1998

A expansão pela espada e pela cruz

por João Marinho dos Santos

Resumo

Na gênese dos Descobrimentos e da Expansão portuguesa há uma situação dramática de natureza social, econômica e político-militar. Portugal dividia-se entre a guerra e a paz, uns a favor do saque, outros da comercialização do excedente. Mas no fundo havia a necessidade de afirmar a unidade nacional na disputa com Castela. O filósofo Agostinho da Silva chegou a dizer que o maior feito português não foi o descobrimento nem a conquista: “foi ter resistido a Castela”. No contexto da Queda de Constantinopla, da Reconquista cristã ibérica e do começo do mercantilismo europeu, a guerra servia ao ideal da independência. Para isso foi reativado o mito das Cruzadas. A tomada de Ceuta (1415), início da conquista portuguesa na África, conciliava valores antigos e modernos, juntava honra e proveito e evitava um conflito com Castela, o que permitiu a um país de mentalidade ainda camponesa, com baixa demografia e poucos recursos para contratar mercenários, lançar-se na aventura marítima. A insistência no mito da missão portuguesa para a vitória universal do Reino de Deus foi o cimento ideológico para o projeto de unidade nacional (que lembrava a vitória na batalha de Ourique, em 1189, sobre os sarracenos). E o principal agente desse projeto era o missionário empunhando a cruz na mão, proferindo palavras de incitamento, distribuindo a benção e o perdão. Assim, uma forte tradicionalidade sustentou a modernidade das Conquistas portuguesas, geralmente associadas a um sentimento de glória.


APRESENTAÇÃO GERAL DOS OBJECTIVOS DA EXPANSÃO

Quase sempre associamos aos Descobrimentos, em particular, e à Expansão Portuguesa, em geral, sentimentos de glória e de honra nacional (logo, motivos de celebração festiva), esquecendo-nos de que na gênese do processo há uma situação dramática e de natureza diversa (social, econômica, político-militar) que urgia solucionar, quer à escala nacional, quer à escala europeia.

Muito sumariamente, recorde-se que a chamada Longa Depressão do século XIV e da primeira metade da centária seguinte (em Portugal os efeitos de recuperação afiguram-se mais tardios) atingiu tanto os produtores como os não-produtores (eclesiásticos, nobres, mercadores), pelo que era imperativo encontrar soluções para os problemas econômicos e para os graves conflitos sociais. Entre nós, designadamente, a falta de unanimidade quanto ao diagnóstico da situação (e aos interesses) das elites (logo com reflexos nos órgãos de decisão) manifestar-se-á, como diz Gomes Eanes de Zurara, na formação de “partidos”, uns favoráveis à guerra, outros à paz – ou seja, em termos de modos de vida à escala nacional, uns adeptos da persistência do saque, outros do incremento das actividades produtivas e da comercialização do excedente. Mas não se relegue para segundo ou terceiro plano o contencioso político-militar que tínhamos com Castela, o qual, em última instância, se prendia com a independência nacional e provocava, no âmbito da Respublica Christiana (sobretudo ao nível diplomático), um autêntico escândalo por ser uma guerra entre cristãos, quando havia um inimigo comum ainda na Península Ibérica.

Situação complexa esta e cheia de inúmeros perigos quanto à estratégia a adotar mas que exigia (principalmente depois do provisório contrato de paz assinado com Castela a 31 de Outubro de 1411) que alguma coisa de decisivo fosse feita. João Afonso, vedar da Fazenda e alto representante da burguesia, viu “com clareza” (como refere Zurara) a forma de satisfazer o interesse nacional (frisemos o carácter global-integrado da sua proposta) ao sugerir a conquista de Ceuta, quando outras hipóteses foram avançadas, entre elas a participação na reconquista do reino mouro de Granada. Explicitemos que nos estamos a apoiar na Crónica da tomada de Ceuta por el-rei D. João I, obra redigida entre 1450 e 1465.

Porém, como não poderia deixar de ser, uma questão era a definição e a justeza dos objectivos e outra era a exequibilidade da acção tendo em conta os meios disponíveis. Denunciando suficiente realismo-frieza, até porque a responsabilidade da decisão lhe pertencia, D. João I (com o apoio do seu Conselho) considerará, como dificuldades da empresa de Ceuta, a falta de dinheiro, de equipamento náutico e militar (embarcações, fardamento, artilharia e outras armas) e, principalmente, de gente, para (repare-se bem) não só conquistar e manter a cidade marroquina, como também para defender o país na eventualidade do rei castelhano (aproveitando a oportunidade) o atacar. A este propósito, chamaremos particularmente a atenção para o facto de a falta de “gente de guerra” não ser apenas um problema demográfico ou quantitativo, mas sócio-cultural, ou seja, de disponibilidade para fazer a guerra no exterior da pátria. Como motivar, concretamente, as saídas desses camponeses atreitos à paz e à sua terra?

Tendo em conta a diversidade das mentalidades que se procuravam afirmar no Portugal de começos de Quatrocentos (quando à tradicionalidade mais atávica se vinham juntar aspirações da mais utópica modernidade), o papel da ideologia afigurou-se (e acabou por ser) fundamental. Por outras palavras, urgia reactivar a identidade nacional, de modo a consociar interesses polarizados em valores tão díspares como os da honra e do proveito e, deste modo, com forte espírito de cotpo, partir para a Expansão Ultramarina.

Partir com dor (com saudade) e em dor (a imagem do Cristo Crucificado não é, por certo, um elemento espúrio do mito de Ourique) para realizar a Expansão, sempre no fio da navalha de um processo holista-colectivo (entenda-se em colonização, sob a iniciativa da Coroa-Estado) ou de um processo individualista com deslocamentos e finalidades de natureza privada (em emigração). E o que se afirmava como solução, para satisfazer as necessidades de um pequeno reino que teimava em ser independente, acabou por se converter num projecto de sentido mundial-imperial, em parte por força da evolução da política internacional (não se perca de vista, designadamente, a queda do Império de Constantinopla, às mãos dos turcos, em 1453), mas também como resultado do excelente comportamento da nação portuguesa. Concretamente, pensamos que, sobretudo com a formação do Estado (Império) da Índia no começo do século XVI, Portugal chegou a balancear-se para a assumpção, ao nível de Respublica Christiana, do papel que até àquela data coubera a Constantinopla. Pelo menos é assim que propomos uma leitura da Crónica do imperador Clarimundo, de João de Barros. Mas já anteriormente as políticas ultramarinas haviam sido muito marcadas (e portanto definidas) pelos interesses da Respublica Christiana.

