2002

A invenção materialista da liberdade

por Francis Wolff

Resumo

O que significa ser livre? Como entender os diversos sentidos da palavra liberdade? Como resolver a oposição entre liberdade humana e leis da natureza, entre livre-arbítrio e materialismo, na qual a história da metafísica tanto se debateu? A filosofia de Epicuro dá uma resposta original e radical a essa questão. Para explicar o poder de determinar-se livremente, ele modifica a teoria atômica de Demócrito e introduz o indeterminismo através do clinamen, desvio mínimo ou “folga” na trajetória retilínea dos átomos. Na verdade ele concebe um espaço físico granular, descontínuo. Mais do que um movimento oblíquo, os átomos que “declinam” mudam de linha. E essa realidade microfísica indeterminista não é incompatível com a macrofísica globalmente determinista, exatamente como os físicos contemporâneos redescobriram. A alma é corporal, diz Epicuro. Podemos ser senhores de nossos atos a despeito de nossa constituição física. O mundo produz efeito sobre mim pela sensação e posso conhecê-lo, ao mesmo tempo em que produzo efeito sobre o mundo pela volição e posso agir. Assim, a posição epicuriana evita tanto o dualismo quanto o materialismo reducionista. A alma seria, como se diz hoje, uma propriedade “emergente” da matéria. O indeterminismo atômico não é a razão de ser da liberdade, mas sua possibilidade. Para Epicuro, a liberdade é a outra face da lei, o que vale também para a vida política. Se as leis da natureza definem os limites, depende de nós levar a vida que depende de nós.


Quando meu amigo Adauto Novaes pediu-me para abrir este curso, cujo eixo principal deve ser a relação entre liberdade e democracia, por uma exposição sobre Epicuro e sua teoria do clinamen, fiquei imediatamente entusiasmado. É muito comum esquecer-se o papel fundador e visionário desse pensador genial na história do problema da liberdade. Com efeito, Epicuro defende uma física radical para a qual nada existe no universo a não ser átomos que se entrechocam perpetuamente num vazio infinito. No entanto, eles dispõem de um estranho poder o clinamen o de se desviar, em lugares e momentos indeterminados, de seu trajeto retilíneo; é o que permitiria à alma, ela mesma estritamente material, ser dona de suas representações e livre em suas ações. Assim, essa invenção de Epicuro é determinante para compreender o problema filosófico da liberdade. A despeito do caráter árido do tema, aceitei imediatamente vir falar dele aqui. Contudo, num segundo momento, um escrúpulo me deteve: os problemas que esse conceito coloca não têm absolutamente nada a ver com uma problemática política e corn uma reflexão sobre a natureza da “democracia”. Sabemos que é preciso precaver-se, em filosofia, de toda confusão das problemáticas, e conhecemos a indiferença que Epicuro sentia pelas questões propriamente políticas.

Mas sabemos sobretudo que a palavra “liberdade” é ambígua, uma dessas palavras de que convém desconfiar porque “cantam mais do que falam”, como dizia Valéry. Invocamo-la para qualquer eventualidade, e tudo parece dito: quem não gostaria de ser livre? Eis por que, antes de explicar a solução epicuriana da liberdade, é preciso explicar o problema que ele queria resolver. E, para tanto, analisar e distinguir os diferentes sentidos da palavra “liberdade”.

OS PROBLEMAS DA LIBERDADE

Podemos primeiramente distinguir dois grandes sentidos da palavra.

Quando tratamos das relações entre “democracia e liberdade”, ou quando nos perguntamos se em tal país se é livre, ou quando invocamos as liberdades políticas, as liberdades fundamentais, ou ainda quando dizemos de um homem que ele é livre (por oposição a um escravo ou a um preso), referimo-nos ao que se pode chamar liberdade de direito, isto é, em linhas gerais, a ausência de coerções externas — as interdições e as obrigações — nascidas do Estado, da coletividade ou da sociedade.

Caberia distinguir também a “liberdade política”, que depende do regime e se opõe à opressão, da “liberdade jurídica” — e também aí distinguir o homem livre que se opõe ao escravo e o homem livre que se distingue do preso.

Mas deixemos de lado este sentido político e jurídico, que não parece pertinente ao nosso objeto.Há um segundo sentido, que se pode chamar liberdade de fato,[1] por oposição à de direito: não se trata mais de perguntar “é permitido fazer (dizer, pensar)?”, mas “é possível fazer (pensar querer…)?”. Não nos referimos mais à ausência de coerções extrínsecas (as leis civis, as obrigações sociais, as regras coletivas, as interdições…), mas intrínsecas aquelas
que concernem ao próprio sujeito.

Também aqui podemos distinguir dois conceitos.

Primeiro, a capacidade de fazer o que se quer. Com efeito, não basta, por exemplo, que eu viva num país onde há liberdade de viajar ao exterior para poder fazê-lo, mesmo se eu quiser. Posso ser impedido por minha situação social ou simplesmente por meus recursos financeiros: passamos aqui do problema formal da liberdade política (a questão do regime) ao problema da justiça econômica (o sistema social), e desta não depende mais apenas a questão da liberdade “formal” (temos o direito de fazer?), e sim a questão da liberdade “material” (temos os meios de fazer?). Pode haver também outros obstáculos para exercer um direito política e juridicamente reconhecido, posso, por exemplo, ser deficiente físico, estar doente etc. Seja como for, a característica mais geral dessa liberdade como “capacidade de fazer o que se quer” é ser gradual — ao contrário da precedente que existe ou não existe — e proporciona/ aos meios de que dispõe o sujeito — de qualquer ordem que sejam:[2] meios econômicos, físicos, culturais etc. Quanto maiores os meios (riqueza, cultura, saúde, força etc.), mais se pode fazer o que se quer, e portanto se é mais, nesse sentido. Porém, mesmo supondo que pudéssemos fazer totalmente o que queremos, nem por isso seríamos absolutamente livres. Pois acaso somos livres, justamente, para querer o que queremos? Dois tipos de obstáculos podem se opor a isso: de um lado, a força das pulsões, a violência do desejo ou a cegueira das paixões (quando cedo a meu desejo, não faço realmente o que quero, pois o que quero é agir em conformidade com o que decido de maneira clara, consciente, racional): ser livre é ter o espírito livre para querer verdadeiramente, isto é, livremente. Nesse sentido, apenas o sábio é verdadeiramente livre — é o tema mais caro aos estóicos — por ser mestre dele mesmo. Ele não somente não obedece a um senhor exterior, mas obedece apenas a seu senhor interior, sua razão. Mas supondo que eu fosse livre para querer em conformidade com o que decidi, poderia dizer que sou verdadeiramente livre? Pode ocorrer que o que decidi eu não teria podido decidi-lo de outro modo, dadas, por um lado, todas as circunstâncias presentes e passadas e, por outro, tudo aquilo que fui e que sou (meu caráter): era portanto possível que fosse de outro modo? ou era minha decisão, no instante dado, necessária? Eis aí o problema do livre-arbítrio, oposto ao determinismo.

Resumamos. Temos uma tríplice divisão dicotômica. A liberdade divide-se em liberdade de direito (política e jurídica) e liberdade de fato; esta divide-se em liberdade de fazer e liberdade de querer; e esta, por sua vez, divide-se em liberdade de determinar-se em conformidade com o que se quer verdadeiramente, e liberdade de querer independentemente de todo estado anterior.[3]

Mas há, ao mesmo tempo, uma unidade de todos esses sentidos, tão diferentes um do outro: ser livre é fazer o que depende de si. O que muda, de um sentido a outro de “liberdade”, é justamente esse “si”, que vai se apro fundando: pois podemos ter o direito sem ter a possibilidade; ou ter a possibilidade sem ter o espírito livre etc. Esta progressão implica a passagem de um sentido a outro daquilo que eu sou, uma definição cada vez mais essencial desse “eu” livre, como um núcleo puro de mim. Posso, em primeiro lugar, ser livre como cidadão — isto é, independentemente das interdições que vêm do exterior (minha comunidade, o Estado). Mas isso não depende de mim. Depende de mim o que é meu, propriamente meu, e não de um outro, minha fortuna, meu corpo etc.: quero portanto ser livre para fazer tudo o que depende de meus próprios recursos — é o segundo sentido do eu. Esse eu, porém, não é o que é meu, minha classe social, meus recursos financeiros ou físicos, não é o que tenho, mas o que sou.[4] Passamos assim para o terceiro sentido: ser livre é fazer apenas o que depende do que sou, e não do que tenho ou do grupo social ao qual pertenço. Entretanto, meus impulsos, minhas vontades, meus desejos, se indiscutivelmente fazem parte do que sou, não são o que quero ser verdadeiramente, já que ora me parecem mais fortes do que eu, ora fáceis de descartar, em todo caso distintos de mim. Passamos portanto a um quarto eu, mais íntimo. Esse eu é minha razão, o que racionalmente eu quero. Mas depende realmente de mim isso que eu quero com o espírito livre, se nas circunstâncias em que me encontrava não me era possível querer de outro modo? Tocamos aqui uma espécie de eu absoluto, independente de qualquer forma de coerção ou de limitação que pesariam sobre ele, nem as da sociedade, nem as de seus bens ou de seu corpo, ainda demasiado exteriores, nem as de seus desejos, ainda alheios ao “eu”, nem mesmo a que viria dele mesmo, isto é, de seu caráter e de seu passado, de tudo que o constituiu e o faz ser o que é no momento em que age. A liberdade absoluta parece estar aí, nessa passagem de limite rumo à independência total diante da ordem do mundo, da qual meu próprio eu passado faz parte.

