2011

A lenda do Grande Inquisidor: a noite das crenças

por Frédéric Gros

Resumo

Vive-se hoje o fim das crenças? Teriam elas se dissipado à medida que se levantava o sol da Razão ocidental?

Para tratar do tema, recorre-se à lenda do Grande Inquisidor, que consta do livro “Irmãos Karamazov” de Dostoiévski.

Tudo começa na Sevilha do século XVI. É o ápice da Inquisição, e Cristo volta à Terra. Não que ele volte assim como previsto nos Evangelhos, para anunciar o Juízo Final. Nada, portanto, de mortos que se levantam ou do fim da História, pois o Cristo que vem é o de 15 séculos antes; humilde entre os humildes, pobre entre os pobres. Apesar disso e da sua recusa em falar, é logo reconhecido por quem o vê, já que seus olhos e seu sorriso brilham. Sua presença basta. Sendo assim, o povo segue-o. Adora-o. Até porque, a caminho da grande praça da catedral, ele abençoa seus seguidores. Na praça, já há uma multidão, que chora, prosterna-se e ri. A exceção é um velho de noventa anos ou o Grande Inquisidor, que, ao entender o que se passa, ordena à sua escolta que prenda Cristo. Fato é que, em meio a tanta gente, ninguém o defende.

É noite quando o Inquisidor visita seu prisioneiro. Quer certificar-se: – É você? É você mesmo? – Cristo permanece mudo. – É melhor você se calar! – E o Inquisidor assim prossegue, repetindo-se: – Por quê? Por que você veio nos importunar?

Pergunta estranha, enigmática, que o próprio Inquisidor trata de responder num monólogo que talvez constitua uma das peças literárias mais profundas e perturbadoras do pensamento político ocidental.

– Você volta no momento em que nós, da Igreja, finalmente consertamos seu erro. Precisamos de 15 séculos para tapar a brecha, para fechar o abismo que você abriu quando da sua primeira vinda […] Saiba que mandarei queimá-lo amanhã como o pior dos hereges, e esse povo que hoje beijou seus pés e cobriu-o de flores amanhã colocará brasa e mais brasa para que o fogo queime mais forte e rápido.

Mas qual foi esse erro monstruoso?

– Lembre-se – diz então o Inquisidor – do famoso dia das três tentações do Diabo…

Cabe mencionar tais tentações.

Depois de jejuar durante 40 dias no deserto, o Diabo sugere a Cristo que use seus poderes para transformar pedras em pães, ao que Cristo responde que o homem não se alimenta só de pão.

Cristo está em cima de um templo quando o Diabo sugere que se jogue, já que, sendo filho de Deus, os anjos o carregariam.

Enfim, Cristo está no cume de uma alta montanha quando o Diabo mostra-lhe o conjunto dos reinos do mundo, dizendo-lhe que são todos dele, ao que Cristo responde que adora apenas Deus.

O pão obviamente corresponde à questão dos bens materiais, da economia. Já o salto no vazio é mais difícil de interpretar. Correntemente, ele é associado à questão do imaginário. Pode-se, contudo, ir além, ao notar que o desejo do Diabo é que Cristo verifique se é de fato filho de Deus.

A verificação, ora, é um expediente científico; logo, o que há é a questão científica. A terceira tentação trata, claro, da dominação política.

Daí infere-se que se Cristo tivesse multiplicado os pães, provado ser filho de Deus ou aceitado o Império Universal, ele teria imediatamente obtido do homem uma crença servil, passiva, cega, e o que ele desejava era ser adorado livre e responsavelmente. Aos olhos do Inquisidor, algo de que o povo seria incapaz, já que “fraco, covarde, desprevenido”. Por isso a necessidade de alguém que lhe diga como ganhar o pão, o que é verdadeiro e falso, a quem obedecer.

Eis por que reler as tentações e mostrar como cada uma delas define um registro específico de crenças que o Inquisidor precisou instaurar: a econômica, a científica e a política.

Com a primeira recusa – explica o Inquisidor –, Cristo teria privado o povo de uma fonte de felicidade e segurança, isto é, a gratidão que o escravo sente pelo mestre que o alimenta, pois, com isso, não haveria rivalidades e lutas pela divisão das riquezas produzidas pelo homem. Acontece que ceder a isso corresponderia a negar a este o senso de justiça.

Com a segunda recusa – explica ainda o Inquisidor –, Cristo teria privado o homem de uma prova objetiva de sua filiação. Ao negar-se a desempenhar o papel de “guardião das consciências”, ele não poupou à Igreja o trabalho de discernir, para o povo, o verdadeiro do falso, já que – ao contrário do que Cristo supõe – as pessoas são incapazes de verificar por elas mesmas suas crenças.

A tentação exercida pelo poder, enfim. Ao recusá-la – explica, por fim, o Inquisidor –, Cristo teria condenado o homem à solidão, já que ele só é capaz de unir-se na submissão. Do contrário, o que haveria na Terra seria um reino de paz e segurança definitivas.

Não teria desejado Cristo que os homens fossem capazes de se entender por eles mesmos?


A questão geral que eu gostaria de fazer hoje é: será que nossa época é realmente a do fim das crenças? Pois há muito tempo nossa civilização moderna tem sido apresentada como a do desaparecimento das grandes crenças. Elas teriam se dissipado como brumas leves, enquanto se levantava devagar o sol da Razão ocidental.