Elemento imprescindível (no que à Expansão diz respeito) da identidade nacional e da independência do Reino, a guerra acabou por se con­ verter em factor de formação e manutenção de império(s). Exigiu-se-lhe, portanto, que não só funcionasse em concorrência com outros modos de vida (com relevo para o mercantil), como se modernizasse dos pontos de vista técnico e táctico-estratégico. Difícil era o desafio, quer porque faltava o elemento humano, quer porque os custos com a actividade bélica eram elevadíssimos – tanto mais quanto o país não lograva fixar a riqueza com o investimento nos sectores produtivos. Perderá, naturalmente, a Coroa-Estado, em benefício dos particulares que com a guerra ganhavam. Ontem, como hoje, o jogo de interesses era complexo e obscuro.

Mas, enfim, quanto à génese do fenómeno da Expansão Portuguesa, pensamos que, ao nível dos objectivos vitais-estruturais, foi decisiva a satisfação da coesão nacional e da independência face à ameaça de Castela. Estamos, pois, de acordo com esta afirmação de Agostinho da Silva, há poucos anos desaparecido: “O que Portugal fez de maior no mundo não foi nem o descobrimento, nem a conquista, nem a formação de nações ultramarinas: foi ter resistido a Castela”. Só que acrescentaríamos ou explicitaríamos: para resistir a Castela, teve que optar pela Expansão Ultramarina. Dificilmente poderia ter encontrado outra forma de crescimento (e de desenvolvimento) e, só crescendo, se poderia opor à anexação ou a iberização plena.

Quanto aos objectivos conjunturais em finais de Trezentos e começos de Quatrocentos, voltamos a lembrar a pressão da Longa Depressão e o carácter espúrio da nova realeza ou de uma outra dinastia encetada com o mestre de Avis, filho do rei D. Pedro I e da plebeia Teresa Lourenço, já que os infantes D. João e D. Dinis, filhos do mesmo pai e de D. Inês de Castro (a presumível rainha), haviam deixado o país e estavam, portanto, impedidos de comandar e representar a larga facção de portugueses que não queria ser castelhana. Foi, em boa parte, neste quadro de guerra nacionalista que se forjou a guerra universalista inerente ao fenómeno da Expansão Portuguesa.

A GUERRA COMO PROBLEMA DE GOVERNO

Depois que a frota [para a tomada de Ceuta] foi assy toda jumta na pomta do Carneiro, El rey sahio em terra, e ajumtou comssigo todos aquelles do comsselho, e assemtousse no chaào e elles todos darredor delle. Ora, disse elle, vos quero rresponder a todo o que me fallastes açerqua de meus feitos. E quamto hé ao que dizees que me torne pera meu rregno, pareçeme que assaz seria de gramde mimgua aver açerqua de seis annos, que amdo em este trabalho fazemdo sobre elle tamtas çircustamçias como sabeis, pollas quaaes o mundo esta com as orelhas abertas pera ouvir a fym da vitoria, e deixallo assy agora pareçeme que nom sera outra cousa semam huu escarnho.[1]

É assim que o cronista Gomes Eanes de Zurara regista não só a presença do rei português na expedição que tomou Ceuta, como garante que essa decisão foi objecto de prolongada avaliação (seis anos) por parte de D. João I e do Conselho da Coroa-Estado. Fazer a guerra ou a paz era, de facto, um direito real, mas que envolvia sempre (ou quase) a audição de personalidades que apoiavam a governação, sobretudo quando existiam, como era o caso, uma ou mais alternativas.

Avancemos alguns anos e de novo, em 1432, se porá a questão de participar da conquista do reino mouro de Granada ou cair sobre outra praça marroquina, voltando-se a pedir aos consultores da Coroa-Estado que se pronunciassem sobre um projecto que viabilizava a participação no comércio do Mediterrâneo (com a conquista de Granada), ou sobre um outro que permitia a constituição de um “senhorio” (encetado com a tomada de Ceuta) sem excluir a actividade mercantil. Sabemos qual foi a opção e, independentemente do projecto de Granada poder ser considerado uma provocação a Castela, o que se afigura importante é o reconhecimento da guerra como um dos modos de vida nacional e sua imprescindibilidade para garantir a nossa identidade com vista à defesa da independência. Por outras palavras, também na perspectiva político-militar a Expansão se converterá em meio e suporte da independência de Portugal. Explícitaremos mais adiante este aspecto do interesse nacional, em começos do século XV, mas queremos desde já adiantar que, na continuidade da Reconquista Cristã, o muçulmano ou o mouro (atente-se na persistência da designação) será sempre, no ideário português de Quatrocentos e Quinhentos, o inimigo absoluto, mau em todas as circunstâncias e, por tal, sem direito à existência. Da parte do outro o mesmo se verificará em relação a nós, conforme se poderá provar, por exemplo, com o seguinte excerto de O presente dos defensores dafé ou O mimo do campeão da fé do muçulmano quinhentista Zinadim Benali Benhamede:

Por isso fiz esta compilação para incitar os crentes [islâmicos] à guerra contra os adoradores da cruz [portugueses], porque fazer-lha é uma obrigação imperativa, por terem invadido o território muçulmano, aprisionado um sem número de crentes, matarem grandíssimo número d’elles, converterem muitos ao christianismo …[2]

Ora, é este o ideário da luta total e contínua, e motivador da ideologia oficial, que mais suscitará a honra individual e, naturalmente, colectiva (“a honra do Reino”), acabando por concorrer para a unidade e a identidade da nação.

