2009

A ética da vergonha

por Ruwen Ogien

Resumo

Segundo uma longa tradição filosófica, que se pode remontar aos antigos gregos, a relação consigo mesmo tem certo valor moral, mesmo quando é concebido de maneira completamente independente de outrem. Esta tradição nos diz que existem deveres morais em relação a si mesmo e não apenas deveres em relação aos outros. Entre estes deveres morais em relação a si mesmo, há aquele que prescreve não atentar contra a própria dignidade, o que significa mais concretamente não se matar, não causar danos à própria saúde, não entregar-se a certas atividades sexuais solitárias como o travestissement, o fetichismo, a masturbação, não desperdiçar seus talentos naturais, não viver no “ócio” ou na “preguiça”, não beber ou comer como um bêbado ou um glutão, não se mostrar servil.

Entretanto, a ideia de que existiriam deveres deste gênero que nos poriam, por assim dizer, em relação moral com nós mesmos não parece aceitável.

E a vergonha? Os filósofos costumam defini-la em contraste com a culpa. A vergonha seria ligada à ideia de que não estamos “à altura” de nossas pretensões pessoais ou que agimos contra nossa própria dignidade, enquanto a culpa estaria vinculada à ideia de que cometemos uma falta em relação a outros ou que atentamos contra sua dignidade.

A maioria dos filósofos que se interessa por essa questão parece acreditar que, apesar da aparente semelhança, a vergonha e a culpa se distinguem profundamente de acordo com os seguintes critérios:

  1. A vergonha estaria relacionada à ideia de que não estamos “à altura” de nossas pretensões pessoais e a culpa à ideia de que “cometemos um erro” ao transgredir regras sociais ou morais impessoais.
  2. A vergonha estaria relacionada ao desgosto ou desdém do outro, a culpa à cólera ou à indignação do outro.
  3. A vergonha seria relativa ao que somos e viria acompanhada da vontade de melhorar; a culpa estaria ligada ao que fazemos e viria acompanhada da vontade de reparar os males que causamos.

Porém, se fosse verdade, por exemplo, que a vergonha está intrinsecamente relacionada à ideia de que não estamos “à altura” de nossas pretensões pessoais e a culpa intrinsecamente ligada à ideia de que “cometemos um erro” ao transgredir as regras sociais e morais impessoais, as crianças pequenas que ainda não têm projetos pessoais ou os indivíduos de um nível social modesto, sem pretensões, não poderiam sentir vergonha. Ora, são eles justamente os que experimentam tal sentimento com maior frequência.

A única diferença importante entre vergonha e culpa diz respeito à atitude diante da responsabilidade. No caso da culpa, reconhecemos abertamente a responsabilidade por nossos atos e exprimimos a vontade de reparar os danos que causamos. No caso da vergonha, adotamos uma atitude incoerente em relação à responsabilidade. Por um lado, nós a reconhecemos, senão não sentiríamos vergonha. Por outro, fugimos dela: nossa primeira preocupação, no caso da vergonha, é de nos escondermos, de desaparecer provisória ou definitivamente.

Por exprimir uma atitude incoerente em relação à responsabilidade, a vergonha não pode servir para fundamentar ou justificar uma teoria moral coerente. É por esse motivo que as tentativas de reabilitar a vergonha como “virtude moral” ou “meia virtude”, tanto as iniciativas modestas como a de John Rawls, quanto as radicais como de Bernard Williams, são rejeitáveis.


Uma das razões pelas quais os filósofos se interessam pela vergonha é que tentar compreendê-la um pouco melhor é também tentar compreender um pouco melhor o gênero de seres bizarros que nós somos.

Com efeito, no conjunto dos traços típicos de nossa espécie, um dos mais surpreendentes é que dispomos de uma gama incrivelmente variada de expressões afetivas, não verbais, da insatisfação em relação a nós mesmos.[1]

A vergonha é apenas uma dessas expressões afetivas, ao lado do desconforto, do constrangimento, dos arrependimentos, dos remorsos, da culpa ou, ainda, do ódio de si (certamente esqueço algumas). Mas não é a menos interessante, pelo fato, entre outros, de que numerosos filósofos têm dado a ela um valor moral.

Assim, para Spinoza, a vergonha sem dúvida não é uma virtude, por ser uma forma de tristeza, “no entanto é boa na medida em que denota, no homem invadido pela vergonha, um desejo de viver honestamente”.[2]

É precisamente este o ponto de vista que contesto. Gostaria de mostrar que, na realidade, a vergonha não tem valor moral, ainda que nela se possa encontrar toda sorte de causas psicológicas ou sociais.

A ideia de que a vergonha não tem valor moral cristalizou-se, por assim dizer, quando li esta passagem de Ricardo III, em que Shakespeare faz o duque de Gloucester (o futuro Ricardo III) dizer: “Eu […] obra da natureza enganadora, disforme, inacabado, lançado antes de tempo para este mundo que respira, quando muito meio feito e de tal modo imperfeito e tão fora de estação que os cães me ladram quando passo, coxeando, perto deles”.[3]

Parecia-me ser, tipicamente, um tipo de situação em que se pode experimentar vergonha (mesmo quando se é um futuro rei). E me perguntava se, em tais condições, a vergonha não era uma pena profundamente injusta infligida a si mesmo. Já não é muito fácil ser feio ou estropiado a ponto de fazer os cães latirem. Por que, além disso, é preciso sofrer vergonha?

Existem certamente causas psicológicas ou sociais que podem explicar por que podemos sentir vergonha quando apresentamos toda sorte de “defeitos” que nos desvalorizam aos olhos dos outros ou de nós mesmos. Mas nenhuma razão moral parece poder justificar tal dor. Como é que o fato de sentir uma dor por “defeitos” que nada têm de imorais poderia ter um valor moral? Trata-se de coisas que não dependem de nós, que não são de nossa responsabilidade.

Há outros casos, porém, em que sentimos vergonha por ações que realizamos, coisas que dependem de nós. Podemos sentir vergonha quando percebemos ter enviado uma mensagem cheia de erros de ortografia; quando nos enganamos numa adição elementar; quando, numa conversa, afirmamos coisas falsas ou estúpidas; quando nos cobrimos de ridículo ao cantar desafinado ou ao dançar desengonçadamente. Aqui também há causas sociológicas ou psicológicas que podem explicar por que nos acontece de sentirmos vergonha.

Mas nenhuma razão moral me parece poder justificar essa pena suplementar. Como é que o fato de sentir dor por coisas que nada têm de imoral (como errar numa conta, cometer erros de ortografia ou cantar desafinado) poderia ter um valor moral?

Trata-se, certamente, de coisas que dependem de nós, que são da nossa responsabilidade, mas que só a nós mesmos dizem respeito e, por fim, não causam nenhum prejuízo aos outros.