Para tentar responder a esta pergunta, vou recorrer a uma lenda um pouco maluca, contada por um bêbado. O bêbado é Ivan Karamazov. A lenda é a do Grande Inquisidor, que pode ser encontrada em Os irmãos Karamazov, o último romance escrito por Dostoiévski. Para muitos críticos, é a obra mais perfeita do autor. Por sua vez, Dostoiévski escreve em sua correspondência que o episódio do Grande Inquisidor representa o ápice do romance, o ponto de intensidade máxima.

Não demorou muito para esta lenda se tornar objeto de numerosas interpretações, por vezes muito divergentes. É preciso reconhecer que sua força dramática é imensa e sua mensagem política, terrivelmente misteriosa. Embora supostamente se passe no século XVI, muitos quiseram ver nesse texto uma dimensão profética: seria possível enxergar por ele as grandes tragédias políticas do século XX.

Esta lenda é a narração de uma noite. E já que na hora em que lhes falo é noite à nossa volta, vem-me a ideia de escrever com vocês uma história das noites filosóficas. Há a noite interminável da República de Platão. Sócrates, nesse diálogo, foi gentilmente forçado a terminar a noite na casa de Polemarco, quando estava tranquilamente no caminho de casa para dormir. E, durante essa longa noite, ele vai decidir o sentido da justiça e reconstruir o destino do mundo. Poderíamos evocar a noite de 10 de novembro de 1619, durante a qual Descartes teve os três sonhos que iriam inspirar seu método, mas também o que Hegel chama, no início da Fenomenologia do espírito, a noite do Agora. E ainda, como festejaremos em 2011 os cinquenta anos da publicação da História da loucura, poderíamos falar, com Michel Foucault, da noite nascida da grande partilha trágica, uma noite simples, ausência de dia, a noite pura e transparente da loucura clássica.

Acrescento que este tema da noite na filosofia não está assim tão afastado do nosso assunto. Na tradição ocidental, de fato, apresentaram a “crença” muitas vezes como remetendo à obscuridade e às tênebras do pensamento, quando a razão estaria do lado da luz. Em todo caso, se eu tivesse que escrever uma história das noites filosóficas, de qualquer jeito seria preciso dedicar um capítulo à noite do Grande Inquisidor do romance de Dostoiévski. É este capítulo de um livro que não existe que eu gostaria de evocar com vocês hoje à noite.

Antes de começar e de lhes contar esta história do Grande Inquisidor, eu gostaria de indicar a perspectiva geral na qual vou inserir esta problemática da crença. Podemos dizer que na história da filosofia, de Platão a Husserl, passando por Descartes, Hume e Kant, o problema da crença se colocou essencialmente na sua relação com a verdade: será que a crença é uma forma de pensamento absolutamente incompatível com um julgamento sobre a verdade? Ou, então, será que pensar — que seja uma coisa absurda ou uma proposição verdadeira — já não significa crer?

Ao tomarmos a lenda do Grande Inquisidor como ponto de partida para nossa reflexão, temos que deslocar uma problemática da epistemologia para o campo da política. Não pretendo examinar a relação entre crença e verdade, mas a que existe entre crença e liberdade.

Vou começar dedicando alguns instantes para lhes contar esta história do Grande Inquisidor.

A cena se passa na Espanha, em Sevilha, no século XVI, no pior período da Inquisição, numa época em que regularmente acendiam braseiros imensos para queimar vivos os heréticos. E é este o momento que Cristo escolhe para voltar. Cristo volta, mas não se trata da grandiosa Volta prometida nos Evangelhos, não se trata do cumprimento da promessa.

Cristo não volta para encerrar a História, para levantar os mortos e pronunciar o juízo Final. Ele não volta em toda a sua glória, sentado num trono resplandecente de candura.

Não, ele volta, mas do jeito que ele fora, 15 séculos antes, humilde andando entre os humildes, vestido como um pobre. E de manhãzinha ele percorre esta cidade do Sul onde ainda voam algumas cinzas, visto que na noite anterior haviam erguido diante do povo, diante dos poderosos da Corte e dos grandes prelados da Igreja reunidos, alguns autos de fé para queimar uma boa centena de heréticos. Cristo volta, não diz nada, mas todos o reconhecem logo. A luz em seus olhos, o brilho de seu sorriso, a emanação da sua presença bastam para dizer imediatamente quem ele é; no entanto, ele permanece mudo. E todo o povo logo o segue, o adora. Cristo continua andando silenciosamente, abençoando-os, e chega até a imensa praça da catedral de Sevilha.

É preciso agora imaginar esta praça cheia, com a multidão chorando, adorando, se prosternando, soltando longos gritos de alegria; e, no centro, Cristo, mudo, que espalha à sua volta a infinita doçura de sua presença. Mas um novo personagem surge: uma pequena silhueta preta, acompanhada de gente armada. A descrição feita dele contrasta em tudo com a de Cristo: um corpo curvado, o de um velho de noventa anos. Seu rosto é comprido e magro, seus olhos são fundos e soltam faíscas. É o Grande Inquisidor.

O Inquisidor entende na hora o que está acontecendo e dá ordens aos guardas que o acompanham. Estes abrem passagem na multidão e logo prendem o homem. E o povo não oferece nenhuma resistência, não esboça nenhum movimento de revolta. Cessa na hora seus cantos e gritos, paralisado. A prisão é rápida e Cristo é conduzido num silêncio mortal até as cadeias do Santo Ofício, bem abaixo da terra.

O dia passa. Segue a noite: uma noite quente, carregada de perfumes de louro e limão, escreve Dostoiévski. E no meio da noite o Grande Inquisidor vem visitar seu prisioneiro. Ele entra na cela escura, uma tocha na mão, e pergunta: “É Você, é Você mesmo?”. O prisioneiro continua calado. Ele não vai pronunciar uma única palavra até o fim. O idoso quebra o silêncio acrescentando: “É melhor você se calar!”. E prossegue com uma pergunta que ele voltará a fazer várias vezes: “Por que, por que você veio nos importunar?”.