Veremos como as nossas gentes, pelo seu carácter camponês, não eram das mais atreitas em fazer a guerra e sobretudo em fazer a guerra fora da sua terra, da sua pátria. Logo, a falta de combatentes não poderia ser só equacionada em função do escasso fundo demográfico, mas tendo em conta também o número dos que estariam dispostos a sair. Conclusão: será preciso criar motivos ou atractivos capazes de justificar a saída sob o controlo da Coroa-Estado.

Em meu entender, a necessidade de o itinerário da Expansão Portuguesa ter de coincidir o mais possível com a presença muçulmana documenta a vantagem do funcionamento do mito cruzadístico compensar, ideologicamente, a escassez de combatentes lusos e sua débil apetência pela guerra, já que esta situação tenderá a ser estrutural. De facto, a Expansão Portuguesa irá buscar ao ideário da Reconquista Cristã (designadamente ao cruzadismo) muito da sua carga tradicionalista, se se entender que o tradicionalismo é uma reactivação consciente do passado, de um tempo glorioso em que muitos dos valores sociais estão intensamente embebidos de sagrado. Documentemos, por exemplo, com a referência maravilhosa, contida na Crónica dos sete primeiros reis de Portugal (iniciada em 1419) e alusiva à formação do mito de Ourique: a Virgem Maria converte se em protectora dos portugueses e em sua intercessora junto do seu bendito Filho, porque “Ele queria destruir muitos inimigos da Fé”.[3] Registe-se, pois, a participação da atitude tradicionalista como factor motivador da Expansão Portuguesa, mas não a valorizemos em excesso, sob pena de deformarmos a realidade.

Efectivamente, o Portugal de 1415 era, obviamente, diferente do da Reconquista Cristã, já que novos valores haviam entretanto emergido. A prova disso é que o proveito (concebido não apenas na sua vertente económica, mas também sócio-cultural) rivalizava já com a honra, a ponto dos partidários-defensores do enriquecimento (logo com uma mentalidade economicista) serem não apenas os mercadores ou mesmo os honrados, mas também a gente do povo. Para documentar esta dimensão (nacional) do valor da riqueza móvel, recorramos, uma vez mais, à Crónica da tomada de Ceuta, apreciando precisamente o juízo que o combatentes comuns farão do pretenso comportamento dos que os comandavam, logo após a conquista da cidade:

[…] e os outros do povo aviam em sy muy grande despeito polla cobiça, que os outros tinham, e deziam em suas vontades, que todo seu trabalho fora despeso em vão, porque elles aviam de ficar sem parte de tamanha rriqueza, como elles criam que avia em aqquella cidade.[4]

Quem duvida de que uma grande parte dos que foram a Ceuta o fizeram por interesse económico? Ao tomarem tal decisão, evidenciavam, afinal, que a modernidade ia impregnando irremediavelmente a sociedade portuguesa, muito embora fosse difícil (e nem sequer conviesse) estilhaçar a tradicionalidade.

O desejável, sim (e foi esta a decisão, convertida em programa, do Poder Central), era precisamente tentar conciliar valores antigos e modernos (em parte antagónicos), para fortalecer, como se disse, o objectivo da unidade nacional. Antes de documentarmos que não foi fácil essa conciliação ao longo dos séculos XV e XVI (e mesmo depois), assinalemos o contributo também do mito de Ourique especialmente para a consociação da honra e do proveito.

Lê-se, com efeito, na Crónica dos sete primeiros reis de Portugal, ao reconstituir-se parte da resposta que D. Afonso Henriques terá dado aos que observavam, em Ourique, que os cristãos eram poucos face ao numeroso grupo de mouros:

E pois Deos guisou tanto bem como este o qual he que em vençemdo serviremos a Deos e gamçaremos [alcançaremos) honra e riquesas, em este mundo, e esperança, porque o servimos de aver o outro.[5]

Repare-se como a função explicativa e convincente do mito não se circunscreve à certeza da conquista do Céu pelos que morressem em combate, nem à aquisição da honra. Com a guerra contra o infiel os combatentes também podiam alcançar riqueza, porque se tratava de um inimigo rico, e o objectivo militar era destruí-lo física e economicamente, recorde-se.

Poderíamos dilatar as referências práticas e teóricas sobre os conflitos-inadequações que entre a honra e o proveito se gerarão ao longo dos séculos XV e XVI, mas limitá-las-emos a dois ou três exemplos. Quando, em 1501, logo após o atribulado regresso de Pedro Álvares Cabral da Índia, a facção do Conselho de Estado que defendia o comércio (isto é, o proveito) com a Guiné em vez de fazer “conquistas” no Oriente se voltar a pronunciar, logo a outra facção rival recordará o perigo de a honra se esbater como motivação, em benefício do proveito, pondo deste modo em causa a unidade e até a independência nacional. Mas, em contrapartida, só a honra não chegava para motivar os que eram necessários para fazer a colonização, como se vislumbra no teor desta carta-pregão de 14 de Junho de 1510:

Todas as pessoas que quyserem hyr servyr elrey noso senhor a Imdya, na armada que prazendo a Deus ade partyr o anno de quinhentos e onze, pera lla andarem em suas armadas e servirem nas cousas que lhes mandar seu capitam mor, o dito senhor lhe[s] ordena quinhentos reis de soldo por mes, e mais lhe(s) sera dado de commer; e alem dysto praz a sua alteza que em todo tempo que la andarem possam livremente comprar certas mercadorias e fazer companhias comerciais com os cristãos.[6]

Resumindo: o projecto da Índia (como outros projectos expansionistas portugueses) conterá, realmente, o espectro dos valores e das motivações nacionais (com relevo para a necessidade de conciliar a honra e o proveito), consubstanciado na guerra contra o muçulmano-mouro aguerrido, inimigo tradicional do cristão português. Será assim no Norte de África, mas também na Guiné islamizada (ainda que um tanto forçadamente), sem esquecer as ricas economias mercantis do Índico, sobretudo quando controlados pelos muçulmanos. Corria-se, porém, também o risco da atitude emigradora (dispersiva) ser contrária à missão colonizadora de Portugal. Daí a divulgação de proclamações ideológicas como esta, conservada numa obra anónima, regida provavelmente em 1577 e intitulada Primor e honra da vida soldadesca no Estado da Índia:

Os mercadores que nas necessidades acodem ao serviço del Rey com empréstimo de dinheiro, ou fazenda, e per qualquer via de si, ou per outrem lhe são proveitosos, são dignos e merecedores de todas as honras, que por tam boas obras merecem; mas os que se fazem inimigos do bem commum, vivendo em terras onde não se aproveitam mais que a si, sem lhes dar nada das necessidades do Estado, nem do credito da nação, inimigos são delle, e della, estes são membros apartados de sua cabeça, e como taes devem ser tratados.[7]

Caberá, portanto, à Coroa-Estado moderno o papel de congregar e mobilizar a nação para a realização de projectos de interesse comunitário, a ponto de “o serviço del rey” se confundir com o interesse nacional e como tal ser recompensado. Esta tarefa não foi porém fácil. Assim, a preocupação ideológica de o interesse individual não se sobrepor ao colectivo ou de a riqueza não assumir maior importância que a honra (conforme a tendência para que se caminhava) levou, por um lado, à revivificação, ao longo do século XVI, do imaginário mítico-maravilhoso e, por outro, à produção de “alvitres” recordando a necessidade da guerra. Esta era, de facto, imprescindível para unir os portugueses sob a tutela da Coroa-Estado e, como tal, tornou-se, ao longo da Expansão, num problema de Governo, quer quanto ao seu uso, quer quanto à participação e modernização dos meios. Não nos disperssemos, porém, voltemos a focalizar o quadro em que emergiu a Expansão Portuguesa.

A ESTRUTURA DA SOCIEDADE PORTUGUESA NO COMEÇO DO SÉCULO XV

Estruturalmente, a sociedade portuguesa de começos do século XV é de tipo camponês, o que significa, no essencial: que é de natureza agrícola a maior parte do que produz, embora a terra não pertença a quem a trabalha; que uma fracção importante do excedente (agrícola e não-agrícola) já se integra no mercado interno e externo; que há um governo central (a Coroa-Estado) suficientemente burocratizado (através de um aparelho de funcionários) a regular, à escala nacional, os interesses dos diferentes grupos sociais e a ver, por tal, o seu poder (ainda que muito pessoalizado no rei) reconhecido em todo o território…

Esta realidade e o modelo que tenta interpretá-la não excluem, obviamente, nem a participação de um reduzido mas poderoso grupo de guerreiros profissionais (os nobres detentores, aliás, de uma considerável percentagem da posse real da terra, o que lhes permite criar a dependência dos que aforam ou arrendam), nem dos que detêm os poderes religioso e ideológico (os eclesiásticos), nem dos que exercem as artes e os ofícios e a mercancia, além de outros (organizados em classes).

Quanto ao peso do grupo dos pescadores e dos mareantes, é óbvio que os frutos do mar e os serviços de transporte marítimo e fluvial concorriam então para o reforço da economia nacional, mas ele não deve ser relevado ao ponto de, inadequadamente, se afirmar que Portugal era um país de marinheiros. Se o fosse não se compreenderia muito bem, por exemplo, como esclarece Gomes Eanes de Zurara na Crónica da tomada de Ceuta por el-rei D.João I, que o contingente de combatentes de 1415 não suportasse o “enfadamento do mar” e que todo o seu interesse fosse regressar o mais depressa a casa.[8]

Considero estas referência importantes, já que elas suscitam a pergunta como foi possível mobilizar as vontades de tantos que, de acordo com a mentalidade camponesa, eram avessos à guerra. Zurara, aténto à caracterização da situação sócio-económico-cultural de um período de viragem da história portuguesa, registou a força deste partido de pacifistas (chamemos-lhes assim). Defendiam eles, nomeadamente, que Portugal tinha abundância de pão, vinhos, pescados, azeite, mel, carne, frutas e legumes (repare-se na natureza do excedente), pelo que convinha ao interesse nacional transaccionar (obviamente em paz) esses produtos com a Europa mercantilizada (inclusive com a vizinha Espanha) e fruir, a pleno, valores sócio-culturais, como os da tranquilidade, da convivência, do lazer… Em suma: viviam de e para o proveito, residindo “toda a força da sua honrra”, como dirá o cronista, “na fama de sua despesa”. Aplaudiram, pois, a decisão do rei de Portugal de celebrar pazes (ainda que provisórias) com Castela em 1411, como se inquietarão com a aparente adopção de um projecto belicista em 1415.[9]

Mas, havia também, como se disse, uma élite de guerreiros (constituída principalmente por dignatários jovens) que se comprazia na exibição da força física e da valentia, no enriquecimento através do saque e, sobretudo, na obtenção da honra que a guerra (designadamente a guerra contra Castela) proporcionava.

Como se constata, não poderiam ser mais antagónicos os interesses sócio-económicos-culturais que logravam assumir dimensão nacional em começos do século XV, a ponto da situação preocupar e exigir a intervenção da Coroa-Estado. Mais: a juntar a este, perfilavam-se, como se disse, outros problemas, não menos importantes, e que também exigiam solu­ ção. Recordemo-los: o escândalo (com repercussões a nível internacional) da dilatação da guerra entre dois reinos peninsulares que integravam a Respublica Christiana e a necessidade de Portugal se afirmar como nação independente, sobretudo face às pretensões hegemónicas de Castela, o que aliás motivara a guerra entre portugueses e castelhanos.

Encontrar, portanto, um projecto capaz de abarcar, conciliar e satisfazer todos estes objectivos temos de concordar que não era fácil e é sob esta perspectiva globalizante que, em meu entender, deve ser reconhecida a genialidade da·solução de Ceuta, mais manifesta se se considerarem (como então sucedeu) os inconvenientes de outras alternativas.

