2014

A inteligência do silêncio

por Jorge Coli

Resumo

O silêncio é o companheiro do historiador das artes. A dimensão silenciosa desse trabalho é tanto interna quanto externa. Externa: os objetos que se oferecem aos nossos olhos são silentes. Interna: os raciocínios pelos quais conseguimos pensar as obras de arte muitas vezes não se formulam no campo conceitual e, portanto, não podem ser expressos por meio de um som, uma palavra. Permanecem no silêncio.

O trabalho de historiador da arte é sempre comparativo. Duas obras, uma ao lado da outra, provocam intuições que não podem ser demonstradas. Roberto Longhi argumentava com frequência por meio de afirmações. Por exemplo: Piero di Cosimo viu as obras dos pintores do Norte da Europa. Contudo, como provar isso? Publicava em seu estudo fotos de detalhes de obras de um e outros, e isso bastava. Qualquer olhar percebia as semelhanças evidentes.

É possível assinalar que tal obra se parece com outra. No entanto, é impossível transmitir convicção se as imagens não estiverem presentes. Vejo, percebo, numa intuição muda, que existe relação entre as duas imagens…

Uma experiência corriqueira ajuda a entendê-lo. Alguém diz: “Ah! Como esse menino é parecido com o pai”. Mais: “Veja como o nariz é parecido”. Ele indica o ponto em que o olhar deve perceber a relação, mas apenas o olhar é juiz.

Na verdade, essa pessoa está pedindo ao interlocutor que intua, que sinta essa relação como ela a sente. Apenas isso. Não é possível fazer dela uma manifestação conceitual.

A prática dos historiadores da arte pressupõe, pois, o silêncio inteligente. Isto é: um “lugar” em que ocorre a intuição, e ela é uma forma de inteligência, para além do conceito, da frase, da lógica, do raciocínio.

Entre os aspectos inteligentes do silêncio está o fato de ele ser vários, muitos, infinitos. Tais silêncios são diferentes segundo suas origens ou as situações em que se estabelecem. Há, por exemplo, o silêncio da espera, que pode ser carregado de agitação ou tédio, ou o da noite, que acompanha a experiência sem palavras do mistério, aliado ao torpor, ao sono, ao negror invisível.

Outro exemplo, bachelardiano, é o silêncio do quarto de dormir, que guarda em si a espessura do repouso. Há também o da sala de estar ou da biblioteca, interativo, carregado de respeito, no qual se teme levantar a voz, e do templo, que parece se voltar para uma abertura para o transcendente… Vazios plenos de indícios. Foi sobre eles que John Cage construiu a sua poética.

Há mesmo um silêncio próprio às obras de arte. Ele também é múltiplo, mas essa multiplicidade pertence a algo comum, maior. Quem já passeou por um museu, por uma galeria, fora de hora da abertura, pode experimentar, de maneira plena, o silêncio cúmplice dos quadros.

A solidão no museu é carregada de uma sensação de privilégio, já que não se está com a multidão e é possível ir, através dos interstícios – em sintonia fina –, para além das aparência das obras. É o silêncio que isola diante da obra.


O silêncio é o companheiro do historiador das artes. A dimensão silenciosa desse trabalho é tanto interna quanto externa. Externa: os objetos que se oferecem aos nossos olhos são silentes. Interna: os raciocínios pelos quais conseguimos pensar as obras de arte muitas vezes não se formulam em campo conceitual e, portanto, não podem ser expressos por meio de um som, de uma palavra. Permanecem no silêncio.

O trabalho de historiador da arte é sempre comparativo. Duas obras, uma ao lado da outra, provocam intuições que não podem ser demonstradas. Um grande historiador da arte, Roberto Longhi, argumentava com frequência por meio de afirmações. Por exemplo: Piero di Cosimo viu os pintores do Norte da Europa. Contudo, como provar isso? Publicava em seu estudo fotos de detalhes de obras de Piero di Cosimo e fotos de obras flamengas ou alemãs, e isso basta. Qualquer olhar percebe as semelhanças evidentes.

É possível assinalar que tal obra se parece com outra. No entanto, é impossível transmitir convicção se as imagens não estiverem presentes. Vejo, percebo, numa intuição muda, que existe a relação que existe entre as duas coisas.