“Por que você veio nos importunar?” Pergunta estranha, muito enigmática, e que o Inquisidor vai explicitar num longo monólogo que constitui provavelmente um dos textos mais profundos e mais perturbadores do pensamento político ocidental. Monólogo que um velho de noventa anos — representante das mais altas autoridades da Igreja que persegue a heresia com uma severidade extrema — endereça em uma noite inteira a Cristo, que está preso nas cadeias do Santo Ofício e se mantém calado, monólogo que pode ser considerado uma profunda meditação sobre as crenças.

“Por que você veio nos importunar?”, pergunta o Inquisidor. “No momento em que nós, da Igreja, finalmente chegamos a consertar seu erro. Precisamos de quinze séculos para tapar a brecha, para fechar o abismo que você abriu na sua primeira vinda.

“E o Inquisidor se torna logo mais agressivo e ameaçador ao acrescentar: “Saiba que mandarei queimá-lo amanhã como o pior dos heréticos, e este povo que hoje beijou seus pés e cobriu-o de flores amanhã colocará brasa e mais brasa para que o fogo queime mais forte e mais rápido”.

Vocês podem entender por que aqui o texto começa a se tornar muito preocupante. Pois a pergunta “Por que você veio nos importunar?” poderia receber duas interpretações. Ou: “Você vem nos perturbar quando fazemos tudo para perfazer sua obra, quando fazemos corretamente seu trabalho, quando seguimos do melhor jeito possível o caminho que você indicou”, e o Inquisidor se encontraria então na posição de um operário honesto que fica irritado com a visita surpresa do patrão para verificar se o trabalho foi benfeito. Ou então, é todo o contrário: “Desde que você se foi, acumulamos os passos em falso, demos um jeito com nossas imperícias, e eis que você vem nos perturbar para endireitar nossas faltas”. O Inquisidor pareceria aí antes o mau discípulo que fica preocupado com a vinda do mestre, por ter consciência de seus erros.

Mas o Inquisidor está dizendo aqui algo totalmente diferente. Ele diz: “Trabalhamos duro durante 15 séculos para consertar seu erro, aliviar a angústia que você suscitou. E, ao voltar, você coloca nosso trabalho em perigo, você compromete tudo”.

Mas qual foi esse erro monstruoso?

“Lembre-se”, diz então o Inquisidor, “daquele dia famoso, o dia das três tentações do Diabo.” Estas três tentações, no texto de Dostoiévski, vão permitir caracterizar o destino da própria humanidade.
Vou recordar aqui as tentações tal como podem ser lidas nos Evangelhos.

O Diabo dissera a Cristo, que jejuara no deserto durante quarenta dias: “Olhe estas pedras e transforme-as em pão, de acordo com seus poderes”. E Cristo respondera: “Não, pois o homem não se nutre apenas de pão”.

Segunda tentação: Cristo está em cima do templo e o Diabo lhe diz:

“Jogue-se no vazio, pois se você for realmente o filho Dele, os anjos o carregarão”. Mas Cristo recusara, porque não queria tentar seu Deus.

Finalmente, o Diabo levara Cristo ao cume da mais alta montanha e de lá lhe mostrara o conjunto dos reinos do mundo, dizendo-lhe: “São seus se você se prosternar diante de mim, e você será o mestre absoluto do mundo”. Mas Cristo respondera: “Não, pois adoro somente a Deus”.

Por enquanto, dei sobre estas três tentações e sua compreensão imediata pelo Inquisidor apenas um apanhado muito genérico. É preciso retomá-las agora, uma após a outra, de maneira mais detalhada. Antes disso, temos que interrogar esta tripartição: tentação do pão, do salto no vazio e da dominação total. Deve ser possível identificar cada uma destas tentações. O pão, obviamente, é o problema dos bens materiais, é a área econômica que está em questão. A interpretação do salto no vazio é um pouco mais complicada. Com efeito, as pessoas pensam logo que estamos falando da área do imaginário: o Cristo se recusa a dar aos homens a imagem maravilhosa de um socorro divino. Esta imagem poderá fascinar sua consciência, cativar sua imaginação, e sua fé seria então prisioneira das imagens. Podemos, contudo, ir mais longe na explicação desta tentação. O Diabo diz: “Verifique que você de fato é o Filho de Deus; para tanto, jogue-se no vazio, pois está escrito que os anjos o carregarão; assim, você poderá verificar as Escrituras”. O problema central é consequentemente o da verificação e, mais precisamente ainda, o da experiência crucial pela qual um enunciado pode ser verificado. Por isso, diremos que o problema colocado por esta segunda tentação é o da ciência. Está totalmente claro que a terceira tentação apresenta o problema da dominação política, já que propõem ao Cristo que se torne o mestre do mundo e submeta toda a humanidade a um jugo total.

As três áreas são, então, respectivamente: a economia, a ciência e a política. Dostoiévski atribui a cada tentação um nome: a tentação do milagre para o pão, a tentação do mistério para o salto no vazio e, finalmente, a tentação da autoridade para a oferta do poder.