Repare-se, designadamente, neste inconveniente: pretender conquistar Gibraltar ou Granada era mostrar a Castela “que o seu poder nora era bastante para acabar sua conquista” (leia-se, terminar a Reconquista Cristã), o que redundaria em injúria e numa mais que provável renovação da guerra entre cristãos. Ora, a este respeito, o que o rei português mais pretendia fazer crer nas instâncias internacionais era que a sua vontade “sempre foy chegada ao amor de todolos christaaõs”. E invocava, a seu favor, este argumento:

[…] quantas vezes [não] fuy rrequerido del Rey de Graada, offereçendome gemtes pere me ajudarem a destroyr ou deneficar meus comtrairos [os castelhanos], a quall cousa sempre emgeitey, conheçemdo que posto que me trouvesse proveito, que nom era rrezam tomar tall ajuda seendo elles inimiigos da nossa samta ffe.[10]

Logo, sem

nenhùua intrinsiqua allegria soomente quanto era que pois elles [castelhanos] queriam contra dereito e rrezam apremar as cousas de meus naturaess, e soomente porque meu senhorio nom devia sogeição…[11]

Prossigamos, porém, com a anunciação das vantagens da escolha de Ceuta como projecto de interesse nacional.

Para além de contribuir, indirectamente, para acelerar a Reconquista Cristã (tenha-se em conta a unidade do complexo Granadino-Marroquino), o que não deixaria de causar boa impressão ao nível de Respublica Christiana, a tomada de Ceuta e a sua manutenção proporcionariam, pelo menos teoricamente, também proveito e honra. Ela era, de facto, uma cidade rica não só devido à força da sua agricultura e do seu artesanato, mas ainda e sobretudo à pujança do comércio a distância ao lograr atrair as rotas transaarianas, mediterrânicas e índicas.[12]

Por sua vez, com a conquista de Ceuta e a possibilidade de se distender, por longo tempo (o que não se lograria com a tomada de Granada), o teatro de guerra a outras regiões dos reinos de Fez e Marrocos, os “bons homens” de Portugal não esqueceriam, por certo, o “virtuoso exercício das armas”, além de persistir o perigo de Castela romper as pazes e voltar a travar luta com o Reino lusitano.[13]

Como se depreende, pois, a conquista de Ceuta evitava a monstruosidade da guerra entre cristãos, viabilizando em seu lugar a actividade bélica que justificava a manutenção e a actuação de uma élite guerreira cristã – a cruzada contra o infiel – e onde, a par da honra e da glória (sobretudo celeste) se poderia obter também proveito. Constituiria, além disso, o primeiro passo para a formação de um “senhorio” português ultramarino que contrabalançaria o crescimento territorial e económico de Castela (reforçado com a futura conquista do reino de Granada) e, em última instância, dissuadiria os castelhanos de, algum dia, anexarem Portugal. Por outras palavras, a independência nacional seria garantida com a Expansão Ultramarina.

Só que este bem pensado e pretensioso projecto não era fácil de concretizar. Entre as principais dificuldades que chegaram a dissuadir os governantes de tomar Ceuta, contou-se a da falta de gente de guerra, conforme dissemos. É que, por um lado, o fundo demográfico nacional era então muito baixo (rondaria o milhão de habitantes) e, por outro, faltava o dinheiro para se poder contratar mercenários estrangeiros. Documentemos, recorrendo uma vez mais a Zurara, o qual reconstitui assim a opinião do monarca:

E a terceyra cousa acho que he a abastamça da gemte que nom tenho[…]. E eu nom tenho a de fora nem esperamça como a haja primçipallmente pollo falleçimento do dinheiro que semto em meu rregno… E assy que com as minhas gemtes me comvem soomente fazer todo meu feito.[14]

Repare-se: D. João I acabará por reconhecer que só poderia contar com os portugueses para fazer a guerra no exterior e defender o país. Mas dispunha de pouca gente e esta contingência, só por si, apontava para a submissão, em última instância, à hegemonia de Castela. Teria de ser assim?

Não foi isso que sucedeu. Factos recentes, nomeadamente o êxito na batalha de Aljubarrota, contrariavam as posições mais derrotistas, sugerindo, ao invés, que se insistisse na formação de um espírito de corpo forte, alimentado ideologicamente por um mito miraculista, ou seja, por uma forma de memória, a um tempo verdadeira e fantástica, e tendo por objectivo convencer. E foi, de facto, nesta ambiência de necessidade em preservar a independência de Portugal e em fortalecer a vontade da reduzida comunidade nacional que, em pouco tempo, se forjou um mito fundador activo.

Lê-se, com efeito, em o Livro de arautos ou De Ministerio Armorum, de autor anónimo, como convinha, e datado de 1416, ou seja, um ano depois da tomada de Ceuta:

No tempo dos sarracenos como na província de Entre-Douro-e-Minho.[um subtítulo da obra] se refere, preparou-se o já mencionado conde D. Afonso [Henriques] juntamente com outros barões e nobres dessas províncias para combater nesta província com cinco reis sarracenos; tais barões, nobres e outros cristãos, ao verem que eram em pequeno número e os infiéis em grande, disseram a esse mesmo conde que o queriam a ele como rei e com ele viver ou morrer. Logo de imediato o fizeram rei no acampamento. No dia seguinte, travado combate entre sarracenos e cristãos os cinco reis caíram mortos com o seu exército[…]. E, porque antes daquele combate, tal rei cristão vira numa aparição Nosso Senhor Jesus Cristo com as suas cinco chagas, e pelo auxílio da graça do mesmo Cristo vencera esses cinco reis infiéis…[15]

Repare-se como a circunstância dos cristãos, em Ourique, serem em pequeno número e os infiéis em grande não fora impeditiva dos primeiros alcançarem a vitória. Por quê? Porque ao lutarem não só por uma causa justa, mas querida por Deus (dizia-se), os portugueses mobilizaram em seu auxílio o favor divino. Que causa era essa explicitaremos a seu tempo, devendo nós, por agora, insistir mais na formação do mito, pelo que voltamos à Crónica dos sete primeiros reis de Portugal:

E os Christãos que vinham com ho primcipe D. Afonso [Henriques], forom em grande duvida para fazer tal batalha [a de Ourique]. Bem lhe[s] parecia, que era muyto desigual. E então lhe disserom: Senhor, vos vedes quamta gente he aqui com el Rey Ismar [sarraceno], e esta nom he razom de tão poucos como nos somos, pelejarmos com tantos […]

Ao que D. Afonso Henriques respondeu:

E pois nem he menos poderosa a mão de Deos aguora pera nos ajudar contra Rey lsmar, que foy em outro tempo para: ajudar o Conde Fernão Gonçalves contra Almançor[…]. E pois Deos guisou tanto bem como este, o qual he que em vemçemdo serviremos a Deos e gamçaremos [alcançaremos] honra e riquezas, em este mundo, e esperança, porque o servimos, de aver o outro. E os que aquy morerem seram certos que loguo yrão ao Parayso.[16]

Registe-se como o essencial do mito se mantém, mas são aduzidos, com a Crónica, novos elementos pretensamente factuais, para além de se alargar, consideravelmente, a função explicativa e convincente. A luta contra o mouro não proporcionava só a honra, mas também a riqueza, garantindo além disso a conquista do Céu (no caso de se morrer em combate), porque era “serviço de Deus”. Difundida, por certo, do alto dos púlpitos ou por outras vias (recordemos o teatro Vicentino), esta ideologia chegaria facilmente aos estratos populares.

Mas, a base factual e a teia de relações indutivas e convincentes eram mais latas. Designadamente em o Livro de arautos registou-se que “[…] o rei D.João [I] e os seus, embora poucos, travaram vários combates e derrotas, por Deus [sublinhe-se], [contra] muitos dos seus inimigos que eram dez vezes mais, a passar”.[17] Eis estabelecida a relação entre Ourique e Aljubarrota (como marco simbólico das guerras contra Castela, em finais do século XIV) e, assim, de acordo com a intenção dos manipuladores do mito miraculista, a conclusão só poderia ser esta: em Ourique a vitória do “conde” D. Henrique sobre os sarracenos coincidira com a sua eleição como rei, o que significava ou deveria significar que qualquer tentativa, fosse de quem fosse, para usurpar o trono português constituía um sacrilégio.

Continuando a explicitar: os reis portugueses e, com eles, a nação haviam sido eleitos por Deus para combater contra os inimigos da sua Santa Fé e esta missão (que justificara a fundação de Portugal) deveria ser realizada em espírito comunitário, sob as ordens da Coroa-Estado (atitude colonizadora), em todos os lugares e em todos os tempos até que se verificasse a vitória universal do Reino de Deus. A esta luz, nada nem ninguém se deveria opor e/ou interpor, porque seria vencido, inclusive os castelhanos. Assim, o impossível humano tornava-se possível e dava alento aos que acreditavam, dispondo-os a combater. Releve-se, pois, em termos de eficácia, a importância desta vontade posta ao serviço da guerra cruzadística, ou seja, a sua marca divina, logo invencível. A não ser que a maldade dos homens…

O DISCURSO IDEOLÓGICO TÍPICO E A FUNÇÃO DOS RITOS

Já com a armada em Lagos a caminho de Ceuta, mas quando ainda poucos sabiam o que ela se propunha a fazer, mestre Fr. João Xira será encarregado pelo Conselho do rei de esclarecer os combatentes sobre a natureza do inimigo que iriam defrontar e sobre a justeza dessa luta, procurando, ao mesmo tempo, convencê-los de que não deveriam ter medo. Tratar-se-á portanto, segundo a reconstituição ou a imaginação de Zurara, de arquitectar um discurso lógico facilmente compreensível e convincente, ou seja, que estivesse perfeitamente de acordo com as normas da acção ideológica. Assim, o orador partirá de alguns axiomas ou verdades indiscutíveis, como era a disponibilidade de qualquer homem civilizado morrer, se necessário, pelos valores em que acreditava e tanto mais quanto se tratasse de um cristão e da defesa da sua religião. Depois, invocando a patrística e outras autoridades eclesiásticas, Fr. João Xira assegurará aos combatentes lusos que “[…] Deos todo poderoso sabe, que sse alguu de vos outros morrer, que morre polla verdade da ffe e salvaçom da sua ley, pollo qual elle meesmo lhe dara o çellestrial guallardom …”, ou seja, o Céu.[18] Conclusão lógica para qualquer ouvinte: por que ter medo se o fim último do cristão é lograr nesta vida efémera o mérito suficiente que lhe garanta o Céu? Ora, este era-lhe assegurado ao morrer na guerra do Ultramar. Daí a aceitação que terão tido palavras como estas, proferidas por Fr. João Xira e por outros oradores sagrados: “Tyraay todo o pavor e o espanto e estudaae em pellejar esforçadamente comtra os inimigos da samta ffe…”.[19]

Mas convinha, também, identificar o mais possível o inimigo e, quanto a esta matéria, o discurso de Xira será peremptório: tratava-se do mesmo infiel que, por traição do conde Julião (senhor de Ceuta e personagem lendária que terá colaborado com os árabes invasores), profanou os lugares santos do Norte de África e da Espanha.[20] Por outras palavras: o inimigo que os portugueses iriam encontrar em Marrocos era o mesmo com que a Reconquista Cristã se defrontara na Península Ibérica (e continuava a defrontar em Granada), ninguém duvidando de que se tratara sempre de uma guerra justa, já que os invasores e profanadores haviam sido os mouros.

