2013

A flecha do tempo e o rio do tempo – Pensar o futuro

por Francis Wolff

Resumo

Em certo sentido, o futuro não para de mudar. Estamos sempre reinventando o futuro em função da maneira como nos pensamos no presente e imaginamos o mundo de hoje. Portanto, o futuro não é mais o que era. No fundo, o mesmo se dá com o passado, nem o passado é mais o que era.

Se nos abstrairmos de seu conteúdo concreto para pensarmos seus conceitos, as três dimensões do tempo (presente, passado e futuro) têm uma definição imutável: o presente é sempre o que é real; o passado é o que não é mais real e que é, no entanto, necessário, pois ninguém pode fazer com que o que foi feito não tenha sido feito; e o futuro é sempre o que ainda não é real e que é apenas possível.

O que é o futuro? O que é esse estranho tempo que nunca alcançamos?

Podemos conceber esse futuro imutável de duas formas, porque dispomos de duas imagens para representarmos o tempo: o rio e a flecha. Podemos nos imaginar imersos no “rio do tempo”. O tempo flui à nossa volta sem que possamos paralisá-lo. O futuro está à nossa frente, o passado, atrás.

Quando pensamos no tempo como uma flecha, imaginamos que o tempo passa como um trem que veríamos passar sempre na mesma direção e à mesma velocidade, irreversivelmente. A única diferença é a de que o tempo não passa da esquerda para a direita, mas do antes em direção ao depois, irrevogavelmente. O tempo, pensamos então, é isso mesmo, aquilo que faz com que o posterior se siga sempre e necessariamente ao anterior.

Entretanto, essas duas imagens do tempo parecem dizer o contrário uma da outra. No primeiro caso, segundo a imagem do rio, o tempo parece vir do futuro: um dado acontecimento ainda não existe, é portanto futuro, será; a seguir, esse futuro aproxima-se para finalmente tornar-se presente, ele é; e enfim, distancia-se de nós, torna-se passado, foi. No segundo caso, segundo a imagem da flecha, o tempo parece correr no sentido contrário ao do rio, para o futuro. De um lado, com o tempo, as coisas parecem mover-se em direção ao passado; de outro, com o tempo, as coisas parecem mover-se em direção ao futuro.

O tempo seria, então, como o rio, em que nos encontramos ou como a flecha, que vemos passar? O futuro seria o que nos precede ou o que se segue ao nosso tempo? Este paradoxo talvez nos desvende uma das chaves do mistério do tempo.


O FUTURO NÃO É MAIS O QUE ERA

O que é o futuro?

É simples. Vocês conhecem Brasília? Claro, todo mundo conhece Brasília, inaugurada em 1960, como a cidade do futuro. Todos sabem o que é o Plano Piloto, em forma de avião, que era o símbolo da modernidade tal como era vista em 1960. Todos ouviram falar da racionalidade de Brasília: os bairros residenciais se organizam em superquadras, isto é, em unidades de habitações idênticas, funcionais e autossuficientes, com seus centros comerciais, suas escolas e seus jardins. Brasília é uma cidade concebida para os carros. Nela, portanto, é difícil encontrar espaços para andar a pé, pois a concepção da cidade privilegiou o transporte mecanizado, especialmente entre o trabalho e a residência. Há setores especializados para tudo, embaixadas, polícia, bombeiros, hotéis, oficinas de automóveis, sapatarias, entre os quais circulamos por largas autopistas. É assim que visionários como Juscelino Kubitschek ou Lucio Costa pensavam, no passado. seu presente e imaginavam seu futuro, nosso presente, cinquenta anos mais tarde.

Todos vocês conhecem Brasília. Mas conhecem Masdar? É o nome da nova cidade do futuro, a ecovila de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos. Foi concebida em 2008 e o canteiro de obras começou há três anos, exatamente cinquenta anos depois de Brasília. Mas é o exato oposto de Brasília. Esta foi concebida sob o signo da velocidade e do progresso. Todos lembram o slogan: “Cinquenta anos em cinco!”. E sabemos que mesmo essa previsão voluntarista foi superada: as obras de Brasília foram concluídas em três anos e meio. Em Masdar, ao contrário, elas serão muito lentas: iniciadas em 2009, só deverão terminar em 2020. Será a primeira cidade do planeta sem emissões de CO2, sem desperdício, sem carros: a capital do desenvolvimento sustentável. O plano geral da cidade, concebido pelo arquiteto britânico Norman Foster, mistura tecnologia de ponta e urbanismo árabe tradicional. Em Masdar não haverá carros. As pessoas circularão em Personal Rapid Transit (PRT, Transporte Pessoal Automatizado), dito também podcar em inglês, um meio de transporte coletivo leve, feito de pequenos veículos independentes que funcionam como táxis sem motorista, sem parada intermediária e circulando numa pista exclusiva. Haverá duas versões desse transporte: uma para as mercadorias, outra para os passageiros, espécies de bondes com paradas a cada duzentos metros, circulando sobre trilhos magnéticos e movidos por energia solar. Serão os únicos veículos autorizados a circular, pois toda a cidade pertencerá ao pedestre. A eletricidade será gerada por painéis. fotovoltaicos e a climatização se fará com energia solar. Uma usina de dessalinização, funcionando igualmente com energia solar, abastecerá Masdar de água potável, e os espaços paisagísticos da cidade serão regados pelas águas servidas tratadas. As construções terão telhados vegetalizados, integrarão culturas alimentícias e participarão da reciclagem da água e dos resíduos. Imensas sombrinhas em forma de girassol seguirão o curso do sol a fim de dar sombra a uma ampla praça para pedestres, antes de se fecharem ao anoitecer para liberar o calor absorvido durante o dia.

É isso o futuro? Então o futuro não é mais o que era.

O futuro era antes concebido como Brasília e traduzia as visões, as esperanças e os temores dos anos 1950: visão prometeica de uma conquista racional e absoluta do homem sobre a natureza; esperança de recursos energéticos indefinidos, crença no progresso ilimitado, no poder da produtividade, da técnica e da velocidade. Hoje o futuro é concebido como Masdar e traduz as esperanças e as angústias de nossa época: temor da poluição e do aquecimento climático, do esgotamento dos recursos naturais, desconfiança diante do produtivismo; visão de uma reconciliação do homem com a natureza, de uma harmonia das espécies na biosfera; esperança de uma vida lenta ou de redes sociais ampliadas. Sonhamos hoje com Masdar – ou melhor, sonhamos viver numa outra Masdar, longe dos Emirados, talvez perto de Paraty, em algum lugar mágico à beira do mar entre Rio e São Paulo. São os nossos sonhos de hoje. Mas o que sabemos dos nossos sonhos de amanhã, daqui a cinquenta anos? Talvez as Masdar de então nos parecerão tão datadas por nossas esperanças de hoje quanto a Brasília de hoje nos parece marcada por nossos sonhos de ontem.