Se nos restringirmos agora aos três sentidos da “liberdade de fazer”, a única que irá nos interessar, vemos que ela coloca três tipos de problemas teóricos. Com efeito, não falo dos problemas práticos — a saber, a questão “como”: como ser livre?, isto é, respectivamente: como obter meios que permitam a todos fazer o que desejam? como libertar-se dos desejos importunos? como subtrair-se à necessidade? mas da questão teórica,
a questão “transcendental”: é este conceito possível, e de que maneira pensá-lo? Ora, cada um desses três conceitos de liberdade coloca problemas teóricos muito complexos.

Consideremos em primeiro lugar a liberdade aparentemente mais simples: fazer o que eu quero, por oposição a fazer aquilo a que sou forçado. Tomemos um exemplo particularmente elementar: dou um passo. Há duas causas possíveis para meu deslocamento. Ou fui empurrado, ou tive vontade de deslocar-me. No primeiro caso, a causa é externa, no segundo, pode-se dizer que ando livremente, ao menos no sentido muito banal de que o faço voluntariamente: a causa está em mim. Os gregos, e sobretudo Aristóteles, diziam que o primeiro deslocamento é involuntário (akou-sion), o segundo é voluntário (hekousion[5]). Dir-se-á também que apenas o segundo é um ato (já que eu o faço, sou a causa dele), enquanto o primeiro é só um movimento, ou um acontecimento, causado por outro acontecimento (empurram-me, eu caio).[6] Tudo isso é simples. No entanto, nada mais difícil de compreender. Com efeito, se quisermos descrever o ato e dissermos: “quero ir até lá, logo ponho-me em marcha”, parece ser preciso supor que o que eu quero (ou seja, um pensamento, uma representação, uma volição) pode ser causa de um movimento corporal. Ora, isso se afigura insensato. Há alguns anos, um prestidigitador um tanto charlatão, de nome Uri Geller, celebrizou-se ao pretender-se detentor do poder de mover objetos pela simples força de seu pensamento, e exercia seu suposto dom sobre colheres e armários. Mas se somos simplesmente capazes de agir, somos todos Uri Geller! Pois todos somos capazes de mover o corpo por nosso simples pensamento, a partir do momento, por exemplo, em que ando porque tenho vontade de andar, ou levanto a mão porque me ocorre fazer isso. Aliás, esse é um dos dois aspectos do problema da ligação da alma e do corpo que todos os grandes filósofos clássicos enfrentam, a partir de Descartes: como pode a alma agir sobre o corpo no movimento voluntário? a outra face do problema sendo, inversamente: como pode o corpo agir sobre a alma e provocar sensação ou afeto? Dirão que, justamente, o problema estava mal colocado porque era colocado em termos dualistas — a alma, de um lado, o corpo, de outro —, e a maneira como o colocam hoje, por exemplo, as ciências cognitivas, a partir de uma tese essencialmente fisicalista, muda radicalmente o problema. Talvez. Mas o problema, longe de ser resolvido, é deslocado. Pois se tudo é matéria, se não há mais diferença de natureza entre a alma e o corpo, então certamente compreendemos como a matéria pode agir sobre a matéria, mas não há mais nenhuma diferença, nem real, nem perceptível, entre ato e acontecimento, entre o voluntário e o involuntário, entre o movimento físico dos corpos inanimados e a ação dos seres vivos, em particular dos homens: tudo o que acontece no mundo, quer me empurrem, quer eu ande, não passa de movimentos de matéria causados por outros movimentos de matéria. Com efeito, qual pode ser a causa desse primeiro movimento de matéria que me impele a querer andar, senão um outro movimento de matéria? E assim sucessivamente ao infinito. Tudo é confundido — e a liberdade mesma é que não tem mais sentido. Vemos que a passagem de uma hipótese dualista a uma hipótese monista afigura-se bastante custosa, pois torna justamente problemático o conceito que ela supostamente deveria esclarecer: o de movimento voluntário. Vemos, sobretudo, que o problema inteiro da liberdade — inclusive os problemas que os sentidos mais “elevados” e metafísicos da palavra colocam — já está posto na simples explicitação do conceito de ato, do ato mais simples, mais humilde: o de andar. Se este não é um simples acontecimento natural, ele já é livre, absolutamente livre.

Passemos, para verificá-lo, ao segundo conceito, o de liberdade num sentido mais exigente do termo, o de fazer não apenas o que é voluntário (por oposição ao que é forçado), mas fazer o que depende verdadeiramente de nós, do que é nós, independentemente de todo impulso ou de todo desejo irrefletido, o homem livre faz o que depende de sua escolha deliberada — o que Aristóteles chamava proairesis.[7] O movimento não é apenas um ato, é um ato refletido, ou mesmo deliberado. Não sou apenas a causa desse ato, sou responsável por ele. Não se trata mais da oposição do voluntário e do involuntário (hekousion e akousion), mas da oposição do que “depende de nós” (to eph’hemin) e do que “não depende de nós” (to ouk eph’hemin).

Mas então coloca-se o problema: será que depende de nós fazer o que depende de nós? Isso depende, dirão, de nosso caráter,[8] o qual, por sua vez, em parte inato e em parte adquirido, depende de nossa natureza e de nossa educação, que não dependem, nenhuma das duas, de nós. De modo que somos livres para fazer o que depende de nós, mas não depende de nós fazê-lo! Não somos portanto livres. Como poderíamos então ser considerados responsáveis pelo que fazemos?

Eis por que é preciso passar ao terceiro conceito.[9] Ser livre não é apenas agir voluntariamente, não é apenas agir racionalmente, pois, para podermos realmente ser considerados responsáveis, precisamos ainda ser nós mesmos causa primeira e absoluta do que acontece. Com efeito, é preciso que seja realmente eu quem age, e não tudo aquilo que pôde forjar meu caráter passado e determinar met’s pensamentos presentes. É preciso não apenas que eu seja livre em relação às coerções externas (conceito 1), que meu entendimento seja livre em relação às minhas paixões (conceito 2), mas que minha vontade seja ela própria livre em suas escolhas (conceito 3) e que não dependa do que sou como uma essência fixa, isto é, de tudo aquilo que me determinou a ser esta pessoa definível como um conceito. Para ser livre é preciso, se posso dizer, que eu aja, e não que meu ego aja. Meu ego é tudo o que me fez ser, é tudo o que me determinou a ser, eu é tudo o que sou, a partir do momento em que sou a causa disso. Por mais que o “ego” seja o efeito de todo o passado, “eu” devo poder ser a causa de tudo o que faço desde então. Para poder agir livremente, cumpre não apenas que eu possa agir independentemente de tudo o que não é eu, mas também de tudo o que é eu. Quando ajo, devo poder ser a causa primeira de meu ato, isto é, a causa ela mesma livre[10] de toda determinação anterior.

Percebe-se imediatamente a dificuldade, ou melhor, o dilema colocado a toda a história da metafísica, e que Kant finalmente expôs em sua terceira antinomia. Se sou a causa primeira e absoluta de um ato quando o faço, então nada antes dele no mundo o determinou, e por conseguinte há séries causais que começam absolutamente e que são elas mesmas sem causa. Como compreender e explicar racionalmente a natureza, na hipótese desses acontecimentos sem causa que seriam os atos livres? Inversamente, se afirmamos que tudo o que acontece na natureza deve poder se explicar a partir de seu estado presente e dos acontecimentos anteriores, então não pode haver ato livre, isto é, indeterminado. Eis aí a oposição entre determinismo e indeterminismo, ou, mais gravemente, entre liberdade humana e leis da natureza, entre poder compreender a natureza— e portanto supô-la regida pelo princípio de causalidade — e poder compreender a ação sem reduzi-la a acontecimentos encadeados causalmente.

