1992

A lógica da colonizacão

por Eduardo Subirats

Resumo

A colonização da América é um processo cultural complexo e ambíguo. Teve origem no ideal medieval de cruzada e no empreendimento humanista das descobertas científicas e geográficas. A lógica desse processo é histórica e discursiva. Baseia-se nos princípios de sujeição e de liberdade abstrata que constituem uma dialética da colonização realizada em três etapas: a heroica que justifica a conquista militar (ilustrada pelo Tratado sobre las justas causas de la guerra contra los indios de Ginés de Sepúlveda ou pelas Cartas de relación de Hernán Cortez); a humanista ou reformista (de Francisco Vitoria e Bartolomé de Las Casas) que defende a proteção e a tutela do indígena e estabelece a Igreja como mediadora entre o político e o espiritual; e a catequista que surge, já no século XVI, com a descoberta de uma resistência indígena à conversão e se apoia na confissão como instrumento de controle e de introjeção da culpa. Essa lógica não se confunde com o processo real de colonização americana, no qual também intervêm diversas figuras de resistência intelectual, por exemplo as crônicas de Cusí Yupanqui e Guamán de Ayala que buscam preservar a memória indígena, ou então, como na obra do Inca Garcilaso (1539-1616), conjugar a tradição pré-colombiana com os conceitos de harmonia universal de Platão. Uma tradição crítica resistiu ao longo dos séculos à dialética da colonização com seu projeto originalmente teológico, universalizante, hoje transformado na ideia de um progresso técnico-econômico que atinge os limites do apocalíptico.


Descoberta, conquista, colonização, aculturação da América.., complexo e ambíguo processo. Simultaneamente expansão ocidental de um ideal medieval de cruzada, já originariamente anunciada, no século XIII, como projeção e ampliação em direção a Jerusalém da luta hispano-cristã contra o Islã, e empreendimento humanista e moderno de descobertas científicas e geográficas. Em igual medida guerra santa e de espoliação, salvação cristã das almas de milhões de gentios e genocídio sem comparação com qualquer invasão territorial moderna. Princípio de um poder arcaico, definido pela sua crueldade e despotismo, e também ponto de partida da formulação de uma ética cristã da liberdade e do direito internacional de pessoas que antecipou os ideários revolucionários modernos. Ao mesmo tempo sublime epopeia da Espanha heróica e santa, e real início da Espanha miserável e negra. A Descoberta, um empreendimento ambíguo.

Em vão os nomes de encontro ou descoberta, de cristianização e de aculturação tentaram e tentam encobrir a palavra proibida desde o século XIV: conquista. A memória dos vencidos — ontem desfraldada nas guerras da independência americana, hoje nas figuras contemporâneas de resistência e sobrevivência das culturas e populações indígenas e mestiças — ressalta o outro relato, às vezes convergente com o logos do humanismo renascentista, com o espírito e o impulso da cristandade e da cristianização, muitas vezes complementar, concorrente ou antagônico com relação à sua pretensão universalista, à sua avassaladora e uniformizadora vontade de exemplaridade e poder. Seu contraponto, a consciência de culpa europeia, é parte do mesmo dilema. Os nomes terríveis de lendas negras, as paisagens ensanguentadas do primeiro imaginário moderno da crueldade secularizada do inferno, inaugurado por Las Casas e De Bry, configuraram e continuam alimentando a consciência negativa sobre as tradições, nunca completamente superadas, da destruição americana.
No entanto, é possível reconstruir uma ordem interna na representação e nos processos singulares que caracterizaram a dominação europeia sobre a América até os dias de hoje. Uma lógica interna que compreende e explica um processo fundamentalmente descontínuo e polivalente, não tenta obviar nem neutralizar os conflitos do passado e do presente, nem a própria ilegitimidade do conjunto de um processo de dominação que, entretanto, usurpou para si os nomes da verdadeira razão: os do deus verdadeiro ontem, depois os da emancipação verdadeira, os da liberdade e do progresso mais tarde, e também os nomes da razão e da racionalização, da modernidade e da modernização nos dias de hoje.

