2002

A liberdade de inventar

por Willi Bolle

Resumo

O crítico Antonio Candido observou que “a absoluta confiança na liberdade de inventar” distingue Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, de Os sertões, de Euclides da Cunha. Este, comprometido com teorias e com um discurso oficial de discriminação do sertanejo, estiliza como heróis os rebeldes mortos em Canudos e exorciza a “culpa” dos civilizados. Contra essas “ideias arranjadas”, Rosa propõe o retrato de um “país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias”, mediante uma recriação linguística e multicultural. A narração de Riobaldo é como o rio São Francisco: unifica a grande tradição literária (o Grande sertão) e as falas do povo (as veredas). Explora a origem da língua como salto que revela, segundo Walter Benjamin, a afinidade alegórica entre presente e passado. O objetivo maior de Rosa é descobrir as leis mentais e sociais do sertão como mundo, abrindo frestas ou passagens na visão idealizada do país e mostrando sua história miúda através das falas de seus personagens. Assim ele mostra a lei selvagem da violência e do medo, os mecanismos de poder e de dominação, e também o contraste entre consciência moral (do narrador) e razões práticas. Nesse Brasil dos avessos em que se confundem as esferas da lei e do crime, do bem e do mal, o “sistema jagunço” encobre graves problemas sociais. E é na mediação entre as falas dos sertanejos e o universo mental do interlocutor urbano (que é também o leitor do livro) que Rosa reflete sobre sua posição como artista e intelectual.


Como leitmotiv deste trabalho, que estuda a representação do povo no romance Grande sertão: veredas (1956),[1] de João Guimarães Rosa, foi escolhida uma observação de Antonio Candido (1964, p.121), que realçou como “traço fundamental” do autor “a absoluta confiança na liberdade de inventar”. O crítico estabeleceu também uma afinidade estrutural entre a obra do romancista e o ensaio historiográfico-etnográfico Os sertões (1902),[2] de Euclides da Cunha — idéia sustentada pela existência, em ambos os livros, de “três elementos estruturais que apóiam a composição: a terra, o homem, “a luta”. No entanto, adverte Candido, “a analogia [entre os dois escritores] pára aí”; enquanto “a atitude euclidiana é constatar para explicar”, “a de Guimarães Rosa [é] inventar para sugerir”. Isso, num contexto em que o padrão estético predominante na ficção brasileira cram os “hábitos realistas” (p. 123).

Uma tarefa inicial do nosso comentário da obra de Guimarães Rosa consiste em esclarecer os múltiplos sentidos da palavra invenção. Na Antiguidade clássica, a inventio era considerada a primeira e mais importante parte da retórica (Cicero, 178). É a “ação de pensar coisas verdadeiras ou semelhantes à verdade” (Cícero, 9), e a arte de encontrar tais pensamentos (Lausberg, 1990, p. 260). Estes são levantados com a ajuda da memoria, organizados nas diferentes partes ou gêneros do discurso segundo a dispositio, e articulados em palavras e orações através da elo-cutio. Já na poética medieval, entendia-se por inventio um “dar nova forma” a uma obra anterior (Doob, 1990, p. 198). Eis uma idéia básica para a nossa análise, em que o romance de Guimarães Rosa será interpretado como uma reescrita crítica do livro precursor de Euclides (cf.. Bolle, 2000). Nosso estudo da inventio se fará com os recursos conjuntos da poética e da retórica, inclusive para facilitar o trânsito entre gêneros literários e extraliterários, entre ficção e não-ficção ou a assim chamada creative nonfiction.

INVENÇÕES POLÍTICAS E INVENÇÕES LITERÁRIAS DO BRASIL

Como quadro de referência geral, podemos partir da constatação de que o Brasil sempre foi inventado. O estudo de Sérgio Buarque de Holanda, Visão do paraíso (1958), dá uma idéia da importância que as invenções oficiais tiveram na história do país. Os “motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil” não foram apenas literários, mas, como mostra o autor, sobretudo psicológicos, econômicos e políticos. O eldorado brasileiro foi um mito reforçado pela Coroa portuguesa com o objetivo de arregimentar a força de trabalho necessária para a empresa colonizadora. “A procissão de milagres”, conclui o historiador, “há de continuar assim através de todo o período colonial, e não a interromperá a Independência, ou a República”. Com essas invenções oficiais do Brasil, vitoriosas, embora não necessariamente bem-sucedidas, contrastam as invenções políticas alternativas e derrotadas: os quilombos, a Revolução de Pernambuco, a Cabanagem, a Guerra dos Farrapos, Canudos, os movimentos sociais do século XX…

Como se situam com relação às invenções políticas do Brasil as invenções literárias, neste caso, Os sertões e Grande sertão: veredas? No relato historiográfico e etnográfico de Euclides da Cunha nota-se forte compromisso com a invenção oficial do país. O autor d‘Os sertões e do artigo anterior “A nossa Vendéia” (1897) defendeu o esmagamento de Canudos em nome dos ideais de uma república calcada sobre a imagem idealizada da República Francesa de 1792. Concomitantemente, ele se colocou como tarefa, assim como outros letrados brasileiros, contribuir com elementos teóricos para o processo do nation building. Nesse sentido, Euclides cunhou a imagem do sertanejo como “cerne da nossa nacionalidade” (OS, p. 93). A formulação dessa teoria, no entanto, apresenta incompatibilidades. Como é que o cerne da nacionalidade se situaria em Canudos, se ali “interveio” “a nação inteira” (OS, p. 209)? Como é que a nacionalidade se situaria no sertanejo, se este — o “jagunço”, como o chama Euclides — “bate[u], bate[u] terrivelmente a nacionalidade que, depois de o enjeitar cerca de três séculos, procurava levá-lo para os deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado de baionetas, mostrando-lhe o brilho da civilização através do clarão de descargas” (OS, p. 300)? Diante dessas incongruências, qual é o teor de verdade da teoria euclidiana?

Guimarães Rosa mostrou-se cético com relação à representação da sociedade sertaneja por parte de Euclides. Num texto sobre vaqueiros (Rosa, 1952, p. 125), ele valoriza inicialmente o trabalho de Euclides por ter substituído a imagem folclórica tradicional do sertanejo por uma visão histórica e política; no entanto, ele termina chamando a atenção para o que há de irreal, diluidor e mitificador na visão euclidiana da história (cf. Bolle, 2000, p. 15s.). Essa crítica é retomada, de modo indireto, numa passagem de Grande sertão: veredas (p. 15), em que o narrador declara: “Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias…”.

A descrição da sociedade sertaneja em termos de idéias arranjadas é uma caracterização que se aplica plenamente à feitura d’Os sertões. O discurso historiográfico de Euclides é baseado na teoria social-darwinista de que a civilização modernizadora levaria ao “esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes”. Apesar de alinhar-se do lado vencedor, o autor acabou se sentindo culpado por ter participado de uma campanha que ele mesmo denunciou como “um crime”. Elaborando a experiência da guerra, ele construiu, em Os sertões, “dois discursos sobre o sertanejo” (Zilly, 1996, p. 292). Por um lado (na parte “O Homem”), uma argumentação científica e pseudocientífica, baseada em teorias racistas, que atesta aos sertanejos um “estado mental retardatário” e “um estatuto social inferior”; por outro lado (na parte “A Luta”), uma narrativa com cenas dramáticas, quadros épicos e uma retórica do pathos, em que os jagunços são estilizados em heróis tragicamente extintos. A contradição entre esses dois discursos — que tem sido valorizada por vários críticos como uma qualidade da obra — se esclarece quando a consideramos do ponto de vista retórico e moral. Na verdade, trata-se de um discurso dúplice, em que a heroização das vítimas cumpre a função de compensar sua condenação, “científica” e política. A argumentação do autor d’ Os sertões visa, em última instância, legitimar o aniquilamento de Canudos. Nessa retórica, encaixa-se coerentemente, como mostrarei logo mais adiante, a teoria, forjada a posteriori, do cerne sertanejo da nacionalidade brasileira.

A inflexão dos fatos em prol de “idéias arranjadas” é um traço que define a etnografia e historiografia praticada em Os sertões. Toda vez que determinada manifestação da cultura sertaneja não está de acordo com a visão de mundo de Euclides, ele inventa. É o que ocorre, por exemplo, no seu retrato do líder religioso Antônio Conselheiro, que culmina no capítulo intitulado “Como se faz um monstro” (OS, pp. 141-3). Apesar de a descrição de Euclides mostrar efetivamente que o povo se identificou com o Conselheiro e o escolheu como líder, o escritor força os fatos, tentando atribuir aos sertanejos a autoria da imagem de monstro, que é fruto de seus próprios preconceitos.

Um procedimento análogo observa-se na caracterização da comunidade de Canudos, definida pelo autor d’Os sertões categoricamente como a “urbs monstruosa” (OS, p. 158). Em termos de teoria política, Euclides trabalha com uma dupla invenção: a idealização da República brasileira, através de um paralelo com a Revolução Francesa, e a imagem-contraste negativa de Canudos, retratada como “a nossa Vendéia” (não só no artigo de 1897, mas também em Os sertões, p. 208), e como aglomeração patológica e criminosa. A descrição da religiosidade sertaneja como fenômeno patológico cumpre, em última instância, a função ideológica de desacreditar a organização social e política dos sertanejos. No mesmo sentido vai a criminalização dos habitantes de Canudos como jagunços. Com tudo isso, Euclides da Cunha revela-se um escritor comprometido com o discurso oficial de discriminação, que preparou a opinião pública para a intervenção militar e o aniquilamento daquela comunidade (cf.. Bartelt, 1997).

Como explicar então que, apesar de todas essas falhas, a “invenção” do Brasil, por parte de Euclides, tenha tido uma recepção tão favorável do público, a ponto de Os sertões, durante décadas a fio, ter sido considerado a obra historiográfica canônica sobre Canudós? Não teriam “as idéias arranjadas” do autor oferecido à opinião pública exatamente a construção ideológica de que ela precisava: uma epopéia “nacional” que estilizou os rebeldes mortos em heróis e exorcizou a culpa dos “civilizados” pelo crime cometido? Também a correlata teoria da nacionalidade, cujo “cerne vigoroso” é situado na “rude sociedade sertaneja, incompreendida e olvidada” (OS, p. 93), ofereceu aos letrados brasileiros vários tipos de compensação. Além de satisfazer o desejo de uma identidade nacional que fosse diferente dos “princípios civilizatórios elaborados na Europa” e imitados “parasitariamente” no Brasil do litoral, essa teoria se prestava a amortecer os fracassos da modernização real, e o ingrediente melancólico nela contido seria dali em diante incorporado a vários retratos do Brasil.

Antes que alguns estudiosos (como Calasans e Levine) elaborassem visões alternativas dos acontecimentos de Canudos, a crítica mais contundente, mais detalhada e mais construtiva da historiografia e etnografia euclidiana se articulou na obra de Guimarães Rosa, cujos procedimentos de representação da sociedade serão estudados aqui, em contraste com a obra precursora. Contra a invenção do Brasil em termos de “idéias arranjadas”, o autor de Grande sertão: veredas propõe o retrato de um “país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias”. Como é construído esse retrato? Um procedimento fundamental do romancista consiste na desmontagem dos conceitos e discursos convencionais de “nação” e “povo”. Guimarães Rosa se abstém inteiramente de acentuações nacionalistas. Quando surge em seu livro o discurso “nacional”, é na boca de um dos personagens: Zé Bebelo, candidato a deputado e defensor dos ideais da República, uma figura que, sob vários aspectos, é uma paródia de declarações de Euclides.

Quanto à representação do povo em Grande sertão: veredas, os personagens sertanejos e suas falas estão em toda a parte. Trata-se de uma rede temática em forma de composição labiríntica, cujas características podemos aqui apenas esboçar.[3] Enquanto as outras redes temáticas, como o sertão, o Diabo, Diadorim e a jagunçagem, podem ser reconstituídas na leitura por meio de determinadas palavras-chave, os dados que se referem ao povo são de uma profusão caótica. Existem, semeadas por todas as partes do romance — bem espaçadas e camufladas pela ênfase dada às batalhas e aos problemas afetivos, existenciais e metafísicos do protagonista —, inúmeras passagens discretas que retratam a história cotidiana e a cultura das pessoas do povo. Essa antropologia e etnografia enciclopédica abrangem toda a escala social, do mendigo ao fazendeiro. Diferentemente do autor d’Os sertões, Guimarães Rosa não propõe nenhuma teoria do povo, nenhuma “idéia arranjada”, mas apresenta uma viva multidão, diferenciada em subgrupos, que por sua vez se subdividem em inúmeros personagens individuais, cada um deles com um perfil, um nome e muitas vezes com uma fala, como se fossem “pessoas de carne e sangue”. É possível ler essa apresentação labiríntica do povo como um resgate do Brasil recalcado por Euclides e pelos adeptos do desenvolvimentismo, como uma reescrita da “urbs monstruosa” dos sertanejos (OS, p. 158). Não se trata de nenhuma cópia daquela cidade empírica, mas de uma recriação, em outra perspectiva, do Brasil avesso à modernização oficial. Com efeito, essa multidão de indivíduos e de grupos, que costuma ser resumida com a palavra abstrata “povo”, é o protagonista secreto de Grande sertão: veredas; é o grande desconhecido, mantido à distância e temido pela camada dominante: o monstro escondido dentro do labirinto. Esse personagem coletivo é inventariado e reinventado pelo romancista, paralelamente ao seu trabalho de inventariar e reinventar a língua brasileira.