Haveria por certo um meio de sair da dificuldade. Seria supor que o homem não é um ser da natureza, que ele pertence pelo menos parcialmente a uma outra realidade, uma realidade puramente espiritual, e que dispõe de uma espécie de faculdade transcendente, o “livre-arbítrio”, que lhe permite escapar ao determinismo natural — e portanto ter uma alma livre e poder ser considerado responsável por seus atos. É a solução dada ao problema da imputabilidade do bem e do mal a partir do cristianismo, e inventada pelo maior filósofo cristão, santo Agostinho. Podemos compará-la à que foi proposta para o primeiro problema, o movimento voluntário: a independência da alma em relação ao corpo permitia compreender de que maneira um ato é distinto de um movimento; a independência da vontade em relação ao entendimento permite compreender de que maneira um ato livre é distinto de um ato determinado.[11]

Mas nesse caso a solução não é possível para um materialista, principalmente aquele que, como Epicuro, procurasse antes de tudo, graças à tese materialista justamente, explicar toda a natureza a partir dela mesma (imanentismo), desembaraçando-a de toda intervenção divina, de toda explicação finalista, de toda força oculta, fazendo da alma uma parte do corpo e do homem um ser vivo como os outros — não um “império dentro de um império”, como diria.[12] Parece portanto — e, de fato, é o que frequentemente ocorreu na história da filosofia — que um materialista, ou pelo menos um racionalista consequente, deve postular o determinismo natural e concluir pela inexistência de uma vontade livre. Parece que das duas, uma: ou pode-se explicar a natureza, e é preciso nela incluir o homem e renunciar à sua liberdade, ou quer-se que o homem seja livre, e então é preciso renunciar a explicar a natureza naturalmente.

Compreende-se assim por que geralmente os filósofos, digamos, “imanentistas” (os que não apelam a nenhuma força estranha à natureza para explicá-la) são adversários da liberdade concebida desse modo e a denunciam como uma ilusão (de Espinosa a Freud).

Encontramo-nos portanto sempre diante do mesmo dilema, aquele que já estava presente desde o primeiro problema, o do ato mais simples. Para poder explicar o movimento é preciso recorrer ao princípio de causalidade entendido estritamente (todo movimento corporal vem de um movimento corporal), e não se pode mais compreender o movimento voluntário dos animais, o que vem deles mesmos, nem distingui-lo do movimento forçado. Para poder explicar as decisões de um homem é preciso recorrer ao conjunto de sua personalidade e, particularmente, a seu caráter, renunciando a acreditá-los livres, isto é, vindos dele mesmo. De maneira mais geral, para poder explicar o conjunto da natureza é preciso supor o determinismo e renunciar à vontade livre.

Ora, esse conceito de vontade livre foi não apenas defendido por um. dos mais formidáveis empreendimentos de explicação materialista, racionalista e imanentista do homem e da natureza, a filosofia epicuriana, como também — mais ainda — foi inventado em tal contexto. É esse paradoxo que devemos agora expor e depois tentar explicar.

O QUADRO FÍSICO DA SOLUÇÃO EPICURIANA

Qual o princípio geral da solução epicuriana ao problema da liberdade? Como iremos ver, foi levando a sério o primeiro problema, o inferior, que Epicuro resolveu todos os outros, os supostos superiores.

Epicuro é um materialista: ele retoma no século III a.C. os princípios da genial teoria de Leucipo e Demócrito do século V a.C., o atomismo. A despeito da diversidade qualitativa de nossas impressões sensíveis, da aparente heterogeneidade da natureza (água, ar, terra, fogo…) e da variedade de seus fenômenos (os movimentos dos astros opostos aos movimentos na Terra, o vivo oposto ao inerte, a especificidade do humano etc.), tudo o que existe é uma matéria homogênea, sob a forma de uma infinidade de partículas indivisíveis — os átomos — em movimento num espaço vazio e infinito. Desses movimentos atômicos perpétuos se formam, ao acaso, aqui e acolá, corpos compostos, provisoriamente estáveis, que podem, aqui ou acolá, pelo simples jogo das combinações mecânicas cegas das diversas espécies de átomos, formar mundos, eles também provisórios e em número infinito. Em alguns desses mundos podem também se.formar, sem a intervenção de nenhuma divindade nem finalidade, seres vivos cuja alma também é apenas um conglomerado de átomos particularmente sutis que se dissolvem ao mesmo tempo que o corpo. O conhecimento de toda a natureza nos é permitido, com uma certeza absoluta, por nossos sentidos e nossa razão, pois, como não cessa de lembrar o tradutor de Epicuro em latim, Lucrécio, “nada nasce de nada divinamente” — o que é uma afirmação simultaneamente da imanência e do princípio de razão. Mas já que ele afirma, como materialista, que nada nasce de nada, e já que ser materialista, como diria A. Comte, é explicar o superior pelo inferior, Epicuro deve poder explicar o mais alto “poder” do homem, o poder de determinar-se livremente, a partir dos mais elementares e cegos movimentos dos átomos.[13] Epicuro deve portanto introduzir o indeterminismo na natureza, uma espécie de movimento livre na própria matéria — e esse movimento é o clinamen. Mas então duas graves dificuldades surgem. Primeira dificuldade: como poderiam movimentos indeterminados e erráticos explicar atos voluntários que são, ao contrário, os mais determinados (mesmo se são “autodeterminados”) e os mais racionais? Supor uma margem de indeterminação na natureza permite de fato romper um mecanismo absoluto, mas não para introduzir nela uma espécie de ordem superior — o voluntário —, e sim uma espécie de desordem incontrolável. Segunda dificuldade, com a qual já deparamos: como conciliar essa indeterminidade do clinamen com os princípios do conhecimento da natureza, o princípio de razão e as inabaláveis leis da natureza?

Antes de responder a essas duas questões, convém rapidamente descrever o clinamen.

Esta teoria é uma das modificações trazidas por Epicuro ao atomismo antigo. Em primeiro lugar, enquanto para os antigos atomistas os movimentos atômicos eram causados pelos simples choques dos átomos entre si, os epicurianos dotaram-nos de uma propriedade interna, o peso, que leva todos os corpos naturalmente para baixo: assim, os corpos elementares, os átomos, seja qual for sua forma ou seu tamanho, caem no vazio (espaço infinito e homogêneo) a uma velocidade igual, constante e máxima,[14] ao passo que os corpos compostos— em particular os corpos visíveis — caem a uma velocidade inversamente proporcional à densidade do meio.[15] Mas Epicuro modificou num segundo ponto a dinâmica democritiana, ao dotal. os átomos de uma segunda causa interna de movimento, um poder errático de desvio em relação a seu trajeto retilíneo, o clinamen. Esse ligeiro movimento indeterminado tem duas funções: ele permite explicar, segundo Lucrécio, por um lado os encontros originais dos átomos dos quais nasceriam os entrelaçamentos dos corpos compostos e, gradativamente, o conjunto do mundo, por outro, a livre vontade dos seres vivos. A primeira função não nos interessa aqui. Limitemo-nos à segunda e esclareçamos Um pouco o clinamen, retificando, de passagem, algumas confusões frequentes.

Contrariamente ao que se crê na maioria das vezes, o clinamen não se produziu uma única vez, na origem do universo, já que as colisões atômicas, segundo os epicurianos, sempre existiram desde o infinito do tempo,[16] o clinamen é um fenômeno iterativo. Além disso, esse desvio pode ocorrer não apenas em relação à vertical,[17] mas em relação a todo movimento retilíneo,[18] em qualquer direção que se produza.

De que tipo de desvio se trata? Ele é não apenas localmente e temporalmente indeterminado (um átomo pode desviar-se em qualquer

momento e em qualquer lugar),[19] mas também individualmente indeterminado (qualquer átomo pode desviar-se).[20] Daí a ideia de “movimento livre”,[21] no sentido, neutro, de que apresenta uma “folga”. No entanto, essa indeterminação é muito estritamente determinada, se assim podemos dizer, e eis aí a ponta da invenção genial. Com efeito, o desvio não é vagamente “ligeiro” ou pequeno, ele é muito exatamente mensurável: ele é “mínimo” (em grego. elachiston).[22] Ele é igual, nem mais nem menos, à menor parte possível do espaço.[23] Com efeito, uma das principais características do atomismo epicuriano, que o diferencia do de Demócrito, é sua generalização da tese da descontinuidade e do atomismo a tudo o que nos parece contínuo: não apenas os corpos compõem-se de indivisíveis, os átomos, mas também o espaço, o tempo e o movimento. O espaço físico epicuriano, ao contrário do espaço geométrico euclidiano, não é divisível ao infinito,[24] ele tem uma estrutura granular. O mesmo acontece com o tempo, que é pensado como uma sucessão de instantes pontuais.[25] O movimento torna-se então perfeitamente racional: em todo instante t 1, um móvel encontra-se de certo modo imóvel num lugar 11 que é um grão indivisível de espaço, e, no vazio onde a velocidade é absoluta, ele se encontra, no instante imediatamente seguinte t 2, no lugar imediatamente conjugado 12. O movimento é portanto concebido como uma série de posições imóveis que dão ao observador a impressão de um deslocamento contínuo, à maneira do efeito cinematográfico produzido por uma sucessão de imagens fixas. A todo momento o móvel “se mexeu” sem que jamais se possa dizer que ele “se mexe”.[26] O movimento é racional, strict() sensu, já que todo deslocamento pode se exprimir, sob a forma de uma relação entre um número inteiro de quanta espaciais e um número inteiro de quanta temporais.

