacoretas, eremitas e demais temas próprios à vida solitária, cf. Roland Barthes, Lexique du désert, op. cit., p. 148.
  55. Há riscos na busca da contemplação e na vida solitária, como o atesta, ainda, a iconografia, em particu lar as duas versões de SãoJerônimo em sua cela de Dürer. A primeira, de 1514, representa o santo estudioso, silencioso e concentrado, enquanto escreve em sua escrivaninha. Nessa pequena cela ensolarada, calma e confortável, o santo está em companhia de seu cão que dorme profundamente; a seu lado, um leão sonolento que cuida que nada perturbe a quietude do lugar. Os objetos aí dispostos participam dessa serenidade, almofadas de veludo dão conforto a um tamborete próximo a uma ampla janela, compondo um espaço acolhedor. Com a ampulheta e o chapéu de cardeal pendurado na parede, a cena manifesta a suspensão do mundo temporal para o santo imerso em seu trabalho de tradutor que nada poderia distrair. Já em 1520, São Jerônimo não escreve em tranquilidade, mas está meditativo diante de um crucifixo e uma caveira. Vestido com simplicidade, o cbapéu e outros símbolos da Igreja estão ausentes. A quietude e o conforto da outra cena cederam a uma cela mais austera, iluminada apenas por uma pequena abertura, com um banco e uma escrivaninha estreitos onde estão o crânio e o crucifixo. Inteiramente só, sem seus animais estimados, o santo se tornou anacoreta, lutando, pela meditação, contra a inquietação que o aflige. Apoiando o rosto na mão esquerda, está absorto em pensamentos sombrios, seu olhar revelando o esforço extremo da meditação à qual quer se entregar. Cf. Jean Clair, Mélancholie: génie et folie em Occident, Paris: Gallimard, 2005, entre outros.
  56. Michel Foucault, Dits et écrits, v. II, p. 1628.
  57. Walter Benjamin, “O narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, em: Obras escolhidas, V. I, op. cit., p. 205.
  58. Os gregos não prezavam a solidão, considerando-a grande infelicidade do homem. Compreendida como experiência por excelência ética, a phoné se realizava na Ágora. O “agorazein” era o “circular no mercado, comprar, aconselhar”. Mas já em seu tempo, Demócrito se refugiava nas montanhas de Abdera, Eurípides se recolhia em grutas onde escrevia suas tragédias, Heráclito vagava pelas planícies de Éfeso. Sobre Demócrito e os citadinos de Abdera, os doxógrafos observaram: “Demócrito ri sem parar, dizem, e de qualquer coisa, grande ou pequena, e isto lhes parece sinal de loucura”. Os habitantes de Abdera chamam, então, Hipócrates, e Demócrito lhe teria dito: “Quem quiser ter alegria não deve fazer demais nem no privado, nem na vida pública, e não deve escolher, em nenhuma de suas ações, para além de suas forças e de sua natureza, mas antes ficar atento, mesmo quando a fortuna dele se aproxime e conduza ao que se quer”. Se tantos se chocam com seu riso, é porque o assimilam à alegria e ao júbilo, como se ele risse de coisas infelizes. Hipócrates, ao contrário do que esperavam os abderitas, o considera de grande sabedoria. O afastamento da cidade evoca o ideal clássico da scholé na cidade grega em relação ao atarefamento no trabalho e na política: a hesychia – tranquilidade, a apragmosynè – a recusa das intrigas, e a scholé – tempo da não ação, tempo do pensamento. Nas comédias de Aristófanes, os sicofantas (os denunciadores públicos) são o contrário da tranquilidade, são “personagens insuportáveis por sua mania de intervir em todas as ocasiões sob pretexto de salvar o Estado. São ‘morteiros de processos’ […]. Neles se mesclam pretensão ao civismo e recusa da tranquilidade”. Paul Demont, La cité grecque archaïque et classique et l’idéal de traquilité, op. cit., p. 45. Com efeito, Demóstenes referia-se ao sicofanta Aristogiton como o “pavor dos cidadãos quando vinha às assembleias para atacá-los virulentamente. E para contrapor o agitador sempre mal-humorado e o ideal da tranquilidade ligada à discrição, dizia-se que Aristogiton – que assassinara dois dos trinta tiranos de Atenas – era tão rude que, em uma cidade como a de Atenas, amante da elegância, da delicadeza e da graça, nunca era visto “nas lojas de perfume”. Cf. Christian Meier, Política e graça, Brasília: Editora UNB, 1997. O bem viver requer repouso e tranquilidade. A hesychia é calma, não é a mesma palavra que designa a ataraxia (que é a imperturbabilidade do sábio). Cf. Paulo Henrique Silveira, Medicina da alma: artes do viver e discursos terapêuticos, São Paulo: Hucitec, 2013. Spinoza vivia retirado, Descartes também: Bene vivit qui bene latuit: ”Vive bem quem vive retirado”. Cf Alexandre de Oliveira Souza, “Descartes: o cortesão exilado e as paixões políticas”, 2013, 192 páginas, Dissertação (Mestrado), Departamento de Filosofia da FFLCH-USP. Os casos extremos de isolamento do mundo, como o de monges, eremitas e os casos de “claustrofilia laica” revelam, como se verá, as aporias da vida em comum.