As previsões presentes sobre o futuro nos informam mais sobre o presente que sobre o futuro. E as predições passadas nos informam sobre a maneira que os homens, ao imaginarem o futuro, sonhavam seu próprio presente. Lembro-me de minhas primeiras histórias em quadrinhos quando eu era criança. Eu lia uma revista intitulada Bibi Fricotin en l’an 2000 [Bibi Fricotin no ano 2000]. Na cidade, os pedestres circulavam por calçadas rolantes e os transportes interurbanos se faziam exclusivamente em foguetes. Isso revelava a obsessão da época pelos transportes. Quem poderia ter imaginado que o progresso tecnológico mais espetacular seria o das comunicações, a internet, o telefone celular, as redes sociais? Quem teria podido imaginar, sobretudo, a história recente de nossos temores? No tempo em que a física era a rainha das ciências, no tempo também da Guerra Fria, por muito tempo acreditamos que o fim do mundo, destruído por uma guerra atômica, seria amanhã. Na hora dos progressos espetaculares das ciências da vida e da biotecnologia, na hora da globalização econômica, nossos grandes temores se chamam OGM (Organismos Geneticamente Modificados), clonagem reprodutiva em escala industrial, destruição da biosfera, epidemias mundiais etc.

Sim, decididamente o futuro não é mais o que era. O presente é o panteão de nossas angústias de ontem. Isso quer dizer que nossos temores de hoje são quiméricos? Não mais do que os de ontem. Mas é talvez por serem reais enquanto temores que conseguiremos evitar que se realizem, assim como foi o temor da bomba atômica que várias vezes salvou o planeta da guerra atômica.

E os sonhos políticos de ontem? Esperava-se o fim da exploração do homem pelo homem, uma sociedade sem classes e a vitória do socialismo. Mas as desigualdades sociais aumentam e o socialismo fracassou em toda parte. O futuro não é mais o que era. É o cemitério de nossas ilusões. Nada ou pouco se esperava da democracia representativa, que pensávamos reservada aos países do Velho Continente. Hoje ela é aprovada em quase toda parte, para a grande felicidade dos povos: os da Europa Meridional (Grécia, Portugal, Espanha) a partir dos anos 1970, os da América Latina nos anos 1980, os da Europa Oriental nos anos 1990, e agora em certos países do Norte da África. O presente não é o que o passado imaginava como futuro.

Sim, o futuro não é mais o que era. E isso porque o mundo muda e o porvir é sempre em parte imprevisível. Todo porvir é vivido, pensado e imaginado no presente. Tão logo o porvir se realiza, ele cessa de ser “por vir”, é presente. E é assim também porque envelhecemos. As possibilidades de nossa juventude se fecharam, as realidades improváveis se atualizaram. Não nos tornamos inteiramente nem o que esperávamos, nem o que temíamos.

FUTURO E PASSADO

Por que o futuro não é mais o que era? É que, para poder viver no presente, devemos a todo instante nos voltar para o porvir. Mas devemos também, e pela mesma razão, nos voltar a todo instante para o passado. Temos necessidade tanto de nossas lembranças como de nossas esperanças. Pois forjamos nossa identidade a partir de lembranças e desejos. E, quando digo “nós”, falo não apenas de qualquer um de nós, mas, de maneira mais geral, de qualquer “nós”, de toda identidade pessoal ou coletiva: “nós” franceses, “nós” brasileiros, “nós” seres humanos temos sempre necessidade de reconstruir nosso passado, isto é, nossa história, que é outro nome de nossa identidade. Uma comunidade, seja ela qual for, um povo, seja ele qual for, é como um indivíduo que deve permanentemente inventar para si um novo passado. Acontecimentos de nosso passado coletivo que pareciam anódinos há dez ou vinte anos, que estavam por assim dizer esquecidos, adquirem subitamente grande importância. Eles iluminam o presente com uma nova luz. Um país muda às vezes de heróis. Certos “salvadores da pátria” de ontem parecem hoje ditadores sanguinários. “Terroristas” de outrora passam a ser chamados “resistentes”. As “revoluções” se tornam, a seguir, “golpes de Estado militares”. O que é tido por uma tradição imemorial às vezes não é mais que uma invenção recente. O passado não é mais o que era. Consequentemente, o presente de hoje também não é mais o que será amanhã.

Portanto, não é mais somente o futuro que não é mais o que era. Também o passado. Nem o passado nem o futuro são os mesmos, nunca. Pois o presente não cessa de se alimentar deles e os recria permanentemente.

PRESENTE, PASSADO, FUTURO

Dirão, porém, que não é no mesmo sentido que o futuro e o passado não cessam de mudar. Pois o passado passou, de uma vez por todas. Ele é, como se diz, necessário. Um adágio escolástico dizia: “Mesmo Deus não pode fazer que o que foi não tenha sido”. Já o futuro é certamente indeterminado ou pelo menos incerto. Mas é preciso distinguir: uma parte do futuro é previsível, é o que depende, em suma, das leis naturais: sabemos prever a posição dos astros de maneira absolutamente certa em qualquer data futura, sabemos prever o dia e a hora, até mesmo em segundos, do próximo eclipse da Lua. Sabemos também prever, com a mesma certeza, a maior parte dos efeitos de uma reação física ou química. Conhecer é prever. É o que torna possível todas as técnicas, da máquina a vapor ao computador. Pois, sabendo como as causas produzem naturalmente certos efeitos, conhecemos os meios de produzir tecnicamente certos fins. E, se não sabemos ainda prever que tempo fará em nosso jardim na semana que vem, não é porque seja incerto, é porque os dados sobre as massas de ar, as temperaturas, as pressões são extremamente numerosos e complexos, de modo que os mais poderosos computadores ainda não os podem controlar. Na escala microfísica, o determinismo é certamente universal. Não sabemos prever tudo, mas sabemos quase tudo o que seria preciso para prever a evolução física do mundo, pois as leis da natureza são constantes. Na escala física, portanto, o futuro é sempre o que era.