Uma experiência corriqueira nos ajuda a compreender esse ponto. Alguém diz: “Ah! Como esse menino é parecido com o pai”, e pode ainda assinalar: “Veja como o nariz é parecido” ou “Veja como os olhos são parecidos”. Ele indica o ponto em que o olhar deve perceber a relação, mas apenas o olhar é juiz.

Na verdade, essa pessoa está pedindo ao interlocutor que intua, que sinta essa relação como ela sente, apenas isso. Não é possível fazer dessa relação uma manifestação conceitual.

Portanto a prática dos historiadores da arte pressupõe o silêncio, mas um silêncio inteligente. O silêncio é o “lugar” em que ocorre a intuição e a intuição é uma forma de inteligência, se me concederem que existem outras formas de inteligência além daquelas do conceito, da frase, da lógica, do raciocínio.

Outro ponto que demonstra, também, as qualidades inteligentes do silêncio é o fato de que não existe apenas um silêncio. Existem múltiplos, vários, eu seria tentado a dizer, infinitos silêncios. Esses silêncios são diferentes segundo as suas origens, segundo a situação na qual nós nos encontramos. Há, por exemplo, o silêncio da espera, que pode ser carregado de agitações ou de tédio. Há o silêncio da noite, que faz surgir a experiência sem palavras do mistério, aliado ao torpor, ao sono, ao negror invisível.

Outro exemplo, bachelardiano desta vez, é o silêncio do quarto de dormir, que guarda em si a espessura do repouso. O silêncio do quarto de dormir é diferente do silêncio da sala de estar, por exemplo; outro também é o silêncio das bibliotecas, silêncio interativo, carregado de respeito, no qual tememos levantar a voz; ou o silêncio dos templos, que parece se voltar para uma abertura em relação ao transcendente; ou o silêncio carregado de indícios, sobre o qual John Cage construiu a sua poética.

Se pedir: fiquemos em silêncio e ouçam, perceberão que esse silêncio é carregado de ruídos, de espessura. Eu poderia continuar uma enumeração infinita.

Há um silêncio próprio às obras de arte. Ele também é múltiplo, mas esses múltiplos silêncios pertencem a um silêncio comum maior. Quem já passeou por um museu, por uma galeria, fora de hora da abertura, pôde experimentar, de maneira plena, o silêncio cúmplice oferecido pelas obras que se dirigem a nós.

A solidão no museu é carregada de uma sensação de privilégio, já que nós não estamos com a multidão e que podemos entrar em interstícios que nos levam para além das aparências das obras, por meio de uma sintonia muito fina. É o silêncio que isola diante da obra.

Introduzi o exemplo do isolamento no museu, do eu sozinho no museu, mas mesmo quando há multidão nas salas existem momentos privilegiados em que se instala a relação entre o espectador e a obra, em que tudo desaparece à volta. Um museu muito cheio, gente que passa para lá e para cá o tempo todo; mas num instante mágico eis que entro em sintonia com uma obra. Então, o mundo desaparece.

Está claro que as condições ideais seriam aquelas da tranquilidade para que esse silêncio possa se dar plenamente, mas a obra resiste. Resiste tanto, que resiste mesmo aos curadores. Estamos num mundo no qual o silêncio inquieta, perturba, e quase automaticamente vem associado ao tédio. Tempos em que se julga preciso eliminar o tédio a todo custo. Que fazem os curadores? Colocam vídeos com o som alto, que vazam nas galerias. Colocam algo que é aparentemente silencioso, mas que é também uma forma de ruído, ou seja, textos enormes, pretensiosos, que invadem as paredes.

Os visitantes ficam seduzidos por esses textos porque as obras são difíceis. É muito mais confortãvel parar diante de uma parede, onde está escrito: o artista tal nasceu em tal lugar, no ano tal etc. Imediatamente o meu ser se sente em terra conhecida, em que posso me situar razoavelmente. O público se aglutina diante dos textos e esquece as obras.

É um mundo de contradições porque a obra exige absolutamente o silêncio e, ao mesmo tempo, hoje, esse silêncio surge como indesejável.