Temos duas sequências paralelas e interligadas: uma delas é histórica, a segunda é lógica, discursiva. Por um lado, a sequência de acontecimentos históricos, o relato das aventuras que protagonizaram a conquista, com seus signos de romance cavalheiresco, ou suas visões proféticas dos infernos na representação do Novo Mundo. É o relato heróico dos cruzados da Espanha na América, entremeado por conteúdos messiânicos e apocalípticos, e também por uma desordenada ação militar de extermínio. Também é o relato extraordinário e fantástico de riquezas quiméricas e fanático espírito de missão e conversão, o princípio de vassalagem imposto pela redução e as reduções indígenas, da transformação compulsiva, brutal do imaginário americano por meio da guerra, da tortura e da redefinição sacramental das formas de vida. Por outro lado, temos a sequência lógica que define interiormente o processo constitutivo de um poder colonial: um princípio de sujeição a uma ordem externa de vida, sua transformação em culpa e dever moral, finalmente a redenção da escravidão na ordem subjetiva de uma identidade esvaziada de vida e de uma liberdade abstrata, transcendente, ambas artificialmente impostas em nome do messianismo cristão, ambas contrapostas e brutalmente arrancadas da memória histórica e da continuidade temporal das formas comunitárias de vida das civilizações da América.

Sequência histórica do descobrimento, da conquista e da pacificação, da conversão compulsória e da libertação cristã; sequência que também abrange a constituição de uma identidade política independente, o processo ambíguo, colonizador e fracassado da modernidade latino-americana. E sequência discursiva e racional de um processo interno compreendido entre a dissolução das formas americanas de vida até a identificação com um conceito abstrato, fundamentalmente externo, muitas vezes doutrinário e portanto também transcendente de independência e modernização. Este relato de representações também pode ser chamado de dialética da colonização. Ambos, o relato histórico das crônicas e o relato conceitual dos tratados, se justapõem, se reforçam e se explicam mutuamente. De forma alguma um processo pode ser separado do outro: uma história sem conceito e uma lógica da modernização que não seja ao mesmo tempo o processo maravilhoso de destruição e liberdade, de espoliação e construção de uma civilização cujo resultado é a realidade americana de hoje.

Esta dialética da colonização foi formulada, em primeiro lugar, sob uma figura teológica: a do estigma do índio como adamita, depois como gentio e sujeito diabólico, e através das categorias militares de guerra justa contra índios e guerra de salvação, de reduções eclesiasticamente concebidas e estratégias de sacramentalização das travestidas formas de vida’indígenas, momentos nitidamente formulados, classificados e sistematizados nas crônicas e tratados das Índias do século XVI. Mas ao mesmo tempo compreende, antes do processo constitucional dos novos poderes civilizatórios, o processo interno de submissão, de radical transformação interna, de subjetivação e controle institucionais da alma, sacramentalmente definidos pela confissão.
Tais estratégias conceituais de vassalagem e subjetivação já haviam sido definidas, pelo menos parcialmente, ao longo da Reconquista. São as ideias que, desde o século XIII, tinham cristalizado a unidade das guerras entre os reinos hispânicos sob o signo de um credo progressivamente homogêneo, e que em 1492 culminaram com a destruição final das culturas árabe e judia no território ibérico. A expansão militar para o Ocidente, em vez do aspirado Islã e da conquista de Jerusalém, como tinham sonhado tantas ordens medievais, significou, ao mesmo tempo, a projeção para a América do ideal heróico e messiânico das cruzadas medievais. Assim, não é de se estranhar que nos tratados das Índias sejam encontrados diversas vezes os resíduos dessa tradição militante e doutrinária: a visão do índio como descendente de alguma tribo perdida de Israel, a igualação dos seus ritos e seus cultos com o culto das mesquitas de Al-Andalus, a justaposição de Tenochtitlán e Jerusalém…[1]