E será sempre o que é.

O mesmo não acontece com a conduta humana, que parece não obedecer a leis universais. É aí que o futuro não é mais o que era. A partir do momento em que entra a história, estamos não apenas no incerto, no imprevisível, mas também no indeterminado. Não podemos dizer com toda a certeza o que acontecerá amanhã. Alguns futuros são contingentes. Aristóteles dava o exemplo de uma batalha naval. É o caso de qualquer acontecimento político. Talvez um dia saibamos prever tudo do cosmos, mas certamente continuaremos a nada poder predizer do mundo humano. Não conseguimos sequer predizer o comportamento de nosso melhor amigo. Nem mesmo o nosso.

Por isso podemos dizer: o presente é real, ele é o que é. Mas o passado é mais do que real, ele é necessário: é impossível que não tenha sido. Quanto ao futuro, ele é somente possível: certos acontecimentos poderão se produzir. Assim o tempo nos apresenta três graus de ser: o grau superior é o passado (o que não pode não ser); o grau intermediário é o presente (o que é, simplesmente); e o grau inferior é o futuro, que pode ser ou não ser.

O TEMPO, O FUTURO E SEU CONTEÚDO

É isso o futuro? A diversidade dos possíveis. Mas trata-se apenas de uma impressão. Pois talvez sejamos vítimas de uma confusão frequente e quase inevitável no que se refere ao tempo.

O que é o tempo? Parece impossível propor uma definição. Como observou Santo Agostinho: “O que é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei, mas se não me perguntam e quero explicar, já não sei mais”[1]. Do tempo temos apenas um conhecimento intuitivo, não conceitual. E mais: esse conhecimento intuitivo não é direto! Nunca temos acesso ao próprio tempo, mas às coisas que estão no tempo e mudam com o tempo. Percebemos a mudança, não o tempo. É o que já assinalava David Hume: “Toda vez que não temos percepções sucessivas, não temos noção do tempo, mesmo se houvesse uma sucessão real nos objetos […] O tempo não pode fazer sua aparição nem completamente só, nem acompanhado de um objeto constante e invariável, mas se deixa sempre descobrir por alguma sucessão perceptível de objetos mutáveis”[2]. Passou o tempo porque agora não chove mais, porque eu dormi, porque o ponteiro do relógio se moveu, porque meu filho cresceu etc. É a razão pela qual temos a impressão, enganadora, de que, se as coisas parassem de mudar, o próprio tempo pararia. Em versos que todos os escolares franceses conhecem, o poeta romântico Lamartine escreveu:

Ô temps! Suspends ton vol, et vous, heures propices,

Suspendez votre cours:

Laissez-nous savourer les rapides delices

Des plus beaux de nos jours![3]

Mas o filósofo poderia responder ao poeta: “Que o tempo suspenda seu voo, admito! Mas… por quanto tempo?”. Percebe-se que o poeta é vítima, como todo mundo, de uma confusão entre o tempo e os acontecimentos temporais. Pois mesmo se pudéssemos deter o curso dos acontecimentos – e é o que desejamos nos momentos de alegria-, mesmo se as coisas pudessem se manter numa espécie de presente perpétuo, mesmo se o devir das coisas se detivesse, o tempo, ele, não se deteria. O futuro seria talvez semelhante ao presente, mas o tempo continuaria seu curso igual. O imutável parece atemporal, quando ele pertence à duração.

Os poetas não são os únicos a fazer essa confusão entre a forma do tempo e seu conteúdo. Ela acontece com sociólogos, psicólogos ou mesmo filósofos. Alguns sociólogos falam, por exemplo, de aceleração do tempo. Com o progresso das ciências e das técnicas, ou ainda com o desenvolvimento do capitalismo financeiro ou da globalização, eles dizem que o tempo se acelera. Mas, não, o tempo não se acelera! O que se passa é que há cada vez mais ações ou acontecimentos no mesmo lapso de tempo – ou talvez apenas se tenha essa impressão. Mas o tempo, em si, vai sempre na mesma velocidade, já que o tempo serve para medir a velocidade. Mais precisamente, a velocidade é uma derivada em relação ao tempo. Portanto, falar de uma velocidade do tempo é incoerente, pois suporia poder exprimir a variação do tempo em relação a si mesmo. O tempo segue sempre à velocidade de um segundo por segundo ou de uma hora por hora!

Outras confusões resultam da identificação do tempo com seu conteúdo. Alguns historiadores da filosofia dizem que os gregos tinham uma concepção cíclica do tempo. É absurdo. Claro que eles podiam, como outros povos, ser sensíveis ao caráter cíclico de certos fenômenos naturais: o movimento dos astros, o retorno das estações, por exemplo. Pode-se acreditar também no ciclo dos nascimentos e das mortes, na repetição dos mesmos acontecimentos a intervalos regulares, e mesmo no eterno retorno. Por que não? Pode-se postular que os acontecimentos sejam cíclicos. Mas isso provaria apenas que o tempo não o é. A exata repetição do mesmo acontecimento, alguns séculos ou milênios mais tarde, provaria que os fenômenos são cíclicos, mas o tempo, ele, continuou de forma totalmente linear, retilínea. Pois, se o próprio tempo fosse cíclico, isso implicaria que o mesmo momento se repete a intervalos regulares. E, se for realmente o mesmo momento, ele se confunde com o precedente: os dois momentos são indiscerníveis, os dois acontecimentos se desenrolam, portanto, ao mesmo tempo, sendo um único e mesmo acontecimento. Logo, a ideia de tempo cíclico concebida como eterno retorno é topologicamente incoerente: dizer que o mesmo acontecimento se repete a intervalos regulares (uma volta completa do círculo) é simplesmente dizer que o mesmo momento ocorre em momentos diferentes, o que é contraditório. Afirmar o eterno retorno é supor que o tempo é retilíneo. Tudo isso prova que a forma do tempo não deve ser confundida com seu conteúdo, os acontecimentos temporais.