  59. Barthes enfatiza as formas pouco estudadas de desejo de solidão, pois a medicina e a psicologia analisam, preferencialmente, a claustrofobia, mas não a clastrofilia. Referindo-se ao ensaio “Le monachisme – réalité et ideal – dans l’oeuvre de Dostoievski”, da coletânea por ele consultada sob o titulo Le millénaire du Mont Athos, études et mélanges, Barthes indica de que maneira Elisabeth, a personagem de Os demônios, é tomada pelo Cristo, vivendo em uma espécie de gaiola, sem asseio ou qualquer cuidado de si. No que tange à “sequestração laica”, considerada psicose familiar, o episódio revelado em 1901 e narrado por André Gide em A sequestrada de Poitiers permanece inconcluso na acusação penal e na responsabilização de toda a familia. Melanie, a “sequestrada”, passou vinte e cinco anos enclausurada em seu quarto. Durante o processo que transcorreu em 1901, notou-se haver muito carinho entre Melanie, sua mãe, o irmão e a servente que dela cuidavam: “[Ela viveu em] clausura absoluta durante vinte e cinco anos. As persianas [da casa] ficavam fechadas, a janela do segundo andar trancada com cadeado(e) guarnecida com o reforço de dobradiças em todas as aberturas. (As) venezianas (eram) bloqueadas por correntes. Evidentemente [os] odores de gordura, excrementos, vermes [eram] insuportáveis. No entanto, uma servente dormia em uma cama estreita de ferro no quarto, e o cheiro era tolerável se a porta estivesse entreaberta. Mas a mãe proibia: ‘ela dizia que queriam fazer sua filha ficar resfriada’. Mélanie recusava roupas, camisola, só aceitava um cobertor: ‘Deste amortalhamento profundo, Melanie tinha consciência como de uma felicidade. A esta espécie de porão absoluto, ela lhe dava um nome: ‘Minha pequenina gruta.’ Quando foi levada ao hospital, dizia: ‘Tudo o que vocês quiserem, mas não me tirem minha pequenina gruta, Tal claustrofilia tem rastros entre nós: no gosto em arrumar os espaços fechados, como os lugares de trabalho, o quarto, espaços protegido das querelas, intrigas, trapaças”. Roland Barthes, Comment vivre ensemble, op. cit., pp. 97-98. Barthes se refere, ainda, ao quarto de que não saía a “tia Léonie”, de onde controlava todos os movimentos dos de sua casa e a vida de Combray na obra A busca do tempo perdido, de Proust. Cf Roland Barthes, Comment vivre ensemble, op. cit
  60. Que se recorde Schopenhauer. A fim de compreender o homem, Schopenhauer se refere ao comportamento do porco-espinho e a distância em que vivem uns dos outros, distância necessária para não se ferirem reciprocamente. Observa, assim, que quanto mais próximos os indivíduos maior a possibilidade de se ferirem. Cf. Pilar López de Santa Maria, Parerga y Paralipómena, Madri: Trotta, 2006; cf. também Elias Canetti e suas análises sobre a “fobia do contato”: A vivacidade das desculpas que recebemos por um contato involuntário, a impaciência com a qual se as espera, a reação violenta que pode até chegar às vias de fato se elas não são apresentadas, eis todo um nó de reações psíquicas centradas no contato com os desconhecidos”. Elias Canetti, Masse et puissance, trad. Robert Rovini, Paris: Gallimard, 1966, pp. 11-12. Ainda Nietzsche confere valor à distância: “Sem o pathos da distância[…] não poderia nascer aquele outro pathos mais misterioso, o desejo de sempre aumentar a distância no interior da própria alma, a elaboração de estados sempre mais elevados, mais raros, remotos, amplos, abrangentes, em suma, a elevação do tipo ‘homem’, a contínua autossuperação do homem, para usar uma fórmula moral num sentido supramoral”. Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal, trad. Paulo César Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1992, frag. 257. Cf Roland Barthes, “La sequestré de Poitiers”, ” Le Couplage”, em: Comment vivre ensemble, op. cit.