Há, portanto, dois casos, pelo menos, em que parece claro que a vergonha não tem valor moral: quando ela está ligada a “defeitos” que não dependem de nós, e quando é relativa a “falhas” que não causam prejuízo aos outros.

Resta, no entanto, um terceiro caso, muito mais complicado do ponto de vista moral.

Ocorre que se sinta vergonha não por defeitos que não dependem de nós, nem por falhas que não causam prejuízo aos outros, mas por ações que dependem de nós e causam prejuízo aos outros. Penso em todas as situações em que alguém se mostra covarde, mesquinho, egoísta, indiferente, cruel, etc.

Nesses casos, parece que a vergonha é uma sanção justa e útil, na medida em que parece reprimir comportamentos injustos; e, também, na medida em que o receio de senti-la poderia, no futuro, evitar tais comportamentos.

De fato, para mostrar — como desejo fazer — que a vergonha não tem valor moral, é sobretudo este último caso que devo atacar.

Tenho de mostrar que, mesmo neste caso, a vergonha não tem valor moral. É o que vou tentar fazer.

Descrição da vergonha

Filósofos gostam muito de falar de coisas gerais. Mas, no domínio moral, nada vale mais, creio, do que um bom exemplo, ainda que seja fictício como o que vou propor.

Para começar, vou contar, então, uma historinha, não só para divertir (de toda maneira, não é muito divertida), mas porque ela poderá, espero, servir-me para explicar de imediato, em algumas frases figuradas, o que quero dizer da vergonha e da culpa.

Aqui vai, portanto, a história.

Por ultrapassar um sinal vermelho, um motorista totalmente bêbado acaba de derrubar um pedestre. A vítima, com ferimentos leves, está caída no chão. Ela geme, pede ajuda. Mas o motorista permanece sentado ao volante. Enfiou a cabeça entre as mãos e não para de repetir: “O que vou dizer à minha mulher e aos meus filhos? O que vão pensar os meus colegas? Que imagem eles vão ter de mim agora? Minha reputação foi para o lixo! Logo eu, que todo mundo considerava sóbrio e prudente! Perdi a honra. Vão zombar de mim! Que vergonha!”.

Decerto, nosso chofer se arrepende. Ele preferiria estar num outro mundo, onde tal acidente jamais tivesse acontecido. No entanto, é mais por sua própria imagem do que pelos danos sofridos pela vítima. Sem dúvida, ele parece completamente dependente da opinião dos outros, mas na medida em que tal opinião se refere a ele.

Teríamos vontade de gritar a esse personagem completamente obsedado por sua “reputação”, sua “honra”, sua “imagem”: “Pare de pensar em você! Faça alguma coisa pela pobre pessoa que você atropelou!”. Mas, como é uma ficção, é inútil tentar.

Alguém poderá observar que esta pequena ficção não é tão fictícia assim e que se parece bastante, infelizmente, com algumas realidades. Mas evidentemente isso não é um defeito. Tentei propor uma descrição da vergonha um pouco caricatural talvez, mas suficientemente em harmonia, espero, com ideias correntes que podemos ter sobre tal sentimento.[4]
Ela mostra que é possível ver a vergonha como um sentimento que tende a inibir a preocupação de, para tentar repará-los, assumir a responsabilidade integral pelos danos que cometemos; um sentimento voltado para si mesmo mais do que para os outros. Aliás, é na relação com os outros que a vergonha se distingue mais claramente da culpa. Na vergonha, antes de tudo estamos preocupados com nós mesmos e nossa imagem, ao passo que na culpa temos primeiramente o cuidado com os outros e com os danos que eles sofreram injustamente.[5]

É uma razão para pensar que a vergonha não tem valor moral e que talvez não seja uma virtude, nem sequer uma meia-virtude.

Esta ideia bate de frente com a opinião de numerosos filósofos contem­porâneos que tendem, bem mais, a dar um grande valor moral à vergonha. Segundo eles, a vergonha seria uma emoção autoprotetora, uma garantia de nossa integridade.[6] Eles consideram que, se perdêssemos o sentido da vergonha — entre outros, com relação à nudez corporal ou à atividade sexual—, nossa própria humanidade é que estaria ameaçada.[7]

Num espírito um pouco mais político do que moral, alguns filósofos têm sustentado que o “declínio da vergonha”, verificado, segundo eles, nas sociedades ditas “modernas” ou “ocidentais”, é uma ameaça para a democracia, pois a vergonha, dizem eles, está na origem do controle de si, necessário a essa forma de governo.[8]

Todas essas ideias, mais ou menos bem argumentadas, exprimem finalmente o mesmo preconceito favorável para com a vergonha: tratar-se-ia de um sentimento com evidente valor político e moral.[9]

Ao afirmar, como faço, que a vergonha não tem valor moral e que ela não pode ser nem uma virtude nem uma meia-virtude, é este conjunto de ideias que contesto. Mas tal afirmação só tem valor, entretanto, se aceitarmos algumas ideias gerais tiradas das modernas teorias das virtudes e das emoções, assim como de minha maneira pessoal de conceber a ética. É disso tudo que vou falar.

Vou começar tentando esclarecer a ideia de virtude, depois a de moralidade. Poderia, então, voltar à minha tese, dizendo que a vergonha não tem valor moral e que não pode ser nem uma virtude nem uma meia-virtude.

O que é uma virtude?

Na filosofia moral, criamos o hábito de distinguir três grandes concepções de conjunto: a deontologia, o consequencialismo e, o que nos interessa mais especialmente, a “ética das virtudes”.[10]

Um bom meio de mostrar claramente o que as distingue é, acredito, evidenciar aquilo que, para cada uma dessas concepções, é a questão moral por excelência, a questão moral principal.

Comecemos pela deontologia, provavelmente a mais popular na filosofia moral de hoje.

“Deontologia” vem do grego deontos, que significa “deveres” ou o que é requisitado (officia, em latim), e, para o deontologista, a questão moral principal é: “Que devo fazer?” Em resposta a essa pergunta, ele nos prescreve respeitar pessoalmente certas regras gerais de ação, como cumprir promessas, não mentir, não matar, mesmo sendo em detrimento de nossos desejos ou de nossos interesses materiais, e quaisquer que sejam as consequências para o estado do mundo, considerado em geral.