Esta representação do movimento no vazio nos obriga a retificar a concepção comum do clinamen como um pequeno movimento oblíquo ou como um ângulo muito agudo em relação à linha reta. Não há, para o átomo que “declina”, nem ângulo nem obliquidade, mas simples mudança de linha.[27] Tudo se passa como se um átomo pudesse bruscamente mudar seu trajeto de uma unidade de espaço à esquerda ou à direita de sua linha reta, um pouco à maneira pela qual um veículo mudaria de pista numa auto-estrada.[28]

A velocidade é assim conservada em qualquer ponto da trajetória: no vazio ela é sempre a velocidade absoluta (a maior possível[29]), uma unidade de espaço por unidade de tempo. Mas na enésima unidade de tempo, e durante uma unidade de tempo, o “salto” pode se produzir numa outra direção que não a da linha reta inicial. Isso não contraria nem a aparência de continuidade do movimento, nem a do espaço, nem a do tempo. A medida do movimento permanece a mesma, assim como a direção geral do movimento (por exemplo, o átomo continua a cair verticalmente de cima para baixo); mas essa mudança de linha torna possível uma colisão com um outro átomo numa linha paralela, que, sem ela, permaneceria impossível.

Assim, por mais que o clinamen seja um movimento indeterminado, ele é estritamente mensurável: é sempre o movimento de uma unidade de espaço por unidade de tempo, ou seja, é igual ao metron absoluto que mede toda grandeza espacial ou temporal. Há certamente uma “folga” no movimento atômico, mas essa folga é contida dentro de estreitos limites. Essa mensurabilidade tem importantes consequências. Primeira ,consequência: o clinamen permanece absolutamente imperceptível, o mínimo espacial sendo muito inferior ao limiar de visibilidade:[30] pôr isso jamais se pode ver um corpo desviar-se.[31] Mas, sobretudo, o clinamen exclui toda obliquidade dos movimentos naturais, o que infringiria as duas leis da dinâmica atomística: a lei geral segundo a qual todos os corpos caem em linha reta de cima para baixo, e a lei que mede as velocidades: proporcionalidade do quantum de espaço percorrido ao quantum de tempo. Essas duas leis da dinâmica permanecem verdadeiras a despeito da margem de indeterminação atômica que o clinamen supõe. Notemos que qualquer outro tipo de indeterminação do movimento atômico tornaria falsas essas duas leis e, por extensão, todas as leis “macrofísicas”, portanto toda a ordem da natureza. O movimento dos elementos permanece indeterminável ao mesmo tempo que preserva a ordem mesma da natureza, a qual, por outro lado, ele permite explicar. Assim, graças à teoria do mínimo, o conhecimento “macrofísico” pode continuar sendo globalmente determinista, enquanto a “microfísica” é intrinsecamente indeterminista — e é exatamente o que os físicos contemporâneos hoje redescobriram. Temos portanto um elemento de solução para a segunda dificuldade que há pouco colocávamos. Uma física pode nos oferecer um conhecimento certo e racional da natureza supondo ao mesmo tempo movimentos incertos e erráticos, contanto que estes permaneçam inferiores a um limiar, aquele no qual se tornariam acessíveis e “perturbadores”. A ordem da natureza é compatível com a desordem da qual deriva. Temos aí uma situação comparável àquela na qual nos mergulhou a física quântica e suas relações de incerteza de Heisenberg. A macrofísica — galileana e einsteiniana — permanece determinista e nos permite previsibilidade e certeza, embora repouse sobre uma concepção da estrutura da matéria, estudada pela física quântica, regida pelos movimentos indeterminados e imprevisíveis. E essa convergência é tanto mais impressionante quanto, nos dois casos, é rompendo uma concepção continuísta que os sentidos nos oferecem, para propor um mundo descontinuísta (os quanta, o mínimo espacial, cf a constante de Planck, 10 cm, em que a noção de distância perde seu sentido), que a microfísica se adapta a um indeterminismo fundamental.

No entanto, a segunda dificuldade é resolvida apenas pela metade: se alguns movimentos mínimos dos átomos não contradizem seus movimentos globais, isso ainda não torna compatíveis, no nível “macrofísico” ou pelo menos no nível da natureza em geral, as leis da natureza e nossa liberdade de movimento. Pois, para que a tese tenha sentido, é preciso ainda que ela possa explicar os movimentos que nos são acessíveis, e em particular os movimentos livres. Isso supõe que se volte inicialmente ao primeiro problema. De que maneira a indeterminação atômica, o clinarnen, pode explicar a liberdade?

SOLUÇÃO EPICURIANA DOS PROBLEMAS DA LIBERDADE

Partamos novamente, portanto, do primeiro conceito de liberdade, o mais simples. Como pode uma filosofia materialista explicar o movimento voluntário dos seres vivos? Lembremos que se trata, aqui, do “mais baixo grau da liberdade”, do simples movimento voluntário por oposição ao movimento forçado (hekousion oposto a akousion), do problema colocado pelo movimento animal em geral, e não — ao contrário dos dois outros conceitos — dos problemas específicos colocados pela ação humana em particular. Mas, para um materialista, a solução do problema inferior é a chave de todos os outros, inclusive o do “livre-arbítrio humano”.

Já vimos o dilema. Ou tudo é corpo, e não se pode mais distinguir o movimento voluntário do movimento forçado, ou a alma é substancialmente distinta do corpo, e não se compreende como uma substância poderia agir sobre a outra. Epicuro irá conciliar a distinção do movimento voluntário e do movimento forçado com sua tese materialista — a alma é corporal. É particularmente notável que é nesse filósofo que encontramos pela primeira vez uma clara consciência de tal problema.