Os antigos gregos tinham um deus do silêncio. Seu nome, Harpócrates. Em suas figurações faz esse sinal, o indicador cruzando os lábios, que é antigo como o mundo. Um deus que induz às atividades silenciosas da reflexão e da contemplação, que nos conduz, por meio de movimentos interiores, a uma relação com o mundo exterior.

A obra de arte pertence ao mundo do silêncio, mas esse silêncio genérico se subdivide em muitas formas. Eu gostaria de começar mencionando um momento da história das artes no qual o silêncio foi considerado como instrumento máximo para se alcançar mistérios que as palavras não podem desvendar.

Os pintores simbolistas do final do século XIX, místicos, muitas vezes rosa-cruzes, acreditavam que o mundo é cheio de sinais silenciosos abrindo-se para abismos de sabedoria e de conhecimento não ditos. Revelam mistérios impossíveis de ser compreendidos, mas o fato de serem incompreensíveis não significa a impossibilidade de nos unir a esses mistérios.

O simbolismo é um momento extremamente interessante da produção artística, tanto nas artes plásticas quanto na literatura, mas a própria denominação de simbolismo é imprecisa, já que nos desvia daquilo que é a grande lição dos simbolistas. O símbolo pressupõe uma chave; um símbolo significa outra coisa, diferente de si. Na placa, tal símbolo quer dizer “é proibido virar à direita”, numa relação imediata de correspondência.

Ora, os simbolistas não pensavam assim. Os símbolos para eles não tinham uma chave que os explicava. Eram antes sinais pelos quais eu podia atingir alguma coisa de indizível e de superior. Assim, Fernando Knopff, um extraordinário pintor simbolista belga. Ele evoca num quadro a ideia do silêncio. Tomou sua irmã como modelo. Com uma espécie de avental e luvas, com a cabeça projetada para trás, com os olhos muito azuis, ela nos faz o sinal que nos convida à sabedoria silenciosa.

O quadro foi inspirado no livro Do silêncio, escrito por um poeta belga, Georges Rodenbach. No último poema, a frase derradeira diz o seguinte: “meu sangue não corre, parece que se despetala e, já que vem a noite, tenho o sono de morrer”. Ligação quase que escorregadia entre sono e morte, entre o silêncio do sono e o silêncio da morte, abertura para os mistérios: meu sangue não corre, parece que se despetala, como se eu me dissolvesse. Momento de dormir ou de morrer.

A morte está muito presente no universo simbolista, porque ela é o último mistério, mistério absoluto. O célebre quadro A ilha dos mortos, de Arnold Böcklin, inspira-se na Isola di San Michele, o cemitério, com ciprestes, de Veneza. As gôndolas que até hoje levam os mortos para o cemitério inspiram Böcklin também. Visão teatralizada da morte, grandes rochedos, ciprestes, e o personagem de costas, de pé, numa barca que adentra para o silêncio da morte.

Figura 1. Arnold Böcklin, A ilha dos mortos (1880). The Metropolitan Museum, New York

Os simbolistas abriram caminho para uma corrente pictórica que surge na Itália, por volta da Primeira Guerra Mundial, a pintura metafísica. A palavra metafísica evoca quase que de imediato o silêncio e a imobilidade. Carlo Carrà, que já havia sido um futurista, reage à estética do movimento rápido e da máquina. Em certo momento de sua carreira, busca a imobilidade, pondo em cena objetos incongruentes e recortados num contorno e numa geometria absolutamente estrita.

O manequim, sem rosto, vestido como uma jogadora de tênis imobilizada está cristalizado como se fosse uma estátua de gesso. À direita, o mapa da Grécia com um alvo: objetivo da viagem de Ulisses – viagem metafórica e imóvel. No fundo, um quadro dentro do quadro com uma paisagem geométrica de edifícios, um sólido geométrico colorido e a perspectiva muito acentuada dada pelas tábuas do assoalho, que tende a levar a uma espécie de infinito.

A pintura metafísica teve um sucesso formidável. Perdurou e foi profundamente amplificada pelo cinema, por Hollywood. Lembrem-se dos cenários para as coreografias de Gene Kelly, com perspectivas vertiginosas que assinalam um mundo alucinatório. Salvador Dalí emprega os mesmos princípios em seus quadros e no cinema, em Spellbound[1], por exemplo, de Hitchcock.