O autor de Grande sertão: veredas optou por representar a sociedade sertaneja através de um mergulho na sua dimensão lingüística. É uma qualidade que distingue sua obra da maioria dos outros retratos do Brasil. Na apresentação da fala dos sertanejos observa-se uma grande diferença quantitativa e qualitativa entre Guimarães Rosa e Euclides. Em Os sertões, a fala de pessoas do povo aparece em pouquíssimos momentos.[4] A isso se acrescentam vários procedimentos que aumentam o distanciamento entre o narrador e o povo: a transcrição de expressões em itálico; a discriminação da fonética popular; e o fato de se ter declarações de prisioneiros, obtidas por interrogação, em vez de entrevistas entre pessoas iguais. Esse distanciamento transforma-se em desprezo, quando Euclides desqualifica as manifestações do povo como um “gaguejar” (OS, p. 176). No fundo, esse escritor pouco se preocupa com a fala, o universo mental e a auto-imagem dos sertanejos; ele prefere falar em nome deles. Com tudo isso, configura-se uma antropologia essencialmente auctorial— termo tomado da teoria narrativa de Stanzel (1989), para caracterizar a postura de um letrado que, como representante da elite modernizadora, coloca-se como o dono do discurso.

Como contraponto irônico ao narrador urbano d’Os sertões, aparece em Grande sertão: veredas um narrador sertanejo. A ironia está no fato de esse sertanejo ser o dono absoluto da fala, enquanto seu interlocutor, o doutor da cidade, fica relegado ao papel de mero ouvinte. A inversão dos papéis costumeiros é um estratagema de Guimarães Rosa para chamar a atenção sobre o desequilíbrio de falas entre as forças sociais. O seu narrador sertanejo, note-se bem, não é nada “simples”, mas uma figura muito especial, altamente elaborada, um mediador entre o mundo do sertão e a cultura letrada. Ele coloca em cena centenas de falas de sertanejos comuns, que se tornam parte ativa do discurso do romance. Essas falas constituirão o cerne de nossa análise do retrato do Brasil em Guimarães Rosa.

O PROBLEMA DA REPRESENTAÇÃO DA FALA DO POVO

Como Guimarães Rosa representa a fala e o universo mental do homem do povo, e que tipo de conhecimento é obtido através desses procedimentos? Para poder responder a essa pergunta, é preciso integrar vários tipos de saber. Retomando a lição de mestres como Cavalcanti Proença, Antonio Candido e Walnice Galvão, trata-se de repensar a questão da invenção da linguagem e da representação do povo em Grande sertão: veredas não apenas dentro do molde das pesquisas linguísticas e estilísticas, mas diante do horizonte mais amplo de uma poética histórica, sociológica e etnográfica. Repensar significa que, em vez de se ir do vocabulário e da sintaxe à poética e retórica, ou seja, dos detalhes estilísticos à ideia geral, se deveria trabalhar também com a perspectiva inversa, numa viagem hermenêutica de vai-e-vem entre o todo e as partes (cf.. Spitzer, 1962, pp. 18-20). É preciso ter uma idéia, ainda que provisória e adivinhatória, do princípio criador de Guimarães Rosa, para poder avaliar suas opções gramaticais e estilísticas, que são regidas por esse princípio.[5]

Um desafio geral para os letrados brasileiros, quando se põem a representar a fala do povo, consiste em encontrar um discurso não discriminatório. Antonio Candido discute essa questão em “A literatura e a formação do homem” (1972). Como ele expõe, o problema da representação adequada da “linguagem inculta” do homem rural pela “linguagem culta” dos escritores coloca-se de forma paradigmática na literatura regionalista. O crítico apresenta duas posturas típicas, radicalmente opostas. No primeiro caso (Coelho Neto, 1864-1934) tem-se “uma espécie de estilo esquizofrênico”, ou seja, uma separação entre o “requinte gramatical e acadêmico” que o escritor reserva para si mesmo, e o “ridículo patuá pseudo-realista”, que ele atribui ao homem rural, que fica relegado “ao nível infra-humano dos objetos pitorescos, exóticos”. No segundo caso (Simões Lopes Neto, 1865-1916), existe, ao contrário, uma real postura de “mediação” entre os dois universos culturais, que “atenua ao máximo o hiato entre criador e criatura, dissolvendo de certo modo o homem culto no homem rústico”. Simões Lopes Neto rejeitou a “falsa convenção fonética usual em nosso regionalismo” e adotou uma forma de estilização que permite ver a diferença de modo não discriminatório e trazer o universo do homem rústico para a esfera do civilizado” (Candido 1972, p. 808s.).[6]

Como é que o problema da mediação cultural, que Antonio Candido descreve nos escritores regionalistas, se coloca nas obras de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, que tiveram uma irradiação universal?

Vejamos, a título de exemplo, como Euclides reproduz as respostas de uma criança prisioneira. O escritor grifa as expressões que destoam da norma culta: “Observou, convicto […] que a Comblé não prestava. Era uma arma à toa, xixilada: fazia um zoadão danado, mas não tinha força. […] confessou, ao cabo, que preferia a manulixe, um clavinote de talento. Deram-lhe, então, uma Mannlicher”. O autor d’Os sertões realça no falar do outro o traço pitoresco e corrige o incorreto — além de apresentar essa criança como um “velho viciado”, “tratante consumado”, “bandido feito”, em cujos nove anos de vida “se adensavam três séculos de barbaria” (OS, p. 425).

Enquanto Euclides seguiu o padrão da escrita acadêmica discriminatória, Guimarães Rosa optou por uma fusão equilibrada de elementos discursivos da norma culta (elevada a um máximo grau de conhecimento) e de elementos da fala popular. Antes de analisar seus procedimentos em detalhe, vejamos como a crítica sintetizou as características da nova linguagem do romancista. Entre os estudos sobre Grande sertão: veredas, o de Walnice Galvão (1972) é particularmente elucidativo, na medida em que os dados formais e estilísticos do romance são considerados no contexto mais amplo da história, da sociedade e da literatura comparada. Suas explicações sobre a opção de linguagem do romancista, que se situam dentro da linha das considerações teóricas de Antonio Candido, podem ser resumidas em três teses:

  1. Quanto à tradicional atitude discriminatória do letrado brasileiro com relação à fala do povo, Guimarães Rosa deu um “salto definitivo”. Com a escolha do seu narrador-personagem “fica eliminado o contraste canhestro, tão praticado pela prosa regionalista, entre o diálogo que reproduz o falar e o não diálogo que reproduz a prática letrada do autor. Destarte, o diálogo deixa de incrustar-se no texto como um objeto folclórico, exibido à apreciação do pitoresco” (Galvão, 1972, p. 71).
  2. A fala do romance, embora alimentada por numerosas contribuições do falar sertanejo, não é documentária-realista, e sim construída e inventada: “se trata de ‘fala’ e não de fala. A magnífica oralidade do discurso é uma oralidade ficta, criada a partir de modelos orais mediante a palavra escrita. Por isso mesmo, é impossível ler o ‘depoimento’ de Riobaldo da maneira que se lê o depoimento de um velho jagunço” (p. 70).
  3. A qualidade inventiva e integrativa da fala do narrador é sublinhada por Walnice Galvão com a observação de que essa fala é também “o grande unificador estilístico”: “cancela a multiplicação de recursos narrativos — variação de pessoa do narrador, cartas, diálogos, outros monólogos; até mesmo as personagens do enredo falam pela boca de Riobaldo” (p. 70).

A imagem da fala de Riobaldo como unificador estilístico retoma uma observação de Nei Leandro de Castro (1970, p. 12), segundo o qual a prosa de Guimarães Rosa “estende-se como o rio da unidade nacional”, o São Francisco. Como autor que o inspirou, Castro cita Gladstone Chaves de Melo (1946), que escreveu: “Por outro lado, figura na nossa geografia lingüística um importantíssimo elemento permanente de unificação, que é o rio de São Francisco. Mantém ele em relações constantes o Centro com o Nordeste, e funciona portanto como um nivelador lingüístico”.

Com base nesses três pesquisadores (Chaves de Melo, Castro e Galvão), a idéia de Riobaldo como narrador-rio constituirá uma espécie de eixo imagético e teórico para este estudo.

Um dos problemas a ser esclarecido é como a tese da fala de Riobaldo como “o grande unificador estilístico” se sustenta com relação ao projeto essencialmente dialético anunciado no título do romance. Grande remete à tradição literária do grand récit, a narração da “epopéia” do Sertão em estilo alto, elevado — enquanto a imagem fluvial das veredas constitui um contraponto: uma perspectiva rasteira, caracterizada pelo sermo humilis (cf.. Auerbach, 1965), as falas do povo. O fato de todos os personagens falarem pela boca de Riobaldo, ou seja, de suas falas serem reproduzidas e comentadas pelo protagonista-narrador, não implica que não possam existir consideráveis diferenças entre a fala e a concepção de mundo de Riobaldo, como dono do poder (cf.. Faoro, 1958), e por outro lado, a mentalidade e os interesses dos sertanejos. É perfeitamente possível que o romance de Guimarães Rosa apresente um retrato do Brasil que não coincide com a visão do personagem-narrador. Essa questão merece ser estudada de perto.

PRINCÍPIOS GERAIS DA INVENÇÃO POÉTICA EM GUIMARÃES ROSA

Quais são os princípios teóricos gerais que nortearam a invenção de uma nova linguagem, por parte de Guimarães Rosa, no conjunto de sua obra e especificamente em Grande sertão: veredas? Para identificar esses princípios, ouçamos em primeiro lugar as declarações do autor numa entrevista dada ao crítico alemão Günter W Lorenz.[7] Suas observações foram organizadas no sentido de se poder entender os detalhes a partir dos procedimentos principais, e estes, a partir do projeto poético geral. Paralelamente, foram consideradas também as opiniões de vários estudiosos.

O ponto de partida da criação poética de Guimarães Rosa é a crítica da linguagem existente, no cotidiano como na esfera pública: “O que chamamos hoje linguagem corrente é um monstro morto. […] a linguagem corrente expressa apenas clichês e não idéias; por isso está morta” (pp. 522, 88). O material lingüístico existente “basta ainda para folhetos de propaganda e declarações políticas, mas já não basta para a poesia, nem para a formulação de verdades poéticas” (pp. 523, 89). A mais deteriorada dessas linguagens, segundo o autor, é a dos políticos: uma “permanente tagarelice sobre a realidade” (pp. 508, 77).

Como alternativa a essas formas desgastadas, o escritor imagina uma língua “literária”, que sirva “para expressar idéias” e “pronunciar verdades poéticas”. Essa demanda enfática de verdade vem ao encontro do significado original da inventio (cf.. Cícero, 9). “O mundo somente pode ser renovado através da renovação da linguagem”, resume Guimarães Rosa (pp. 522, 88). Seu objetivo declarado é a “modificação das realidades lingüísticas” existentes, através da poesia (pp. 528, 92). Diante de quem contesta, com argumentos puramente lingüísticos, que o escritor tenha “inventado” ou “criado” uma língua (Proença, 1959, p. 216; Castro, 1970, p. 9), deve ser lembrado que o trabalho de Guimarães Rosa com as virtualidades da língua é subordinado à idéia poética e política da invenção, segundo a tradição da retórica clássica.

Nesse contexto, convém esclarecer também que a palavra metafísica — longe de significar algo vagamente transcendental, como o fazem acreditar alguns de seus intérpretes esotéricos — tem para Guimarães Rosa o sentido preciso de poder criador, capacidade de inventar a língua: “minha linguagem […] deve ser a língua da metafísica […], pois assim ela faz do homem o senhor da criação” (pp. 516, 83). “O bem-estar do homem depende […] também de que ele devolva à palavra seu sentido original. Meditando sobre a palavra, ele se descobre a si mesmo. Com isso repete o processo da criação” (pp. 517, 83). Esta última formulação equaciona claramente a capacidade de engendrar a língua original com o ato de criação. Idéia reforçada pela imagem do Eros criador de valores espirituais: “A língua e eu somos um casal de amantes que juntos procriam apaixonadamente” (pp. 516, 83).[8]

No projeto de Guimarães Rosa de reinventar o português do Brasil, o ato criador individual — “Esta [nova] língua atualmente deve ser pessoal, uma criação do próprio autor” (pp. 523, 89) — é tão importante quanto a tarefa coletiva: “O brasileiro […] ainda deve criar sua própria linguagem” (pp. 509, 78). Com essa proposta de uma nova linguagem, o projeto poético de Guimarães Rosa difere fundamentalmente do de Euclides. A representação euclidiana do país, apesar do repertório verbal imenso e rebuscado e da estilização poética, não foge do hábito arraigado dos letrados brasileiros de valorizar a erudição em detrimento da linguagem do povo. Em Guimarães Rosa, ao contrário, a linguagem dos sertanejos é incorporada ao seu retrato do Brasil.