Num papiro de um livro pertencente à sua obra perdida Da natureza, e reeditado recentemente por D. Sedley,[32] Epicuro procura defender a noção de responsabilidade contra um adversário determinista prova‑velmente um dos discípulos de Demócrito no século iv a.C. que foi seu próprio mestre, Nausífanes. No que resta desse livro, não há nenhum traço do clinamen. Contudo, o texto é instrutivo pela maneira como se coloca a questão do ato. Separemos sua estrutura argumentativa. Epicuro afirma que podemos ser senhores de nossos atos a despeito de nossa constituição física: somos nós que a controlamos e não ela que nos controla, sem o que não haveria mais sentido em reprovarmo-nos uns aos outros. A primeira série de razões invocadas em apoio a essa tese partida é ad hominem: com efeito, o determinista poderia replicar que essa atitude crítica também é determinada e necessária. Mas é nesse ponto, mostra Epicuro, que ele refuta a si mesmo; pois sua própria atitude crítica nesse debate diante do adversário pressupõe o que ele nega, a saber, que as partes em discussão são responsáveis por sua própria posição.[33] Por mais que ele replique que sua própria atitude é também determinada, pode-se objetar-lhe que sua insistência em defender sua posição pressupõe que ela não o é. E a toda réplica da parte dele poderá ser feita essa mesma objeção, ao infinito. O que prova que ele continua sempre a argumentar como se estivesse dirigindo-se a um agente responsável por sua própria posição, e não contra um ser que seria mecanicamente forçado a adotá-la. A segunda parte do texto introduz uma série de argumentos semânticos e epistemológicos: o determinista muda o sentido da palavra “necessário”, e chama “necessário” o que todo o mundo chama “dependente de nós” e cuja causa está em nós — assim que temos a certeza imediata disso (por “prenoção”, um dos critérios epicurianos de verdade), sentimo-nos agir e não confundimos o que fazemos e o que nos forçam a fazer. Aparecem enfim dois argumentos pragmáticos: por um lado, a posição do adversário é vazia e vã, já que ele não pode esperar dissuadir quem quer que seja de agir dessa ou daquela maneira — seria supô-lo capaz de resistir à necessidade; por outro,[34] Epicuro lembra as consequências desastrosas que resultariam para ele se o determinista agisse verdadeiramente de acordo com suas crenças: ele não poderia mais tomar a menor decisão. Ora, o que é notável, como D. Sedley mostrou magnificamente, é que essa argumentação tem exatamente a mesma estrutura que uma argumentação que conhecemos bem em Lucrécio, dirigida contra o cético em favor da verdade da percepção sensível. Há aí, realmente, um claro paralelo. Por um lado, historicamente, são de fato os mesmos (os “materialistas mecanicistas”, se podemos dizer, discípulos de Demócrito) que são visados em ambos os casos. Ao afirmarem que tudo é corpo ou vazio, eles deduziam que todas as nossas impressões sensíveis são ilusórias,[35] já que não percebemos o que é realmente. Do mesmo modo, ao afirmarem que todos os acontecimentos naturais são o efeito dos movimentos atômicos, eles deduziam que nosso sentimento de ação voluntária é ilusório, já que não apreendemos as causas reais das ações. Ao determinismo e ao ceticismo, que são duas consequências do mesmo reduciónismo, Epicuro opõe a mesma estratégia em três tempos: 1) Os que defendem essa posição refutam a si mesmos: “aquele que pensa que nada sabemos não sabe sequer se podemos saber isso, já que confessa nada saber”; inútil portanto argumentar contra ele, pois não pode nem mesmo argumentar em seu próprio favor (Lucrécio, IV, 469-72); aquele que pensa que não podemos agir por nós mesmos não pode sequer agir em seu próprio favor — inútil portanto argumentar contra ele. 2) Os que defendem essa posição a defendem contra toda a evidência, por um lado a dos sentidos que nos informam sobre as coisas exteriores, por outro, a de nossa apreensão de nós mesmos como responsáveis por nossos atos; mas em que podem eles se fundar para dizer isso, se todos os nossos conhecimentos, das coisas ou de nós mesmos, derivam dessas apreensões imediatas?[36] 3) Enfim, a questão não é apenas teórica, ela é prática e mesmo vital: aquele que verdadeiramente não acreditasse em seus próprios sentidos, que verdadeiramente não se acreditasse o autor de seus atos, não poderia sequer sobreviver.[37] E a estratégia é a mesma, porque se trata em ambos os casos de salvar, contra todo reducionismo, uma realidade mental que se impõe indiscutivelmente a nós: a sensação, como relação do mundo conosco, e a volição, como relação de nós com o mundo.

Há, com efeito, outra razão para esse paralelo entre a defesa materialista da liberdade e a da verdade. No primeiro caso, trata-se de mostrar que sou efetivamente causa de meus atos, pois tenho o “vivo sentimento interno” deles — segundo a expressão de Descartes —, e portanto posso agir livremente, já que a primeira condição da liberdade é que meus atos possam realmente ser imputados a mim — e não a um encadeamento de causas exteriores a mim. Mas, simetricamente, trata-se de mostrar que o mundo exterior é efetivamente causa do que percebo, pois tenho o sentimento disso — e portanto posso ter um conhecimento verdadeiro do mundo, já que a primeira condição da verdade é que ao mundo mesmo possam ser imputadas as sensações que tenho dele, e não a um encadeamento de efeitos em mim. Por um lado, o mundo produz efeito sobre mim pela sensação e posso conhecê-lo; por outro, produzo efeito sobre o mundo pela volição e posso agir. Essas duas relações causais simétricas são exatamente, convém lembrar, os dois problemas análogos que o dualismo deve enfrentar: como pode o corpo produzir efeito sobre a alma na sensação? como pode a alma produzir efeito sobre o corpo no movimento voluntário? Nos dois casos, a posição epicuriana consiste em evitar ao mesmo tempo o dualismo (pois de que maneira duas substâncias heterogêneas poderiam agir uma sobre a outra?) e o materialismo reducionista. É verdade que as qualidades sensíveis dos corpos são apenas, num certo sentido, “propriedades” dos corpos compostos,[38] que em última análise são átomos e vazio; é verdade que a alma, em última análise, é feita também de átomos e de vazio; mas, assim como as propriedades dos corpos não são as de seus componentes,[39] as capacidades da alma não são as de seus componentes. Tanto umas quanto as outras são, diríamos hoje, propriedades emergentes. Como escreve D. Sedley “a matéria, em certos estados complexos, pode adquirir propriedades não-físicas que, por sua vez, põem em jogo novas relações de causalidade”.[40]

Ora, verifica-se justamente que essas duas relações simétricas — do exterior para o interior, na sensação, do interior para o exterior, na volição — correspondem, segundo os epicurianos, aos dois tipos de movimentos necessários a todo ato. Por um lado, é preciso haver movimentos centrípetos, é preciso que imagens oriundas dos objetos exteriores (os simulacra) venham impressionar os sentidos para depois se insinuarem até a alma,[41] e que uma imagem da ação a fazer apresente-se ao espírito.[42] Por outro lado, é preciso, em movimentos centrífugos, que a imagem da ação a fazer desencadeie a vontade, que incita a alma e depois o corpo etc. Todo o problema é saber como se opera a passagem de uns aos outros. Ou melhor, como ela não se opera! Com efeito, se os movimentos centrípetos (do exterior para o interior) desencadeassem os movimentos centrífugos, não haveria mais nenhuma diferença entre ato voluntário e movimento forçado.[43] Para que haja movimento voluntário, é preciso que uma nova cadeia causal comece no espírito, independentemente de todas as imagens que ele recebe do exterior. É preciso, como diz Lucrécio ao descrever o mecanismo do movimento voluntário, que o espírito se concentre na imagem do movimento a fazer a fim de querê-lo, mas é preciso sobretudo que “o espírito mova-se ele próprio (sese commovet) de maneira a querer ir” (IV, 886-7). Não é porque a imagem da marcha se apresenta espontaneamente a meu espírito que eu ando, mas é porque eu quero andar que posso representar-me essa imagem a fim de poder andar. Portanto, é preciso uma ruptura da cadeia de causalidade para que haja determinação do espírito por ele mesmo. E é aí que intervém o clinamen.

Pois é primeiramente esse movimento voluntário dos animais em geral que o clinamen permite compreender.

Com efeito, logo após ter descrito o clinamen, Lucrécio escreve:

Enfim, se todo movimento se encadeia sempre,

se sempre de um antigo um outro nasce em ordem fixa,

e se por sua declinação os átomos não tomam

a iniciativa de um movimento que rompa as leis do destino

e impeça as causas de sucederem-se ao infinito,

livre por toda a terra, como se explica para os seres vivos,

como se explica, pergunto, essa vontade arrancada aos destinos

que nos permite ir onde nos conduz o prazer

e infletir assim nossos movimentos,

não num momento ou num lugar fixos

mas segundo a intenção de nosso espírito apenas?

Pois, nesse domínio, a vontade de cada um

toma evidentemente a iniciativa e é a partir dela

que os movimentos distribuem-se no corpo. (II, 251-63)

A seguir, Lucrécio desenvolve dois exemplos: o dos cavalos que, apesar de seu desejo, não partem imediatamente ao serem abertas suas estrebarias, prova, segundo ele, que não é isso que determina o impulso deles (causa externa); o movimento voluntário nasce de uma causa interna (o desejo) que deve se espalhar pelos diversos membros do organismo antes de poder produzir efeito. Segundo exemplo, o de um homem empurrado para trás (causa externa) e que consegue voluntariamente restabelecer seu equilíbrio (causa interna). Vemos portanto que, segundo os epicurianos, o clinamen não explica primeiro as ações humanas mais elevadas, “os atos livres”, mas os simples movimentos voluntários mais comuns dos animais em geral, por oposição aos movimentos forçados. Resta compreender por que — e como — ele o pode.

Como? Basta que, no momento em que se concentra a imaginação sobre o objeto do desejo, este corresponda a um rearranjo dos átomos no interior da alma possibilitado pelo clinamen. Já que todo átomo pode sempre efetuar um desvio mínimo em relação à sua linha reta e assim reordenar completamente o conjunto, por exemplo a alma, do qual faz parte, igualmente uma causa interna nascida na alma (um desejo, uma vontade, uma decisão), ela própria sem nenhuma causa exterior, tem por efeito provocar esse desvio que não resulta em nada dos movimentos atômicos anteriores. Há portanto duas maneiras de considerar esse desvio. Em relação à sequência dos movimentos atômicos, ele é indeterminado; em relação ao movimento do animal, é determinado pelo desejo. O movimento dos átomos deixa aberta essa margem de variação, que, entretanto, sendo sempre e apenas possível, o movimento da vontade torna-a necessária. Eis o que explica como o indeterminismo atômico não leva à desordem, mas a uma nova ordem. Ele não é a razão de ser da liberdade, é apenas sua condição de possibilidade. E ele torna a ordem da liberdade possível sem tornar a ordem da natureza impossível— o que responde antecipadamente à antinomia kantiana sem recorrer a uma liberdade “numênica”. Assim como era preciso, ao mesmo tempo, homogeneidade do corpo e da alma para explicar que o corpo pode agir sobre a alma (na sensação) e a alma sobre o corpo (pelo ato), e propriedades específicas da alma para explicar que as sensações são verdadeiras e os atos voluntários, assim também é precis() simultaneamente que os átomos obedeçam a movimentos retilíneos necessários para que haja uma ordem na natureza, e que eles possam desviar-se de sua linha para que haja uma ordem humana.