São três as figuras que podem ser distinguidas conceitual e temporalmente ao longo desse processo que denominei lógica ou dialética da colonização. Em primeiro lugar, a concepção heróica, depois surge a perspectiva humanista ou reformista sobre o processo de colonização e conversão e, por último, põe-se em funcionamento um maquinaria catequista, isto é, doutrinária e sacramental da transformação das condições existenciais do índio. Tais figuras distinguem-se em primeiro lugar como perfis históricos da descoberta da América.[2] Mas eles também se sucedem de acordo com um rigor discursivo. É o discurso da colonização entendido como lógica constituinte da nova identidade americana, ou da substituição violenta de suas formas de vida por um princípio de identidade: o novo índio cristianizado, o novo homem, as novas nações e os sucessivos projetos de renovação e reformulação dos sistemas sociais e culturais, novas ordens modernizadoras, revolucionárias ou reacionárias que percorrem a história americana moderna.
A primeira destas figuras da colonização, a do herói cristão, também é a mais primitiva. Procede daquele duplo caráter de guerreiro e salvador que já distingue a ação da conquista a partir da sua definição programática pela bula Inter Coetera de Alexandre VI em 1493. Seu caráter é medieval: a cruzada contra os gentios. Sua formulação filosófica mais nítida encontra-se no Tratado sobre ias justas causas de la guerra contra los indios, de Juan Ginés de Sepúlveda, cujas teses reiteram-se no decorrer do século através de uma série de tratados e crônicas menores.[3] As ideias deste anti-humanismo espanhol foram fortemente disputadas a partir de meados do século XVI, e de fato continuaram em vigor, sob várias formas, até a cruzada católico-tradicionalista espanhola do século XX.
A polêmica desencadeada por este autor não chegou a uma conclusão unívoca. No entanto, tanto detratores quanto defensores da legitimação teológica da guerra contra os índios teriam de aceitar que, antes da estratégia legitimado-ra, a teologia da guerra de conquista precisamente também explica e responde à realidade terrível da primeira etapa, ou seja, a etapa militar, da colonização americana.
Em essência, a argumentação anti-humanista deste erudito não defende com maior ardor aristotélico o estado seminatural, mentalmente débil e de forma alguma autônomo dos indígenas americanos do que as teses um pouco mais tardias e um pouco mais sofisticadas do humanista Francisco de Vitoria. O problema central debatido por Ginés de Sepúlveda é, ao contrário deste último, a legitimidade e necessidade da guerra de ocupação. O índio é gentio. Sua definição como existência em estado de natureza, isto é, ante legem, é confundida com seu demonismo, como nas crônicas de Bernal Díaz del Castillo, de Gómara ou das Cartas de relación de Hernán Cortez. O americano aparece como escravo e vítima do diabo. Consequentemente, a guerra e a posterior escravidão espanholas do índio estilizam-se como um dever apostólico: o meio imprescindível para a salvação e a libertação do índio do seu miserável estado. Neste sentido, escreve Sepúlveda:

Submetendo-os primeiro ao nosso domínio, especialmente em tempos como estes em que é tamanha a escassez de pregadores da fé e tão raros os milagres, considero que os bárbaros podem ser conquistados com o mesmo direito com que podem ser compelidos a ouvir o Evangelho […].

Desta forma, a cruzada contra o índio torna-se “grande ofício de caridade”.[4]

Premissa da legitimação da conquista como guerra de salvação é a estilização da figura do colonizador (o aventureiro, o guerreiro, o encomendero* e o simples criminoso), elevada à dignidade aristocrática-aristotélica do herói virtuoso. As Cartas de relación, de Hernán Cortez, ilustram esta dimensão teológica e literária da conquista. Nesta obra, o astuto aventureiro enfeita-se com os augustos louros de um imperador romano. Impassível, reto, fiel a um princípio universal ao qual sacrifica seu bem particular, Cortez estiliza-se cesareamente até chegar às dimensões de um herói fundador de uma nova cultura. Em versão popularizada, a de Bernal Díaz del Castillo ou de Gómara, a figura do herói redentor foi forjada literariamente como a mais colorida composição do cavalheiro medieval e do livro cavalheiresco. A linhagem do conquistador é limpa, segundo Gómara, e seu afã corajoso; seu nascimento está presidido por um milagre, e os milagres e os santos intervêm também em sua façanha conquistadora, assim como os deuses gregos costumavam fazer nas odisseias clássicas.