E o futuro? A língua francesa é uma das raras a dispor de duas palavras, difíceis de distinguir, para designá-lo: futur, isto é, o tempo futuro, e avenir (o que ainda não é, o que está por vir). Pode-se dizer que avenir designa mais os acontecimentos “por vir”, e futur, a parte do tempo que ainda não é presente. Assim o porvir é sempre diferente, os acontecimentos por vir não sendo os mesmos que os acontecimentos passados. “O porvir não é mais o que era” significa então que não representamos mais o porvir como o representávamos outrora. Mas o futuro, enquanto futuro, é sempre o mesmo. Ele é e continua sendo futuro. É uma dimensão essencial e constitutiva da temporalidade. Inclusive dizer que o futuro é possível é ainda confundir o tempo e seu conteúdo. O futuro, como dimensão do tempo, é tão real quanto o presente. Só que ainda não é, eis tudo. É a parte do tempo que nunca atingimos, mas que representamos sempre.

Aliás, essa distinção do tempo e de seu conteúdo nos oferece um meio indireto de definir o tempo. Basta justamente abstrair as coisas temporais.

Façamos uma experiência de pensamento. Representemos o mundo ao redor. Suprimamos em pensamento todos os corpos que o habitam. O que resta? Nada? Não: resta o espaço no qual se achavam esses corpos. Resta também o tempo no qual se desenrolavam todas as mudanças que aconteciam aos corpos, isto é, os acontecimentos. O espaço aparece como uma espécie de forma vazia na qual se podem introduzir corpos de três dimensões. Retiremos então o espaço. O que resta? Nada? Não: resta o tempo no qual e pelo qual pensamos. O tempo aparece como uma espécie de forma vazia na qual se podem introduzir processos de uma dimensão: as mudanças que acontecem às coisas sensíveis (os corpos extensos no espaço) e aos pensamentos, o nosso. Eis o que ilustra a distinção entre a forma do tempo e seu conteúdo. Os acontecimentos são sempre distintos, o tempo permanece imutavelmente o mesmo. Essa, pelo menos, era a concepção de Newton: “O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, sem relação a nada de exterior, escoa uniformemente e chama-se duração”[4]É também a concepção de Kant, para quem o tempo era uma forma pura, aquela pela qual percebemos as coisas exteriores e nossos próprios pensamentos, um quadro a priori no qual vêm se instalar, a posteriori, todos os fenômenos percebidos, estejam eles em nós ou fora de nós. Mas talvez o tempo não seja uma forma sem conteúdo. Pois o que seria um tempo vazio, uma duração sem nada que dure? Absolutamente nada. Segundo a concepção de Leibniz, oposta nesse ponto à de Newton, sem acontecimentos não haveria tempo[5]. O tempo não é uma substância que existe por si mesma e que os diversos acontecimentos que nele se desenrolam, reais ou possíveis, viriam preencher: é simplesmente uma relação entre os acontecimentos existentes. O mesmo se dá com o espaço, com a única diferença de que o espaço e o tempo não definem o mesmo tipo de relações entre as coisas. O espaço é uma ordem de coexistências: ou seja, os existentes que são compatíveis entre si podem estar, um em relação ao outro, numa relação espacial. Assim Sócrates e Platão podem existir no mesmo espaço sem contradição. Já o tempo é uma ordem de sucessão: os existentes incompatíveis só podem coexistir sucessivamente, isto é, numa relação temporal, um antes do outro ou um depois do outro, mas não simultaneamente. Assim, “Sócrates sentado” e “Sócrates de pé”, sendo contraditórios, um não pode existir se o outro existe. Ambos podem existir, mas sucessivamente. O tempo não é mais que essa relação de incompatibilidade entre estados do mundo igualmente existentes.

Seja como for, isso não muda em nada nossa experiência de pensamento inicial. Que o tempo possa existir sem os acontecimentos (como quer Newton) ou que ele não exista independentemente dos acontecimentos (como quer Leibniz), as propriedades do tempo não são as dos acontecimentos. Ainda que os acontecimentos temporais sejam sempre diferentes, o tempo, ele, é constante (nunca muda); é unidimensional (ao contrário do espaço tridimensional), é unidirecional (vai sempre no mesmo sentido, irreversivelmente) e é denso (há um instante entre todo par de instantes distintos).

Concluamos então provisoriamente. O tempo é imutável. E, desse ponto de vista, o futuro como dimensão do tempo é também sempre o mesmo.

A FLECHA E O RIO

Não podemos, porém, nos contentar com isso. Foi dito que não se devia confundir o tempo e seu conteúdo. Mas não se deve tampouco confundir o tempo com a maneira pela qual ele nos aparece. Se retirarmos todos os acontecimentos, resta o tempo – e, portanto, o presente, o passado e o futuro, puros e sem conteúdo. Mas isso é realmente certo? É certo que, no próprio tempo, há presente, passado e futuro?

Recorramos desta vez não mais a uma experiência de pensamento, mas às imagens que associamos espontaneamente ao tempo. Podemos distinguir duas principais: o rio e a flecha. Acontece-nos de pensar o tempo como uma flecha. Olhamos, por exemplo, uma imagem da evolução das espécies na Terra, ou então a história dos Jogos Olímpicos. Representamos uma flecha orientada da esquerda para a direita. Imaginamos que o tempo passa como um trem que veríamos passar sempre na mesma direção e à mesma velocidade, irreversivelmente, percorrendo diferentes etapas, com a única diferença deque o tempo não passa da esquerda para a direita mas, sim, do antes para o depois, irrevogavelmente. O tempo é isso mesmo: é o que faz que o posterior siga sempre e necessariamente o anterior. A flecha representa a irreversibilidade do tempo[6]. Sobre a flecha, as diferentes etapas poderiam ser datadas: “Os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016 vêm depois dos de Londres, mas antes dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pyongyang em 2018. Ou ainda: “A batata estava crua, foi colocada na água fervente e, vinte minutos mais tarde, estava cozida”. O que está “antes” precede o que vem “depois” – do cru ao cozido, de 2012 a 2016 e depois a 2018, irreversivelmente.

Mas, nesse vetor indefinido, onde está o presente? Poderia estar em qualquer ponto. Não está em nenhum em particular. E nós, onde estamos? Nada o indica a priori. O que importa é a relação entre os acontecimentos. Na flecha não há nem presente, nem nós. Poderíamos estar em qualquer ponto; vemos o mundo e seus acontecimentos expostos diante de nós e estamos fora do tempo. Em contrapartida, podemos nos imaginar imersos no “rio do tempo”. O tempo escoa ao redor de nós sem que possamos detê-lo. Somos imóveis e o tempo é que parece passar. O futuro está diante de nós, o passado, atrás. E nós estamos sempre no presente, sem nunca poder sair desse “agora”. Pensamos coisas como: “Ainda não são oito horas”. Pensamos que os Jogos Olímpicos do Rio são futuros, enquanto os de Londres já pertencem ao passado. Pensamos que o ano de 2012, que ontem era futuro, é hoje presente e amanhã será passado.