Os princípios da pintura metafísica se transformaram em fórmula de sucesso. Com ela, temos a impressão de entrarmos num mundo de imobilidades com acesso às mais rarefeitas transcendências. Essa fórmula, porém; deriva de obras elevadas.

Grande pintor metafísico é Giorgio de Chirico. O quadro Melancolia e mistério de uma rua cria estados de suspensão misteriosa. Perspectivas vertiginosas e contraditórias das duas arquiteturas, uma na luz, outra no escuro. No fundo a sombra de um monumento que se projeta, e essa menina com um aro, que é, ela própria, como se fosse uma sombra desenhada no chão.

Em outro quadro, chamado Primavera em Turim, de Chirico procede a associações estranhas: uma alcachofra, um ovo, um livro no primeiro plano, uma sombra perfeitamente cortada, um edifício que se abre de dois lados diante de nossos olhos, uma luva negra que pende imensa e um monumento imóvel lá trás. Ninguém, apenas uma sombra sem identificação.

Muitos surrealistas retomaram as experiências da pintura metafísica. Paul Devaux, outro brega, cria nus femininos que andam num mundo de sonhos, em situações que não são as da intimidade do quarto ou do recolhimento, mas em praças públicas.

A arquitetura surge aqui também para criar a respiração abstrata dentro do quadro. Ela tem um forte papel nos cenários pictóricos como instrumento do silêncio imóvel. É fácil passar da arquitetura de De Chirico ou de Delvaux para uma situação talvez mais transcendente, mais filosoficamente metafísica. Algo que nos vem do século XV italiano.

Figura 2. Piero della Francesca ou Francesco di Giorgio Martini, Cidade Ideal (1460). Galleria Nazionale delle Marche, Urbino
Figura 2. Piero della Francesca ou Francesco di Giorgio Martini, Cidade Ideal (1460). Galleria Nazionale delle Marche, Urbino

Ela se oferece nas Cidades ideais, pintadas por Piero della Francesca e Francesco di Giorgio Martini, nas quais não existe um único personagem, banhadas por uma luz extraordinariamente fina. Diante de obras assim, não podemos, não devemos fazer barulho. Elas nos levam para uma experiência de um silêncio transcendente, um silêncio metafísico. Talvez a mais elevada de todas seja a célebre Pala di Montefeltro, de Piero della Francesca, que está na Academia de Brera, em Milão, pintada nos anos 1470.

Figura 3. Piero della Francesca, Pala di Montefeltro, (1472-1474). Academia de Brera, Milão

Trata-se de uma “Santa Conversação”: vários santos à volta da Virgem Maria. Curiosa conversação, silenciosa, de personagens imóveis que repetem a curva do fundo da abside, reforçando a determinação geométrica imposta pela obra. Conversação mística, que se passa na contemplação silenciosa. Por trás da Virgem há quatro anjos. Um deles nos é revelado de maneira frontal. Seu penteado tem uma simetria absoluta, tão arquitetural quanto a própria arquitetura. O olhar fixo é um olhar que não vê, olhar interior, olhar da contemplação estática que se volta para seu próprio interior metafísico.

Os personagens de Piero della Francesca são assim, imóveis, abstraídos do mundo, situados no plano da metafísica. Há neste quadro um detalhe misterioso sobre o qual já se escreveu muito. O nicho no fundo é ornado por uma concha, tema constante do Renascimento. Diante dessa concha, pendurado em sua extremidade, pende por um fio um ovo enorme, de avestruz, absolutamente enigmático. As interpretações são múltiplas, e nenhuma, na verdade, é satisfatória. Foi visto como ovo primordial de Hesíodo; ou a metáfora da Virgem como a nova Eva, que veio ao mundo como agente da redenção: Eva lida ao contrário significa ave, e ave é a primeira palavra do anjo que saúda a Virgem no momento da Anunciação.

Mas são apenas hipóteses mais ou menos convincentes. Nada pode nos explicar de fato por que o pintor pendurou este ovo de avestruz que paira sobre a cabeça de Maria. Mas tal ovo pendurado como um fio de prumo obedece rigorosamente à simetria do quadro. Imóvel, extaticamente inserido no rigor de uma linha reta, oferece o reforço absoluto da ideia da contemplação e do silêncio: o imóvel não tem som.