A argumentação geral do Grande Inquisidor é a seguinte. Ele diz a Cristo: “Você não quis ceder às tentações, porque sabia que se tivesse multiplicado os pães, se tivesse provado aos olhos de todos, por uma experimentação objetiva, que realmente era o Cristo, se tivesse aceitado o Império Universal, você então teria imediatamente obtido da humanidade uma crença servil, passiva, cega. Pois você quis que os homens o reconhecessem e o adorassem livremente, você exigiu deles uma crença responsável. Mas eles são incapazes disso. Na sua imensa maioria”, explica o Inquisidor, “os homens são fracos, covardes, desprevenidos. A liberdade para eles representa uma vertigem intransponível. Eles precisam de um mestre que lhes diga como ganhar o pão, o que é verdadeiro e falso, a quem devem obedecer”.

“Naquela noite terrível”, prossegue o Inquisidor, “você queria que fosse livremente, e não por meio de uma submissão cega, que o adorassem. Você exigia que cada um fosse o próprio responsável por suas crenças, que decidisse sua fé livremente. E foi por isso que você se recusou a transformar pedras em pão, a se jogar do alto do templo, a aceitar a espada da dominação. Mas aí você estava se endereçando apenas a uma elite moral, a um punhado de ascetas, a uma minoria de sábios. Somente uma parca elite realmente teve a coragem de escolher, de aceitar a responsabilidade plena de seus atos, de decidir. Somente uma pequena minoria teria estado à altura da exigência sublime do Cristo”.

“Então”, continua o Inquisidor, “qual foi a nossa tarefa depois de sua ida? Você exigira demais dos homens, exigira demais da humanidade. E foi preciso consertar seu erro, foi preciso trabalhar para reduzir o abismo, foi preciso corrigir sua obra.”

Dá para entender melhor a interrogação inicial: “Por que você veio nos importunar?”. O Grande Inquisidor se coloca na perspectiva da Igreja Católica Romana: foi ela quem herdou a mensagem de Cristo, foi ela quem recebeu a tarefa de transmiti-la e de organizar a ortodoxia. A partir daí, Cristo só precisa voltar para encerrar a história, mas não tem mais o direito de intervir diretamente na história dos homens, de trazer novas revelações, visto que designou legatários de sua mensagem, representantes oficiais da fé.

Temos agora que explicar o que o Inquisidor quer dizer precisamente quando afirma para o Cristo: “As tentações que você recusou, elas definiram as grandes dimensões do nosso trabalho. Depois de sua passagem, para aliviar a preocupação na qual você mergulhara a humanidade, para acalmar a angústia de um povo que você expusera à vertigem angustiante da liberdade, aceitamos, sim, multiplicar os pães, nos tornar os mestres da comprovação e exercer a dominação total. E foi aí que o povo nos agradeceu. Ele nos adorou porque lhe demos o sentimento de segurança na alegria da obediência”. É preciso, portanto, reler as tentações uma por uma e mostrar como cada uma define um registro específico de crenças que o Inquisidor vai ter que instaurar: a crença econômica; a crença científica; a crença política.

A primeira tentação é a da multiplicação dos pães. O Grande Inquisidor diz ao Cristo: “Você se recusou a multiplicar os pães, porque não queria que as consciências se apegassem a você por meio de bens materiais”. Muitos comentaristas interpretaram este trecho como uma crítica implícita do materialismo, crítica que incluiria ao mesmo tempo o socialismo e o capitalismo. Dostoiévski denunciaria de antemão a sociedade de consumo de massa, qualquer civilização que fizesse com que os indivíduos perdessem o gosto pela liberdade, enterrando-os debaixo de uma avalanche de mercadorias, qualquer projeto de sociedade que propusesse aos homens apenas a prosperidade material. O projeto do Grande Inquisidor seria o de um totalitarismo materialista: de oferecer aos homens o pão em troca de sua liberdade.

Mas é possível ir um pouco mais longe na explicação de texto, mostrando como a questão é sobretudo de instalar no fundamento do processo econômico uma certa crença. O Inquisidor critica, portanto, Cristo por ter outrora se recusado a ceder à tentação de transformar pedras em pães. “Com esta recusa”, explica o Inquisidor, “você privou o povo de uma fonte de felicidade e de segurança, a saber: a gratidão do escravo perante o mestre que o nutre. Nós, ao contrário, organizamos a multiplicação dos pães. Realizamos o milagre econômico seguinte: colocamos os homens para trabalhar; depois, apropriamo-nos do fruto do trabalho deles; e, finalmente, redistribuímos para eles uma pequena parte das riquezas produzidas por este trabalho. E os homens nos agradeceram, porque o sofrimento de seu trabalho estava amplamente compensado por um lado pelo prazer da submissão e, por outro, pelo alívio de não ter que organizar a partilha.” Com isso, o Inquisidor quer dizer que as riquezas produzidas pelo trabalho dos homens são logo comprometidas pelas rivalidades, pelas lutas e pelas divisões envolvidas na sua distribuição. Os homens precisam de um mestre de justiça que organize as partilhas sem contestação possível. O Inquisidor introduz aí duas ideias: a primeira é que os homens são incapazes de se entender entre si para dividir os bens produzidos pelos seus esforços, a segunda é que nos nutrimos apenas do que nos dão. O que nutre, tanto quanto e até mais do que o pão, é a mão que o dá. E mesmo se o que lhe derem for uma parte ínfima do que primeiro lhe tomaram, a felicidade é se sentir recompensado por outrem. Mesmo se o que lhe derem for o que primeiro lhe roubaram, a alegria de receber, o prazer da gratidão são mais fortes.

O que surge aqui, na interseção destes dois temas (o prazer em obedecer e a alegria de se sentir recompensado), é a ideia da devoção para com o mestre. A lógica econômica de produção, de apropriação e de distribuição das riquezas seria finalmente sustentada por uma crença: na bondade, na justiça e na solicitude do mestre.