Outro poeta francês, Apollinaire, do século XX, descreve bem essa experiência:

Sous le pont Mirabeau coule la Seine

Et nos amours

Faut-il qu’il m’en souvienne

La joie venait toujours après la peine

Vienne la nuit sonne l’heure

Les jours s’en vont je demeure[7]

Sim, tenho exatamente esse sentimento de estar no rio do tempo: sem fazer nada, sem jamais me mover, envelheço, pois é o tempo que age sobre mim. Ele passa. O presente nunca é o mesmo, enquanto eu sou sempre eu, sempre no presente. Como eu poderia me mover? Não posso nem retornar ao passado, nem ir em direção ao futuro.

Comparemos essas duas imagens, o rio e a flecha. O que elas têm em comum é que dizem a mesma topologia do tempo: o tempo é linear, unidimensional, unidirecional e denso. Mas há duas importantes diferenças.

A primeira se deve ao vocabulário, ou melhor, à lógica. Na flecha se utilizam datações absolutas (2012, 2016, 2018), ao passo que no rio se utilizam datações relativas à posição daquele que fala: “hoje”, “ontem”, “amanhã”, “há duas horas”, “daqui a duas horas”, assim como, é claro, “presente”, “passado”, “futuro”. Inversamente, a flecha nos informa objetivamente sobre a relação entre os acontecimentos, a maneira como se situam uns em relação aos outros: “antes” ou “depois”, “anteriormente” ou “posteriormente”, e até mesmo “simultaneamente”. Já o rio nada nos diz sobre a relação entre os acontecimentos, mas apenas sobre a posição subjetiva que eles ocupam em relação a nós: são presentes, isto é, existem ao mesmo tempo em que falamos ou em que existimos; são passados, isto é, existem anteriormente a nós; são futuros, existem posteriormente ao nosso presente.

A segunda diferença é mais espantosa. Essas duas imagens do tempo parecem nos dizer o contrário uma da outra. No primeiro caso, segundo a imagem da flecha, o tempo parece ir no sentido contrário do rio, seguindo em direção ao futuro: os Jogos Olímpicos de 2012 precedem os de 2016, o cru precede sempre o cozido, o nascimento dos seres precede sempre sua morte, todas as coisas, ao envelhecerem, vão em direção a seu fim (futuro). No segundo caso, conforme a imagem do rio, o tempo parece vir do futuro: um acontecimento dado (por exemplo, os Jogos Olímpicos do Rio) ainda não existe, portanto é futuro, ele será; depois esse futuro se aproxima cada vez mais para finalmente se tornar presente, ele é; e por fim ele se afasta de nós, torna-se passado, ele foi. De um lado, com o tempo da flecha, as coisas parecem ir rumo ao futuro; de outro, com o tempo do rio, as coisas parecem ir rumo ao passado. É estranho. Seria o tempo como a flecha que vemos passar, ou seria como o rio no qual estamos? O futuro é o que nos precede ou é o que segue nosso tempo?

Na verdade, a segunda diferença pode se explicar pela primeira. Na primeira imagem há somente relações temporais, anterior/ posterior/ simultâneo – o que o filósofo McTaggart[8] chamou as relações B; mas não há presente. Na segunda imagem há propriedades temporais absolutas (presente/passado/futuro), o que McTaggart chama as relações A. Mais importante: estamos fora da flecha do tempo, ao passo que estamos dentro do rio do tempo. O que chamamos tempo, na flecha, é o fato de as coisas mudarem ou os acontecimentos se sucederem. No rio, vemos o desenrolar do tempo a partir da posição fixa que ocupamos na duração, o presente. Esse presente é sempre o nosso, portanto é sempre o mesmo enquanto presente; mas ao mesmo tempo ele é sempre outro em seu conteúdo. O que chamamos “tempo”, no rio, é o fato de o mesmo tempo presente ter sempre um conteúdo distinto. É como se guardássemos um ponto fixo na flecha do tempo e quiséssemos nele representar a passagem do tempo. Sendo fixo esse ponto, é a flecha que iria em sentido inverso, os acontecimentos se tornando passado à medida que o tempo passa.

A partir daí se colocam as seguintes questões. Qual é a melhor representação do tempo? O tempo em si mesmo tem necessidade das propriedades A ou pode se contentar com as relações B? Em outras palavras, o presente, portanto o passado e o futuro existem objetivamente ou apenas subjetivamente? Se não há nem passado nem futuro no mundo, a ideia de que o passado é necessário e de que diversos futuros são sempre possíveis é ela mesma uma ilusão: uma ilusão devida à nossa limitação de seres temporais. É o que precisamos agora examinar.

A FLECHA OU O RIO?

Partimos de uma evidência. O presente é a própria realidade. O futuro é apenas possível, só existe em nossa imaginação, na esperança ou no temor; e o passado só existe em nossa lembrança, na saudade ou na nostalgia. No fundo, o presente não só é claramente real, mas nenhuma outra coisa é real senão o presente, a ponto de ele ser, parece, o único estado de coisas a respeito do qual a questão de sua realidade não pode se colocar.

Mas façamos agora esta pergunta: será mesmo que o presente é real? Demos a palavra, portanto, aos adversários do rio, aos partidários da flecha. Eles têm dois tipos de argumentos: lógico e físico.

Comecemos pelo argumento lógico. Referir-se ao presente implica o ponto de vista de uma consciência. De fato, se tivéssemos nascido na época da República Romana e não no século XX, o acontecimento “Bruto mata César” seria presente e não passado. Para os nossos tataranetos, os Jogos Olímpicos do Rio serão passado. Ora, a realidade não depende de maneira alguma do ponto de vista de quem fala ou de quem pensa sobre ela. Um ponto de vista objetivo sobre o mundo não deve depender da posição particular de quem o descreve. Ora, o presente depende do momento no qual se fala dele. Logo, um ponto de vista objetivo sobre o mundo deve excluir o presente, assim como o passado e o futuro.