Como fora possível (seria, por certo, outra curiosidade lógica do ouvinte) que uma tal calamidade (a derrota e sujeição dos cristãos do Norte de África e das Espanhas) tivesse sido consentida por Deus? Resposta dos ideólogos, apoiada na história do Povo Eleito de Deus:

Ca assy como nosso Senhor Deos no tempo do patriarca Abraão soportava aos gemtios immigos de sua ffe soomente pôr correiçom do seu povo, assy mantem agora aquestes [leia-se os “mouros”] amtre nos em vista de nossos olhos, fazendo dano a muitos dos nossos irmaãos, soomente a fim de nos amoestar e castigar…[21]

Aceita a justificação do castigo, logo surgiria na mente do ouvinte discreto (perspicaz) a questão de saber como fazer cessar tal castigo. E o discurso ideológico respondia: a “má geração” dos muçulmanos seria exterminada por Deus se os cristãos se arrependessem dos seus pecados, fizessem penitência e confiassem no poder divino. Satisfeitas estas condições, a mais débil força dos cristãos converter-se-ia em furacão devastador dos seus inimigos, como se poderia provar aliás com um facto recente da história de Portugal. Pois não foi Ele que, em Aljubarrota, “ajudou contra os vossos immigos christaãos, que eram muito mayor numero que vos outros”, perguntará Xira, “assy vos ajudara comtra estes [os mouros de Ceuta], que sam vossos immigos e de Cristo”.[22] Estava feito, em termos ideológicos, o curto-circuito entre Aljubarrota e Ceuta, mas era preciso demonstrar melhor que o aparente impossível se poderia tornar em possível, como sucedera também em Ourique.

Mito e maravilhoso em parte sobrepôem-se, sobretudo no que concerne à participação do imaginário-irreal e à possibilidade de ambos servirem a função ideológica, ou seja, de ajudarem a convencer. Repare-se, no entanto, que o mito, como forma de memória, assenta por norma num fundo de verdade.

Passemos, então, a relevar, quantum satis, a componente mítica miraculista de Ourique.

Na Crónica da tomada de Ceuta, no capítulo essencialmente narrativo intitulado “Como os letrados tornaram com rresposta a el Rey dizendo que era serviço de Deos de se tomar a çidade de Cepta”, poucas referências sugerem o carácter mítico-sagrado da batalha de Ourique. Um dos letrados conselheiros lembra, sim, “[…] a memoria do muy notavell e fiell e cathollico christaão el Rey Dom Affomsso Amrriquez” que, em Ourique, por reverência e amor da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, cujos signos foram registados na bandeira portuguesa, expôs a vida nesse combate travado contra cinco reis mouros, prosseguindo depois a Reconquista Cristã.[23] Porém, o Livro dos arautos regista que, antes daquela contenda, em que os cristãos estavam em pequeno número e os infiéis em grande, tal rei cristão [D. Afonso Henriques] viu numa aparição Nosso Senhor Jesus Cristo com as suas cinco chagas, e pelo auxílio da graça do mesmo Cristo venceu esses cinco reis infiéis.

Registe-se como um facto histórico real (a batalha de Ourique) se mitifica com a introdução, sobretudo, de um elemento maravilhoso (neste caso sagrado) – a aparição do Cristo sofredor a D. Afonso Henriques, quando o grupo de guerreiros que o acompanhava, tendo em conta o poderio dos mouros nas vésperas de uma importante batalha, decide aclamá-lo rei. Por outras palavras, Ourique converte-se em mito fundador da nação portuguesa e essa função tem a justificá-la a luta difícil, sangrenta (como a imagem do Cristo crucificado sugere), contra o mouro infiel.

Assim, será à luz deste espírito de missão que a vitória impossível de Aljubarrota se esclarece e que os portugueses terão de ganhar alento para arrostar a difícil conquista de Ceuta e de tudo o mais que se encontrar em poder do principal inimigo dos cristãos.

Foi, portanto, no domínio ideológico que se procurou encontrar solução para uma das principais dificuldades com que D.João I se viu confrontado quando sopesou a possibilidade de tomar Ceuta: “[…] a abastança de gente que não tenho[…]”.

O trabalho de acção psicológica com o objectivo de fortalecer a vontade dos combatentes portugueses não se resumia, contudo, ao papel da palavra-discurso, fortalecido com o documento do maravilhoso e do mito, antes se alargava à vivência de certos ritos profanos e sagrados que se prolongavam até à fase do combate, e mesmo depois.

Rapidamente, vamos referir alguns ritos sagrados introduzidos logo na operação da tomada de Ceuta, lembrando, a propósito, que, para Deus se dispor a auxiliar os cristãos no extermínio dos muçulmanos, exigia que eles se arrependessem dos seus pecados, fizessem penitência e confiassem no seu poder. Deste modo, todo o sentido do ritual religioso antes do combate apontará para que o guerreiro se mostre arrependido através do acto de confissão, se apresente purificado pela absolvição e acredite que Deus-Todo-Poderoso está efectivamente a seu lado. Vamos concretizar: já prestes a desembarcarem para o assalto a Ceuta, os combatentes que iam na galé do capelão-mor do infante D. Henrique, Martim Pais, foram convidados, depois de ouvirem um outro discurso de incitamento e de renovação do espírito de corpo, a receber a absolvição geral (com a possibilidade de um ou outro se confessar particularmente), a assistir à mostra do Corpo de Cristo e a beijar a respectiva custódia. Depois disto, dirá o capelão-mor do infante:

Agora disse elle, irmãos e amigos, teemdes sobre vos as armas da fortalleza, ora daqui em diante pellejae sem nenhuu temor, ca o nosso Senhor estara aqui em presença de todos ataa fim de vosso trabalho, sem nenhuu temor dos immigos pera vos dar o seu verdadeiro esforço.[24]

Ou seja, como símbolo restava o crucifixo ou mesmo a custódia.

Quem é que, deste modo, não se sentiria mais forte e mais determinado em combater, sabendo que contava com a ajuda real e insuperável de Deus? Isso mesmo estimou Zurara que tivesse acontecido, ao afirmar:

Todas aquellas pallavras que assy rrazoou Marim Paaez, fezeram gramde fortelleza e acreçemtamentode ffe, em quamtos estavam em aquella gallee, mais porque em todollos outros navios nom see fazia semelhante auto [acto-rito].[25]

Era o resultado da actuação do rito ou a vantagem de tornar actual o mito de Ourique, sem esquecer a aparição de Cristo, ali bem presente (segundo os crentes) na história sagrada.