Eu queria evocar aqui outro texto, que foi redigido cerca de dez anos antes do romance de Dostoiévski e que também faz uma síntese entre a área econômica e a crença: é o famoso capítulo dedicado ao “fetichismo da mercadoria” em O capital, de Marx. Este também elabora a ideia de uma crença econômica fundamental, mas a análise dele é evidentemente muito diferente da de Dostoiévski. Para Marx, o modo de produção capitalista representa o momento em que a organização das atividades humanas e as relações entre as pessoas são quase que exclusivamente determinadas pela troca geral das mercadorias, onde o valor de uso das coisas e sua relação com a vida concreta acabam sumindo, ocultados pelo seu puro valor mercantil, pelo seu preço. Na sociedade capitalista, o homem só começa a existir socialmente, na sua relação consigo mesmo e com os outros, quando se apresenta sob a forma de uma mercadoria. E o valor desta mercadoria representada no jogo social não depende dele, mas do jogo das concorrências. A questão essencial do homem numa sociedade capitalista é: quanto valho, qual o meu preço? E o problema, mais uma vez, é que a determinação do valor de cada um depende de um mercado anárquico e consequentemente lhe escapa por completo. Cada indivíduo é forçado a se comparar a si mesmo e aos outros como uma coisa, cada um existindo apenas como uma mercadoria cujo valor é fixado fora de si. O capitalismo em Marx representa, então, uma relação e um modo de produção em que o relacionamento consigo e com os outros se constrói a partir de uma instância separada, estranha, transcendente. É esta relação de exterioridade que produz a crença. Quanto mais os próprios indivíduos, na sua atividade social, se sentem forçados e determinados por uma força que os ultrapassa, mais eles tendem a ter fé num Deus onipotente. Por outro lado, por meio de uma ilusão social, o assalariado tem o sentimento de que ele é pago e retribuído pelo capital, quando na verdade é ele que, pelo seu trabalho, enriquece o capital. O que Marx chama de “fetichismo da mercadoria” é a impressão ilusória de que os objetos teriam um valor em si e que a riqueza intrínseca das mercadorias é que permitiria remunerar o trabalho humano, quando a verdadeira fonte de riqueza sempre é a atividade dos homens. Segundo Marx, ambos os fenômenos (o sentimento de não ser dono de seu destino e a ilusão de que a mercadoria tem um valor em si) originam a crença religiosa.

Ao esquema marxista poderíamos, contudo, objetar o seguinte. A religião estaria se nutrindo do modo de produção capitalista de tal maneira que seria inútil querer combater a alienação religiosa no mero plano das ideias? Apenas uma transformação radical das relações de produção seria capaz de acabar com tal alienação? Acontece que as sociedades contemporâneas parecem demonstrar a compatibilidade do ateísmo e do capitalismo.

Talvez estejamos tão somente assistindo a um deslocamento das crenças. Parece-me, por exemplo, que o surgimento, algumas décadas atrás, de uma nova forma de capitalismo (o capitalismo financeiro) foi acompanhado por outra espécie de manifestação: a mistificação do mercado, que é ao mesmo tempo apresentado como fonte maravilhosa de enriquecimento e vivenciado como causa fatal de empobrecimento. É um milagre permanente e, ao mesmo tempo, uma fatalidade incontrolável. Um exame do neocapitalismo com certeza necessitaria uma revisão das categorias marxistas. Vemos, por exemplo, menos lógicas de exploração e mais lógicas de endividamento. O indivíduo é menos diretamente usado como força de trabalho do que como fonte de liquidez. No neoliberalismo, o mercado possui, todavia, as mesmas características que a mercadoria para Marx: ele é o que se impõe de fora aos indivíduos e rege o destino deles, ele é em si uma fonte inesgotável de riquezas que retribui o trabalho, ele é apresentado como uma instância não dominável, uma fatalidade externa, uma divindade mimada. Aguardam as cotações da Bolsa como outrora aguardavam os oráculos da Pítia. São sinais que devem sentenciar nossa prosperidade ou nossa infelicidade, e nossas existências são tributárias das flutuações do mercado como antigamente eram das curvas da providência. Em todo caso, tanto em Marx quanto em Dostoiévski encontramos a ideia de que a economia não é uma área puramente racional, o lugar de um cálculo frio dos interesses: a economia também funciona na base de crenças.

Depois desta digressão por Marx, volto agora à segunda tentação de Cristo. O Diabo dissera a Cristo: “Se você quiser ter absoluta certeza de que você é o filho Dele, jogue-se do alto do templo, pois foi dito que os anjos o carregarão”. Então o Inquisidor vai fornecer duas grandes interpretações desta tentação. Primeiro, trata-se de dizer ao Cristo: “Se você tivesse aceitado se jogar no vazio e se deixar carregar pelos anjos, você teria suscitado uma imagem maravilhosa. Todos então teriam sucumbido ao fascínio das imagens e teriam lhe obedecido cegamente. Mas como você não quis uma fé cega, desistiu de explorar a credulidade popular”.

Existe, porém, uma segunda interpretação da tentação, que parte da ideia de experiência. Esta segunda interpretação se manifesta em certas palavras do Inquisidor, como quando este afirma que se o Cristo tivesse cedido à segunda tentação, ele teria se tornado “o guardião das consciências”. O salto no vazio é a experiência crucial que poderá determinar se Cristo realmente é o filho de Deus. Representa como que o procedimento de verificação de um enunciado. A partir daí, o que até então era apenas um simples artigo de fé se torna uma verdade da experiência. A filiação do Cristo, se ele tivesse aceitado se jogar no vazio, teria sido demonstrada objetivamente. No entanto, Cristo exigia de seus fiéis uma fé viva. Com isso, a existência do Filho de Deus não deve ser entendida como uma verdade definitivamente demonstrada pela experiência, estabelecida uma vez por todas, consignada. Pois as verdades veiculadas pelas crenças são vivas, são sustentadas pelo coração, enquanto as verdades produzidas pela ciência seriam certezas mortas.