Ao tornar possível, e explicável, o mais simples dos atos animais semi contrariar as teses materialistas, Epicuro também resolveu os outros problemas, os outros graus da liberdade. Com efeito, basta explicar como um ato (que tem sua causa no agente) se distingue de um acontecimento (que tem sua causa num acontecimento anterior) para justificar todo conceito de liberdade, sem recorrer a uma faculdade humana superior, um poder supra-sensível, um dom divino, um livre-arbítrio concedido às criaturas para que elas possam ser julgadas pelo que fizeram, desculpando ao mesmo tempo o Criador. Podemos, de fato, rapidamente colocar em paralelo a solução materialista, a de Epicuro, e a solução espiritualista, a de santo Agostinho. Este deve resolver o problema do mal: como conciliar a existência do mal com a bondade de Deus? Mais precisamente, como imputar ao homem o mal que ele fez, sem imputá-lo a Deus que no entanto fez o homem? É preciso que a cadeia das causas dos atos, em vez de remontar a Deus, causa primeira, detenha-se no homem. E para isso santo Agostinho supõe que Deus dotou-o homem de um poder espiritual, que os outros animais não têm, de escolher livre e absolutamente entre o bem e o mal. A solução materialista é simétrica. Não se trata do problema do mal, mas trata-se também de poder imputar aos seres vivos seus atos. É preciso que a cadeia dos atos, em vez de remontar até os movimentos atômicos, embora sejam causa primeira de tudo, detenha-se no agente. E para isso é preciso supor que os próprios átomos deixem essa possibilidade de agir ao agente. A fonte da liberdade do ato não é Deus, não é uma determinação absoluta vinda do alto, é uma simples margem de indetermina-ção vinda de baixo, da matéria. E o poder do homem não é uma faculdade superior, um livre-arbítrio absoluto que o tornaria semelhante a Deus,[44] é o poder de determinar-se a si mesmo que ele partilha com numerosos animais.[45]

No entanto, é verdade que no homem coloca-se não apenas a questão dos atos voluntários, como vimos, mas a dos atos imputáveis, pelos quais é responsável, que dependem de seu caráter que, em última instância, não é outra coisa senão sua constituição atômica, corporal ou mental. Ora, Epicuro mostra igualmente que esse temperamento ou esse caráter jamais determina por si só os atos,[46] e que é sempre possível a qualquer um, seja qual for sua natureza ou seu passado, deixar-se guiar somente pela razão. Assim, depende de nós levar a vida que depende de nós. Não há nem destino nem necessidade: “o que depende de nós é sem senhor”, escreve Epicuro (Carta a Meneceu 133), e é daí que decorrem a reprovação e seu contrário.

Resta portanto uma dificuldade. Se a solução inventada por Epicuro para o problema da liberdade consiste em introduzir o indeterminismo, como conciliá-lo corn o conhecimento racional da natureza? Já temos um elemento de resposta: o clinamen é um movimento cujo capricho permanece estritamente limitado ao mínimo espacial. Contudo, será que isso não contradiz as leis da natureza? Não são essas leis necessariamente deterministas? Não enunciam elas que os fenômenos obedecem a relações constantes e previsíveis?

Longe disso. O conceito de “leis da natureza” é tão pouco contrário ao indeterminismo epicuriano que foi justamente inventado pelos próprios epicurianos! Não se observa suficientemente que eles foram não apenas os inventores de uma microfísica indeterminista, mas também os inventores desse conceito visto hoje como seu oposto, o conceito de “leis da natureza”, que se tornou tão banal desde o século XVII (Descartes e Galileu) e que na Antiguidade parecia tão estranho. Antes dos epicurianos, a ideia de “lei da natureza” não aparece em nenhum texto da física. Para os antigos da época clássica, Platão ou Aristóteles, a expressão seria vista como uma espécie de contradição nos termos, pois o que pertence à lei (nomos) não pertence à natureza (physis), e vice-versa.[47] Antes de Epicuro, e também depois dele, o conhecimento da natureza não deve buscar enunciar leis, mas causas (aitia). Ora, em Lucrécio aparece justamente o termo foedera naturae, literalmente os “contratos da natureza”, para qualificar as relações constantes, a ordem e a regularidade que se pode extrair da observação e da explicação (species ratioque) da natureza. Se analisarmos porém um pouco mais de perto o conteúdo dessas leis da natureza, ao menos no sentido antigo (e não moderno) do termo, constatamos que elas enunciam não relações causais (se x, então necessariamente y), mas, como as leis sociais,[48] são normas que fixam o que cada ser pode fazer e não fazer para que a ordem inteira à qual pertence possa se manter. São portanto limites.[49] Uma lei social não enuncia o que os indivíduosfarão, mas o que eles podem fazer sem deixar de ser o que são. Do mesmo modo, para os epicurianos, os “contratos naturais” fixam os limites que nenhum indivíduo pertencente a tal espécie natural (por exemplo, uma rosa ou urn cavalo) deve transpor, sob pena de deixar de ser o que é (rosa ou cavalo) e ser dissolvido em seus elementos materiais constituintes — o que se chama morrer, eles definem portanto as normas que tornam compatível sua margem de variação individual, ou seu poder de autodeterminação, com uma margem e um poder iguais em todos os de sua espécie. “Se um ser se transforma e sai de seus limites, imediatamente morre o que ele era antes”, escreve Lucrécio (I, 670-1, repetido em I, 792-3, II, 753-4, III, 519-20).[50] As leis da natureza definem portanto todo ser, no sentido estrito de enunciarem o que faz que ele seja necessariamente o que é, e determinam os limites aquém dos quais ele cessa de ser — isto é, ao mesmo tempo de existir e de ser o que é. Como toda definição, num sentido elas determinam um podei, e noutro sentido delimitam esse poder. Um não vai sem o outro: se um homem não fosse um homem, definido por suas capacidades limitadas, ele não seria homem. Mas, de forma mais radical, como toda definição de espécie, elas marcam os limites da vida e da morte, delimitam as condições de existência que são ao mesmo tempo condições de inexistência. Se um homem não fosse um homem, ele não seria em absoluto. É assim que as leis da natureza determinam por definição a espécie mas não o indivíduo, cuja definição e margem de ação são sempre deixadas indeterminadas no interior dos limites da espécie. É o que mostram as leis da reprodução biológica: os indivíduos variam no interior dos limites da espécie, a espécie conserva-se imutável pelos indivíduos. O mesmo acontece com as leis da dinâmica: todo corpo, na medida em que ele é o que é, ou seja, na medida em que é um corpo e tem peso, cai de cima para baixo segundo uma linha retilínea, uniforme e a uma velocidade máxima, se nada se opõe. Mas essa lei geral, que define os corpos, deixa indeterminada a queda singular de um átomo particular que possui uma margem de indeterminação, contanto que ela não infrinja essa lei nem, por conseguinte, o determinismo natural geral que permite a explicação física. Essa margem de ação individual (no caso, o clinamen) permanece contida dentro dos limites enunciados pela lei (no caso, o peso); além disso, ela é sempre mensurável — igual ao mínimo de espaço no mínimo de tempo —, não saindo portanto do domínio da física racional. E assim como o indivíduo não é (apenas) limitado pelas leis da espécie, já que sua existência mesma é definida por elas, assim também o determinismo da lei é não apenas compatível com a indeterminação local, mas a supõe. Lá onde há lei da natureza, ao menos no sentido que os epicurianos deram a esse termo, há determinismo dos fenômenos que ela rege e indeterminação dos acontecimentos singulares.

Podemos então responder de forma radical à nossa questão: a indeterminação do clinamen (isto é, no trajeto singular de um átomo) não infringe as leis da natureza, como muitos afirmaram. Podemos mesmo ir mais longe e compreender por que não é um acaso que o mesmo filósofo, Epicuro, tenha inventado simultaneamente o conceito de movimento indeterminado (que permite o ato livre) e o de leis da natureza (que permite o conhecimento racional). Não apenas esses dois conceitos são compatíveis, como também se completam. Melhor ainda, parece-me que eles são as duas faces de um mesmo e único conceito.