Complementando esses princípios teóricos gerais, quais são os métodos de criação da nova linguagem por parte de Guimarães Rosa? De suas declarações podem ser abstraídos dois procedimentos fundamentais: a mimese do processo de formação da língua e a fusão de elementos linguísticos multiculturais. Expliquemos cada um desses dois procedimentos.

“Primeiro, há o meu método de utilizar cada palavra, como se ela tivesse acabado de nascer, de limpá-la das impurezas da linguagem corrente e reconduzi-la a seu sentido original” (pp. 514, 81). O autor enfatiza a importância de “purificar a língua” (pp. 521, 87), o que é obtido através do duplo trabalho de remontar até a origem da palavra e de torná-la novinha em folha. Com isso, ele retoma uma declaração programática do seu livro de estréia, Sagarana (1946, p. 235), no qual afirma que, “à parte o sentido prisco, val[e] o ileso gume do vocáculo pouco visto e menos ainda ouvido, raramente usado, melhor fora se jamais usado”. Configura-se, assim, o perfil de um escritor que trabalha de forma autônoma com as energias de formação da língua.

A ênfase dada por Guimarães Rosa ao sentido “original” das palavras cria uma correspondência com o conceito de “origem” e a correlata teoria da linguagem de Walter Benjamin. Antes de estabelecer analogias, é preciso constatar que, à primeira vista, o sentido dado pelos dois autores à palavra “origem” parece ser bastante diferente: concepção etimológica e evolutiva da linguagem, no caso do romancista brasileiro, ruptura com o molde genético-linear-causal, no filósofo alemão. Benjamin (1984, p. 67s.) define: “A origem, apesar de ser uma categoria totalmente histórica, não tem nada que ver com a gênese. O termo origem não designa o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do vir-a-ser como um redemunho, e arrasta em sua corrente o material produzido pela gênese”.[9]

Enquanto o método genético-causal se fixa em explicações evolutivas lineares, a concepção benjaminiana de “origem” ( Ursprung, que significa também “salto original” ou “rachadura original”) implica uma seleção dos fatos essenciais, que é comandada pela redefinição das relações entre presente e passado. “O ritmo do originário”, expõe Benjamin (1984, p. 68), “só se revela a uma visão dupla, que o reconhece, por um lado, como restauração e reprodução, e por outro lado, e por isso mesmo, como incompleto e inacabado”. Isso significa que as unidades que constituem o discurso histórico nascem de uma afinidade alegórica entre o presente e o passado, da dupla perspectiva do tempo que representa e do tempo representado. A historiografia alegórica é uma construção a partir dessa dupla visão; a mediação entre os tempos não se dá através de uma continuidade, e sim através de um “salto”, uma “rachadura”. O trabalho do historiógrafo consiste em retirar do passado aquele “estilhaço” ou “fragmento” inacabado, que tem afinidade com o presente, e restaurá-lo em forma de uma “descoberta, que se relaciona, singularmente, com o reconhecimento”. Trata-se de uma destruição salvadora do passado, que é recuperado através daqueles fragmentos.

É precisamente o que ocorre no trabalho de Guimarães Rosa com a linguagem. O escritor chama a atenção para o caráter não acabado, ainda incompleto do português do Brasil: “É uma língua mais rica, inclusive metafisicamente, que o português falado na Europa”; é uma língua que “tem a vantagem de que seu desenvolvimento ainda não terminou; ela ainda não se petrificou” (apud Lorenz, 1970, pp. 513, 81). A afinidade entre a concepção de “origem” de Guimarães Rosa e Benjamin acaba se estabelecendo pelo fato de o romancista não procurar construir continuidades genético-causais entre momentos históricos diferentes da língua portuguesa, e sim potencializar o português-brasileiro do presente — que se tornou “incalculavelmente enriquecido, por razões etnológicas e antropológicas” — através da inclusão de estilhaços do passado, como elementos “já quase esquecidos” do português da Idade Média (cf.. pp. 513s., 81).

O método inovador de Guimarães Rosa trabalhar com a linguagem pode ser definido nestes termos: o que ele detectou foram as linhas de força e as tendências que comandam a evolução da língua. Onde outros enxergam um sistema sincrônico parado e uma diacronia cristalizada, ele percebeu o potencial de um corpo lingüístico em movimento. A imagem da língua como um corpo em movimento permite, inclusive, combinar a visão evolutiva da língua com a concepção benjaminiana do “originário”, sem apagar as diferenças e sem aprisionar os experimentos do romancista em ortodoxias teóricas. Cavalcanti Proença (1959, p. 226), que fala de um “explorar as virtualidades da língua”, explica que “Guimarães Rosa não faz outra coisa senão apelar para essa consciência etimológica do leitor, neo-logizando vocábulos comuns, reavivando-lhes o significado já obliterado ou por demais esmaecido pelo uso corrente” (Proença, ibid.).

Como essa “consciência etimológica” se traduz no trabalho concreto com a língua, é especificado por Mary L. Daniel (1968, p. 91): “Guimarães Rosa efetua na linguagem literária moderna os mesmos desenvolvimentos fonológicos e morfológicos que têm caracterizado a língua portuguesa desde as origens até agora”.

Por correta que seja essa descrição, ela restringe o campo dos problemas em jogo. Não basta acompanharmos o trabalho do escritor na fonologia, na morfologia e na gramática em geral. Com a atenção voltada para a formação das palavras, Guimarães Rosa visava, muito além de efeitos literários pontuais, despertar para a formação dos principais conceitos, por meio dos quais a cultura brasileira se pensa a si mesma. Um termo como “nação”, “povo”, “jagunço” ou “escravo” não é para ele uma palavra entre outras, mas um etymon psicológico e social (cf.. Spitzer, 1962, p.13), que permite ler a cultura em sua dimensão histórica e mental. Tais palavras são submetidas pelo escritor a uma purificação de usos arbitrários, no sentido de estimular o leitor para a reaprendizagem e a descoberta da língua como um ser em mudança.

O segundo procedimento de invenção da língua, por parte de Guimarães Rosa, consiste na fusão, montagem e combinação de elementos lingüísticos multiculturais. Comecemos por sua declaração mais espetacular a esse respeito, freqüentemente citada: “Eu quero tudo: o mineiro, o brasileiro, o português, o latim talvez até o esquimó e o tártaro. Queria a língua que se falava antes de Babel”.[10]

O fato de o escritor aproveitar com naturalidade e com uma abrangência universal “todas estas fontes da formação léxica” (Daniel, 1968, p. 33) levou vários estudiosos a conceber sua invenção da língua como se fosse uma somatória de elementos. Assim teríamos: o código escrito e a fala oral, o erudito e o popular, a linguagem coloquial e o idioma dos cientistas, o português contemporâneo e o arcaico, brasileirismos e regionalismos, traduções e adaptações de vocábulos estrangeiros etc. Esse tipo de leitura reduz a invenção do ficcionista a um catálogo de materiais, eliminando o essencial: o espírito da invenção, o princípio criador.

Como antídoto contra tais leituras positivistas, convém lembrar uma observação de Antonio Candido (apud Daniel, 1968, p. 156) sobre a relação entre “materiais” e “invenção” na obra de Guimarães Rosa: “O aproveitamento literário do material observado na vida sertaneja se dá “de dentro para fora”, no espírito […]. O autor inventa, como se, havendo descoberto as leis mentais e sociais do mundo que descreve, fundisse num grande bloco um idioma e situações artificiais […]”.

À luz dessa explicação fica claro que o objetivo primeiro do autor de Grande sertão: veredas é “descobrir as leis mentais e sociais” do sertão como mundo. A serviço desse objetivo está a invenção da lingua, que não se processa por somatória de elementos, mas por fundição e construção artística. Não seria a lingua que se falava antes de Babel, de acordo com a lição de Herder (1772): a poesia?[11]

Voltando agora para as declarações do próprio romancista, podemos distinguir melhor as suas prioridades de seus recursos secundários. “Eu incorporo à minha dicção certas particularidades dialéticas de minha região, que não são linguagem literária[12] e ainda têm sua marca original, não estão desgastadas e quase sempre são de uma grande sabedoria lingüística” (pp. 514, 81). Em primeiro lugar, o autor menciona o elemento secundário de sua criação: a fala regional. Na frase subordinada aparece o elemento principal de sua reinvenção do português: a lingua que costuma ser excluída da alta literatura como não literária, a fala das pessoas das classes subalternas, de gente pobre, carecendo de educação, de poder e prestígio. Estas características são resumidas pela palavra latina bumilis, de onde se derivou a designação para o estilo baixo: sermo humilis (cf. Auerbach, 1965, p. 39s.). O termo sermo humilis abrange, portanto, ao mesmo tempo, um “material”, e o aproveitamento literário desse material, “de dentro para fora”, no sentido de um trabalho artístico de invenção.

Sermo divinus est suavis et planus, non altus et superbus— esse contraste estilístico observado por um comentarista (Benvenuto da Imola) na obra de Dante, que inspirou Erich Auerbach (1965, p. 66) a estudar o surgimento do sermo humilis nos escritos bíblicos da Antiguidade tardia, como contestação da retórica então dominante do estilo alto e soberbo, esse contraste repercute também, numa forma secularizada, no projeto poético de Grande sertão: veredas. Resumo aqui algumas passagens de um estudo anterior (cf.. Bolle, 1994/95, p. 83s.):

Grande sertão: veredas é um título emblemático, alegórico, que expressa a dialética da valorização e desvalorização (cf.. Benjamin, 1984). Trata-se de uma retomada e reescritura crítica da obra precursora Os sertões. A hipérbole euclidiana é amplificada ainda mais em Grande sertão, talvez até com uma conotação parodística; veredas, como um recolhimento, marca o contraponto.

Grande Sertão. Isto é, a história dos jagunços, estilizada em gesta da jagunçagem, epopéia do sertão, romance de cavalaria. É o “grand récit”, o estilo “elevado”, o “enaltecimento mítico”, de que falam vários intérpretes. De fato, o livro contém esse discurso heróico e grandiloqüente — que é o da história oficial —, mas ele também torna transparente a retórica dos vencedores. Se a história de Riobaldo é a ascensão de um raso soldado para poderoso e vitorioso chefe, a rememoração de Riobaldo é um trabalho de luto, em que ele procura captar a mentalidade dos sertanejos “por dentro”.

As veredas constituem o contraponto ao grand récit; é o sermo humilis, como contrapartida dialética ao estilo grandiloqüente, como realização efetiva de uma nova escrita da história. As “veredas” ou “passagens” do Grande Sertão são frestas abertas pelo escritor, para interromper o discurso que martela uma visão idealizada do país. São os momentos em que são retratados, en passant, o homem e a sociedade. Configura-se, assim, uma história do cotidiano, uma micro-história do dia-a-dia, em contraposição aos feitos da historiografia monumental e da publicidade oficial.

Por um lado, verificamos a desvalorização do cotidiano religioso e político dos sertanejos, com o olhar de cima para baixo, como ocorre na obra de Euclides. Invertendo a perspectiva, Guimarães Rosa procura rever a realidade sertaneja de baixo, a partir de uma perspectiva rasteira, da fala dos humildes, sem, no entanto, idealizá-la.

Qual é a interação do sermo humilis, cuja importância foi destacada também nesse resumo, com os dois procedimentos anteriormente descritos: mimese do processo de formação da língua e fusão de elementos multiculturais? Podemos ilustrar esta visão prévia da invenção lingüística de Guimarães Rosa com uma imagem inspirada em Walter Benjamin: o romancista lida com as energias da língua como “um redemunho, que arrasta em sua corrente o material produzido pela gênese”. Essa imagem fluvial desdobra-se numa outra. Na fala de Riobaldo, o narrador-rio de Grande sertão: veredas, ocorrem procedimentos de fusão de elementos multiculturais, notadamente da cultura popular, que alimentam seu discurso como afluentes. O procedimento complementar de aproveitar as energias de formação da língua pode ser visualizado como um remontar cada um desses afluentes, até as ramificações originais, que são as “veredas”. O sermo humilis como elemento vivificador se faz presente em ambos: nas fontes e no resultado do discurso.

Esta foi uma descrição teórica prévia. Para verificar como esses procedimentos de invenção da língua por Guimarães Rosa, notadamente o sermo humilis, se manifestam na prática, é preciso analisá-los no texto do romance. É o que se pretende fazer aqui com o estudo das falas do povo em Grande sertão: veredas.