Piero della Francesca era um artista com preocupações intelectuais, escreveu um tratado sobre a perspectiva. Era certamente leitor dos filósofos da Antiguidade. A Pala di Montefeltro tem uma fundamentação filosófica, estou convencido, uma fundamentação eleática. Parmênides, filósofo maior entre os eleatas, concebe o ser metafísico como um imutável, não gerado, imóvel e eterno. Portanto, toda aparência, tudo que é movimento, tudo que é ruído, é ilusão dos sentidos. O ser é imutável, ou seja, não pode se modificar, porque se ele se modificasse ele deixaria de ser o que ele foi. É imóvel porque se ele se movesse deixaria de ser ao se deslocar para outro lugar. É eterno porque não pode ter sido.

Pala di Brera nos oferece uma experiência contemplativa e metafísica profunda que passa pelo silêncio. Diante de um quadro de Piero della Francesca nossa reação é de recolhimento e de imobilidade. Os olhos não percorrem agilmente a obra, mas fixam essa suprema estabilidade. Estamos em pleno domínio da inteligência artística, que não passa pelas palavras, mas pela intuição.

A organização simétrica é um componente muito importante para o principio da imobilidade e do silêncio. Simetria remete à ideia de Classicismo. Algo que é clássico, do ponto de vista das formas, possui clara organização, equilibrada, estável, imóvel e silenciosa. O silêncio é um atributo dos princípios clássicos. Os movimentos se fixam dentro de uma cadência nobre. Comparando a Pala di Brera A escola de Atenas de Rafael, exemplo paradigmático do que se entende por Classicismo: no caso da obra de Piero, há uma rarefação abstrata, uma austeridade que não é exatamente a do mundo sensível; ao contrário, a obra de Rafael insere-se no mundo sensível, em que os personagens adquirem carnalidade. Piero della Francesca cria a pureza da abstração; Rafael ordena e equilibra em harmonia a beleza do mundo sensível.

Figura 4. Rafael Sanzio, A escola de Atenas, (1509-1510). Museu do Vaticano, Roma
Figura 4. Rafael Sanzio, A escola de Atenas, (1509-1510). Museu do Vaticano, Roma

***

A pintura pode trazer ainda outro tipo de silêncio, o silêncio da noite. Malraux tem uma passagem notável em seu livro As vozes do silêncio[2] sobre Georges de Latour, pintor dos mistérios noturnos.

As pequenas origens luminosas de Latour são realmente destinadas a estabelecer uma iluminação? A luz dos caravagescos começa por tender a separar as suas personagens da obscuridade, mas o que Latour pinta não é a obscuridade; é a noite. A noite que se estende sobre a terra, a forma secular do mistério pacificado. As suas personagens não estão delas separadas, são sua emanação. Ela toma corpo numa menina a que ele chama anjo, em aparições de mulheres, nessa chama direita de archote ou de lamparina, que a não perturbam. O mundo torna-se semelhante à noite imensa sobre os exércitos adormecidos de outrora, onde, sob a lanterna das rondas, surgiam, passo a passo, formas imóveis. Nesta obscuridade povoada, uma lanterna acende-se lentamente: e faz surgir pastores que se apertam em volta de um menino: a Natividade, cuja chama trémula vai estender-se até os limites da terra. Pintor algum, nem mesmo Rembrandt, sugere este imenso e misterioso silêncio. Latour é o único intérprete da parte serena das trevas.

Figura 5. Georges de Latour, Maria Madalena (1640). The Metropolitan Museum, Nova York
Figura 5. Georges de Latour, Maria Madalena (1640). The Metropolitan Museum, Nova York

Tomemos a Maria Madalena de Latour. Madalena era uma cortesã que se converteu. Latour a mostra meditando sobre uma caveira, ou seja, sobre a morte. Ela medita à noite. Iluminada pela chama da vela, desdenha nossa presença, voltando-se para a mesa sobre a qual há um colar, indício da vaidade feminina. A vela que se extingue reflete-se no espelho, outro sinal da vaidade humana. Tudo isso é frágil e efêmero. A beleza de Madalena também é passageira: ela se desfará, e o destino inevitável de seus sedutores atributos físicos tomarão necessariamente o aspecto daquela caveira que tem em seu colo.