“Consequencialismo” vem, é claro, de “consequências”. Para o consequencialista, a questão moral principal é: “Qual o melhor estado do mundo, em geral?”. Mais concretamente: “Como agir para a promoção do maior bem possível para o maior número?”. Se, não respeitando pessoalmente as regras de ação que os deontologistas prescrevem, como cumprir as promessas, não mentir, não matar, se consegue que, no total, haja mais bem, ou menos mal, no mundo, então é justo não respeitá-las. Pode ser que, por exemplo, em certos casos, mentir permita que haja menos mentiras no total, que o exercício da violência em certos casos permita que haja menos violência no total. O que conta para o consequencialista, do ponto de vista moral, é que o mundo melhore no total (ou em geral), e não o respeito pela “pureza moral” de cada um de nós em particular.

E a ética das virtudes agora? Bem, ela tira seu nome de uma qualidade, a virtude (do latim virtus), que, na história da filosofia moral, tem nos preocupado muito e que sempre temos tanta dificuldade em definir! Para aqueles que defendem hoje em dia uma ética das virtudes, a questão moral não é “Que devo fazer pessoalmente?”, como o deontologista; ou “Qual é o melhor estado do mundo?”, como o consequencialista; mas “Que tipo de pessoa devo ser?”, e, mais precisamente, “Que tipo de caráter é bom ter?”. Nesse contexto, ser virtuoso não é nada mais do que ter um “caráter” moralmente admirável.

Mas o que é um “caráter”?

Segundo uma tradição que se pode remontar a Aristóteles, um “caráter” é certa maneira de sentir e de agir, adquirida pela educação, estável no tempo, e invariante de uma situação para outra. Quando se diz que alguém é “generoso”, “honesto”, “forte, “decidido”, “corajoso” ou “mesquinho’, “invejoso”, “desleal”, “fraco”, “perverso”, “vicioso”, têm-se no espírito, ao que parece, ideias desse tipo.[11]

O “caráter”, supostamente de maneira econômica, também explica e prediz condutas. É um instrumento bem conhecido da psicologia comum. Os exemplos abundam: “Ele provavelmente vai tentar reaver as joias que deu de presente porque é mesquinho”; “Ele devolveu a carteira cheia de dinheiro porque é honesto” etc.

Mas alguns psicólogos profissionais, ditos “situacionistas”, contestam a existência de tais disposições estáveis no tempo e invariantes de uma situação para outra, apoiando-se em estudos empíricos. Segundo eles, ninguém é sistematicamente “generoso”; “cruel” ou “mesquinho” invariavelmente, em todos os momentos da vida, quaisquer que sejam as situações ou as pessoas implicadas.[12]

A ideia de que haveria tal constância do “caráter” não teria mais valor do que os preconceitos racistas ou sexistas que atribuem, a certas pessoas, atitudes ou comportamentos típicos, como a preguiça, a avareza, a hipocrisia ou a superficialidade.

Por outro lado, na explicação da ação, o valor do “caráter” é fraco ou secundário, para não dizer nulo. Se quebro a louça de minha avó na cabeça de minha sogra e, ao me perguntarem por quê, respondo: “É porque estou com raiva”, quem levará a sério essa explicação?

Serão sempre preferidas — acredito, e é muito natural — explicações por motivos (“Eu queria me livrar de minha sogra para minha mulher receber a herança”) ou por crenças, preferências, episódios emocionais (“Ela me humilhou diante da filha, dizendo que a filha poderia ter encontrado um marido mais rico e mais bonito”, etc.) ou mesmo traumas passados (“Ela me lembra minha avó, que eu detesto” etc.).

Será preciso desistir das noções de “caráter” ou de “personalidade” em ra­zão dessas dificuldades? É o que pensam certos filósofos que, neste ponto, con­sideram seguir os psicólogos empíricos.[13]

Provavelmente também foi para evitar tais dificuldades que, há uns vinte anos, se desenvolveu uma nova ética das virtudes. É uma concepção que renuncia à ideia de que uma virtude seria um traço constante de caráter, invariável de uma situação para outra. Essa nova ética prefere falar, mais modestamente, da virtude como sensibilidade moral, uma sensibilidade que se exprimiria em certas reações emocionais complexas, como a piedade ou a compaixão, o desprezo, a indignação, a vergonha ou o orgulho.[14]

Alguém seria virtuoso se experimentasse as emoções que, numa determinada situação, convém sentir: por exemplo, compaixão pelas vítimas, indignação diante da injustiça. Por oposição, seria vicioso se, em tais situações, não as experimentasse. O vicioso seria aquele que, por exemplo, nunca sente compaixão por suas vítimas, nem indignação diante da injustiça, ou aquele que experimenta alegria diante da infelicidade dos outros.
O que esta teoria moderna da sensibilidade moral tem em comum com a antiga teoria das virtudes é sustentar que o juízo ou o comportamento moral não é uma questão de teoria, de regras, de princípios gerais, mas sim de compreensão imediata, não conceitual, daquilo que é bem ou mal; ou daquilo que é preciso fazer, ou não fazer, numa situação particular.

E se as emoções têm um lugar tão importante nesta nova ética das virtudes é por todas elas terem as propriedades necessárias para ser esses meios de compreensão imediata do que é bem ou mal, e do que é preciso fazer e não fazer.

Mas atenção: dizer que as emoções nos dão uma espécie de acesso imediato, não conceitual, ao que é preciso fazer não significa que elas não tenham ne­nhum conteúdo cognitivo ou que sejam sempre irracionais!

A maioria dos filósofos que se interessam por emoções como a cólera ou a vergonha distingue entre tais emoções e sensações como as de dor ou de prazer físico, por duas razões:

  1. elas podem ser causadas por ideias, imagens, percepções mentais — o que lhes dá um caráter “cognitivo”;
  2. não é absurdo perguntar-se se elas são “racionais”, qualquer que seja o sentido dado a esse termo.

Quando alguém lhe dá um soco no estômago e você sente muita dor, o que desencadeia seu sofrimento não é a ideia de que lhe deram um soco, mas o fato de terem lhe dado o soco. É absurdo se perguntar se é racional ou irracional sentir muita dor no estômago quando lhe dão um soco. Aí não se coloca a questão da racionalidade das sensações. Mas, se você se sente ofendido porque zombaram do seu corte de cabelo e se isso o deixa furioso, é evidentemente a ideia (a crença, o pensamento) de que zombaram de seu corte de cabelo que desencadeia sua raiva, e não uma causa física como um soco. Por outro lado, é possível perguntar-se, neste sentido, se essa raiva que foi desencadeada por uma gozação sobre seu corte de cabelo não era desproporcional, inadequada e “irracional”, principalmente se, sob o efeito dessa raiva, você estrangula a pessoa que zombou.