GRANDE SERTÃO: AS FALAS

Depois de um longo convívio com Grande sertão: veredas, com várias leituras segundo o princípio hermenêutico do vai-e-vem entre o todo e as partes, acabei escolhendo para esta análise as treze falas sertanejas abaixo reunidas. Quais foram os critérios para o recorte desse corpus? A base de minha leitura foi o entendimento de que Guimarães Rosa organizou sua representação dos personagens, das falas e do universo mental do povo em forma de uma rede temática, estendida labirinticamente pelo livro inteiro (cf.. Bolle, 2000, p. 31). Para escolher um grupo de elementos representativos, trabalhei com a hipótese de que em Grande sertão: veredas existe um número limitado de falas exemplares, cujo conjunto proporcionaria um insight e uma visão sintética do universo mental dos sertanejos. Nesse conjunto estariam incluídos virtualmente todas as falas e todos os retratos dos personagens populares do romance. É claro que essa parte da hipótese só poderá ser verificada empiricamente. Para saber se um determinado elemento do conjunto — isto é, um subconjunto temático ou “afluente” da fala do narrador — representa, de fato, todas as demais falas desse subconjunto, teria de ser feito um levantamento criterioso de todas as ramificações que convergem para esse afluente.

Do ponto de vista qualitativo, não entraram na minha escolha nem as falas de chefes (como Joca Ramiro, Zé Bebelo, Hermógenes), nem de outros personagens de destaque (como Diadorim), mas exclusivamente falas de sertanejos comuns. Com isso, a presente leitura se faz a contrapelo da crítica, que tem valorizado excessivamente a fala dos personagens “importantes”, em detrimento dos “de baixo”. Para distinguir as manifestações dos sertanejos de eventuais interferências interpretativas do protagonista-narrador, foram desconsideradas falas indiretas e escolhidas somente falas diretas. Assim, todas essas falas, embora sejam lembradas por Riobaldo e sujeitas a seus comentários, têm o valor de citações (garantidas pelo autor do romance), que expressam o modo de pensar próprio dos personagens.

As falas de sertanejos aqui escolhidas aparecem no discurso do protagonista-narrador Riobaldo como elementos-chave para ele recordar momentos decisivos de sua vida. São partes de uma ordem narrativa como trabalho de memória. Como se sabe, a memória é uma das cinco partes constitutivas da arte retórica; é “a firme percepção do espírito das palavras e das coisas, de acordo com a invenção” (Cícero, 9). É essa qualidade que permite ao romancista retratar adequadamente a história cotidiana e o universo mental dos sertanejos. Além isso, essas falas sertanejas têm também a qualidade de serem facilmente memorizadas pelo leitor

Como já foi dito, as falas escolhidas encontram-se espalhadas por toda a extensão do romance. Trata-se aqui de uma outra parte da retórica e da poética, a dispositio, que consiste na “distribuição, segundo uma certa ordem, dos elementos da invenção”. É na disposição que se mostra a arte de narrar. Enquanto o narrador d’ Os sertões descreve o “labirinto monstruoso” do sertão humano com distanciamento e pré-conceitos, como que receando contagiar-se, o narrador de Grande sertão: veredas mergulha de cabeça nesse labirinto, assemelhando-se a ele no seu modo de pensar e narrar A sociedade sertaneja é apresentada pelo romancista por meio de uma ordem labiríntica construída, uma bem calculada rede de falas, distribuídas estrategicamente ao longo de todo o grande sintagma da narrativa, acompanhando-se assim a trajetória do protagonista-narrador através do seu meio social.

Finalmente, na escolha e análise das falas, levou-se em conta também a elocutio, ou seja, “a acomodação das palavras e orações, de acordo com a invenção”. Trata-se do modo como os personagens sertanejos formulam o seu pensamento. Resgatando para uma consideração mais objetiva aquilo que Euclides desqualificou como “a própria desordem do espírito delirante” (OS, p.168), Guimarães Rosa considera os sertanejos não como objetos, mas como sujeitos da invenção, isto é, como narradores de sua própria história. O discurso labiríntico do romance, que representa o modo como um cérebro trabalha, mostra a mentalidade do povo sertanejo a partir do mapa da mente individual de Riobaldo. Um desafio especial para a nossa análise consistirá em descobrir como as falas dos sertanejos se situam com relação ao discurso do protagonista-narrador Vamos a elas.

[1]

— “Eu gosto de matar..” — (GSV, p. 13). O autor dessa declaração, reportada pelo narrador Riobaldo no proêmio do romance (GSV, pp. 9-26), é um menino de uns dez anos, chamado Valtêi. “Pois essezinho, essezim”, comenta o narrador, “desde que algum entendimento alumiou nele, feito mostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza […]. O que esse menino babeja vendo, é sangrarem galinha ou esfaquear porco”. O menino Valtêi é um dos casos ou exemplos (cf.. Stierle, 1973) de um repertório popular explorado por Riobaldo em sua tentativa de compreender a origem do mal e da violência. Diferentemente da visão idealista de Rousseau, o autor de Grande sertão: veredas acredita não só no “homem humano” (GSV, p. 460), mas também na “ruindade nativa do homem” (GSV, p. 33).

Parece que a violência nasce espontaneamente nas pessoas, fazendo parte da natureza humana. Conforme explica Riobaldo: “tem gente, neste aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta…” (GSV, p. 12). Fato ilustrado por vários personagens do romance. Por exemplo, o Aleixo, que “um dia, só por graça rústica matou um velhinho que por
lá passou, desvalido rogando esmola” (GSV, p.12). Ou a Maria Mutema, autora de dois homicídios. Como ela acaba confessando, ela “tinha matado o marido, aquela noite, sem motivo nenhum”. Assim como depois matou o padre Ponte, a quem contou “que tinha matado o marido por causa dele, Padre Ponte — porque dele gostava em fogo de amores, e queria ser concubina amásia…”. Mentira que lhe proporcionava “um prazer de cão, que aumentava de cada vez”, “até que o Padre Ponte de desgosto adoeceu, e morreu em desespero calado…” (GSV, p. 172s.). O arquétipo da violência é representado pelo Hermógenes, que “gostava de matar, por seu miúdo regozijo” (GSV, p. 132). O Hermógenes é a encarnação do Diabo, “belzebu”, mas também a “inocência daquela maldade”, uma vez que já nasceu assim.

Nesses personagens, que representam o gosto de matar e a lei da natureza selvagem, o protagonista-narrador Riobaldo reconhece também um pedaço de si. Ele se lembra, então, do episódio em que ele, o chefe Urutu-Branco, na frente de seu bando de jagunços, encontrou com um tal de nhô Constâncio Alves, que lhe provocou um súbito desejo: “sem prazo, se esquentou em mim o doido afã de matar aquele homem, tresmatado […] matar, matar assassinado, por má lei” (GSV, p. 355). Retrospectivamente, Riobaldo reconhece: “quem mandava em mim já eram os meus avessos”. Todos esses casos ilustram o empenho do protagonista-narrador num trabalho radical de autoconhecimento, bem como o esforço do romancista de caracterizar o universo mental e social dos sertanejos. Para os homens de armas do sertão, o prestígio de um latifundiário, chefe de jagunços, é proporcional ao número de pessoas que ele matou. Assim, o perfil de seo Ornelas, dono da fazenda Barbaranha, é sintetizado nestes termos: “Aí falam em sessenta ou oitenta mortes contáveis” (GSV, p. 341). O poder é poder de matar. A lei natural, a lei da violência, é, como observa Riobaldo, a lei que rege aquela sociedade.[13]

Note-se que a forma como Guimarães Rosa reproduz a fala do menino sertanejo Valtêi, que foi o ponto de partida destas considerações, é linguisticamente correta; aparentemente, não existe a diferença estética que caracteriza um procedimento estilístico (cf.. Riffaterre, 1971). Faremos a mesma observação na maioria das falas aqui analisadas. Onde, então, está a “invenção linguística” de Guimarães Rosa? É preciso ter claro que a própria introdução de uma fala popular (neste caso, do menino Valtêi), no discurso do narrador Riobaldo, constitui, sim, um traço estilístico, na medida em que rompe com esse padrão ou contexto estilístico (Riffaterre), situado num nível verbal mais elaborado. Constitui-se, assim, um novo padrão, formado pelo relato do narrador, a fala do menino e o comentário do narrador. Nesse segundo contexto estilístico, surge como ruptura um vocábulo nunca visto — como se a figura do Valtêi tivesse desencadeado no romancista a capacidade de invenção: o narrador diz que o menino “já está no blimbilim” (GSV, 14).[14] Essa expressão e a fala direta anterior, “Eu gosto
de matar…”, reforçam-se mutuamente, e é esse conjunto, esse retrato do menino Valtêi, por ele mesmo e pelo narrador, que se grava na memória.

[2]

— “Me dá saudade é de pegar um soldado, e tal, pra uma boa esfola, com faca cega… Mas, primeiro, castrar…” — (GSV, p. 20). Essa fala, também do proêmio do romance, e também gramaticalmente correta, é do ex-jagunço Firmiano, apelidado Piolho-de-Cobra, leproso e quase cego. O narrador aproxima-o dos arquétipos do mal (Cobra, Diabo) e do homem selvagem: “Quem tem mais dose de demo em si é índio, qualquer raça de bugre. Gente vê nação desses, para lá fundo dos gerais de Goiás. […] Piolho-de-Cobra se dava de sangue de gentio”. É um reforço do tópos da ruindade nativa do homem, aqui na variante do mau selvagem. O jagunço Firmiano parece ser da mesma estirpe que o Hermógenes, a Maria Mutema ou o menino Valtêi. Se em suas falas não há diferença em comparação com uma fala urbana, isso não apenas mostra um reconhecimento do outro como igual — diferentemente da reprodução discriminatória da fala de um menino “jagunço” por Euclides da Cunha (cf.. os, p. 425) —, mas sinaliza também que a lei selvagem do sertão rege, em última instância, também a sociedade urbana.

O comentário do narrador realça, contudo, no Firmiano, um aspecto diferente daqueles outros personagens. Ele representa a maldade, a fim de encobrir o seu medo: “Obra de opor, por medo de ser manso, e causa para se ver respeitado”. Essa observação — que faz parte das investigações do romancista sobre as relações entre coragem, medo e “as más ações estranhas” (cf. GSV, p. 79) — revela a sensação básica a partir da qual se estrutura a sociedade. Poder, autoridade e dominação são construídas e reforçadas com base no medo. Quem entra para a jagunçagem, como Riobaldo, tem que adaptar-se a esse código: “Eu tinha receio de que me achassem de coração mole, soubessem que eu não era feito para aquela influição, que tinha pena de toda cria de Jesus” (GSV, p. 131s.). Ora, o faz-de-conta acaba obrigando a pessoa a ter de “um dia executar o declarado, no real”: “Vi tanta cruez!”, relembra o narrador (GSV, p. 20). Essa invenção verbal,[15] na qual repercute o espírito da fala do Firmiano, contribui para fixar o seu retrato na memória, como um emblema da jagunçagem. Era comum os chefes determinarem que os jagunços cumprissem verdadeiros exercícios de ruindade: “Para o pessoal não se abrandar nem esmorecer, até Sô Candelário, que se prezava de bondoso, mandava mesmo em tempo de paz, que seus homens saíssem fossem, para estropelias, prática da vida” (GSV, p. 131). É o retrato de uma sociedade em que a violência precisa ser constantemente encenada, como um ritual mantenedor do poder instituído.

[3]

— “Eu vi a Virgem!…”. “Eu vi a Virgem Nossa, no resplandor do Céu, com seus filhos de Anjos!…” — (GSV, p.18). É o grito de Joé Cazuzo, que foi, na memória de Riobaldo, o único jagunço ativo “para se arrepender no meio de suas jagunçagens”. Grito dado no meio de um tiroteio entre o bando de Riobaldo e uma tropa mista de jagunços e soldados, a serviço de um poderoso coronel. Assim como as demais falas de sertanejos que estamos analisando aqui, esse grito estimula a inventividade linguística do narrador que comenta: “Ele almou?”[16] Esse episódio, destacado pela dupla marca estilística, mostra como violência e religião convivem no universo sertanejo. Ao longo do romance, há várias referências dos jagunços à figura da Virgem Maria, inclusive por parte de Riobaldo, que reza “a todas as minhas Nossas Senhoras Sertanejas” (GSV, p. 310). O culto a Nossa Senhora faz parte daquele universo cultural, a ponto de mesmo os soldados e cabras do coronel “remitir[em] de respeitar o assopro daquele Joé Cazuzo”, que “acabou sendo o homem mais pacificioso do mundo, fabricador de azeite e sacristão”.