***

Passemos agora do silêncio da noite ao silêncio da luz. Bastam-me dois exemplos para caracterizar esse silêncio que emana da luminosidade.

O primeiro é um quadro de Johannes Vermeer, o Astrônomo, do Museu do Louvre.

Figura 6. Johannes Vermeer, O astrônomo (1668). Museu do Louvre, Paris

Silêncio pela concentração, pela reflexão do sábio, pela observação. Da janela vem uma luz, mais sutil. Atravessa o espesso vidro amarelado, recobre, banha o globo celeste que o astrônomo está examinando e recobre a parede.

É a extraordinária qualidade da luz que faz com que Vermeer seja completamente diferente de todos os seus outros contemporâneos. Ela é tratada com umas tantas gradações e nuances, que cada milímetro da tela é iluminado de modo particular. Assim, a parede banhada por essa extraordinária luz se torna um motivo supremamente pictórico.

Outro artista da luz, um Vermeer do século XX, é Edward Hopper, que cria dentro da modernidade a solidão e o silêncio graças ao tratamento da luz. Parte da poética da banalidade, daquilo que se chama “o não lugar”. Um posto de gasolina da Mobil Oil, no cair da tarde, pintado em 1940. Há fontes de luz delicadas e muito diferentes entre si: a luz do pôr do sol; a luz esmaecida que banha a estrada, bordejada por essas plantas cor de fogo; a luz dos anúncios, a luz das bombas de gasolina, do anúncio, a luz interna da casa. Nesse maravilhoso mundo de luminosidades suaves, o frentista arrumando alguma coisa está sozinho. Instante de sublime poesia silenciosa. Não é mais o mundo metafísico que nos eleva pelo desenho, pelo espaço, pela arquitetura até a rarefação. É a dimensão da experiência poética luminosa que exige também o silêncio absoluto.

***

Há, no entanto, outras obras que não são silenciosas, mas que se oferecem no silêncio.

Um quadro como A morte de Decius Mus, de Rubens [Museu do Liechtenstein], com poderoso efeito de terceira dimensão, é pleno de soberba agitação, de energia. Tropel, correria, cores admiráveis, poderosos efeitos de terceira dimensão. Isso tudo parece não pertencer ao mundo do silêncio, como Vermeer pertence.

Figura 7. Peter Paul Rubens, A morte de Decius Mus (1616-1617). Museu de Liechtenstein, Aústria

Ora, o silêncio faz parte da natureza própria à pintura, seja ela qual for, agitada ou calma. A fúria formidável da luta se dá na intuição muda do silêncio. Na verdade, experimento um ruído interior que não é barulho externo: é o paradoxo de um ruído silencioso. Há pinturas tranquilas, pinturas agitadas, mas seu fundamento genérico é sempre o silêncio. A experiência dessa agitação é uma experiência do silêncio.

Assim, para concluir, faço apelo ao Grito de Munch. Nele está exposto o princípio forte da angústia moderna, a angústia que está por vir, a angústia própria ao século XX. A experiência do mundo nesse quadro nos leva a perceber por que ele é tão admirável, porque é um grito interior, porque é um grito mudo, porque é um grito determinado por uma forma de expressão artística na qual o silêncio faz parte da sua natureza.

Figure 8. Edvard Munch, O grito (1898). Galeria Nacional, Oslo
Figure 8. Edvard Munch, O grito (1898). Galeria Nacional, Oslo

O campo da pintura, seja ele o da imobilidade, do recolhimento, seja ele o da agitação, é sempre recoberto de silêncio, e todos os silêncios são bons no que concerne às obras de arte. Só existe um silêncio ruim em relação a elas: o silêncio que impede as obras de emitirem suas vozes, silêncio produzido pela mordaça, silêncio da censura. É o único silêncio, no campo das artes, que deve ser combatido.

Notas

  1. Quando fala o coração. Direção: Alfred Hitchcock. Estados Unidos, 1945. 111 min., Son, p&b. 
  2. André Malraux, As vozes do silêncio, trad.JoséJúlio Andrade dos Santos, Lisboa: Edição Livros do Brasil, s.d., vol. II, p.129-30. 

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