  61. Roland Barthes, Le neutre, op. cit.
  62. Idem, ibidem, p. 45.
  63. A cidade moderna gerou a cultura do pânico, com terrorismos e criminalidade: “Os subúrbios são o estado de sítio das cidades”. Walter Benjamin, “Rua de mão única”, em: Obras escolhidas, v. 1, op. cit.
  64. Walter Benjamin, “Sobre o conceito de História”, em: Obras escolhidas, v. 1, op. cit.
  65. No entrecruzamento do ceticismo antigo – com seus preceitos de anestesia, apatia, ataraxia e afasia – e do estoicismo teológico do cristianismo da Síria e de Alexandria – resistir ao sofrimento e às paixões para vencê-las e elevar o espírito -, o monge se afasta do mundo, o que não é um contemptus mundi, mas um modo de vida que se desprende das imposições do tempo para compreendê-las melhor, por uma “proximidade na distância” e uma “distância na proximidade”, como a vida dos que “gostam de afastar-se”. Cf. Jacques Derrida, Politiques de l’amitié, Paris: Galilée, 1998.
  66. Descendentes dos ascetas antigos são as personagens de Nos penhascos de mármore, de Jünger. Contemporâneo de Benjamin e combatente na Primeira Guerra Mundial, no romance Jünger apresenta o narrador e seu irmão que, depois de terem sido soldados nas sangrentas batalhas dessa guerra, trabalham em um grande mosteiro incrustado nas falésias de mármore, onde vivem entre os livros da biblioteca e a serena contemplação da natureza, quando são ameaçados por hordas de invasores que devastam o convento onde as personagens encontravam refúgio e paz. Cf. Ernst Jünger, Nos penhascos de mármore, trad. Tércio Redondo, São Paulo: Cosac Naify, 2008. A Lilian Santiago-Ramos, meu reconhecimento por ter-me lembrado do romance no contexto deste trabalho.
  67. Neste sentido, Hobbes foi um dos primeiros modernos a considerar a imunidade contra a comunida de, o contrato social resultando de homens temerosos que, por medo da morte, aceitam-no; por isto, os indivíduos estão unidos por suas feridas. Cf. Thomas Hobbes, Leviatã, trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, São Paulo: Abril Cultural, Coleção Os Pensadores, 1973.
  68. Neste sentido,”Comunidade é com-imunidade”. Cf. Roberto Esposito, Termini della política, Milão: Mimesis, 2008.
  69. Roberto Esposito, Termini della política, op. cit., pp. 53-54.
  70. Jacques Derrida, Politiques de l’amitié, op. cit., p. 53.
  71. Roland Barthes, Comment vivre ensemble, op. cit.
  72. Harmut Rosa e William Scheuermann (orgs.), High-Speed Society. Social Acceleration, op. cit; Roland Barthes, Comment vivre ensemble, op. cit.