A passagem de jagunço a sacristão é cultural e socialmente significativa. Ela ilustra as duas possibilidades de carreira, as duas saídas possíveis para os homens livres da plebe rural, que não querem engajar-se no sistema de produção: a religião ou a violência (cf. Galvão, 1972, p. 81). Essa perspectiva é também a do protagonista do romance, que declara que ele podia ter sido “padre sacerdote” ou “chefe de jagunços” (GSV, p. 15). Estabelecendo uma comparação inter e extratextual, podemos lembrar que Antônio Vicente Mendes Maciel esteve diante da mesma opção: “Ali estavam, em torno, permanentes lutas partidárias abrindo-lhe carreira aventurosa, em que poderia entrar como tantos outros” (OS, p. 141, grifo meu). Seria o jagunço metafísico Riobaldo uma reinvenção do líder religioso e chefe de “jagunços” Antônio Conselheiro?

[4]

— “… O Hermógenes tem pauta… Ele se quis com o Capiroto…” – (GSV, p. 40). Essa fala, de um João Bugre, é escutada por Riobaldo no momento em que o bando, sob a chefia de Medeiro Vaz, pisa pela primeira vez o Liso do Sussuarão, caracterizado como espaço infernal (cf.. GSV, p. 43). Trata-se do segundo bloco narrativo do romance, que é um relato in medias res das experiências do jagunço Riobaldo (GSV, pp. 26-77). Das falas sertanejas escolhidas, é a primeira mais marcadamente regional. “Ter pauta”, no sentido de “fazer o pacto”, e “Capiroto”, em vez de “Diabo” são expressões usadas no interior do país que, nesse contexto, não são discriminatórias, mas caracterizam um determinado ambiente cultural. Pelo nome, João Bugre é da mesma “raça” selvagem que o Piolho-de-Cobra. A figura evocada por ele, o Capiroto, é antagônica à da Virgem Maria, evocada por Joé Cazuzo, constituindo-se assim os dois pólos que representam no mundo sertanejo o Mal e o Bem.

É de notar que todas as falas de sertanejos aqui comentadas terminam com reticências. É uma forma de dar ênfase e de sinalizar que todas elas repercutiram fundo na mente do protagonista-narrador. O exemplo mais forte é o efeito da imagem do Hermógenes pactário sobre Riobaldo: “Eu ouvi aquilo demais. O pacto!”; O Hermógenes tem pautas…’ Provei. Introduzi”; “O Hermógenes — demônio. Sim só isto. Era ele mesmo” (osv, p. 40). O fascínio de Riobaldo pela figura do pactário é reiterado várias vezes ao longo da narrativa: “João Goanhá me esclareceu: — ‘O Hermógenes fez o pauto. É o demônio rabudo quem pune por ele…” (GSV, p. 53). Riobaldo comenta: “Nisso todos acreditavam. Pela fraqueza do meu medo e pela força do meu ódio, acho que eu fui o primeiro que cri”. Com todo o seu envolvimento, o narrador não deixa de identificar o componente político da crença no pacto: era “o medo, que todos acabavam tendo do Hermógenes, […] que gerava essas estórias” (GSV, p. 309). O diabo aparece, portanto, como figura que representa os mecanismos do poder e da dominação.

Em termos retóricos e poéticos, o distanciamento inicial do protagonista-narrador (GSV, pp. 9 e 10) diante das superstições do “povo prascóvio” constitui um estratagema especial. Afirmando que “quase que já perd[eu] a crença” no demo, Riobaldo procura se sintonizar com a mentalidade esclarecida do seu interlocutor urbano. O que reforça também a credibilidade do narrador é o fato de ele rememorar seu tempo de juventude a partir da distância ponderada de um cidadão respeitado e maduro. Sua ausência de “abusões” (GSV, p.9) parece aproximá-lo, por um momento, desse crítico das “abusões extravagantes” dos sertanejos que foi Euclides da Cunha, que vituperou as crenças nas “tentações do maldito” (cf. os, p. 124s.). No entanto, o distanciamento do narrador de Grande sertão: veredas é apenas um dos polos numa escala variável de distância-e-proximidade narrativa que lhe permite sondar refinadamente o universo mental sertanejo. Diferentemente do narrador d’ Os sertões, Guimarães Rosa realiza através de Riobaldo um mergulho profundo dentro da cultura do outro. Trata-se de um observador participante, que se inteira de corpo e alma das crenças populares — a tal ponto que acaba se tornando pactário ativo!

Tocamos aqui no cerne do romance. No âmbito deste comentário de um conjunto de falas sertanejas, podemos apenas assinalar que, na medida em que o protagonista-narrador rosiano mergulha na questão do pacto, ele se aprofunda também na questão metafísica da criação lingüística: “Eu sem

querer disse alto: — `…Só o demo…’ E: —       — um deles, espantado,
me indagou. Aí, teimei e inteirei: — ‘Só o Que-Não-Fala, o Que-Não-Ri, o Muito-Sério — o cão extremo!’ Eles acharam divertido” (GSV, p. 308).[17] Nesse plano da narrativa, a sondagem da metafísica ex negativo se funde com a liberdade “blasfematória” do romancista de exercer o papel de criador.[18]

[5]

— “Nasci aqui. Meu pai me deu minha sina. Vivo, jagunceio…” — (GSV, p. 169). É a resposta, real ou provável (“ele falasse”) de Jõe Bexiguento às perguntas de Riobaldo sobre os motivos para um sertanejo tornar-se jagunço e sobre o problema da consciência moral. Essa conversa ocorre depois do primeiro tiroteio de Riobaldo, em que ele foi iniciado ao ofício de matar, na primeira parte do relato de sua vida (GSV, pp. 79-234). “Jagunço”, define o protagonista-narrador, é “criatura paga para crimes, impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e roupilhando”. A condição jagunça, esse estado de crime, ao mesmo tempo fora e dentro da lei, é descrito a partir da observação participante de um novato, entrevistando um sertanejo que exerce esse ofício há bastante tempo.

O objetivo do narrador é realçar o contraste entre a sua consciência moral e a razão prática do outro. Enquanto toda a narração de Riobaldo é estruturada em torno da dúvida “De Deus? Do demo?” — como mostraram as já comentadas referências à Virgem Maria e ao Capiroto —, o pensamento de Jõe Bexiguento sobre essa questão é taxativo e prático: — “Deus a gente respeita, do demônio se esconjura e aparta…”. Para esse “broeiro peludo do Riachão do Jequitinhonha”, a jagunçagem é sobretudo uma profissão que lhe garante o sustento, conforme lhe ensinou seu pai. Mesmo assim, ele sabe, como também os companheiros, que se trata de uma ocupação provisória, e já formula seu projeto para o futuro e a velhice: “Pra o Riachão vou, derrubo lá um bom mato…”.

Nessa conversa entre os dois homens que experimentam sentimentos semelhantes, observa-se uma atitude tendenciosa do protagonista-narrador: ele reserva para si as grandes dúvidas metafísicas, enquanto o outro é apresentado como homem simples:[19] “Jõe Bexiguento não se importava. Duro homem jagunço, como ele no cerne era, a ideia dele era curta, não variava. […] Tudo poitava simples”. Ora, Riobaldo não é o único a ficar em “dessossêgo” por causa dos companheiros que morreram; também Joe Bexiguento expressa sua “desinquietação”, apesar de já estar vários anos na jagunçagem. Não foi a “simplicidade”, mas foram as contingências materiais que o fizeram optar por esse ofício. A discriminação do jagunço comum ocorre, bem entendido, por conta do personagem-narrador, não por conta do autor, que atua atrás dele. A valorização do homem do povo por parte de Guimarães Rosa percebe-se também pelo fato de ele fazer de Joe Bexiguento o narrador do caso talvez mais memorável do romance: a história de Maria Mutema (GSV, pp. 170-4).[20]

Esse caso pode servir de exemplo para ilustrar a estrutura narrativa e historiográfica do romance como um todo. A vida do jagunço Riobaldo é em princípio apenas uma entre muitas outras histórias que se contam em Grande sertão: veredas. Sua história foi escolhida pelo autor para ser a base narrativa em que se encaixam todas as demais histórias, os numerosos casos, as fragmentárias referências históricas, os episódios da vida cotidiana coletiva — essas mil-e-uma invenções da gente sertaneja, que dão substância histórica e social ao relato de Riobaldo.

[6]

— “Com vossas licenças, chefe, cedo minha rasa opinião. Que é […] de se soltar esse Zé Bebelo […] Não ajunto por mim, observo é pelos chefes […]. A gente é braço d’armas, para o risco de todo dia […]. Mas, se alguma outra ocasião […] algum chefe nosso cair preso em mão de tenente de meganhas — então também hão de ser tratados com maior compostura, sem sofrer vergonhas e maldades… A guerra fica sendo de bem-criação, bom estatuto…” — (GSV, p. 207).

Nessa fala, ainda na primeira parte do relato da vida de Riobaldo, vêm à tona as diferenças sociais entre os chefes e os rasos jagunços. Diferenças apenas esboçadas na justaposição anteriormente comentada das dúvidas metafísicas do futuro chefe Riobaldo e as preocupações do sertanejo comum Jõe Bexiguento. A fala aqui citada ocorre durante o julgamento de Zé Bebelo sob a presidência de Joca Ramiro que, depois de todos os subchefes terem dado sua opinião, abre a palavra para qualquer um de seus jagunços se manifestar. É nesse momento que Riobaldo se prepara para falar, certo de se destacar no meio daqueles homens, onde “cada um [ficava] com a cara atrás da sela” (GSV, p. 206). Mas um outro começou primeiro. Pela aparência dele, ou melhor, pelo modo como o apresenta o narrador; não é para se esperar uma fala de valor: “Um Gú, certo papa-abóbora, beiradeiro, tarraco mas da cara comprida; esse discorreu”.

No entanto, esse Gú acaba formulando uma definição do sistema jagunço de forma tão lapidar e lúcida que faz sombra ao discurso grandiloquente proferido em seguida por Riobaldo. Diferentemente da atitude autoconvencida deste (“tenho é uma verdade forte para dizer; que calado não posso ficar”), a fala do Gú inicia-se com o tópos da humildade: “cedo minha rasa opinião”. É uma fala desinteressada (“não ajunto por mim”), ao contrário do discurso de Riobaldo, que lisonjeia os chefes e quer o seu pedaço da “fama de glória”. Como expõe o Gú, nas guerras existe uma diferença decisiva de condição social: enquanto os braços d’armas entram para o oficio da jagunçagem com o risco pleno de sua vida, os chefes sempre têm a possibilidade de negociar. O que esse sertanejo dá a entender é que a absolvição de Zé Bebelo por Joca Ramiro não é tanto um ato magnânime de “jagunços civilizados” — como devem fazer crer toda a encenação e retórica do julgamento mas um arranjo entre dois potentados, num contexto político, em que o vencido de hoje pode ser o vencedor de amanhã. As guerras de jagunços, como ainda sugere o Gú com suas sarcásticas palavras finais, são um estado de lei perpétuo, em que os de cima entram com o dinheiro e a “glória”, e os de baixo pagam com suas vidas.

[7]

— “Ossenhor utúrje, mestre, a gente vinhemos, no graminhá… Ossenhor utúrje… […] Não temos costume… Que estamos resguardando essas estradas… De não vir ninguém daquela banda: povo do Sucruiú, que estão com a doença, que pega em todos… […] Peste de bexiga preta… Mas povoado da gente é o Pubo […] distante meia-légua… […] A gente vinhemos, no graminhá. Faz três dias… Cercar os caminhos…” — (GSV, p. 291s.).

Num dado momento da segunda parte da história de vida de Riobaldo (pp. 238-454), quando o bando de jagunços chefiado por Zé Bebelo está errando pelos “fundos fundos” do sertão, interpõem-se em seu caminho as figuras da miséria e a alegoria da Morte. A fala citada, dirigida ao chefe Zé Bebelo, é de um homem empunhando uma foice, falador de um grupo de roceiros em “molambos de miséria”. Sua voz é comentada por Riobaldo como “toô que nem de se responder em ladainha dos santos, encomendação de mortos, responsório”. Quanto à reprodução desse discurso, trata-se de sinalizar uma fala rústica arcaica: “Ossenhor utúrje” (de “outorgar”?) = o senhor dê licença; “no graminhá” = no caminhar, caminhando (?). Concomitantemente, trata-se de marcar o espanto do protagonista-narrador diante desses homens, que parecem ser de “tempos antigos” e que estão ali em sua frente “que nem mansas feras”. Com essas figuras, que Riobaldo denomina de catrumanos, Guimarães Rosa retoma o tópos euclidiano dos “patrícios retardatários” do sertão, dos quais “nos separa uma coordenada histórica — o tempo” (cf. os, pp. 300 e 14).[21]

Desde o início, a viagem pelo sertão proporcionada pelo narrador foi balizada pelas figuras da pobreza e da tristeza. Mas, em contraste com o grand récit das guerras e batalhas, esses detalhes da “história de sofrimentos” (cf.. Benjamin, 1984, p. 188) foram transmitidos num estilo simples ou discreto (Lausberg, 1990, p. 519), como en passant: “quando se jornadeia de jagunço, no teso das marchas, praxe de ir em movimento, não se nota tanto: o estatuto de misérias e enfermidades. Guerra diverte — o demo acha” (GSV, p. 48). Com o episódio dos catrumanos, o que não se nota tanto passa para o primeiro plano. Guimarães Rosa fixa “o drama do homem abandonado e à mercê dos complexos interesses das chamadas elites” (Arroyo, 1984, p.139). Eis o ponto crucial da crítica do romancista às representações do Brasil por meio de “ideias arranjadas”; e o contraponto, em forma de retrato de um “país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias” (GSV, p. 15).