O Inquisidor do nosso texto diz: “Aceitamos esta segunda tentação, isto é: aceitamos nos tornar, aos olhos de todos, os mestres da verificação”. O Inquisidor mostra, assim, que a Igreja Católica Romana se constituiu como instância que realiza para toda a comunidade dos cristãos a divisão entre o que é verdadeiro e o que é falso, que decide os artigos em que acreditar ou não. O que muda entre a atitude de Cristo e a do Inquisidor é a relação com a Ciência. No primeiro caso, trata-se de uma relação de oposição: não verifiquem, mas acreditem; no segundo caso, trata-se de uma relação de subordinação: acreditem no que verificamos nós mesmos e para vocês. Dá para ver que o conteúdo da tentação não é a verificação em si, mas a verificação objetiva. Se Cristo recusa a tentação, é para mostrar que cada um precisa verificar dentro de si e por si mesmo o objeto de sua crença e que não se deve se apoiar em verificações objetivas, provas visíveis, confirmações materiais, relatórios de peritos. Cada um deve verificar as Escrituras por um credo permanente e lúcido. A oposição existe então entre verificação interior e exterior. Acontece que, para o Grande Inquisidor, esta exigência cristica de uma verificação interior contínua mergulhou a humanidade no terror da preocupação e da perplexidade. É pedir demais aos homens, fracos, covardes, frágeis, humildes, quando se exige que cada um deles decida, interiormente e em última instância, o conteúdo de sua fé. A Igreja se encarregará, portanto, de estabelecer as verdades objetivas, e sobrará aos fiéis apenas acreditar nelas, ou seja, aceitá-las sem reflexão.

Neste nível, ultrapassamos, portanto, a oposição entre crença religiosa e saber científico, já que a Igreja e a Ciência podem ambas aparecer, afinal de contas, como instâncias produtoras de enunciados objetivamente verificados. E a crença, então, é o que cabe ao povo: pedem ao povo que acredite em enunciados cuja validade foi demonstrada por especialistas da verificação.

Podemos, contudo, reconhecer que as sociedades contemporâneas efetuaram desde então uma certa divisão. Faz-se hoje a diferença entre os dogmas religiosos e as verdades cientificamente estabelecidas e, consequentemente, entre a crença mística para as verdades religiosas e a adesão racional para as verdades científicas. Crer em enunciados consagrados por instâncias religiosas seria uma coisa, aceitar enunciados aprovados por uma comunidade científica seria outra.

Todavia, a solidariedade entre ciência e religião talvez exista também no nível da crença. Aqui vou mencionar um aforismo de Nietzsche, contemporâneo do texto de Dostoiévski, extraído de A gaia ciência e intitulado “Em que ainda somos piedosos?”. O interessante neste texto de Nietzsche é que ele denuncia a oposição clássica entre religião e ciência, entre crenças obscuras e adesões lúcidas. Para ele, a Igreja e a Ciência estariam no fundo compartilhando uma mesma crença fundamental: a de que a verdade existe, de que existem enunciados cuja verdade seria definitivamente, universalmente, objetivamente estabelecida, de que existe um mundo estável no qual as coisas permaneceriam eternamente o que são, de que além das aparências variáveis haveria verdades fixas. Que essas verdades sejam enunciados científicos ou religiosos não importa: o que está sempre em questão é a crença em verdades estáveis além das aparências móveis.

E — embora seja outro problema — vocês talvez saibam que para Nietzsche a arte está acima da religião e da ciência, visto que o artista não crê nas verdades: ele crê nas mentiras, nas ilusões e nas ficções como tais. Ele não pressupõe verdades transcendentes atrás das cortinas dos fenômenos: ele afirma e repete as aparências. Volto agora ao texto de A gaia ciência no qual Nietzsche diz: “Não acreditem que a religião e a ciência sejam contrárias. Esta oposição é superficial, porque ambas acreditam que a verdade existe. E mesmo se a religião desaparecer desta Terra, os cientistas serão os últimos crentes e os últimos padres. Mesmo que as pessoas não acreditem mais em Deus, continuam a crer que existem enunciados absolutamente verificados para a eternidade”.

Esta ideia de que o empreendimento científico seria no fundo baseado numa crença de tipo religioso talvez seja apenas uma crítica ao positivismo ingênuo ou ao cientificismo grosseiro. O epistemólogo Karl Popper nos ensinou que um enunciado autenticamente científico não é um enunciado verificado de forma absoluta, mas, pelo contrário, um enunciado passível de um dia ser refutado. Hipóteses como a do inconsciente para a psicanálise, a da ideologia dominante para o marxismo, ou ainda a da existência de Deus ou da imortalidade da alma não são científicas, porque é impossível considerar uma experiência que demonstre sua falsidade. Assim sendo, seria inexato dizer que a ciência produz enunciados verificados de forma absoluta: ela produz, ao contrário, enunciados refutáveis.