  73. Walter Benjamin, Gesammelte Scriften, v. VI, Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1985, pp. 225-26; cf. Walter Benjamin, “Schicksal und Charakter”, em: flluminationen, Frankfurt: Suhrkamp, 1980. Este texto pode ser encontrado em Idem, Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921), São Paulo: Editora 34, 2013.
  74. Roland Barthes, Comment vivre ensemble, op. cit., p. 172; cf. Roland Barthes, Le neutre, op. cit., p. 66.
  75. Roland Barthes, Le neutre, op. cit., p. 66; Leda Tenório Motta, Roland Barthes: uma biografia intelectual, São Paulo: Iluminuras, 2012.
  76. Idem, ibidem; idem, ibidem.
  77. A oração é exercício da delicadeza: “O gnóstico que aspira à oração pura”, anota um dos primeiros filósofos do deserto, Evagro, o Pôntico, “deve resguardar-se de pensamentos que provenham da parte irascível da alma, dentre as quais a tristeza e, mais ainda, a cólera, pois a oração é uma ramificação da delicadeza: ‘Se alguém deseja alcançar a oração pura e apresentar a Deus um intelecto isento de pensamentos, que ele domine sua irascibilidade, e que ele seja vigilante com os pensamentos que ela engendra, isto é, aqueles que têm por origem a desconfiança, o ódio, o rancor, que, mais que tudo, ofuscam o intelecto e destroem seu estado celestial”‘. Cf. Antoine Guillaumont, Un philosophe au désert: Evagre, le Pontique, op. cit., p. 299. Para «orar sem distração”, a alma deve estar purificada da preocupação de todas as coisas terrestres: “Aqueles que praticam [a oração) com cansaço e lágrimas semeiam nas lágrimas, mas os que participam sem cansaço da cíência [de Deus] farão a colheita na alegria e no contentamento”. Idem, ibidem
  78. Walter Benjamin, “Franz Kafka”, em: Obras escolhidas, v. I, op. cit., p. 159.
  79. Sobre a questão da atenção a “todas as criaturas”, ver o papel da “pedra profética” em Leskov, tal como Benjamin a compreende em seu ensaio “O narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, em: Obras escolhidas, v. 1, op. cit. Essa “alexandrira” tem o dom de falar e prenunciar o que acontecerá, no futuro, ao czar Alexandre da Rússia, fazendo a personagem cair em pranto.
  80. Roland Barthes, Comment vivre ensemble, op. cit., p. 63.
  81. Walter Benjamin, “Franz Kafka”, op. cit., p. 159.
  82. Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado humano, trad. Paulo César Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2005, pp. 213-15.
  83. Como acontecimentos de contra-aceleração do tempo, pense-se nas experiências do pós-maio de 68 francês, nas comunidades hippies e em movimentos ecologistas, e os congressos “Desconectar-se”, cuja chamada é feita pela internet! E algumas famílias e pessoas na Califórnia que decidiram desligar TVs, computadores, rádios, iPads etc. por um mês, bem como voltar a escrever em cartas enviadas pelo correio. Também as comunidades new age, à sua maneira, aspiram à desaceleração do tempo: “A new age nasce da mistura de elementos vindos do esoterismo, das contraculturas juvenis e de várias formas de espiritualidade oriental, sem esquecer o mundo das terapias alternativas; além disso, caracteriza-se por um baixo perfil teórico e intelectual e pela ausência de uma rígida normatividade moral, fatores que, obviamente, facilitaram sua difusão social […]. Ao lado da new age, que representa o lado calmo, relaxado e pseudoirônico da comunicação […] [existe] a cultura da performance que não é orientada para alcançar o prazer, mas para a manutenção da excitação[…], uma espécie de estado eufórico mais próximo de uma drogadição, de uma dependência, do que do sentimento íntimo”. Mario Perniola, Contra a comunicação, trad. Luisa Raboline, Rio Grande do Sul: Unisinos, 2006, pp. 26-29. Neste sentido, a droga própria à new age são tranquilizantes, como o haxixe, a maconha; aquela dos punks e outros ativismos juvenis, o ecstasy.

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