Em suma, embora não se coloque a questão de saber se nossas reações sensoriais são racionais, coloca-se a de saber se nossas reações emocionais são racionais.[15]
Precisemos, sem entrar em detalhes, que não é a mesma coisa perguntar-se se uma reação emocional é racional e se é possível controlá-la. Algumas reações emocionais descontroladas são racionais, no sentido de que são proporcionais, apropriadas. Pense no medo que se tem de um urso que corre atrás da gente. Outras reações emocionais descontroladas são irracionais, no sentido de que são desproporcionais, inadequadas. Pense no medo que alguém tem de pequenas aranhas inofensivas.

Mas, pelo fato de poderem as emoções ser avaliadas como racionais ou irracionais, e o que as desencadeia poder ser algo que se passa “dentro da cabeça” (crenças, percepções, imagens, lembranças, etc.), algo de “cognitivo” por oposição a “afetivo”, não se trata necessariamente de um pensamento conceitual muito elaborado. Se fosse o caso, as criancinhas seriam incapazes de sentir emoções complexas como a vergonha ou a raiva, quando de fato elas são muito suscetíveis de experimentá-las.

É por isso, finalmente, que os filósofos que se interessam pelas emoções como a raiva ou a vergonha consideram que, para senti-las, não é necessário ter pensamentos conceituais muito elaborados. Qualquer imagem mental que contém um elemento cognitivo, informativo, ainda que elementar, poderia bastar para desencadeá-las e estruturá-las.

Essas emoções se caracterizariam também por tendências de ações, estados afetivos, fisiológicos, expressões faciais típicas. Quando estamos com raiva, o rosto e o corpo manifestam toda sorte de modificações físicas. Também sentimos certos afetos de prazer ou de dor e podemos identificar tendências características à ação.

Podemos, por exemplo, tender a querer nos vingar daquele por quem fomos humilhados ou insultados. Mesma coisa para a vergonha. O rosto e o corpo manifestam toda sorte de modificações físicas. A pessoa fica corada, empalidece, baixa a cabeça, esconde a cabeça entre as mãos. Experimenta dolorosas sensações de vertigem ou de sufocação. Tem tendências características à ação, como o desejo de se esconder, de desaparecer, de suicidar-se e, no pior dos casos, a vontade de matar todas as testemunhas de sua vergonha![16]

Esse tipo de concepção das emoções, atenta a seus aspectos cognitivos mas também afetivos, fisiológicos e comportamentais, que rejeita o conceitualismo mas reconhece a possibilidade de uma avaliação racional, é uma das mais bem aceitas hoje em dia.[17] Mas, ao fim e ao cabo, tal concepção não se distancia tanto assim do que propunha Aristóteles.[18]

Por outro lado, dando um lugar central às emoções compreendidas, desse modo, na moral, a nova ética das virtudes permanece no espírito da antiga, já que rejeita a ideia de que o juízo ou o comportamento moral seria apenas uma questão intelectual de teoria, de regras, de princípios gerais.

O que é uma avaliação moral?

Posso agora passar ao problema da avaliação moral.

Sobre o que ela pode incidir, razoavelmente? Não sobre nossos sonhos, é claro, nem sobre os produtos de nossa imaginação ou nossos pensamentos fugazes. Podemos, é claro, sonhar em sermos imorais. Mas não é imoral ter tido esse sonho, pois não parece poder ser julgado “imoral” o que nos vem ao espírito de maneira involuntária.

Na realidade, existem razões para se pensar que uma avaliação moral só pode incidir razoavelmente sobre coisas que podemos ou não podemos fazer, ações. Mas que tipo de ação? As ações dirigidas para si mesmo como o suicídio ou dirigida para os outros como o homicídio? Depende das teorias morais. Naquela que eu defendo e que chamo de ética mínima, o único objeto razoável do juízo moral são nossas ações dirigidas para outrem, aquilo que fazemos aos outros.

Nossas ações dirigidas para nós mesmos, o que fazemos a nós mesmos, não têm nenhuma importância moral. O que justifica este ponto de vista?

As condutas que deliberadamente visam causar danos a outrem são geralmente consideradas “imorais”, e não parece impossível sustentar que toda a ética poderia se resumir à única preocupação de não causar dano a outrem, sendo o resto inútil moralismo (é o que tendo a pensar!).[19]

Mas tais condutas não são as únicas a serem julgadas assim. Pense na utilização da bandeira nacional para a limpeza dos banheiros, na sodomia entre pessoas que consentem, no suicídio, na toxicomania, na indiferença total para com seus próprios talentos intelectuais, esportivos ou musicais e, para aqueles que têm opiniões médicas pessimistas sobre a questão, na masturbação. Você sempre encontrará pessoas que julgam “imorais” tais condutas. Para elas, nós temos deveres morais não somente para com os outros. Temos também deveres morais para com nós mesmos, como o dever de não cometer suicídio, o dever de não deixar os talentos abandonados, isto é, o dever, se somos um pequeno Mozart ou um pequeno Zidane, de praticar o piano ou o futebol em vez de passar os dias jogando videogame.

Em L’éthique aujourd’hui, propus chamar de “minimalistas” aqueles que endossam o primeiro ponto de vista (só as condutas que visam causar deliberadamente danos aos outros podem ser chamadas de “imorais”) e “maximalistas” os segundos (toda sorte de ações, mesmo as que dizem respeito só a nós mesmos, a coisas abstratas ou a parceiros que consentem, pode ser chamada de “imoral”).[20] E propus um conjunto de razões para ser minimalista.

O que me persuadiu a ir neste sentido é o que se pode chamar de “o fato da assimetria moral”. Pense em Van Gogh. Creio que todo mundo tenderá a julgar que, se Van Gogh tivesse arrancado gratuitamente a orelha de um passante em vez de cortar a sua, teria havido alguma diferença moral. À primeira vista,cortar a própria orelha não tem a mesma importância moral que a agressão gratuita ao passante. Podemos até chegar a dizer que tal fato não tem nenhuma importância moral.

Pessoalmente, eu quis justificar essa assimetria contestando a noção de de­ver moral para consigo mesmo inspirada em Kant.[21]

Considero que temos deveres morais para com os outros, como consequências de promessas, contratos, e para respeitar liberdades ou direitos fundamentais. Mas me parece absurdo pensar que poderíamos firmar contratos com nós mesmos, pois eles seriam contraditórios (seríamos, ao mesmo tempo, obrigados por estes contratos e livres para anulá-los). Seria também absurdo supor que a injunção de respeitar nossos direitos fundamentais (liberdade de circular ou de exprimir nossas opiniões, de não ser objeto de processos arbitrários, etc.) poderia se dirigir a nós mesmos tanto quanto aos outros.

De modo mais geral, na minha opinião, tudo o que diz respeito à relação consigo mesmo não tem importância moral (o que não exclui sua importância sob outros pontos de vista — estético ou médico, por exemplo).

É a partir desta concepção minimalista que vou me interrogar sobre o valor moral da vergonha.[22] E é aí que a pequena história fictícia que contei no início vai assumir toda a sua importância!