Estas análises são com certeza muito importantes, porém creio que seja preciso distinguir, por um lado, o trabalho científico e, por outro, a existência social da ciência. O que quero dizer com isso é que uma minoria de cientistas lúcidos e com uma relação crítica com sua própria área pode admitir que um enunciado científico seja provisório e incerto. Ocorre que a demanda social em relação à ciência é justamente que ela nos forneça peritos, ou seja, pessoas capazes de dizer: “Verificamos de forma absoluta o que afirmamos, vocês, por conseguinte, não precisam verificar vocês mesmos a validade de nossos enunciados — aliás, vocês são incapazes de fazê-lo. Vocês simplesmente têm que acreditar na nossa palavra”. Até o ponto em que hoje os peritos — e o que chamamos um “perito” é justamente alguém que na sua área possui um saber científico e não apenas uma opinião — desempenham de fato o papel dos antigos padres ou diretores de consciência: dizem-nos em que acreditar.

Vou evocar agora a terceira tentação de Cristo: a do poder. O Diabo propusera a Cristo a espada da dominação total, que este recusara, porque não queria ser adorado por um povo de escravos. No entanto, o Inquisidor condena aqui a escolha de Cristo, dizendo-lhe: “Ao se recusar a ceder à tentação do poder absoluto, você condenou os homens à solidão. Por quê? Porque só conseguem se sentir unidos e formar uma comunidade na submissão”.

Depois do problema das crenças econômicas e científicas, é colocado aqui o problema da crença política. O Inquisidor evoca o “Império Universal”, sugerindo assim uma crença política fundamental: o mito milenarista da instauração na Terra de um reino de paz e de segurança definitivas, de um paraíso político na Terra.

Entretanto, nossa modernidade política tem outras bases: a ideia de que é preciso haver um contrato social, um pacto republicano como raiz das comunidades políticas. Se existe uma sociedade política, é a partir de uma decisão comum de compartilhar direitos e deveres, a partir de um consentimento unânime de dividir o mesmo destino. A essência do político residiria na vontade de convivência de todos. Reencontramos essa ideia de um pacto social em Hobbes, Locke e Rousseau, por exemplo. Pode-se dizer que se essa vontade inexiste, a política se reduz então a uma relação de forças, a uma relação de comando, de mera opressão e até de violência entre governantes e governados.

Estas análises são ao mesmo tempo conhecidas e óbvias. Retomo-as simplesmente para mostrar a que ponto as afirmações do Inquisidor podem parecer provocadoras. Ele revela na relação política antes uma submissão que um consentimento racional. Mas essa submissão não é obtida pela opressão: ela é desejada pelos próprios submissos. Como é possível desejar a opressão? O Inquisidor responde: “Ser submetido equivale a ser exonerado de qualquer responsabilidade. Resta apenas executar ordens sem pensar. A submissão é a segurança”. Acho que o discurso do Inquisidor se inscreve aqui em toda uma tradição de textos, que vai de La Boétie até Freud e até Max Weber. Todos esses textos recusam a alternância fundadora da modernidade política: ou o consentimento racional à lei pública ou a submissão à força pura. Devemos refletir no que La Boétie chama de “servidão voluntária”. Se a obediência não for obtida nem por cálculo racional nem por opressão brutal, significa que ela encontra suas raízes do lado da crença. Parece-me que o texto de Freud dedicado à “psicologia das multidões” e as análises de Weber sobre os tipos de legitimidade podem esclarecer o discurso do Grande Inquisidor. Encontramos, por exemplo, em Freud a ideia de que não é a adesão consciente a valores que congrega, mas a identificação inconsciente com o chefe: adoramos nele um ideal que não conseguimos realizar na nossa própria vida, e cada um renuncia à sua própria personalidade para na fantasia se tornar o líder. Em outro texto (O futuro de uma ilusão), Freud insiste no estado de desamparo infantil e na busca angustiada de proteção: a crença na potência do chefe seria uma ressurgência na idade adulta desta necessidade infantil de se sentir protegido.

Por sua vez, Max Weber, na sua famosa análise das três grandes formas de autoridade (a autoridade tradicional do costume, a autoridade carismática do chefe e a autoridade racional da legalidade), mostra como a força da autoridade depende menos de seu poder interno que das disposições subjetivas daqueles que obedecem: crença no caráter sagrado da tradição, crença na potência do chefe, crença na eficácia da lei pública. Assim sendo, a relação do indivíduo com a autoridade política está permeada por correntes de afetos: temor diante do sagrado, necessidade de proteção, fascinação diante do poder paterno. Podemos ver que o Inquisidor ultrapassa a grande alternativa entre o republicanismo e o liberalismo (isto é: a política, seja como construção de um bem comum ou como cálculo interessado); segundo ele, encontramos no fundamento da autoridade política uma crença irracional. O discurso do Grande Inquisidor coloca em evidência três grandes tipos de crença: a crença econômica, a crença científica e a crença política.

Nessa noite ardente, o Inquisidor disse a Cristo: “Você queria ser adorado em toda a liberdade, você exigia de cada um que ele fosse responsável por sua fé. Com isso, no entanto, você sempre falou apenas para uma minoria de indivíduos. Para a maioria, a liberdade é uma fonte de angústias, a responsabilidade de um fardo esmagador. A humanidade é como um rebanho de ovelhas frágeis à procura de seu pastor. A comunidade verdadeira só existe na subjugação, no fascínio, na submissão. Na sua imensa maioria, os homens são crianças, humildes, fracos. E o que desejam com mais violência não é a liberdade, mas a segurança, que é a verdadeira felicidade dos pobres. Os homens precisam, portanto, de regras indiscutíveis de partilha das riquezas, de verdades incontestáveis e de um chefe para mandar neles”.