A massa dos miseráveis e dos excluídos, representada pelos catrumanos, vai “barrando o caminho de Zé Bebelo”, conforme observa Heloísa Starling em seu estudo Lembranças do Brasil (1999, p. 153s.). Alegoricamente falando, é o choque do Brasil moderno, o país dos ideais positivistas da Ordem e do Progresso — representados pela retórica de Zé Bebelo[22] e, em outro contexto, por Euclides da Cunha — com o Brasil dos avessos, o país dos problemas monstruosos, o “inferno feio deste mundo”. A imagem do mundo como inferno surge, na visão angustiada de Riobaldo, no momento em que não é mais possível “parar […] o são longe do doente, o vivo longe do morto […], o rico longe do pobre”. Viria então o momento em que “aqueles homens […] aos milhares mís e centos milhentos, vinham se desentocando e formando, do brenhal, enchiam os caminhos todos, tomavam conta das cidades” (GSV, pp. 294 e 295).

Pelo modo como o romancista imbricou as diferentes esferas de linguagem, ele sinalizou que esse momento já chegou em meados do século XX, em plena época do desenvolvimentismo. A fala dos catrumanos é incrustada na norma linguística brasileira, assim como os excluídos e miseráveis fazem parte do corpo das grandes cidades.

[8]

— “Tirei não, nada não… Tenho nada… Tenho nada…” — (GSV, p. 299). O retrato geral da miséria, personificada pelos catrumanos, se condensa na figura do menino Guirigó, do Sucruiú, a quem pertence essa fala. Ele é pego em flagrante ao roubar uma casa, juntamente com uns homens “feito ratos”. Esse menino, que já parece ter a “prática de todos os sofrimentos”, é a encarnação dos despossuídos, dos que não têm nem futuro, dos menores abandonados do país. Sua fala “Tenho nada”, “nada não”, “não […] nada” soa como uma projeção amplificada, no espaço social, da palavra inicial e geradora do romance: “Nonada”.

“De homem que não possui nenhum poder nenhum, dinheiro nenhum, o senhor tenha todo medo!” (GSV, p. 294), aconselha Riobaldo ao seu interlocutor urbano. Ele mesmo, Riobaldo, se utilizou da total negação de si como estratagema retórico, no confronto com Zé Bebelo, na Fazenda dos Tucanos (GSV, p. 266): “Pois é, Chefe. E eu sou nada, não sou nada, não sou nada… Não sou mesmo nada, nadinha de nada, de nada… Sou a coisinha nenhuma, o senhor sabe? Sou o nada coisinha mesma nenhuma de nada, o menorzinho de todos. O senhor sabe? De nada. De nada… De nada…”.

Existe, pois, uma afinidade entre a fala simples do menino Guirigó, com sua total ausência de poder, e a elaborada arte oratória de Riobaldo, que está se preparando para assumir o poder. É também um micromodelo da invenção linguística do romancista a partir de padrões de fala populares. Em comparação com a sensibilidade de Riobaldo, a percepção que tem Zé Bebelo do menino Guirigó é estandardizada, como mostra sua fórmula retórica: “O que imponho é se educar e socorrer as infâncias deste sertão” (GSV, p. 300).

Riobaldo, quando chefe, toma em relação àquele menino uma atitude ambígua, em que se misturam o gesto paternalista da ajuda e a arbitrariedade encoberta pela demagogia: “retirar aqueles, todos, destorcidos de suas misérias” (GSV, p. 336). Ele manda trazer o Guirigó e montá-lo num cavalo, emparelhado da banda de sua mão esquerda, para levá-lo consigo em sua campanha. O motivo profundo dessa ação parece ser o medo de perder o poder, o medo das adversidades e “das pragas que outros rogam”, e a superstição de que o menino, sem poder nenhum, possa lhe servir — assim como o cego Borroméu, da banda de sua mão direita — de meio mágico para “defastar o mau poder” daquelas pragas (GSV, p. 338).[23]

[9]

— “A gente carecia agora era de um vero tiroteio, para exercício de não se minguar.. A alguma vila sertaneja dessas, e se pandegar, depois, vadiando…” — (GSV, p. 307). O bando de jagunços, depois de ter atravessado os “campos tristonhos” do Pubo e do Sucruiú, está parado no retiro da Coruja. Quase todos os companheiros, relata Riobaldo, estavam adoecidos, e a proposta do chefe Zé Bebelo, que “tinha gastado as vantagens” e “murchava na cor”, era esperar ali, até que os doentes sarassem. A moral de combate atingiu seu ponto mais baixo. É nessa situação que o jagunço Sidurino faz a proposta acima citada.

A miséria do povo do Sucruiú e do Pubo, que é um choque para Riobaldo, é para seus companheiros uma situação por demais conhecida, da qual eles procuraram fugir ao optar pela jagunçagem, em que “não se nota tanto: o estatuto de misérias e enfermidades” (GSV, p. 48). Diante do quadro daquela penúria absoluta, os jagunços reconhecem a sua condição de origem. Sob o olhar do latifundiário seô Habão, arma-se para eles a ameaça de recaírem naquele estado: “Seô Habão cobiçava a gente para escravos! […] a natureza dele queria, precisava de todos como escravos” (GSV, p. 314). Ocorre aqui uma superposição de imagens: “jagunços destemidos”, que iam “virando enxadeiros”: Pela lógica do sistema vigente de produção econômica, ressurge como “presença ausente” a figura do escravo (cf. Franco, 1974); os assim chamados “homens livres” seriam reincorporados à ordem escravocrata. Os jagunços têm horror de recair nesse estado e reagem. Eles querem escapar da miséria e aproveitar a vida, satisfazendo ao menos os impulsos básicos: “comer beber, apreciar mulher, brigar, e o fim final” (GSV, p. 45).

Esse tão sonhado pandegar e vadiar, contudo, não passa, como Riobaldo chega a observar sarcasticamente, de uma “miséria melhorada” (cf. GSV, p. 321). Pois se os de baixo pensam em aproveitar a vida, eles, na verdade, são aproveitados como mercenários pelos de cima, que apelam para seus instintos primitivos e fantasias, como Sô Candelário, que, “mesmo em tempo de paz”, para seus homens “não se abrandar[em]”, os manda sair para “estrepolias” e “perversos exercícios” (GSV, p. 131), ou o Hermógenes, que lhes acena com “atacar bons lugares, em serviço para chefes políticos” (GSV, p. 177), pois, afinal, “a sebaça [é] a lavoura” dos jagunços. Sintonizada com o apelo habitual dos chefes, a proposta do Sidurino encontra ampla repercussão entre os companheiros: “Ao assaz confirmamos, todos estávamos de acordo com o sistema”. Trata-se do “sistema jagunço”, tal como será especificado mais adiante pelo próprio Riobaldo, já na condição de chefe (GSV, p. 391).

A atitude do protagonista-narrador diante da proposta do Sidurino é ambígua. Acompanhando o voto de todos, Riobaldo declara sua cumplicidade com o sistema: “Aprovei também”. A dúvida que ele sente, logo depois de pronunciar essas palavras, é expressa por uma imagem forte e original: “o que me picou foi uma cobra bibra” (GSV, p. 307).[24] Ele expõe, então, suas dúvidas morais, mostrando empatia e compaixão com as vítimas: “o desamparo de um arraial, de […] gente como nós, com madrinhas e mães”, “um coitado morador, em povoado qualquer, sujeito à instância dessa jagunçada” (GSV, pp. 307 e 308). Há, no entanto, uma incongruência nessa declaração do protagonista-narrador. Não é estranho que sua consciência moral seja despertada justamente por uma víbora?

De que lado, afinal, está Riobaldo? Ele, que, na Coruja, se dá conta de sua condição efetiva: “um raso jagunço atirador, cachorrando por este sertão”, no meio de um bando de companheiros, “que viviam à-tôa, desestribados” e que “desgovernavam toda-a-hora a atenção” (GSV, p. 305 s.). Prestes a fechar o pacto com o Diabo, Riobaldo, que conhece por dentro a mentalidade tanto dos jagunços quanto dos moradores, está de ambos os lados. Esse duplo conhecimento e essa linguagem dupla, de que ele se vale em sua carreira de dono do poder, caracterizam também seu discurso de legitimação diante do interlocutor urbano.

[10]

— “… Quem é que vai tomar conta das famílias da gente, nesse mundão de ausências? Quem cuida das rocinhas nossas, em trabalhar pra o sustento das pessoas de obrigação?…” — (GSV, p.337). É a fala de um dos moradores do Sucruiú, que estão sendo recrutados à força por Riobaldo, recém-empossado chefe do bando de jagunços. Falando “por todos”, esse morador, cujo nome não é informado, contesta a ação de força. Trata-se do primeiro de uma série de conflitos entre o patrão Riobaldo e seus subordinados, conflitos que se prolongam até o fim da história.

A passagem pelos povoados do Sucruiú e do Pubo e a permanência no retiro da Coruja foram para Riobaldo um ensinamento de como funciona a máquina da economia e do poder no sertão. Com o “fazendeiro-mor” seô Habão, dono “definitivo” daquelas terras, Riobaldo se dá conta da condição fantasmagórica do homem livre numa sociedade ainda escravocrata: “jagunço não passa de ser homem muito provisório” (GSV, p. 313). Com seô Habão, ele aprende também como montar uma empresa que tira proveito da miséria: “A bexiga do Sucruiú já terminou. Estou ciente dos que morreram: foram só dezoito pessoas… Disse que ia botar os do Sucruiú
para o corte da cana e fazeção de rapadura. Ao que a rapadura depois pagavam com trabalhos redobrados” (GSV, p. 314).

A primeira medida de Riobaldo, depois de empossado como chefe, se dá nos mesmos moldes que ele criticou no latifundiário seô Habão: apropriar-se da mão-de-obra camponesa, explorar os despossuídos, cobiçar os outros como escravos. Riobaldo dá ordem a seus jagunços para recrutarem os homens do Sucruiú e do Pubo. Em sua justificativa, o argumento paternalista — “eu pretendia era retirar aqueles, todos, destorcidos de suas misérias” — mal encobre a pura arbitrariedade: “Haviam de vir, junto, à mansa força” (GSV, p. 336). De fato, com a expressão “me trouxeram, rebanhal, os todos possíveis” (GSV, p. 335, grifo meu),[25] o protagonista-narrador se auto-retrata como “dono de gado e gente”.[26]

É nessa situação que Riobaldo ouve a referida reclamação de um dos camponeses. A ela se soma a fala de “um outro” morador, que “choraminga”: — “Dou de comer à mea mul’é e trêis fi’o’, em debaixo de me sapé…”. É a única vez em todo o romance que ocorre uma reprodução discriminatória da fala de um homem do campo, acentuando-se o pitoresco e o ridículo, segundo o padrão de regionalistas como Coelho Neto. Essa discriminação é propositadamente encenada pelo autor, para expressar o menosprezo do chefe Riobaldo, visivelmente contrariado, por esses camponeses. Todas as referências do protagonista àqueles dois homens — que, para ele, nem têm nome, apenas são denominados “um” e “um outro” — são francamente depreciativas: “um, o sem pescoço, baixinho descoroçoou, na desengraça, observou […]”; “um outro, de mãos postas como que para rezar, choramingou […] era um homem alto, espingolado, com todos os remendos em todos os molambos”.

Se Riobaldo indaga o nome do segundo roceiro, é para ganhar tempo e preparar sua resposta, inteiramente demagógica. Lembrando-se das lições dos comandantes Sê Candelário e Hermógenes, e conhecendo bem as fantasias dos rasos jagunços como o Sidurino, o chefe Urutu-Branco seduz os roceiros relutantes com a proposta de “tomar dinheiro dos que têm” e a promessa, para cada um de seus homens, de “duas ou três mulheres, moças sacudidas, p’ra o renovame de sua cama ou rede” (GSV, p. 337). Eis, nas palavras de Riobaldo, a definição do “sistema jagunço”, que ele próprio passará a encarnar (cf.. GSV, p. 391).[27]

Com a representação do sistema jagunço, Guimarães Rosa questiona radicalmente a maneira tendenciosa e arbitrária com que o conceito de “jagunço” e a instituição da jagunçagem são apresentados por Euclides da Cunha. O autor d’Os sertões, ao usar a palavra “jagunço” indiscriminadamente como sinônimo de “sertanejo” e aplicando-a somente aos habitantes de Canudos, criminalizou a população daquela cidade (cf.. Bartelt, 1997) — além de tirar o foco dos chefes tradicionais de jagunços, os potentados locais, que viam nos rebeldes de Canudos uma ameaça ao seu sistema. Guimarães Rosa reescreve criticamente o retrato do Brasil do seu precursor, por meio de um protagonista-narrador “jagunço”, que faz o leitor reaprender o significado dessa palavra, no contexto político, social e econômico do Brasil.