Examinemos melhor esse argumento lógico. Pode-se fazer o paralelo com o raciocínio que se faz espontaneamente a propósito do espaço. “Aqui” e “lá” não têm valor objetivo algum: essas indicações dependem do ponto de vista de um observador particular. Quando digo “aqui” designo o lugar onde estou, e quando você diz “aqui” está designando outro lugar, aquele onde você está. É exatamente como quando se diz “eu”. Essa palavra tem sempre o mesmo sentido, designa sempre a pessoa que fala. Mas, como em geral é sempre outra pessoa que fala (não neste instante, reconheço!), “eu” designa a cada vez outra pessoa. “Aqui”, “lá” ou “eu” não existem objetivamente. O que existe não são essas determinações subjetivas, mas relações espaciais: longe de Paris ou perto do Rio de Janeiro. E essas relações podem ser conhecidas porque são objetivamente mensuráveis: cinco metros, nove mil quilômetros etc. É aí que começa o conhecimento objetivo da realidade, por oposição à simples descrição subjetiva, como quando se diz: “é longe daqui”. O mesmo acontece com o tempo, dirá o partidário da flecha: assim como o espaço compreende apenas relações entre lugares (afastamento/proximidade) – relações objetivamente mensuráveis e, portanto, conhecíveis-, o tempo comporta apenas relações entre acontecimentos (anterioridade/posterioridade) – relações igualmente mensuráveis: cinco minutos, dez dias, 15 séculos. É somente quando o observador privilegia, por razões psicológicas, o ponto de vista egocêntrico que ocupa no espaço ou na flecha do tempo (ele vive no século XX e não no XIX) é que ele dará realidade ao presente, ao passado ou ao futuro. Uma descrição objetiva do mundo não deve, portanto, comportar essas noções. Assim como a palavra “aqui” designa o lugar singular onde é enunciada, assim como a palavra “eu” designa o locutor que a cada vez a enuncia, assim também a palavra “presente” designa o momento variável no qual é enunciada. Uma linguagem perfeita deveria, em teoria, se abster desses termos “indexicais” e substituí-los por equivalentes objetivos, como “aquele que fala no Rio, em 29 de agosto, na Academia Brasileira de Letras”, no lugar de “eu”, “o momento em que Wolff fala” por “agora”, ou “2012” por “presente”. Portanto, o mundo não conhece nem presente, nem passado, nem futuro. Um ponto para o partidário da flecha.

A esse argumento lógico ele poderá acrescentar um argumento físico. A Teoria da Relatividade Restrita, de Einstein (confirmada desde mais de um século por inúmeros fatos de experiência), trouxe uma prova suplementar que parece sem apelação. Mesmo os que não a conhecem não ignoram que ela limita a noção de simultaneidade aos acontecimentos observados a partir de um referencial: se dois acontecimentos são simultâneos num referencial dado, eles não são mais simultâneos noutro referencial em movimento em relação ao primeiro. Consequentemente, o presente é um efeito da posição do observador. No mundo mesmo não há presente absoluto, logo não há tampouco futuro, apenas uma relação entre certos acontecimentos: alguns são posteriores a outros. Mas é preciso também que eles estejam conectados entre si, porque pertencem ao mesmo cone de luz. Somente nessa hipótese eles podem estar ligados por uma relação de ordem temporal (tal acontecimento X é anterior a tal acontecimento Y, mas não o inverso) ou de causalidade (X pode ser causa de Y, mas Y não pode ser causa de X). Isso marca dois pontos a favor da flecha contra o rio.

O que pode responder o partidário do rio? Lembremos o que está em jogo: ninguém contesta que “presente”, “passado” e “futuro” existem para nós. O problema é saber se existem em si, no mundo.

Ao argumento científico da Relatividade Restrita se pode objetar que as teorias físicas não têm o monopólio da descrição objetiva da realidade. Assim, dizemos que a mesa, a cadeira, a Terra, a Lua são reais, quando, de um ponto de vista físico, são apenas átomos, elétrons e quarks. Há coisas que são objetivamente reais no mundo e que não dependem das leis da física. Portanto, mesmo se, do ponto de vista do realismo científico, no espaço-tempo da Relatividade Restrita, a noção de presente não tem sentido algum, não se pode negar que, segundo o realismo natural, o presente é de fato real, tão real quanto a cadeira ou a mesa. No mundo em que vivemos e pensamos, o presente existe independentemente de nós, e é esse presente que delimita o que deixou de ser real de um lado (o passado) e o que ainda não é real (o futuro). O presente é claramente real. E o futuro será em breve real. Um ponto para o rio.

Resta o outro argumento, o argumento lógico. O partidário do rio contestará o paralelismo entre “aqui” e “presente”. Ele dirá: “presente” não pode ser subjetivo no mesmo sentido que “aqui”. Quando estou “aqui”, sempre posso escolher ir a outra parte, a um lugar que, uma vez atingido, poderá ser designado como “aqui” e de onde o que designo atualmente como “aqui” poderá ser chamado “lá”. Mas não posso fazer o mesmo em relação a “agora”. Não posso decidir, por exemplo, ir em direção ao que me aparece atualmente como passado – o passado está fora do meu alcance e do alcance de qualquer outro. O presente me é sempre imposto sem que eu o possa escolher ou mudar. Certo, é preciso perceber diferenças. Se não é possível ir em direção ao que é agora passado, é possível ir em direção ao que é atualmente futuro. Na verdade, isso não é somente possível, é absolutamente necessário. É tão impossível para mim, queira ou não, ir ao que é agora o passado, quanto me é necessário, queira ou não, ir em direção ao que é agora o futuro. Nem uma coisa nem outra dependem de mim. Ambas dependem do próprio tempo. E isso é a realidade do tempo! Enquanto depende de mim, e não – ou não apenas – da estrutura objetiva do espaço, ir a esse ou àquele ponto do espaço ou vir deles – e é o que define a ordem espacial das posições – não depende de mim, mas apenas da estrutura objetiva do tempo, ir a determinado instante do tempo – e é o que define a ordem temporal irreversível de sucessão, por oposição à das posições. Sou eu que me desloco no espaço, enquanto, inversamente, parece ser o tempo que “se desloca” em relação a mim: os acontecimentos estão por vir antes de serem presentes e se tornarem passados. Enquanto o espaço aparece intuitivamente como aquilo no qual podemos nos mover, o tempo aparece intuitivamente como o que se move, o que não pode deixar de se mover, queiramos ou não. Depende de mim estar aqui e ir a outra parte, em conformidade com a ordem do espaço, enquanto não depende de mim, mas da ordem do tempo, que o que é presente seja de fato presente e se torne passado.