Deste modo, o agente ideológico da Expansão, por excelência (que não o único, porque comandante que se prezava incitava os seus combatentes), será o missionário com vestes sacras e com a cruz alçada na mão, proferindo palavras de incitamento e distribuindo bênçãos e perdões durante o combate. Por vezes, em situações mais difíceis, a intrepidez do missionário leva-lo-á, mesmo, a montar um cavalo e a tomar a dianteira do exército, tal como sucedeu em 1557, quando o governador da Índia, Francisco Barreto, decidiu combater alguns capitães do Idalcão que ameaçavam Goa. Depois de haver formado o seu exército, dirigiu-se ao colégio de São Paulo e

[…] levou consigo ao padre João de Mesquita e o padre Pedro d’Almeyda a cavalo; aos primeiros encomtros que lá tiverão com os mouros foy o padre João de Mesquita na dianteira com seu cavalo com hum Crucificio arvorado em huã astea duma mea lança nas mãos e os soldados apos este; afirmo-lhes charissimos que foi tamanho o esforço dos soldados e contentamento dos fidalgos da India que quando depois tornarão não falavão em outra cousa senão no esforço que o padre com suas palavras lhes dava.[26]

Tomando “por voz o nome do nosso Capitão Geral Jesu Christo, Nosso Senhor” por “quem estavam aparelhados a morrer, pelo qual todos os mais estavão confessados e avião recebido o Santíssimo Sacramento” – conforme se lê (e repare-se na persistência dos ritos quatrocentistas) numa carta do Padre Francisco Peres – compreende-se que os nossos não mostrassem fraqueza durante o combate. Antes, redobravam as forças físicas e, perante os resultados de uma vitória humanamente surpreendente, logicamente concluíam que fora milagre. Um exemplo: ao terminar o cerco de Malaca, de 1551,

[…] despois das dez, que a gente se vio livre de hum periguo tamanho, todos. claramente, confessarão ser esta victoria não alcançada por forças humanas. pelo qual o Padre Viguayro, com todos os cleriguos, com hum cmcifixo diante, correrão os muros [da cidade], dando graças ao Senhor, que havia remido a cidade, a sesta feira.[27]

E daí até se reforçar a ideologia oficial ia um passo, como se poderá documentar com esta citação da obra de frei Amador Arrais de finais do século XVI:

Em nossas guerras nunca faltarão mostras de Deos as favorecer como suas […] Sabemos que alguãs batalhas das que na Índia aos nossos se derão. depois de muitos encontros, e recontros, se vio receberem os Portuguezes os pelouros de ferro no meyo dos corpos, sem o golpe lhes imprimir mais que hua pequena nodoa.[28]

EM JEITO DE CONCLUSÃO

A temática “A expansão portuguesa pela espada e pela cruz”, para corresponder à realidade, exige a utilização do método global ou sistémico, com a consideração de um forte imbricamento dos domínios político-militar e religioso, que quanto aos objectivos, quer quanto às estratégias. Ou seja, o Império Português, suportado pela espada, procurava ser de forte matriz religiosa (no caso cristã, com a dimensão civilizacional inerente a esta imagem de marca) e a sua debilidade militar (sobretudo em termos de escassez de recursos humanos) tendia a ser compensada pela ideologia cruzadística e miraculista, a que não eram alheios, antes pelo contrário, para além dos valores da honra e da glória (celeste), os do proveito e da fama. Sob esta perspectiva, em particular da afirmação do mercantilismo e do humanismo, é óbvio que a modernidade da Expansão Portuguesa completará a sua forte tradicionalidade, ou seja, a sua inspiração nos modelos do Império Romano do Ocidente e do Império Romano do Oriente.

NOTAS

  1. Gomes Eanes de ZURARA, Crónica da tomada de Ceuta por el-rei D.João I, Lisboa. Academia das Sciências de Lishoa, 1915, pp. 184-5.
  2. Tradução do árabe por David Lopes, sob o título História dos portugueses no Malabar, Lisboa, Imprensa Nacional, 1898, p. 5.
  3. Edição crítica de Carlos da Silva Tarouca, S. J., Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1952, pp. 12-3.
  4. G. E. ZURARA,Crónica da tomada de Ceuta por el-rei D.João l, p. 211.
  5. Crónica dos sete primeiros reis de Portugal, p. 41.
  6. Cartas de Alfonso de Albuquerque, seguidas de documentos que as elucidam, t. III, pp. 3-5.
  7. Por João Rodrigues, 1630, fol. 87.
  8. G. E. ZURARA, Crónica da tomada de Ceutaporel-reiD.Joãol, pp. 171 e 184.
  9. Idem, ibidem, p. 151.
  10. Idem, ibidem, p.184.
  11. Idem, ibidem, p. 32.
  12. Idem, ibidem, p. 248.
  13. Idem, ibidem, p. 258 E 260.
  14. Idem, ibidem, p.39.
  15. Manuscrito latino traduzido por Aires Augusto do Nascimento, Lisboa, 1972, pp. 12-3.
  16. Crónica dos sete primeiros reis de Portugal, pp. 39-41.
  17. Livro de arautos, pp. 262-3.
  18. G. E. ZURARA, Crónica da tomada de Ceuta por el-rei D. João l, pp. 157-8.
  19. Idem, ibidem.
  20. Idem, ibidem, p. 158.
  21. Idem, ibidem, p. 161.
  22. Idem,ibidem, p. 201.
  23. Idem, ibidem, p. 36.
  24. Idem, ibidem, p. 202.
  25. Idem, ibidem.
  26. Carta do ps: Luís Fróis, de 30 de novembro de 1557.
  27. Carta do Pº Francisco Peres, de 24 de novembro de 1551.
  28. Dialogas, Coimbra, na off. De Diogo Gomes de Loureyro, 1604, fl. 134-v.

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