Alegoricamente, o romance de Guimarães Rosa põe em cena bandos de criminosos exercendo o poder no planalto central do país. O sistema jagunço, como instituição situada ao mesmo tempo dentro da esfera da lei e do crime, é uma representação do funcionamento das estruturas de poder. Visionariamente, o romancista compõe um modelo de criminalização generalizada, em que as pessoas são cooptadas, de cima para baixo, um modelo que a história brasileira e latino-americana de 1956 em diante iria confirmar.

 

[11]

— “Praz vosso respeito, Chefe, a gente decidiram… A gente vamo-s’embora. L.] A gente gastou o entendido…” — (GSV, pp. 375 e 377).

 

Essa fala, de um chamado Diodato, cabecilha dos cinco urucuianos, que foram trazidos para o bando por Zé Bebelo, expressa mais um dos conflitos entre o patrão e seus subordinados. Se no conflito anterior, com os homens do Sucruiú, Riobaldo venceu, desta vez, ele perde. Tendo vivido muito tempo “no entremeio” dos jagunços, o protagonista-narrador sabe perfeitamente que, entre eles, não há somente os que seguem a rotina, motivados pela perspectiva de “se pandegar” e “vadiar”, como o Sidurino; mas há também indivíduos que pensam, como o Gú, que tem clara consciência de ser um mero “braço d’armas, para o risco de todo dia” (GSV, p. 207), um “raso jagunço atirador”, como diria o próprio Riobaldo. Desses jagunços, que refletem sobre sua condição, fazem parte também os cinco urucuianos, cuja fala, seguida da ação correspondente, causa um certo abalo a Riobaldo. Ocorre exatamente o que ele tanto temia: seus homens vão desertando.

Por ora, trata-se apenas da saída de alguns poucos, mas Riobaldo sabe que esse exemplo pode se alastrar para os outros membros do bando, e aí viriam abaixo todos os seus planos. Ele procura, então, fazer frente a esse risco. A situação jurídica, na verdade, está clara: “um jagunço sai do bando quando quer — só tem que definir a ida e devolver o que ao chefe ou ao patrão pertence” (GSV, p. 376). É essa a regra a que se atêm os urucuianos.

Riobaldo, contudo, está cioso de não perder suas vantagens: “eu cogitava jeito de conservar todos em companhia”; e também com receio de que a ação dos urucuianos possa desencadear outros abandonos: “Mas, de desertarem de mim, então, será que era um agouro?”. Por isso, procura ganhar tempo e recorre a truques retóricos que, no entanto, não produzem efeito. A explicação dos urucuianos, bizarra e concisa — “A gente gastou o entendido…” — (GSV, p. 377), é um modo de dizer que estão fartos de demagogia e decididos de voltar para os seus recantos. Eis um micromodelo da crítica de Guimarães Rosa à linguagem deteriorada dos políticos,[28] crítica articulada aqui por pessoas do povo. O poder de persuasão daqueles contestadores iletrados é realçado através de uma imagem original: “Urucuiano conversa com o peixe para vir no anzol” (GSV, p. 375).

Derrotado dessa vez, o patrão Riobaldo aprende a lição. A fim de comprometer firmemente seus subordinados com o seu empreendimento, ele prepara a encenação de algo espetacular, que nem o mítico chefe Medeiro Vaz tinha conseguido realizar: “traspassar o Liso do Sussuarão!” (GSV, p. 380ss.).

[12]

“Me rodeavam meus, homens, o silêncio deles me entendia, como bem cientes” (GSV, p. 427).

Nesse caso, não se trata de uma fala explícita dos sertanejos, mas do seu silêncio. Esse silêncio não é uma mudez, mas um autêntico “modo de falar”,[29] mais eloquente do que qualquer palavra. Qual é a situação? Depois da vitória sobre o bando do Ricardão no Tamanduá-tão, Riobaldo e seus homens rumam para o Paredão, onde esperam dar a batalha final contra o bando do Hermógenes. No meio do caminho, sobrevém a notícia de que uma moça estaria viajando em direção a eles. Conforme interpreta Riobaldo, trata-se de sua noiva Otacília, vindo ao encontro dele, no meio da “guerraria de todos os jagunços deste mundo”. Riobaldo vê-se, então, colocado num conflito de consciência: “ali, meus homens me esperando, e lá Otacília, carecendo do meu amparo”. O que fazer? Ir imediatamente em busca de sua noiva, para protegê-la, ou cuidar de seus subordinados que, nessa hora decisiva, necessitam mais do que nunca da presença do chefe?

Trata-se de um conflito entre o interesse particular de Riobaldo e a sua função pública como chefe: “eu podia desdeixar meus homens?”. É dessa questão que seus homens estão “bem cientes”, e é o que eles expressam através do seu silêncio. Riobaldo, então, decide ir ao encontro de sua noiva, acompanhado de dois de seus homens, o Alaripe e o Quipes. A formulação da decisão — pelo protagonista, mas também pelo romancista, atrás dele — é de duplo sentido, sarcástica: “Os outros fossem, para o Paredão […].

No íntimo de sua consciência, Riobaldo bem sabe que essa sua atitude, arbitrária e interesseira, selada com a declaração autoritária “Eu sou o Chefe!” (GSV, p. 428), merece julgamento. O silêncio de seus subordinados repercute nele, e então ele imagina esta cena:

Desjuízo que me veio. Eu ia formar, em roda, ali mesmo, com o Alaripe e o Quipes, relatar a eles dois todo tintim de minha vida, cada desarte de pensamento e sentimento meu […1. Eu narrava tudo, eles tinham de prestar atenção em me ouvir. Daí, ah, de rifle na mão, eu mandava, eu impunha: eles tinham de baixar meu julgamento… (GSV, p. 432).

Os desmandos do chefe sendo julgados pelos seus subordinados — à primeira vista, trata-se de uma idéia democrática. Olhando de perto, porém, vê-se que é uma proposta falseada: uma justiça em que o réu manda, de rifle na mão!? Desjuízo — no sentido de “falta de juízo”, “falta de julgamento”, “impunidade” — é a palavra exata para esse estado de coisas, dentro e fora do romance.

[13]

— “Deus vos proteja, Chefe, dê ademão por nós todos… E de tudo peço perdão…” — (GSV, p. 444).

Essa fala é do velho e cego Borromeu, no meio da batalha final, no arraial do Paredão. Saindo do combate no meio da rua, Riobaldo deslocou-se para o lugar estratégico do sobrado, mais resguardado, onde está trancada a mulher do Hermógenes, e onde ficaram também o menino Guirigó e o Borromeu. Chegando lá com “uma pressa desordenada” e com sede, Riobaldo pergunta onde tem água. O fato de apenas o menino responder e de o cego ficar em silêncio, irrita Riobaldo, que exclama: — “Tu me ouve, xixilado, tu me ouve? Assim tu me dá respeito e agradece interesses de ter tomado conta de você, e trazido em companhia minha, por todas as partes?!”.

Esse “tornar conta” consistiu em arrancar o Borromeu do seu lugar e em trazê-lo à força, assim como Riobaldo fez também com o menino Guirigó (cf.. GSV, p. 337s.). Medida puramente arbitrária, baseada na superstição de que o cego pudesse lhe servir de amuleto.[30] Ou seja, Riobaldo levou esse homem inválido por puro capricho, por “maldade”, como ele mesmo reconhece, em todas as andanças do bando, até a “tragagem[31] da guerra”, onde “agora ele devia de padecer o redobrado medo”. E ainda o insulta: “xixilado”, um regionalismo da Bahia, quer dizer “sem-vergonha”, “descarado” (Castro, 1970, p. 191).

O que resta aos desvalidos, em sua impotência diante dos desmandos do poder? O pedido de perdão, o rogo de ajuda e os votos de proteção do subordinado para o chefe. Referindo as palavras de humilde ironia de um cego, o romancista chega ao término do seu retrato do Brasil. “Ah, meu senhor, eu sei é pedir muitas esmolas…” (GSV, p. 337), declarou o cego Borromeu, na hora de ser levado embora. Com essa fala, ele antecipou lucidamente qual é o destino da maioria dos que são utilizados pelo sistema jagunço; nas palavras do próprio chefe Riobaldo: “muito que foi jagunço, por aí pena, pede esmola” (GSV, p. 23). Cai assim o véu da ilusão que o grand récit da jagunçagem se destina a sustentar.

CONCLUSÕES E QUESTÕES EM ABERTO

As falas dos sertanejos comuns, que acabamos de analisar; ainda ressoam em nossa memória, com sua simplicidade lapidar. É um conjunto mínimo de dados que sintetiza a representação do povo, em Grande sertão: veredas. Espalhadas pelo romance inteiro, essas falas não são manifestações isoladas, mas formam uma constelação de sentido. Depois da análise de muitos detalhes e várias incursões pelo labirinto da narração, vejamos qual é a percepção de conjunto proporcionada por essa constelação de falas, em termos de retrato do Brasil.

O ponto de partida do romance são observações, no proêmio, sobre a violência como um dado humano original (cf.. a 1a fala: o impulso de “matar”). As elaborações bárbaras desse impulso (2a fala: “esfolar” e “castrar”, por “medo de ser manso”) revelam como uma das bases da sociedade o medo da autoridade. Com a reflexão sobre a violência e o medo, é introduzida, ainda no proêmio, a polarização ética e metafísica entre o Bem e o Mal (3a: Evocação da “Virgem Nossa”; 4a: referência ao “pacto” com o demo).[32] Eis os pontos cardeais do universo social, político e mental no qual se envolveu o protagonista-narrador, e que ele recorda, num primeiro momento, in medias res, reorganizando depois a narração de sua vida em duas partes. Na primeira parte, com uma visão de dentro, é descrita a condição jagunça (5a: “Vivo, jagunceio”), esse estado de crime, fora e dentro da lei, que parece para alguns uma forma de existência acima das contingências comuns, para outros, uma profissão entre outras. De fato, no sistema jagunço, manifestam-se as mesmas estruturas de poder como na sociedade em geral (6a: “chefes” e “braços d’armas”).

Na segunda parte da história de Riobaldo é revelado o caráter ilusório da condição jagunça. É um modo de existência que encobre os graves problemas sociais. Esses passam para o primeiro plano: os excluídos sociais vivendo na total penúria e em meio às doenças (7a: Peste de bexiga preta”),
e os menores abandonados, num nível de existência quase animal (8a: “Tenho nada”). É o “país das mil-e-tantas misérias”. Quanto à avaliação da jagunçagem, existem entre os sertanejos posições diametralmente opostas. Há os que acreditam que esse sistema corresponda a seus desejos — (9a: “se pandegar”, “vadiar”) — como ensina a retórica dos chefes; mas há também os que desconfiam da demagogia e lhe opõem o argumento das necessidades do cotidiano (10a: “Quem vai tomar conta das famílias?”, “Quem cuida das rocinhas?”). Como candidato a dono do poder, Riobaldo aposta no sistema jagunço — que ele pretende extirpar, ao mesmo tempo que ele o mantém. Alguns percebem esse faz-de-conta e questionam o sistema de exploração da miséria (11a: “A gente gastou o entendido”). Na maioria das vezes, porém, os conflitos não levam à resistência declarada, apenas se manifestam como silêncio (12a: “O silêncio deles me entendia”) ou irônica submissão (13a: “Chefe, de tudo peço perdão”). Tais atitudes fazem lembrar, por contraste, os casos históricos em que o questionamento do sistema foi radical e levou à insurreição, como no movimento de Canudos.

A leitura dessa constelação de falas permite montar um quadro conceitual da história cotidiana e mentalidade dos sertanejos, com destaque para o sistema jagunço. Esse esboço sintético deveria ser aprofundado através de nova análise detalhada, para explorar o potencial enciclopédico de informações contido no romance. A partir de cada uma das treze falas da constelação, o leitor procuraria as dezenas de outras falas e retratos correlatos, semeados pelas 460 páginas do livro, reconstruindo assim, por meio de ramificações, toda a labiríntica rede de informações sobre o povo. Nessa tarefa, os conceitos metafóricos de constelação[33] e rizoma,[34] metodologicamente complementares, podem ter um valor heurístico. Enquanto a constelação proporciona uma visão holística das estruturas (sistema jagunço, problemas sociais, poder, conflitos etc.), o rizoma é apropriado para o estudo aprofundado dos componentes do sistema. Tudo isso, sem prejuízo de outras abordagens, como a idéia de uma rede fluvial (sugerida pelo título do romance e o narrador-rio), ou de um hipertexto estruturado por meio de links.[35]

Qual é a função das falas sertanejas na construção de Grande sertão: veredas? Elas caracterizam uma presença maciça e ativa do povo no retrato do Brasil elaborado pelo romancista. Ficamos conhecendo a situação material e espiritual das pessoas do sertão, seus impulsos e desejos, suasnecessidades, aspirações e preocupações, seus valores e conflitos, em suma, todo o seu modo de pensar, através de suas próprias falas. Se Euclides da Cunha deu um passo decisivo, ao substituir a tradicional imagem pitoresca e folclórica dos sertanejos por uma visão política, Guimarães Rosa avança mais, na medida em que, na sua obra, os sertanejos aparecem como sujeitos, inventores de sua própria história.