E o Grande Inquisidor conclui perguntando: “Será que é culpa deles se sua própria fraqueza os impede de querer ser livres? Nós, a elite responsável, tivemos piedade. Traímos você porque amamos os homens de verdade, quando você só falou para uma elite. E foi por amor à humanidade que os livramos do peso de suas consciências. Como? Ao colocá-los para trabalhar e ao organizar a distribuição dos bens materiais, ao dizer-lhes o que pensar, impondo-lhes um comando absoluto. E então depuseram sua liberdade aos nossos pés”.

Noite terrível e discurso terrível. É preciso, mesmo assim, contar agora o fim da lenda.

O Inquisidor encerra seu longo discurso. Nesse momento, Cristo se levanta lentamente, dirige-se, ainda mudo, em direção ao idoso e nos seus lábios exangues deposita um beijo. O Inquisidor abre a porta lentamente e lhe diz: “Vá embora e não volte nunca mais”.

Então o último enigma é este beijo fantástico, que pode ser interpretado de três maneiras.

Primeiro, como um beijo de perdão. Cristo estaria expressando assim uma compaixão superior, superior à grande piedade do Inquisidor, que acredita estar fazendo o bem aos homens privando-os de sua consciência. Mas este perdão significaria ao mesmo tempo o repúdio de todo um empreendimento político que almejasse a felicidade dos homens em detrimento de sua liberdade, de qualquer política que propusesse aos homens a segurança contra sua consciência. É preciso proteger, amar e socorrer os homens, sobretudo contra eles próprios e contra seu desejo de devoção. Teríamos, desse modo, que opor a compaixão muda de Cristo à piedade loquaz do Grande Inquisidor, como o faz Hannah Arendt em seu Ensaio sobre a revolução. Com este beijo, Cristo estaria expressando que reprova, mas ao mesmo tempo entende e perdoa um amor que errou o caminho.

A menos que se trate, pelo contrário, de um beijo de gratidão. Obrigado, estaria dizendo Cristo, por ter sabido amar a humanidade até este ponto e reconhecido na boa medida sua impotência e fragilidade. Significaria então que o grande amor, a verdadeira responsabilidade, a verdadeira política, é realmente de proteger. Proteger, aliviando as pessoas do peso de ter que discernir entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto, de ter que decidir sobre a partilha dos bens do mundo, de ter que se governar a si mesmo.

Talvez este beijo seja — e seria uma terceira e última leitura — um beijo de revolta: simétrico ao de Judas, seria um beijo de morte. Lembro que no romance de Dostoiévski o discurso do Grande Inquisidor é precedido de um capítulo intitulado “A revolta”, no qual Ivan — o personagem no romance que é supostamente o autor desta lenda — afirma que o escândalo do sofrimento de crianças inocentes pode legitimamente fazer com que se duvide da existência de Deus. Este beijo da revolta do Cristo seria, então, a expressão do que poderíamos chamar de ateísmo político. O ateísmo político significa recusar-se a acreditar que a partilha das riquezas sempre vai encontrar em algum lugar, além do mundo do trabalho, sua justificação transcendente; recusar-se a acreditar que a verificação dos enunciados é problema exclusivamente de uma casta de peritos especializados; recusar-se a acreditar que toda autoridade política é legítima priori. Claro, pode parecer extremamente paradoxal falar em “ateísmo político” para explicar um ato do próprio Cristo (seu beijo no Grande Inquisidor). O que significa, então, dizer aqui que o Cristo encenado por Dostoiévski é um ateu político?

O ateísmo político — emprego esta expressão simplesmente em oposição à “teologia política” — não significa o desaparecimento total das crenças. É antes a afirmação de algo do tipo: não é porque Deus existe que tudo é permitido, como se qualquer coisa sempre tivesse sua justificação e sempre devesse ser aceita. Com o ateísmo político, trata-se de crer, porém de outro jeito: crer que o homem é capaz de superar suas fraquezas, que ele pode conseguir se determinar a partir de sua própria consciência, que sua ideia da justiça é irredutível, enfim, crer que, preterindo sua segurança, ele pode preferir sua liberdade.

No fundo, as crenças que recobriam as três tentações do Cristo eram maneiras de obedecer, de deixar a um outro a tarefa de partilhar as riquezas com justiça (crença econômica), de separar o verdadeiro do falso (crença científica), de ditar a cada um sua conduta (crença política), e então se tratava na verdade de acreditar que a ordem do mundo, qualquer que ela seja, é sempre legítima.

Estávamos falando de crenças passivas. Ocorre que a revolta contida no beijo de Cristo — se o entendermos como um beijo de revolta, como expressão de um ateísmo político — implica uma crença ativa. Denunciar as partilhas iníquas, as verdades dos peritos, as leis injustas, denunciar o intolerável significa acreditar; acreditar que o mundo pode e deve ser transformado. Existe uma maneira de crer que significa aceitar e obedecer: é o sistema de crenças implementado pelo Grande Inquisidor. Mas existe também uma crença que interroga, critica, desobedece: é a crença de que um outro mundo é possível.

Disseram durante muito tempo que as grandes crenças religiosas teriam desaparecido aos poucos na modernidade ocidental diante da importância crescente das ciências experimentais, das políticas republicanas e democráticas, e de uma economia baseada num puro cálculo racional de interesses. Eu apenas quis mostrar aqui, partindo do texto de Dostoiévski, que as coisas não são assim tão simples: por um lado, uma crença nutre a aceitação das leis econômicas, das verdades científicas e dos decretos políticos. Por outro lado, para poder transformar o mundo é preciso ainda crer; desta vez, porém, crer que nada é dado para sempre e que tudo resta a ser construído.

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