Identificação da vergonha

O que caracteriza, de início, a vergonha é que, mais do que aos outros, ela se dirige à própria pessoa. Desse ponto de vista, ela se parece com a vaidade, o orgulho ou a presunção, que são também dirigidos a si mesmo, e se distingue da inveja e do ciúme, que se dirigem aos outros.

Se você não estiver convencido do valor do critério, faça-se a seguinte pergunta: Será que eu poderia ter ciúme ou inveja de mim mesmo? Se você responder “sim”, é porque provavelmente não domina os conceitos de inveja ou de ciúme.[23] De fato, ninguém pode realmente ter ciúme ou inveja de si mesmo, mas cada um de nós pode ter vergonha ou orgulho de si mesmo.

Entretanto, se a vergonha se assemelha à vaidade, ao orgulho e à presunção pelo fato de ser uma relação consigo mais do que com os outros, entre esses dois tipos de emoções existe uma importante diferença.

A presunção, o orgulho ou a vaidade exprimem uma certa satisfação para consigo mesmo, ao passo que a vergonha exprime bem mais a decepção ou a insatisfação para consigo mesmo.

Assim, segundo o critério da relação consigo, a vergonha pertence ao mesmo conjunto que a vaidade, o orgulho ou a presunção. Mas, segundo o critério da satisfação, tais emoções pertencem a conjuntos diferentes: a vaidade, o orgulho e a presunção são emoções positivas, enquanto a vergonha é uma emoção negativa.

Por outro lado, a vergonha é uma emoção que pertence a uma grande família, cujos membros mais conhecidos são, além da própria vergonha, o arre­pendimento, o constrangimento, a culpa e o remorso. Todos esses afetos têm a propriedade de ser contrafactuais. O que quero dizer com isso é que a vergonha, o remorso, o arrependimento e a culpa são afetos que exprimem, em graus diversos, uma preferência em favor de um mundo onde teríamos sido diferentes do que somos, um mundo onde teríamos feito outras escolhas, um mundo onde teríamos agido de outro modo, um mundo onde o que aconteceu não teria ocorrido, e assim por diante.

No total, a vergonha apresenta pelo menos três traços importantes. Ela é:

  1. dirigida a si mesmo,
  2. negativa,
  3. contrafactual.

Levemos a análise mais adiante. Na filosofia das emoções, adquirimos o hábito de dizer que cada emoção apresenta:

  1. antecedentes mentais típicos (a ideia de que fomos ofendidos, no caso da raiva; a ideia de que somos bonitos ou geniais, no caso da presunção )
  2. um certo estado afetivo típico (desprazer, no caso do desagrado; prazer, no caso da presunção,);
  3. tendências típicas à ação (desejo de vingar-se, para a raiva; fuga, paralisia ou agressão, para o medo; tendência à exibição, para a presunção, etc.).[24]

Quando se tenta calcular o valor moral de uma emoção na perspectiva minimalista que adotei, o que conta é a relação com os outros que ela é suscetível de induzir. Deste ponto de vista, o critério mais decisivo é o terceiro, o das tendências típicas à ação. Para evidenciá-las, vou me servir de outra historinha, tirada de uma experiência psicológica bem conhecida pelos especialistas.[25]
Apesar do fato de seu dispositivo se assemelhar a uma brincadeira de mau gosto, deste ponto de vista é bastante instrutiva uma experiência realizada com criancinhas. Entrega-se a uma criancinha um brinquedo construído de tal maneira que se quebrará nas primeiras manipulações. Todas as crianças quebram seu brinquedo, é claro. Mas, enquanto algumas tentam consertá-lo e alertam o pesquisador, outras o escondem e esforçam-se por evitar o pesquisador. Segundo os autores, o estudo permite distinguir duas famílias de compor­tamentos diferentes. O termo “culpa” convém à família dos “consertadores”; e “vergonha” à família dos “evitadores”.

Sirvo-me deste contraste para me permitir afirmar que o que caracteriza a vergonha é a ausência de reconhecimento pleno da responsabilidade e a correlata ausência de vontade de consertar ou de se corrigir. Quanto a este último ponto, estou em desacordo com certo número de filósofos, para quem a vergo­nha implica uma vontade de melhorar enquanto pessoa.[26]

Mas o que é que me autoriza a dizer que a vergonha exprime uma atitude contraditória para com a responsabilidade e em nada implica a vontade de se corrigir ou de consertar? O que aconteceria se um outro filósofo ou um psicólogo me dissesse: “Você está enganado, a vergonha está ligada ao reconhecimento pleno e íntimo de suas faltas” ou “Você está enganado, a vergonha implica a vontade de se corrigir ou de consertar”?

Que tipo de fatos permitiria decidir? Uma sondagem de opinião, que nos diga quais são as atitudes ou os comportamentos que entrevistados com idade de falar associam com mais frequência ao termo “vergonha”?

Mas o problema não é recensear as concepções da vergonha ou privilegiar aquela que recolhe o assentimento do maior número de pessoas: é escolher a menos confusa ou a menos incoerente.

Na realidade, a questão de saber se uma concepção da vergonha é mais, ou menos, apropriada do que outra se resolve por uma espécie de inquérito conceitual. Mas o que significa “inquérito conceitual”? O inquérito concei-tual não se limita à consulta dos dicionários. As definições da vergonha são bastante confusas: o inquérito conceitual visa precisamente esclarecê-las. Se você consultar o dicionário, corre o risco de encontrar definições deste tipo: “a vergonha é o sentimento que se deve experimentar quando se faz coisas vergonhosas”. E, se você for ver o que significa “vergonhoso”, encontrará: “o que deveria provocar a vergonha”. Não se pode dizer que esse tipo de definição nos faça avançar muito!