Qual é a importância das falas do povo no discurso do narrador? O que dizer de sua qualidade linguística e de sua contribuição para a invenção poética do autor? De modo geral, constata-se que praticamente todas as falas sertanejas são reproduzidas de forma gramaticalmente correta. O autor tomou cuidado para integrar o sermo humilis com naturalidade ao conjunto de sua língua, numa atitude aberta, emancipatória, democrática. A ousadia inventiva ficou por conta do narrador, esse complexo personagem multicultural, que é ao mesmo tempo sertanejo e letrado, simples e superior, filósofo e poeta. Sua inventividade é estimulada pelo contato com as falas populares, que repercutem nas palavras por ele criadas. Portanto, a contribuição das falas do povo para a criação lingüística do narrador é enorme, embora indireta.

Em geral, uma determinada fala ou fisionomia sertaneja desencadeia em Riobaldo alguma expressão original, que ajuda a fixar o retrato do personagem na memória. Exemplos: o menino Valtêi, que “está no blimbilim”; o Firmiano, que faz lembrar “tanta cruez”; o Joé Cazuzo que “almou”; o catrumano com a foice, taxado de “banglafumém” (GSV, p. 290);[36] o “trestriste” menino Guirigó (GSV, p. 299) etc. Esse estímulo da criatividade do narrador pelo sermo bumilis não se observa só em palavras isoladas, mas também em expressões e imagens (“cada um com a cara atrás da sela”; “urucuiano conversa com o peixe para vir no anzol” etc.), na exploração de campos semânticos inteiros (as quase cem denominações para o Diabo), e na incorporação de numerosos casos e exemplos ao seu relato.

Como já foi observado por vários críticos, resgatar a fala popular e a cultura oral não significa, para Guimarães Rosa, reproduzir essas linguagens de forma documentária (cf.. Proença, 1959, p. 219). A fala de Grande sertão: veredas é “uma oralidadeficta, criada a partir de modelos orais mediante a palavra escrita” (Galvão, 1972, p. 72; cf. Ward, 1984). Trata-se de uma fala essencialmente construída, em que a invenção predomina sobre a documentação. Com toda a importância que têm as falas sertanejas para o discurso do narrador, não se deve, contudo, idealizar ou mitificar a criatividade do povo. É preciso ter em mente que na invenção literária de Guimarães Rosa repercutem também as poéticas de Homero e Dante, Rabelais e Dostoiévski, Goethe e Joyce, Euclides da Cunha e Mário de Andrade, entre outros. No discurso do narrador Riobaldo confluem as manifestações culturais mais diversas: a linguagem dos senhores, a fala dos humildes, os padrões universais da tradição literária e da etnográfica etc.

A tese da fala de Riobaldo como “o grande unificador estilístico” (Galvão, 1972, p. 70), no entanto, me parece problemática. Verificamos, neste estudo das falas populares em Grande sertão: veredas que existem importantes diferenças entre a visão do protagonista-narrador e o modo de pensar dos sertanejos comuns. Lembramos as divergências entre o discurso de Riobaldo e o humilde Gú, ou o povo “rebanhal” do Sucruiú, ou os espertos urucuianos. Essas diferenças são fundamentais no retrato do Brasil apresentado por Guimarães Rosa. O narrador é, antes de mais nada, um dono do poder e representante do sistema jagunço, um pactário, capaz de falar com língua de “cobra bibra”. O contraponto ao seu discurso são as falas do povo, que contribuem decisivamente para a percepção crítica do sistema vigente. Para poder encenar essa diferença, o autor criou uma segunda instância narrativa, independente, permitindo articular os conflitos e, inclusive, contestar certas afirmações do protagonista-narrador.

Por outro lado, esse mesmo narrador, uma figura artística altamente elaborada, um jagunço letrado, cumpre funções contraditórias e mesmo diametralmente opostas a seus interesses de classe. Transcendendo seu papel de dono do poder, ele realiza um intenso trabalho de mediação entre as falas dos sertanejos comuns e o universo mental do interlocutor urbano (e, por extensão, dos leitores letrados). Essa dupla função do protagonista-narrador, que faz parte do sistema do poder e ao mesmo tempo é porta-voz dos excluídos, é também uma forma de auto-reflexão de Guimarães Rosa sobre sua posição como artista e intelectual. Trata-se de uma questão bastante complexa, que mereceria um estudo à parte (cf. Bolle, 2001).

A grande invenção de Guimarães Rosa consiste no trabalho de mediação entre as culturas em choque. Transcendendo a realidade empírica dos conflitos entre as classes, ele inventou uma língua que é uma fusão equilibrada de elementos da tradição letrada e de elementos da cultura popular, explorando poeticamente todas as energias de formação da língua. Trata-se de uma mediação empírica, no sentido de um novo instrumento de comunicação, ou de um medium-de-reflexão,[37] num plano artístico e teórico? Certamente, a invenção de uma nova língua, por Guimarães Rosa, aguça a nossa percepção das “formas do falso” (cf.. GSV, p. 275), que marcam tão profundamente a linguagem pública no Brasil.

Um dos possíveis sentidos da liberdade de inventar, que constituiu o leitmotiv deste estudo, pode ser ilustrado por uma passagem aparentemente irrelevante, porém estratégica, de Grande sertão: veredas, em que o povo aparece como sujeito da invenção. Comentando a lembrança de uma velha fazenda, Riobaldo adverte seu interlocutor (GSV, p. 59): “O senhor deve de ficar prevenido: esse povo diverte por demais com a baboseira, dum traque de jumento formam tufão de ventania. Por gosto de rebuliço. Querem-porque-querem inventar maravilhas glorionhas, depois eles mesmos acabam temendo e crendo”.

O enfoque pitorescamente depreciativo, em que aparece aqui o povo, é um estratagema do protagonista-narrador para minimizar a importância do objeto da chamada “invenção”: trata-se da rememoração de um episódio da história dos escravos. Esse ato de memória representa uma tentativa do povo de narrar a sua própria história. Como viu muito claramente Guimarães Rosa: com a abolição da escravatura no Brasil, em 1888, não se emancipou automaticamente esse fenômeno de longa duração que é a língua. As marcas de uma sociedade dividida entre senhores e escravos impregnaram a língua brasileira durante séculos e levam muito tempo para desaparecer. Não teria a proposta poética do escritor de reinventar a língua brasileira também esse sentido político: de substituir a língua com as marcas da sociedade escravocrata pela língua de uma sociedade emancipada?

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[1] Citado daqui em diante “GSV”

[2] Citado daqui em diante “OS”.

[3] Para uma descrição detalhada das estruturas labirínticas do romance, ver Bolle, 2000, pp. 22-34 (“O sertão como forma de pensamento”).

[4] Na parte “A Luta” (OS,183-499 = 316 p.), contei ao todo dezessete falas de sertanejos, assim distribuídas: 1a expedição: nenhuma; 2a expedição: quatro; 3a expedição: nenhuma; 4a expedição: quatro; Nova fase da luta: duas; Últimos dias: sete falas. Com isso, a relação de frequência das falas sertanejas em Os sertões e Grande sertão: veredas é aproximadamente de 1:100.

[5] Foi com essa proposta que encerrei meu ensaio “grandesertão.br” (2000); o presente trabalho entende-se como uma retornada e continuação daquele estudo.

[6] Como aponta Lígia Chiappini, 1988, pp. 327 e 353, certos procedimentos narrativos de Simões Lopes Neto podem ser considerados precursores dos de Guimarães Rosa.

[7] In: Lorenz, 1970, pp. 483-538. Note-se que o “original” das declarações de Guimarães Rosa é o texto alemão. Uma tradução brasileira, por Rosemarâ Costhek Abílio, foi publicada em Eduardo Coutinho (org.), 1983, pp. 62-97. É a esses dois textos que se referem, no presente capítulo, os números de páginas entre parênteses. Tomei a liberdade de fazer interpolações e correções na tradução.

[8] Com essa ideia, Guimarães Rosa retoma a tradição de Platão, Cf. O Banquete, 209.

[9] Substituí “torvelinho” (Strudel), na tradução de Sérgio Paulo Rouanet, por “redemunho”, que é uma palavra-chave de Grande sertão: veredas.

[10] Carta de Guimarães Rosa a Mary L. Daniel, de 3/11/1964, apud Daniel, 1968, p. 26.

[11] “A primeira língua [foi] uma coleção de elementos da poesia” (Herder, 1772).

[12] Grifei o “não”, para recuperar o sentido do original (“dialektische Eigenarten meiner Region, die keine Literatursprache sind”), já que a tradução de Rosemarâ Abílio, ao desconsiderar o “não”, transmite o sentido oposto.

[13] Como mostra Walter Benjamin em seu ensaio “Crítica da violência — crítica do poder” (Zur Kritik der Gewalt, 1921), a violência é a base do poder institucionalizado.

[14] “Blimbilim — Onomatopeia que designa o fim de alguma coisa. No texto, segundo Martinico Ramos, é ‘alusão ao sininho da missa póstuma’”. (Castro, 1970, p. 45).

[15] “Cruez — crueza” (Castro, 1970, p. 58).

[16] “Almar — Verbalização de alma: empregado com o sentido de ver alma” (Castro, 1970, p. 31).

[17] O modo de Guimarães Rosa explorar poeticamente a riqueza popular dos nomes para o Diabo é estudado por Leonardo Arroyo, 1984, pp. 225-51.

[18] Cf. a declaração de Guimarães Rosa de que sua concepção metafísica da lingua é, no fundo, “uma concepção blasfematória, pois ela faz do homem o dono da criação” (apud Lorenz, 1970, p. 516; em: Coutinho (org.), 1983, p. 83).

[19] Cf. Octavio Ianni, 1968.

[20] O caso de Maria Mutema é valorizado por Walnice Galvão (1972, p. 127ss.) como matriz imagética do romance.

[21]  A retomada do tópos dos “patrícios retardatários” é corroborada pelo fato de Guimarães Rosa ter incorporado ao seu romance (GSV, p. 290) vários nomes de “peças de armas de outras idades”  — “lazarinas”, “bacamartes” e “cacete”    que ele grifou em seu
exemplar d’Os sertões (Cf. Bolle, 1998, pp. 14s. e 35s.).

[22] Zé Bebelo apresenta-se aos catrumanos como vindo “do Brasil” (GSV, p. 293). Esse personagem é, como comenta ironicamente o narrador, o porta-voz d’ “esse ô-Brasil!” (GSV, p. 314).

[23] Sobre a tradição do “cego como amuleto”, ver Arroyo, 1984, p. 139 s

[24] “Bibra — Corrutela de víbora” (Castro, 1970, p. 44).

[25] “Rebanhal — Grande rebanho; rebanhada” (Castro, 1970, p. 124).

[26] Cf. Geraldo Vandré, “Disparada”.

[27] Cf. W Bolle, 2000, pp. 34-47 (“O sistema jagunço”).

[28] Cf. acima: “Princípios gerais da invenção poética em Guimarães Rosa”.

[29] Heidegger, 1927, p. 165.

[30] Ver acima, nota 23.

[31] “Tragagem — Ato ou efeito de tragar, devorar” (Castro, 1970, p. 147).

[32] Como mostrou Kathrin Rosenfield (1992), a correspondência entre o “demo” e o “medo” é um importante elemento estruturador do romance.

[33] A ideia de uma historiografia constelacional encontra-se pré-formada em Benjamin, 1984, p. 56s. (“a ideia como configuração”), explicitada em Benjamin, 1989, p. 749 (a especificidade da historiografia materialista está nas “constelações, que os diversos elementos apresentam para a visão teórica”), e realizada em Benjamin, 1982 ( O Trabalho das Passagens).

[34] O conceito de rizoma é sintetizado por Deleuze e Guattari, 1980, pp. 9-37.

[35] Uso o conceito de “hipertexto” no sentido do seu criador, Theodor H. Nelson (1987, 1/14-19); quanto ao seu uso na interpretação do romance de Guimarães Rosa, ver o meu “grandesertão.br”, pp. 32-4.

[36] “Banglafumém — Bangalafumenga (bras., Nordeste), (pop.): João-Ninguém; indivíduo sem valor” (Castro, 1970, p. 42).

[37] O Reflexionsmedium é, como explica Benjamin (1993, pp. 36-48), um conceito da crítica romântica que permite entender o romance como um meio de investigação de processos sociais de comunicação.

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