A forma jurídica sob a qual foi articulada essa estratégia heróica da guerra santa contra os índios foi o Requerimiento. Aprovado pela Junta de Burgos em 1512, este requisito jurídico-teológico encerra algo mais que uma simples ameaça de guerra: à medida que se anunciava formalmente a universalidade da urbe cristã, sujeitava-se nominal e nominalisticamente o índio a ela, convertendo a partir desse momento todo desacato à nova ordem mundial em ato de rebeldia e insubmissão. O Requerimiento significava assim o reconhecimento jurídico da liberdade do índio, porém só e precisamente como a condição formal, teológico-jurídica, daquela culpabilidade derivada do conhecimento sumário da “verdadeira religião” que o tornava passível de guerra justa. Se os índios eram macacos — como raciocinou humanisticamente o padre Vitoria — não era possível fazer a guerra contra eles. Consequentemente, antes era preciso declará-los seres livres e racionais, para que seus deuses os tornassem milagrosamente culpados pela guerra contra sua gentilidade.

Neste sentido tornou-se célebre o episódio de Cajamarca, no qual o formalismo do Requerimiento, na verdade uma velada declaração unilateral de guerra, chocou abruptamente contra as próprias concepções do mundo incaico. Seu monarca Atahualpa respondeu à apresentação de Pizarro dizendo que também ele era, assim como Carlos V, “grande senhor em seu reino”. Mas quando lhe foi proposta a adoração da cruz e o abandono do seu próprio culto e forma de vida respondeu, segundo o testemunho do cronista índio Guamán Poma de Ayala: “Atahualpa Inca disse que não tem que adorar a ninguém senão ao sol, que nunca morre, assim como seus guacas e deuses, [que] também tem em sua lei, e naquilo acreditava”. O formalismo do Requerimiento era absurdo em si mesmo, e na prática não passava de um mero ardil para justificar matanças que serviam de lição, como a de Pizarro quando Atahualpa rejeitou o Evangelho, simplesmente porque desconhecia a escrita e a existência de livros, e aquele de qualquer forma não emitia nenhum som que pudesse interpretar como sua palavra. “Este livro não fala comigo!”, dizem que pronunciou o monarca inca.[5]

Em sua configuração mais elementar, o Requerimiento foi o simples enunciado tautológico do poder temporal cristão em virtude da sua pretensão universal, a declaração dos deuses indígenas e com eles de sua forma de vida como uma particularidade negativa, e a consequente exigência da sua vassalagem e conversão compulsórias como princípio de uma nova identidade: a identidade cristã do nome de batismo, e a liberdade como aquela condição interna e abstrata que o batismo significava enquanto princípio de submissão e subjetivação. O Requerimiento era a formulação teológico-política da violência inerente ao universalismo cristão.