Para um termo como “vergonha”, existem, é claro, alguns elementos de definição aparentemente “essenciais”. Ninguém negará, creio eu, que, por oposição ao ódio, que é uma relação com outrem, a vergonha é uma relação consigo mesmo. Ou que, por oposição à presunção, que é uma relação positiva consigo mesmo, a vergonha é uma relação negativa consigo mesmo. Mas todo o resto é sujeito à controvérsia.[27]

Eis alguns exemplos de questões que permanecem em suspenso:

  1. Quais são as causas típicas da vergonha? Será o sentimento de não se estar à altura de suas pretensões pessoais? O sentimento de ser objeto de indiferença? O sentimento de ser objeto de sarcasmos e desprezo? O sentimento de ser objeto de desagrado? Tudo isso conforme os casos e as espécies de vergonha?
  2. Qual é a natureza desta “relação consigo mesmo” que supostamente caracteriza a vergonha? Ela incide sobre nossas ações? Incide sobre o tipo de pessoa que nós somos? Se nos ocorre ter vergonha ora de nossas ações, ora do que somos, trata-se da mesma vergonha nos dois casos?
  3. Qual é a natureza das relações entre vergonha e autoestima? É necessário ter uma alta opinião de si mesmo para ter vergonha? Uma opinião média já basta?
  4. É preciso ser visto para ter vergonha? Visto por quem? Por espectadores hostis? Por espectadores reais, hostis ou não? Basta ser visto por espectadores imaginados ou somente representados? Trata-se, em cada caso, da mesma vergonha?
  5. Se alguém está pessoalmente persuadido de que não há nada de mau no fato de abrir a correspondência dos amigos ou espiar pelo buraco da fechadura, será possível, mesmo assim, ter vergonha se for apanhado agindo desse modo? Em que medida é preciso aderir às normas que definem o que é “vergonhoso” para se ter vergonha? Não basta que saibamos que os outros julgam que tais ações são indignas para que sintamos vergonha?
  6. Como fazemos para distinguir a vergonha das emoções aparentadas: arrependimento, constrangimento, culpa, remorso? Trata-se de emoções da mesma natureza? A vergonha não é mais “primitiva”?

Finalmente, a vergonha é um fenômeno tão unitário assim? Não é enganoso colocar sob o mesmo rótulo coisas tão diferentes?

Para responder a tais questões, o inquérito conceitual dispõe de vários instrumentos: a análise linguística, o estudo de casos não controversos e o exame lógico das teorias psicológicas ou antropológicas. Mas cada um tem seus limites? Por quê?

Tomemos o caso da análise linguística. Ela consiste, grosso modo, em utilizar as intuições linguísticas do filósofo e de seus leitores a propósito “do que se diz” para estabelecer toda sorte de contrastes entre a vergonha e outros termos pertencentes à mesma família. Assim, diz-se: “Tenho vergonha de ser velho”, mas não: “Tenho culpa de ser velho”, “Tenho vergonha de ter orelhas grandes”, mas não: “Tenho culpa de ter orelhas grandes”. Tudo bem. Mas que conclusões conceituais podemos tirar desses fatos linguísticos?

Ficamos tentados, evidentemente, a concluir que podemos ter vergonha do que não depende de nós, ao passo que não podemos ter culpa do que não depende de nós. Mas seria um erro. Primeiro, é falso que, em todos os casos típicos, a culpa seja relativa ao que fazemos ou ao que depende de nós. Alguém pode se sentir culpado por ter sobrevivido à morte acidental dos filhos (não se diria, acredito, que a pessoa tem vergonha de ter sobrevivido).
Alguém pode sentir-se culpado por ter nascido rico e bonito quando há tanta miséria e feiura no mundo (mesmo que seja uma culpa à qual facilmente alguém se habitua). Pode sentir-se culpado por pertencer a um povo que cometeu muitos crimes (um caso no qual, além disso, pode ter-se vergonha, o que não resolve nada). Pode sentir-se culpado simplesmente por existir. Em todos esses casos, a pessoa se sente culpada, mas pessoalmente ela nada fez de mau. Não é na qualidade de autor de uma ação defeituosa que alguém experimenta este sentimento negativo. E não se trata de casos marginais, desviantes, não típicos. Tudo o que se pode encontrar de comum nestes casos é que a dor daquele que se sente culpado é dirigida para os outros. É provocada pelos sofrimentos injustos deles.

Em seguida, é falso que, em todos os casos, a vergonha incida sobre o que somos e não sobre o que fazemos. Ocorre-nos ter vergonha por toda sorte de ações mesquinhas ou covardes, pequenas mentiras ou trapaças. Podemos ter vergonha de ter guardado o maior pedaço do bolo para nós mesmos, de ter zombado de um deficiente físico sem ele saber, depois de tê-lo reconfortado em público, ou de nos gabarmos de ser um helenista quando mal conseguimos traduzir uma frase grega elementar. Em nenhum desses casos teremos tendência, parece, a dizer que nos sentimos “culpados”. Mas será que, em todos esses casos, pensamos necessariamente que somos mesquinhos, covardes, gabolas, trapaceiros, como se isso se tratasse de um “caráter” constante, invariável de uma situação para outra?

Não podemos ter vergonha do que fizemos como uma espécie de episódio pontual sem tirar conclusões gerais a propósito de nosso “caráter”? Nada o interdiz à primeira vista. Na realidade, os fatos linguísticos dão indicações diversas e, às vezes, contraditórias. Eles em nada nos obrigam, por si mesmos, a endossar tal ou qual concepção da vergonha ou, mais exatamente, tal ou qual concepção daquilo que distingue a vergonha da culpa, do arrependimento, do constrangimento, do remorso, etc.

Um outro método é o dos casos significativos. A literatura está cheia deles. Entretanto, os filósofos, que provavelmente são pessoas muito ocupadas, não consagram demasiado tempo a examiná-los. No que diz respeito à vergonha, eles se contentam, geralmente, em discutir dois casos, sempre os mesmos.
O primeiro é o do “modelo ingênuo”, apresentado por Max Scheler. Uma jovem posa nua para um pintor sem sentir minimamente constrangida. Mas, diz Scheler, ela sente vergonha quando percebe que o pintor olha para ela não como um verdadeiro modelo mas antes “como uma mulher”. Todo mundo compreende, acredito, o que ele quis dizer tão pudicamente.[28]
O segundo foi proposto por Sartre. Trata-se, parece, de alguém que se deixa apanhar enquanto espia pelo buraco da fechadura. Na linguagem de Sartre, tem-se esta descrição que — é o mínimo que se pode dizer — não simplifica as coisas: “Acabo de fazer um gesto inábil ou vulgar: esse gesto se cola em mim, eu não o julgo nem o censuro, eu simplesmente o vivo no modo do para-si. Mas eis que, de repente, levanto a cabeça; alguém está ali e me viu. Percebo de repente a vulgaridade do meu gesto e tenho vergonha”.[29]

Aqui de novo a questão é saber que conclusões seria preciso tirar destes casos. Que o simples fato de ser visto é uma condição necessária e suficiente da vergonha? Ou, antes, que o fato de ser visto de uma certa maneira (qual?) por certas pessoas (quem?) quando se fez certas coisas (quais?), quando se tem este ou aquele caráter (qual?), é um conjunto de condições conjuntamente necessárias para a vergonha?