Temos então mais um ponto a favor do partidário do rio. Igualdade: dois pontos de cada lado.
Quem está certo, quem está errado? O que acredita no presente (ou seja, o partidário da imagem do rio) ou o que pensa que o presente é somente uma ilusão subjetiva (ou seja, o partidário da imagem da flecha)? Impossível dizer. Num sentido, parece-nos que o que acontece agora nunca aconteceu e que, portanto, é objetivamente real. Noutro sentido, parece-nos que, quando dizemos que uma coisa acontece agora, é simplesmente porque somos contemporâneos dela, e o que nos aparece como passado ou futuro é tão objetivamente real quanto o que é presente para nós. Por que então deveríamos privilegiar nosso ponto de vista?

As duas posições parecem igualmente sustentáveis, mesmo sendo incompatíveis. Mas talvez elas sejam, de maneira mais grave, igualmente insustentáveis.

Com efeito, retomemos a imagem da flecha. Os acontecimentos estão ligados aos outros por relações de “simultaneidade, anterioridade, posterioridade”. Mas essas relações são imutáveis, e a descrição realista do mundo é necessariamente atemporal. É verdade por toda a eternidade que “César entra em Roma antes de ser assassinado por Bruto”. É verdade por toda a eternidade que os Jogos Olímpicos do Rio acontecem quatro anos depois dos de Londres: isso é verdadeiro agora, como era verdadeiro no passado, como será verdadeiro para sempre – tão atemporalmente verdadeiro como dois e dois são quatro tanto hoje como ontem. Na flecha do tempo todas as relações são eternas. Nada muda. Mas como poderia haver tempo se nada muda? Não há realmente tempo, somente eternidade. De fato, não há sentido em falar de mudança se não se pode distinguir o que é, o que foi e o que será. Na flecha do tempo tudo é fixo, imutável, invariável. Para quem vê o mundo de fora, isto é, do ponto de vista eternalista de um Deus que sabe tudo sobre tudo e que abarca tudo num único olhar, assim como podemos abarcar num olhar o espaço diante de nós, não há tempo: se não estamos no mundo, se nos pensamos como estando fora do mundo, se ele é como a flecha diante de nós, de uma vez por todas, sem passado nem futuro, não há tempo.

Então, para poder pensar a mudança no mundo e, portanto, o tempo, seria preciso mergulhar de novo no rio do tempo e admitir que tudo muda o tempo todo: o que é futuro se torna presente, depois se torna passado.

“Les jours s’en vont, je demeure” [Os dias se vão, não vou embora], como dizia Apollinaire. Mas aí deparamos com outra dificuldade. Se há presente no mundo, se ele é real, se não é somente uma ilusão devida à nossa posição na história do mundo, então o passado não é real, uma vez que o presente cessa imediatamente de ser real assim que se torna passado. E o futuro o é ainda menos, uma vez que ainda não é real. Se há presente, há somente o presente, o resto não existe. Mas nesse caso como seria possível a mudança? Um ser perfeita e totalmente consciente do estado do mundo, mas que não tivesse memória do passado nem imaginação do futuro, saberia tudo da realidade, da realidade presente, mas nada veria mudar, uma vez que, para poder dizer que uma coisa muda, é preciso poder dizer que ela não era o que é agora. É preciso poder lembrar o que era essa coisa, ou poder imaginar o que ela haveria de ser antes que fosse. Mas a memória do passado e a imaginação do futuro não são características do mundo, e sim da nossa consciência. Num mundo em que o presente é real, ele é o único a existir. Caímos desta vez numa outra negação do tempo: o presentismo.

A imagem da flecha nos permite assim pensar a realidade das relações entre os acontecimentos do mundo, mas, como é desprovida de presente, passado e futuro, ela nos condena a uma visão eternalista que rios impede de pensar o tempo. A imagem do rio, ao contrário, nos permite pensar a realidade do presente, mas, como exclui a realidade do passado e do porvir, nos condena a uma visão presentista que nos impede igualmente de pensar o tempo.

O tempo é uma ilusão? Certamente não, mas é impossível encerrá-lo num conceito sem esbarrar em dificuldades insuperáveis ou em contradições. O presente é uma ilusão? Certamente não, mas é impossível dizer se ele existe fora de nós ou por nós, se depende do mundo ou de nossa consciência.

DE VOLTA AO FUTURO

Mas voltemos ao futuro. O futuro é aquele dos três modos da temporalidade que tem menos existência. Em seu conteúdo, em primeiro lugar. Por um lado, ele não é mais o que era; por outro, ele muda o tempo todo. Mas, desse ponto de vista, ele não é muito diferente, como vimos, do passado e do presente, que igualmente mudam o tempo todo. Em sua forma, em segundo lugar. Porque ainda que admitamos que o presente existe realmente, no mundo e não apenas em nossa consciência, o futuro, ele mesmo, só existe em nossa imaginação. O futuro é assim o único tempo que, de qualquer maneira, só existe em função de nós.

Esse futuro varia em função do nosso presente, já que vivemos necessariamente nesse presente. Pois vivemos hoje, não ontem nem amanhã. É o que dizia Pascal que via nisso um sinal inevitável da fraqueza humana.

Nunca nos contentamos com o tempo presente. Antecipamos o futuro como demasiado lento a vir, como para apressar seu curso; ou lembramos o passado, para detê-lo como demasiado rápido: imprudentes, erramos nos tempos que não são nossos e não pensamos no único que nos pertence; e vãos, sonhamos com os que não existem mais e evitamos sem reflexão o único que subsiste. […] Se cada um examinar seus pensamentos, verá que todos se ocupam com o passado e o futuro. Quase não pensamos no presente; e, se pensamos, o passado e o presente são nossos meios; somente o futuro é nosso fim. Assim nunca vivemos, mas esperamos viver; e, dispondo-nos sempre a ser felizes, é inevitável que nunca o sejamos.[9]

Vivemos necessariamente no presente. Por isso ele é para nós o único tempo real. Toda existência, toda consciência também, se faz no presente. Pascal retoma aqui uma ideia de Santo Agostinho:

É evidente e claro que nem o futuro nem o passado existem, propriamente falando, e que é impróprio dizer: há três tempos, o passado, o presente e o futuro; mas seria exato dizer: há três tempos, um presente acerca do passado, um presente relativo ao presente, um presente acerca do futuro. De fato, há na alma essas três instâncias, e não as vejo noutra parte: um presente relativo ao passado, a memória, um presente relativo ao presente, a percepção, um presente relativo ao futuro, a espera…[10]

Para a consciência, portanto, há somente o presente; pois o passado não é senão a memória presente do passado, e o futuro não é senão a imaginação presente do futuro. Quando no futuro nos lembrarmos desse presente, que será então passado, o traremos de volta ao presente. Será apenas outro presente. Não saímos dele. Estamos de volta ao rio.