Nem o Requerimiento nem o princípio da guerra santa contra os índios podiam definir, porém, um conceito politico de colonização, nem legitimar por si mesmos a ocupação territorial espanhola na América. Para que pudesse manter incólume seu princípio de universalidade, a Igreja romana tinha que adotar uma radical distância em relação aos poderes temporais que a representavam, estabelecer-se como a mediação entre o político-econômico e o reino espiritual dos fins absolutos, assegurando a transcendência como verdadeiro reino universal de Deus.
Esse foi o princípio defendido por Vitoria desde uma perspectiva plenamente moderna, herdeira das concepções humanistas de livre-arbítrio e de direito internacional. O humanista da Salamanca chegou a questionar a legitimidade da ocupação territorial espanhola em seu Relectio de Indis. Suas teses foram radicais neste aspecto. De forma alguma o imperador da Espanha podia ser chamado de monarca de toda a urbe, e a gentilidade do índio não desacreditava sua legítima propriedade territorial. O fato de não serem cristãos ou de estarem em estado de pecado mortal não os tornava menos legítimos senhores das suas próprias vidas. Consequente com esta visão, Francisco de Vitoria desterrou o próprio nome de “descoberta” que, no entanto, fora utilizado por Alexandre vi em sua primeira bula americana; já que os novos territórios tinham dono, ninguém podia outorgar-se o direito de tê-los “achado”.[6]

Isto não questionava apenas o fato da conquista, mas também ao mesmo tempo permitia redefinir e aprofundar seu sentido em termos de tutela, de proteção, de amorosa sedução e, naturalmente, de liberdade. A título de conclusão do seu tratado, escreve Vitoria:

Se isto for admitido, certamente não se negará que a mesma coisa pode ser feita com os índios adultos [os príncipes poderão colocá-los sob tutela], dada a incapacidade mental que lhes atribuem os que lá estiveram.[7]

A presença espanhola na América era legitimada nos novos termos da defesa dos direitos a uma forma cristã de vida, como fundamento ontológico de uma nova ou perfeita identidade subjetiva, e como garantia de paz por parte dos indígenas. Assim como Las Casas, Vitoria desaprovou o batismo violento e compulsório das massas, bem como as formas de extermínio e de abuso que distinguiram as primeiras décadas e o primeiro século da colonização. A cruz deixara de ser o símbolo medieval da cruzada americana; convertera-se no signo moderno da defesa do direito internacional, em princípio de subjetivação racional, em postulado de uma espécie de modernidade.

A partir da crítica de Montesinos, Las Casas e Vitoria, a conquista americana foi reformulada nos termos formais de uma pacificação, sua violência foi interiorizada como princípio de subjetivação, e a teologia da guerra justa contra os índios converteu-se assim na teologia das reduções e da redução: teologia da colonização.

Sua formulação radical deve-se a Las Casas. Muito poucas figuras históricas da conquista americana conseguiram a brilhante polivalência de significados que se cristalizam na biografia deste pioneiro, encomendero, missionário e emancipador da América. Sua obra está centralizada num novo ideal de liberdade. Nos seus tratados encontra-se a primeira formulação de um reconhecimento do indígena americano como sujeito autoconsciente, autônomo, moderno, como princípio abstrato de livre-arbítrio. A partir deste princípio liberal de autonomia e autoconsciência, Las Casas traçou um magno projeto sintetizador: uma reforma da cristianização do índio que supunha ao mesmo tempo a reformulação dos conceitos teológicos e políticos da conquista. Escreveu ele:

Porque, para receber nessa santa fé, se requer naqueles que a aceitarão e receberão uma total liberdade de vontade, porque Deus deixou na mão e arbítrio de cada um o fato de querer ou não recebê-la […] E se não sai da vontade espontânea e livre, e não forçada, dos próprios homens livres aceitar e consentir qualquer prejuízo à sua mencionada liberdade, tudo é força e violência, injusto e perverso e, segundo o direito natural, de nenhum valor e importância, porque é mutação de estado de liberdade para o de servidão […].[8]

A doutrina heróica da conquista despojara o índio de qualquer dimensão interna — o índio é definido como “homúnculo” por Juan Ginés de Sepúlveda[9] — de modo a elevar ante sua existência natural o sentido transcendente, virtuoso e glorioso e, portanto, a jurisdição por direito divino do domínio espanhol. A concepção reformista da conversão do índio como tutela, sedução e direito, desfraldada pelo humanismo radical de Las Casas supõe, ao contrário, seu reconhecimento como sujeito virtual, ou também uma consciência vazia ou uma tabula rasa na qual, de acordo com a teoria epistemológica mais tarde formulada pela filosofia da Ilustração europeia, pudessem ser inscritos quaisquer códigos e normas de vida. A representação teológica que Las Casas faz do índio no tocante ao seu ideal abstrato de liberdade não podia ser mais ingênua nem mais simples:

Todas estas universas e infinitas gentes a toto genero foram criadas por Deus com suma simplicidade, sem maldades nem hipocrisias, obedientíssimas e fidelíssimas aos seus senhores naturais e aos cristãos aos quais servem, mais pacientes, mais pacíficas e quietas, sem rancores nem tumultos, não briguentos, não queixosos, sem ressentimentos, sem ódios, sem desejar vinganças, os melhores que existem no mundo. Também são as pessoas mais delicadas, fracas e ternas […]

escreveu entre os terríveis quadros de crueldade e barbárie cristão-espanholas relatados na Brevíssima relación de la destrucción de ias Indias.[10]

Este limite teórico da reformulação da conversão de índios por Las Casas era o próprio limite teológico do universalismo humanista-cristão: seu princípio de autonomia do sujeito universal, fundado no princípio doutrinário da redenção universal na cruz, tinha como preço um conceito abstrato de subjetividade. O índio só se convertia em um sujeito livre ao abandonar sua existência não livre, isto é, prisioneira das suas formas de vida, das suas tradições e da sua comunidade.

Considerado de um ponto de vista pragmático das necessidades e obstáculos estratégicos e táticos da conversão do índio americano, a crítica reformista de Las Casas colocava também um limite institucional: seu princípio ilustrador e emancipador era ao mesmo tempo demasiadamente formal e utópico, e também demasiadamente radical. Já em meados do século XVI, qualquer otimismo sobre a tarefa de conversão das ordens cristãs se dissipara. Sahagún escrevia em 1569:

Os pecados de idolatria e ritos idolátricos, e superstições idolátricas e agouros, e abusos e cerimônias idolátricas, ainda não se perderam totalmente. Para pregar contra estas coisas, e até mesmo para saber se existem, é preciso saber como as usavam em tempos de idolatria, que por falta de não saber isto na nossa presença fazem muitas coisas idolátricas sem que as entendamos.[11]

Em idêntico sentido escrevia em 1541 frei Toribio de Benavente que os índios “tinham cem deuses, mas queriam ter cento e um; bem sabiam os frades que os índios adoravam segundo seus costumes»[12]. Em 1576-78, frei Diego Durán também se refere às dificuldades da conversão:

Assim, destas e de outras coisas concluo que jamais poderemos fazer com que realmente conheçam a Deus, enquanto não tivermos arrancado pela raiz tudo o que estiver relacionado com a velha religião dos seus antepassados […].[13]

Uma nova consciência, nem heróica nem utópica, mas sim bastante pragmática, surgiu a partir da segunda metade do século XVI sob as exigências administrativas e políticas da colônia. Nesta nova perspectiva o índio não é mais, teologicamente falando, o desconhecido Outro no qual deve ser projetado o imaginário medieval cristão: um sujeito diabólico, o adamita inocente, o judeu condenado por Deus. E também não é aquela consciência inofensiva e ingênua garantida pelos sistemas teológico-políticos de Las Casas ou Vitoria. Pela primeira vez, o americano é reconhecido em sua existência real, em sua feroz resistência contra a identidade e as formas de vida impostas pelo invasor. Pela primeira vez, esses frades e missionários entenderam a necessidade de explorar o imaginário indígena para penetrar em sua estrutura com estratégias mais refinadas e eficazes de domínio interno. Pela primeira vez, formula-se um programa expresso do reconhecimento do indígena em sua realidade histórica, ética, psicológica e social, ou seja, uma antropologia teológica.