Por outro lado, há toda sorte de casos em que temos vergonha de ser vistos. Relendo meu texto, posso ter vergonha de ter me contradito grosseiramente ou de ter cometido um erro de ortografia ridículo. Será que, nestes casos, imagino um público sarcástico ou depreciador? Será que tenho de, pelo menos, ver-me a mim mesmo como se fosse meu próprio juiz? Será necessário, para sentir vergonha, que eu seja visto por um público real ou imaginário, neutro ou hos­til ou, ao menos, por um eu dividido, tendo tomado distância em relação a mim mesmo? Trata-se da mesma vergonha em todos os casos? Como decidir?

O terceiro método é a crítica da lógica das teorias.

Tomemos a concepção que diz que a vergonha está ligada à ideia de que não estamos “à altura” de nossos projetos pessoais de vida. É um critério central, por exemplo, na teoria de John Rawls.[30] Podemos mostrar que, em nossa formulação, ele não funciona muito bem, pois exclui a

possibilidade de uma criança de menos de 10 anos poder ter vergonha, e uma criança desta idade que tivesse projetos de vida pessoais seria um tanto precoce, para dizer o mínimo. Mas as criancinhas são precisamente as mais suscetíveis de experimentar tal sentimento.

Tomemos agora a tese mais frágil, que diz que a vergonha está ligada à ideia de que não estamos “à altura” de nossas pretensões pessoais. Essa exclui a possibilidade de que pessoas pouco ambiciosas, preocupadas com a conformidade social, desejosas antes de tudo de “não se fazer notar” ou de “ficar em seu canto” possam ter vergonha, quando tais pessoas estão entre os melhores candidatos a experimentar tal sentimento.

Ademais, a tradição antropológica nunca associou a vergonha ao sentimento de não ter estado à altura das pretensões individuais, mas ao sentimento de não “ter mantido sua categoria” social. Durante muito tempo ela sustentou que a vergonha, no sentido estrito, somente existia nas sociedades em que a ideia de honra era uma verdadeira obsessão, ou seja, nas sociedades de tipo “aristocrático” ou “tradicionalista”.[31] No total, a concepção que diz que a vergonha é necessariamente ou exclusivamente ligada ao fracaso dos projetos pes­soais ou das pretensões individuais pode ser rejeitada.

O que podemos colher de todas essas discussões é que a vergonha é um afeto negativo, dirigido a si mesmo e ligado a ideias contrafactuais. Mas não se pode concluir, daí, que a vergonha incida necessária ou exclusivamente sobre o que somos, e jamais sobre o que fazemos; que ela seja necessária ou exclusivamente ligada ao sentimento do fracasso pessoal; que ela se prenda necessária ou exclusivamente ao fato de sermos vistos; que ela incida necessária ou exclusivamente sobre nossos defeitos e jamais sobre nossas faltas em relação aos outros.

O que me interessa, aliás, na perspectiva moral que adotei, é precisamente o tipo de relação com os outros que tipicamente a vergonha parece induzir. É neste ponto que vou insistir para terminar.

Conclusão

Comecei dizendo que todo mundo, ou quase, podia concordar com a ideia de que a vergonha não tinha valor moral quando sancionava estados de coisas ou ações que nada têm de imoral. Pensava em estados de coisas que não dependem de nós, como ser baixo ou alto demais, muito peludo ou liso demais, ter pais pobres ou alcoólicos.

Acrescentei que todo mundo, ou quase, podia concordar com a ideia de que a vergonha não tinha valor moral ao sancionar ações que não causam dano aos outros, como cometer erros de ortografia ou cobrir-se de ridículo ao cantar desafinado ou ao dançar desengonçado.

Mas isso não podia bastar para provar, como eu desejava, que a vergonha não tem valor moral, pois há casos em que sentimos vergonha não por defeitos que não dependem de nós ou ações que dependem de nós mas que não causam dano a ninguém, mas por ações que dependem de nós e causam dano aos outros, como quando nos mostramos covardes, mesquinhos, egoístas, indiferentes, cruéis, etc.

Nesses casos, parece que a vergonha é uma sanção justa e útil, na medida em que parece reprimir comportamentos injustos e também na medida em que o receio de senti-la poderia evitar tais comportamentos no futuro. De fato, o que eu devia mostrar é que, mesmo nesses casos, a vergonha não tinha valor moral. Foi o que tentei fazer ao insistir no tipo de conduta, feita de evitamento ou de fuga, que a vergonha tipicamente induz. Mas parece que agora eu poderia ir mais longe.

Sem dúvida existe, hoje em dia, uma tendência a devolver um lugar à vergonha na educação das crianças e na “reeducação” dos adultos. Em várias localidades americanas, punem-se os deliquentes colocando-os em posição de serem publicamente cobertos de vergonha, como na Idade Média, quando se colocavam os criminosos no pelourinho.[32] Assim, há juízes que obrigam as pessoas que cometem excesso de velocidade a carregar em si ou em seus veícu­los inscrições do tipo: “Sou um motorista perigoso e irresponsável”.

Esses projetos são socialmente retrógrados, mas também moralmente duvidosos.

Suponhamos que o juiz consiga, de fato, induzir vergonha, o que não é evidente, pois, assim como não se pode forçar alguém a sentir amor, não se pode forçar a sentir sinceramente vergonha. O que ele terá obtido em definitivo? Que uma pessoa experimente um sentimento cujo valor moral é duvidoso em razão dos comportamentos de fuga ou de evitamento que ele induz? Qual seria o benefício?

Mas pode ser que o objetivo do juiz não seja punir o delinquente ao provocar nele um sofrimento emocional, mas induzir o temor de sentir vergonha em caso de recaída. O raciocínio é o seguinte. Dado que a vergonha é um sentimento doloroso, que às vezes pode ser intenso a ponto de provocar o suicídio, haverá tendência a querer evitá-lo. E, se o melhor meio de evitar a vergonha é se comportar de maneira que não seja levado a senti-la, aquele que quer realmente evitá-la vai comportar-se corretamente.

É uma visão ingênua do comportamento humano, como têm mostrado certos estudos sobre os trapaceiros profissionais.[33] Segundo tais estudos, o risco de sentir uma vergonha intensa não entra no cálculo custo-benefício daqueles que se dispõem a violar leis sancionadas. Em seu cálculo, um futuro trapaceiro inclui o fato de que ele corre o risco de ser barrado nas salas de jogo provisória ou definitivamente, de pagar multas, de ser jogado na cadeia. Mas parece que não inclui a vergonha que ele corre o risco de sentir, mesmo sabendo que ela poderia ser intensa.

Se tais pesquisas merecessem crédito, delas seria preciso concluir que o temor de ter vergonha é uma explicação duvidosa da tendência a se conformar com as regras da vida social ou moral. A vergonha seria superestimada após a ação, mas também subestimada antes da ação.

No total, é preferível evitar dar à vergonha um valor moral que ela não pode ter quando sanciona estados de coisas ou ações que não têm valor moral, por tratar-se ou de estados de coisas que não dependem de nós ou, então, de ações que não causam prejuízo aos outros.