Mas, para poder viver no presente, devemos, é inevitável, considerar sempre o futuro. Vemo-lo chegar. Do lugar onde estamos, vemos a água do futuro a montante de nós. Estamos aqui, mas para estar aqui devemos olhar adiante de nós, para além. Estamos no presente, mas devemos a todo instante ver o porvir, prevê-lo. Uma ação, importante ou banal, é intencional, caso contrário não seria uma ação, seria apenas um gesto mecânico ou um acontecimento independente de nossa vontade. Ora, toda intenção supõe a imaginação de um alvo e, portanto, a invenção de um futuro ainda inexistente. Viver no presente é querer, é desejar, é esperar outra coisa que não é presente. Portanto, é projetar-se no futuro. Eis por que, também, sabemos que morreremos um dia, mas para nós é tão difícil imaginar isso.

A propósito, não conheço frase mais consoladora e mais profunda que a da psicanalista Françoise Dolto a uma criança que tinha medo de morrer. “Quando se morre?”, esta perguntou, como todas as crianças. Ela respondeu: “Morre-se apenas quando se acabou de viver”. A resposta parece uma brincadeira, uma simples tautologia: “Evidentemente, pensamos, morreremos quando cessarmos de viver, já que a morte é por definição o fim da vida!”. No entanto, é a resposta mais profunda que conheço. Pois o que nos apavora realmente, a nós, tanto crianças como adultos, é justamente isso: não é o medo da morte, sobretudo quando pensamos que a morte é somente o nada, a ausência de consciência, é o medo de morrer demasiado cedo. Demasiado cedo, isto é, antes de ter realmente acabado de viver. Temos o sentimento de que nunca acabaremos de viver, porque há sempre algo a viver – isto é, a desejar. Portanto, não tememos a morte em si, isto é, o estado de não vida ou o fato de não existir mais, como tampouco podemos sentir falta do tempo antes do nosso nascimento. Não tememos a morte depois da vida, mas a morte dentro da vida. Ora, a vida dentro da vida, a vida da vida, é o desejo. Tememos já estar mortos quando estamos ainda vivos, tememos estar ao mesmo tempo vivos e mortos, estar fora do mundo quando ele continua a avançar sem nós e quando nós mesmos continuamos a desejar, a desejar desejar, a desejar no presente sempre outro futuro. Pois viver é isso. É estar voltado sempre para o futuro, ao futuro imediato de nossas intenções, ao futuro distante de nossas aspirações, para nós ou para nossos filhos, nossos amigos, nossos irmãos humanos. “Nunca nos contentamos com o tempo presente”, disse Pascal. “Erramos necessariamente num tempo que não é nosso, o futuro”, porque no presente se pode viver apenas a representação do futuro. A imagem do rio é talvez ilusória, mas é uma ilusão vital.

Quanto ao futuro, ele é seguramente uma ilusão, uma pura ilusão. Existe apenas em função da nossa imaginação, em nossos temores e esperanças, em nossos medos e desejos. Pois só o presente existe. É aí que somos, é no presente que vivemos. Mas não é o presente que nos faz viver. Pois se nos ocupássemos só do que o presente nos dá, não viveríamos, nos contentaríamos em sobreviver, sem finalidade. Um ser inteiramente voltado para a realidade, mas sem memória nem desejo, talvez pudesse saber tudo, mas não teria razão alguma de viver. Pascal tinha razão: somos incapazes de nos contentar com o presente, o único tempo existente. Sentimos a necessidade de imaginar, de sonhar, de desejar sempre um futuro inexistente. Estamos condenados a viver no presente, mas dele nos libertamos pela imaginação do futuro. Libertamo-nos do presente, que existe, nos voltando sempre a um futuro que não existe. Que não existe, mas que nos faz existir, dando sentido à nossa existência. O futuro, portanto, não é mais o que era. Ele está sempre por se reinventar. Essa é a verdadeira definição da liberdade humana.

Tradução de Paulo Neves.

Notas

  1. Santo Agostinho, As confissões, livro XI, cap. XIV, p. 17. 
  2. David Hume, Tratado da natureza humana, livro II, seção III. 
  3. “Ó tempo! Suspende teu voo, e vós, horas propícias,/ Suspendei vosso curso:/ Deixai-nos saborear as rápidas delícias/ De nossos mais belos dias!” 
  4. Isaac Newton, Princípios matemáticos da filosofia natural, tomo 1, definição VIII, escólio 1. 
  5. Sobre a controvérsia Leibniz-Newton, ver em particular, de Leibniz, “Terceira carta a Clarke”, Correspondance Leibniz-Clarke, Paris: PUF, 1957, pp. 53-54. 
  6. O que os físicos chamam, desde Eddington, a “flecha do tempo” não se confunde, a rigor, com essa irreversibilidade que faz parte intrínseca do conceito de tempo. A “flecha do tempo” dos físicos, especialmente em termodinâmica, não se refere à assimetria constitutiva do próprio tempo, mas à de certos processos físicos (como a entropia crescente de um sistema). Quanto à assimetria do tempo, a única que nos interessa aqui, ela caracteriza todos os processos físicos, mesmo os da dinâmica newtoniana que, como se sabe, poderiam se desenrolar do mesmo modo “nos dois sentidos” do tempo. 
  7. “Sob a ponte Mirabeau corre o Sena/ E nosso amor/ É preciso trazê-lo à cena/ Vinha sempre a alegria após a pena/ Venha a noite, soe a hora/ Os dias se vão, não vou embora.” (Trad. Vima Teixeira). 
  8. J. M. E. McTaggart, “The Unreality of Time”, Mind, n. 17, 1908, e The nature of existence, II, Londres: Cambridge University Press, 1927, cap. 33. 
  9. Pascal, Pensées, Paris: Brunschvicg (ed.), 1994, n. 172; Lafuma (ed.), 1992, n. 47. 
  10. Santo Agostinho, As confissões, op. cit., livro XI, cap. XV. 

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