Para compreender isso, podemos voltar ao primeiro conceito de liberdade do qual partimos, o de liberdade política. Nós o definimos então essencialmente de forma negativa: parece-me que ser livre — jurídica ou politicamente — é, para um indivíduo, fazer (dizer; pensar) o que ele quer, sem ser impedido pelas restrições da sociedade ou do Estado. Essa definição é insuficiente, claro. E o que é talvez pior: num certo sentido, ela é simplesmente contraditória. Se x é um cidadão, ele pertence por definição a uma coletividade. Ora, se definimos um cidadão livre como aquele que pode fazer (dizei; pensar) o que quer, ele infringe necessariamente a liberdade dos outros que são também definidos como cidadãos e que, se fossem livres nesse sentido, deveriam como ele poder fazer o que querem sem ser impedidos. Portanto, um cidadão qualquer jamais poderia ser livre se um único cidadão fosse verdadeiramente livre nesse sentido. Em outras palavras, a definição puramente negativa é contraditória, a liberdade de um membro implicaria a restrição da dos outros, ou seja, nem todos podem fazer o que querem se os outros o podem também, já que cada um. é um outro para os outros. A condição necessária da liberdade de um cidadão qualquer não é então que não lhe seja interdito (negativamente) fazer o que quer, mas que seja interdito aos outros — portanto a ele mesmo enquanto outro — impedi-lo de fazer o que quer. Isso tem duas consequências. Por um lado, a liberdade implica por definição a igualdade: ter a liberdade de fazer (dizer, pensar, crer…) é ter a mesma liberdade (isto é, ter a mesma quantidade de direitos e de deveres que todos os que pertencem à coletividade). Por outro lado, a liberdade implica a lei, isto é, uma regra que emana do corpo político e que define para todos o necessário e o impossível, o obrigatório e o interdito, e destinada a garantir a igual liberdade de todos. (Pensemos, por exemplo, na interdição do assassinato.) A definição puramente negativa da liberdade política como ausência de qualquer coerção (não obedecer a um senhor, a um patrão, a regras, a regulamentos), e segundo a qual toda lei é uma limitação da liberdade, deve ser substituída por uma definição da liberdade que implica a lei.

A lei, ou pelo menos a lei assim concebida, não é portanto o contrário da liberdade mas, em seu conceito, a condição dela: é a condição necessária e suficiente da liberdade civil, isto é, de uma liberdade igual para todos, que permita a cada um agir como quer sem ser impedido por um outro. Como escreve Rousseau, “os homens são tanto mais livres, com efeito, na medida em que, sob uma aparente sujeição, ninguém perde de sua liberdade senão aquilo que pode prejudicar a de um outro […] É à lei apenas que os homens devem a justiça e a liberdade”.[51] Em outras palavras, uma liberdade que não fosse submetida à igual liberdade dos outros ins crita na lei não seria uma liberdade, mas sua negação, um poder tirânico arbitrariamente concedido a apenas um em detrimento de todos.

Assim, se os dois conceitos de liberdade política e de lei civil são mutuamente a condição do outro, é porque são as duas faces de um mesmo e único conceito. Trata-se de uma mesma e única realidade. Vemos então que a questão: como conciliar a liberdade com a lei? é uma questão mal colocada. A lei define o espaço de folga reservado ao indivíduo no interior de limites que são os mesmos para todos. Há portanto dois pontos de vista para considerar toda lei assim entendida: negativamente, isto é, pelos limites que ela enuncia (não deves…), ou positivamente, pelo espaço deixado livre para a ação individual no interior desses limites (ninguém pode te impedir de…). Longe de esses dois conceitos serem incompatíveis, trata-se de uma mesma e única realidade vista sob duas faces diferentes, uma positiva, outra negativa.

O mesmo acontece na outra ponta do conceito de liberdade, a liberdade no sentido físico do termo, oposta ao determinismo. Ao menos, é o que o gênio de Epicuro nos permitiu entrever. Consideremos, por exemplo, se isso fosse possível, um movimento atômico. Podemos ou considerá-lo do ponto de vista da lei, isto é, de seus limites — o que ele não pode fazer sem sair dos limites de sua natureza de átomo, e isso é inteiramente determinado: a direção de seu trajeto, sua velocidade etc. —, ou do ponto de vista de sua liberdade, isto é, de sua margem própria de movimento indeterminado, o clinamenà direita ou à esquerda, que não infringe a lei do movimento atômico — isso não seria possível. Consideremos, do mesmo modo, o comportamento de um cidadão: do ponto de vista das leis da sociedade (se elas fossem bem-feitas), ele não pode fazer tudo, há limites, contidos na definição mesma de cidadão como pertencente à mesma coletividade, mas, do ponto de vista da liberdade, ele pode fazer tudo, tudo o que não infringe a definição de cidadão. Vejamos, ainda, não mais o comportamento de um cidadão, portanto do ponto de vista da sociedade, mas a conduta de um homem qualquer, portanto do ponto de vista da natureza: podemos também nesse caso, e pela terceira vez, ou considerá-la do ponto de vista das leis da natureza, ou do ponto de vista de sua liberdade natural. Do ponto de vista das leis, ele não pode fazer tudo, há limites; infringir as leis da natureza seria deixar de ser um homem, isto é, poder fazer isso ou aquilo como um homem (falar, raciocinar etc.), ou um ser vivo, seria portanto morrer (afogar-se, envenenar-se etc.). Mas, do ponto de vista da liberdade, depende sempre dele fazer tudo o que não lhe é interdito pelas leis da natureza. Trata-se portanto da mesma coisa: a lei da natureza do homem define os limites e ao mesmo tempo condiciona os poderes de cada homem. A liberdade é isso. Ela é sempre absoluta, ou seja, sem outro limite senão aquele que a permite. E seu inventor é um materialista antigo, é Epicuro.

Pediram-me para falar da liberdade em Epicuro. Aceitei com entusiasmo, mas com o escrúpulo de que este sentido da palavra nada tivesse a ver com o eixo principal do curso, centrado em sua relação com a democracia. Pois bem, a análise do problema provou que eu estava errado. A prática e a teoria da democracia mostram que, politicamente, a liberdade é a outra face da lei, pelo menos a lei que todos se atribuem igualmente a si mesmos para que todos sejam igualmente livres. O mesmo acontece do ponto de vista físico. O clinamen é a margem de indeterminação do átomo no interior das leis que determinam seu movimento, e ele torna possível a margem de liberdade que cabe a cada um no interior das leis da natureza. Meu amigo Adauto Novaes estava portanto particularmente bem inspirado ao escolher tal questão para abrir este curso.

[1] Sobre esses dois grandes sentidos, ver Leibniz, Novos ensaios sobre o entendimento humano II, XXI, 5 8

[2] É o que observa ainda Leibniz, no texto citado: “A liberdade de fazer […] tem seus graus e variedades. Geralmente, aquele que tem mais recursos é mais livre para fazer o que quer: mas entende-se por liberdade, particularmente, o uso das coisas que costumam estar em nosso poder, e sobretudo o uso livre de nosso corpo. Assim, a prisão e as doenças nos impedem de dar ao nosso corpo os movimentos que queremos e podemos dar-lhe ordinariamente, elas anulam nossa liberdade: deste modo, um prisioneiro não é livre, e um paralítico não tem o uso livre de seus membros”.

[3] Esta divisão dicotômica está pautada parcialmente sobre a de Leibniz, texto citado.

[4] Esta divisão entre o que é “meu” e o que sou “eu” remonta à argumentação de Sócrates no Alcibfades,129 b-132 b.

[5] Sobre esta distinção, ver Ética a Nícômaco III, 1-3.

[6] Para a explicitação desta distinção ato/acontecimento, permito-me remeter a Dire le monde, Paris: PuF, 1997, pp. 110-1 (tr. br. Dizer o mundo, São Paulo: Discurso Editorial, 1999, pp. 113-5).

[7] Sobre este conceito, ver Ética a Nicômaco III, 4.

[8] O que Aristóteles chama ethos e Epicuro diatesi s em seu livro sobre a responsabilidade extraído do tratado Da natureza (doravante citado Da natureza), 34, 21-2. Trata-se de um papiro de Herculano, 697, 1056 e 1191, presumido por D. Sedley pertencer ao livro XXXV Da Natureza. D. Sedley traduziu esse papiro para o inglês e propôs uma interpretação magistral em “Epicurus refutation of Determinism”, in Suzetesis, Studi sull’Epicureismo Greco e Romano offerti a Marcelo Gigante, Nápoles, 1983, pp. 11-51 (citado adiante Sedley). Ela foi retomada em Anthony Long e David Sedley, The hellenistic philosophers. Cambridge University Press, 1987, vol. 1 (citado adiante Long e Sedley).