Mas eu acrescentaria, e é minha ideia principal, que a vergonha tampouco pode ter valor moral quando sanciona prejuízos causados aos outros. Ela induz comportamentos de evitamento ou de fuga que nada têm de especialmente moral e não é uma boa candidata ao título de dor que receamos sentir.

Para terminar, uma pequena nota pessimista, como é dever na filosofia moral. Aceitar meu ponto de vista não moralista sobre a vergonha não impedirá evidentemente que você sinta vergonha. Todo o tempo que passei constituindo esse dossiê filosófico com vistas a mostrar que a vergonha não tinha valor moral não desmontou, de modo algum, minhas grandes capacidades de sentir vergonha por qualquer razão. Tenho quase certeza de que, quando voltar para casa, terei vergonha de ter-me alongado demais, de não ter sido claro o bas­tante ou, pior ainda, de ter apresentado argumentos defeituosos, ainda que eu acredite que este sentimento não tem nenhum valor moral.

*Tradução de Marcos Bagno.

Notas

[1] Allan Gibbard, Sagesse des choix, justesse des sentiments: une théorie du jugement normatif (1990), trad. Sandra Laugier (Paris: PUF, 1996).

[2] Baruch Spinoza, Éthique, IV, prop. LVIII, escólio, trad. Ch. Appuhn (Paris: Garnier/Flammarion, 1965).

[3] William Shakespeare, Ricardo III, ato I, cena I. Acessível em http://www.dominiopublico.gov.br/ download/texto/cv000097.pdf.

[4] Esta descrição poderia, por exemplo, ser confirmada por pesquisas empíricas feitas a partir de relatos pessoais sistematicamente coletados e analisados, que insistem no fato de que a vergonha é uma rela­ção consigo mesmo por oposição à culpa, que é uma relação com os outros. Roy F. Baumeister; Arlene M. Stillwell; Todd F. Heatheton, “Interpersonal Aspects of Guilt: Evidence from Narrative Studies”, em June Prince Tangney & Kurt W. Fischer (orgs.), Self-Conscious emotions (Nova York: The Guilford Press, 1995), pp. 255-273.

[5] Ibidem.

[6] Aaron Ben Ze’ev, The Subtelty of Emotions (Cambridge: MIT Press, 2000); Gabriele Taylor, Pride, Shame and Guilt (Oxford: Clarendon Press, 1985), pp. 53-54.

[7] H. Lowenfeld, “Notes on Shamelessness”, em The Psycho-Analytical Quarterly, n2 45, pp. 62-72, Nova York, 1976.

[8] Fred Berger, “Pornography, Sex, and Censorship”, em Social Theory and Practice, 4 (2), Tallahassee, 1977.

[9] Ocorre que alguns destes “amigos da vergonha” apelem a Aristóteles. No entanto, Aristóteles não era muito entusiasta em relação a este sentimento. Segundo ele, durante a juventude a vergonha pode ser útil como um meio de aprendizagem. Todavia, o resultado de uma educação moral exitosa não é fazer o mal e depois ter vergonha, mas simplesmente não fazer o mal (Ética a Nicômaco, 1128 b 10-33). Por outro lado, o temor da vergonha pode nos ajudar a adquirir a virtude da coragem, por exemplo, mas não é, por isso, uma virtude particular ou um ingrediente da virtude da coragem. Ser corajoso não é certamente agir por temor de ser punido ou por temor da vergonha.

[10] Marcia W. Baron; Philip Petit; Michael Slote, Three Methods of Ethics (Londres: Blackwell, 1997).

[11] John M. Doris, Lack of Character. Personality and Moral Behavior (Cambridge: Cambridge University Press, 2002), pp. 24-27.

[12] Ibidem.

[13] Ibidem.

[14] Shaun Nichols, “Philosophical Sentimentalism”, em Sentimental Rules. On the Natural Foundations of Moral Judgement (Oxford: Oxford University Press, 2004), pp. 83-96.

[15] Ronald de Sousa, The Rationality of Emotions (Cambridge: MIT Press, 1987).

[16] Para exemplos, ver meus livros La honte est-elle immorale? (Paris: Bayard, 2002) e Pourquoi tant de honte? Tout ce que vous avez toujours voulu savoir sur la honte sans avoir jamais osé le demander (Nantes: Pleins Feux, 2005).

[17] Christine Tappolet, Emotions et valeurs (Paris: PUF, 2000).

[18] Jon Elster, Alchemies of the Mind (Cambridge: Cambridge University Press, 1999).

[19] É o que tento mostrar, partindo de certas ideias de John Stuart Mill, em L’éthique aujourd’hui. Maximalistes et minimalistes (Paris: Gallimard, 2007).

[20] Ibidem.

[21] Ibidem.

[22] Ibidem.

[23] Ou que você tenha concepções muito sofisticadas da identidade pessoal, nas quais você pode ter ciúmes de um eu interior ou de um eu futuro! Agradeço a Hermano Taruma, que me apresentou um caso que permite levar isso em conta.

[24] Poderíamos observar, como os filósofos de antigamente: “Aristóteles já tinha dito isso!”; cf. Retórica, II.

[25] K. C. Barrett; C. Zahn-Wader; P. M. Cole, “Avoiders versus Amenders: Implications for the Investigation of Guilt and Shame during Toddlerhood”, em Cognition and Emotion, 7, pp. 481-505, Londres, 1993.

[26] Allan Gibbard, Sagesse des choix, cit.

[27] John Deigh, “Shame and Self-Esteem: a Critique”, em John Deigh (org.), Ethics and Personality (Chicago: University of Chicago Press, 1992), pp. 133-153; Arnold Isenberg, “Natural Pride and Natural Shame”, em Amelie O. Rorty (org.), Explaining Emotions (Berkeley: University of California Press, 1980), pp. 355­383; Julien Deonna & Fabrice Teroni, The Psychology of Shame and Guilt (manuscrito).

[28] Max Scheler, La pudeur (1913), trad. M. Dupuy (Paris: Aubier, 1952).

[29] Jean-Paul Sartre, L’être et le néant (Paris: Gallimard, 1943), pp. 275-276.

[30] John Rawls, Théorie de la justice (1971), trad. Catherine Audard (Paris: Seuil, 1987).

[31] J. G. Peristiany (org.), Honor and Shame. The Values of Mediterranean Society (Londres: Weidenfeld & Nicholson, 1965).

[32] Martha C. Nussbaum, Hiding from Humanity. Disgust, Shame and the Law (Princeton: Princeton University Press, 2004).

[33] Jon Elster, Alchemies of the Mind, cit., p. 156.

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