[9] Os três conceitos distinguidos por W Englert, Epicurus on the swerve and voluntary action. Atlanta: American Classical Studies 16, Scholars Press, 1987, p. 6.

[10] Notemos que esse conceito de liberdade (oposto ao determinismo) como capacidade de começar totalmente uma série causal foi às vezes confundido com o conceito de “liberdade de indiferença”, isto é, com a faculdade de se determinar sem causa. A diferença é considerável: no primeiro caso, ajo livremente se — e somente se — ajo em conformidade a meus motivos, isto é, à minha escolha deliberada, no segundo caso, ajo livremente se — e somente se — qualquer que seja minha escolha deliberada, posso sempre agir contra ela. Este último conceito supõe a autonomia da faculdade da “vontade” em relação a uma outra faculdade, a do “entendimento”. Ele nasceu em santo Agostinho e com propósitos apologéticos (ver adiante)

[11] A filosofia de Descartes ilustra particularmente bem essa dupla tese.

[12] Espinosa, Ética in, Prefácio.

[13] Lucrécio, com efeito, recorre claramente ao princípio “nada nasce de nada” quando faz derivar a vontade livre do clinamen: “É preciso então reconhecer que os átomos também, além dos choques e do peso, possuem neles mesmos uma causa motora de onde nos vem esse poder, já que nada, como vemos, procede de nada” (II, 284-7).

[14] Ver Epicuro, Carta a Heródoto 61, e Lucrécio II, 225-42.

[15] Ver Carta a Heródoto 62, e Lucrécio II, 230-4.

[16] Ver, por exemplo, Lucrécio o, 80-141, e 297-302.

[17] Lucrécio II, 217-8; Cícero, De fato 22, De natura deorumi, 69, De finibusi, 18

[18] Ver os textos, citados acima, de Cícero, que fala também, de maneira mais geral, de linha reta.

[19] Lucrécio II, 218-9 e 293 (cf 259).

[20] Ver Cícero, De fato 18, 46.

[21] A expressão é de Diógenes de Enoanda, fgt. 32 (Chilton).

[22] Ver Lucrécio II, 243-5 (em latim: nec plus quam minimum), Filodemo, De signis xxxvi, 11-7; Cícero, De fato 22; Plutarco, Moralia, De solertia anim. VII, 964 c.

[23] Ver Cícero, De finibusi, 18, e De fato 22,46. Sobre essa teoria do mínimo espacial, ver Epicuro, Carta a Heródoto 56-9, e Lucrécio o, 599-634.

[24] Isso teria, com efeito, duas consequências inaceitáveis: por um lado, tornaria o movimento impensável (segundo a, interpretação aristotélica dos argumentos de Zenão) e, por outro, tornaria as grandezas espaciais incomensuráveis entre si, particularmente as dos átomos, e constituiria um obstáculo à formação dos corpos a partir desses átomos de quaisquer tamanho e forma. Compreende-se assim por que Cícero (De finibus I, 20) liga essa tese à recusa epicuriana de pensar o espaço físico como um espaço geométrico. Sobre esses pontos, ver D. Furley, Two studies in the Greek atomists. Estudo 1: “Indivisible Magnitudes”. Princeton: 1967.

[25] Ver a expressão de Epicuro, Carta a Heródoto 62, “o menor intervalo de tempo contínuo”.

[26] São as expressões empregadas por Aristóteles (Física VI, 1, em particular 232 a 6-12) para refutar a ideia de que o espaço e o tempo sejam compostos de indivisíveis.

[27] Ver as conclusões concordantes de D. Sedley, art. cit., e de E. Asmis, Epicurus scientific method. Cornell University Press, 1984, p. 280.

[28] A imagem é de D. Sedley, art. Cit.

[29] Epicuro, Carta a Heródoto 47.

[30] Ver Lucrécio I, 599-602.

[31] Ver Lucrécio II, 245-50.

[32] David Sedley, art. cit.

[33] A. Long e D. Sedley, op. cit., p. 108, e D. Sedley, art. cit., p. 24. Ver também Epicuro, Sentence vaticane40: “Aquele que diz que tudo acontece pela necessidade nada tem a reprovar àquele que diz que nem tudo acontece pela necessidade, já que ele diz que isso mesmo acontece pela necessidade”.

[34] Há um argumento intermediário, ligado aos “atos mistos”, segundo a terminologia de Aristóteles (Ét. Nic. 111, 1), os atos voluntários que repugnamos mas fazemos para evitar um mal maior.

[35] Ver Demócrito, fgt. 9, 117, 125 Diels-Kranz, assim como D.K 67 A 32 e 68 A 1 § 44: “Convenção que o doce, convenção que o amargo, convenção que o quente, convenção que o frio, convenção que a cor; e em realidade: os átomos e o vazio”.

[36] Cf Lucrécio IV, 473-99.

[37] Lucrécio IV, 500-12. Sobre o que precede, ver D. Sedley, art. Cit.

[38] Ver Epicuro, sumbébèkota, Carta a Heródoto 68, e Lucrécio, coniuncta, I, 450.

[39] Ver o raciocínio de Epicuro em Carta a Heródoto 68-9.

[40] Long e Sedley, p. 110.

[41] São motus sensiferi de que fala Lucrécio (III, 240, 245 etc.)

[42] Segundo o processo da imaginação descrito por Lucrécio em IV, 722 ss.

[43] O problema é muito bem colocado por Walter G. Englert, Epicurus on the swerve and voluntary action, em particular pp. 119-24. Atlanta: American Classical Studies 16, Scholars Press, 1987.

[44] “Há tão-somente a vontade, que sinto ser em mim tão grande que não concebo absolutamente a ideia de alguma outra mais ampla e mais extensa; de modo que é principalmente ela que me faz conhecer que trago a imagem e a semelhança de Deus” (Descartes, Quarta “Meditação metafísica”).

[45] É difícil precisar o que são os animais capazes de autodeterminação (os homens e os cavalos, com certeza); mas, em outra parte do livro, inserto extraído de Da Natureza, 34, 25, Epicuro parece excluir os animais selvagens.

[46] Ver Da Natureza, livro inserto, 34, 21-12 (citado por A. Long e D. Sedley, vol. 1, p. 102). Cf também Lucrécio iii, 307-22, que se encerra nestes termos: “Vejo que me é possível afirmar o seguinte: as marcas deixadas por nossas naturezas e que a razão não consegue apagar são tão pequenas que não há nenhum obstáculo a uma vida digna dos deuses”

[47] É o que vemos também, em sentido contrário, num dos raros textos anteriores aos epicurianos que utilizam esse conceito: a exposição de Caliclés no Górgias de Platão (482 ss.; a expressão encontra-se em 483 e).

[48] Ou melhor, para Epicuro, como os “contratos” sociais. Sobre essa teoria do contrato social, ver Epicuro, Max. Cap. XXXI-XL, e Lucrécio v, 1136-1160

[49] A importância dessa noção de limite no epicurismo foi evidenciada por Ph. de Lacy, “Limit and variation in the epicurean philosophy”, Phoenix, 1969, XXIII, pp. 104-13. Ver, mais recentemente, J. Salem, Tel un dieu parmi les hommes. Paris: Vrin, 1989, pp. 83-99

[50] O texto mais explícito que define osfoedera naturae é o seguinte: “Posto que os seres têm, conforme sua espécie (generatim), um limite (finis) dado de crescimento e de vida, posto que a capacidade de cada um deles é fixada inviolavelmente pelos pactos da natureza, e posto que, longe de mudar, tudo permanece constante até para as diversas aves que sucessivamente apresentam em seus corpos as marcas da espécie (generalis), é preciso que eles possuam também um corpo de matéria imutável. Sim, essa é a evidência; pois, se os elementos primeiros pudessem modificar-se, cedendo a alguma causa, aquilo que pode ou não nascer não seria mais fixado, como tampouco o sistema pelo qual toda coisa possui um poder limitado (finita potestas), limite profundo e estável, e as gerações não teriam, em cada espécie, reproduzido tantas vezes a natureza e o caráter, o modo de existência e os movimentos dos antepassados’ Ver também Lucrécio v, 55-61, v, 306-10, v, 920-4, 906-8; e, sem a palavra mas com a ideia: I, 75-7 (=v, 88-90), ii, 296-302, II, 700-13 e 718-9).

[51] Manuscrito de Genebra do Contrato social, inserido no artigo Economia política da Enciclopédia. Ver também Rousseau, Contrato social II, 6: “Não cabe perguntar se a lei pode ser injusta, já que ninguém é injusto para consigo mesmo; nem de que maneira somos livres e submetidos às leis, já que estas são apenas registros de nossas vontades”.

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