Os tratados de propaganda da fé e da doutrina cristã, bem como os manuais para utilização sistemática do confessionário como novo instrumento de violência interna, isto é, subjetivadora, sucederam assim os tratados da guerra justa. Um novo princípio de colonização cristalizara-se ante o reconhecimento do último bastião da resistência contra o invasor. Inaugurava-se a noção antropológica, empírica, racional e moderna de reconhecimento do índio sob o aspecto das formas de sensibilidade ante a natureza e o ser humano, os valores do mundo imaginário considerado coletiva e individualmente, as formas que outorgaram um sentido íntimo ao amor, à família e à vida cotidiana, os mais secretos desejos, os estratos mais profundos da fantasia e a aspiração individual à felicidade. No seu tratado De procuranda, um verdadeiro breviário dos novos sistemas de dominação, escreve Acosta:

Antes seria preciso pensar que é hereditária a doença da impiedade que, contraída no próprio seio da mãe, e criada mamando seu próprio leite, robustecida com o exemplo paterno e familiar, e fortalecida com o costume dilatado e a autoridade das leis públicas, tem tal vigor que só poderá sarar mediante a irrigação muito abundante da divina graça e o trabalho infatigável do doutor evangélico […] Aqui, portanto, convém que o catequista firme o pé, e para arrancar as últimas raízes da idolatria do ânimo dos índios, ponha seu pensamento, sua indústria e seu trabalho.[14]

A concepção catequética da colonização americana começa precisamente com a descoberta de uma resistência indígena à conversão, oriunda das suas formas de vida e da sua estrutura psicológica profunda. Diante dessa resistência, a nova estratégia de conversão desenvolve um amplo sistema que compreende desde a inquisição antropológica do imaginário indígena até a reconstrução jurídico-teológica dos seus cultos e ritos pelos tribunais da Inquisição. Num sentido estrito, a catequese abrangia uma parte doutrinária, com seus “artigos” da Igreja; uma parte normativa, que compreendia os mandamentos e preceitos institucionais; e uma parte sacramental, que estabelecia um laço vinculador, ao mesmo tempo jurídico e moral, de todos e cada um dos aspectos imagináveis, da existência individual à instituição da Igreja. Assim o diz um dos manuais clássicos da catequese, acrescentando a seguir as grandes linhas estratégicas da sua doutrinação:

Para que a presente obra possa ser pregada com maior facilidade, pareceu necessário apresentar-se através de sermões breves e sumários, com uma autoridade do Evangelho no início de cada sermãozinho […] pois é preciso que todos, pequenos e grandes, homens e mulheres, assumam a doutrina cristã […] catorze artigos de fé. E os dez mandamentos de Deus. E os sete sacramentos da Igreja. E as catorze obras de misericórdia corporais e espirituais. E os sete pecados mortais, com as sete virtudes contrárias […].[15]

Os sacramentos — isto é, aquela instância mediadora entre o corpo, a natureza, a doutrina, a instituição e a constituição da consciência cristã — desempenham neste panorama final da colonização americana um papel fundamental. Entre eles, a confissão ocupa logicamente um lugar privilegiado não só como instrumento efetivo de controle e até mesmo de terror psicológico e institucional, mas também e sobretudo como o meio que define de maneira mais efetiva e sistemática um princípio exemplar, interior e racional de subjetivação. “Nestes povos índios”, escreve Acosta com relação às confissões na obra citada,[16] “não há nada depois da fé que tenha que ser inculcado com tanta frequência.”

O significado da confissão sacramental não é apenas relevante do ponto de vista da sua eficácia quantitativa, necessariamente reduzida no início do período colonial espanhol. Sua importância reside mais no modelo universal de subjetivação que institui normativa e institucionalmente. Neste sentido, alguns confessionários clássicos, como o Confesionario para los curas de indios (1585), de Acosta, ou o Confesionario mayor (1569), de frei Alonso de Molina, são particularmente eloquentes. Neles se ressalta, com o maior rigor lógico, a sequência constitutiva da conversão cristã da identidade subjetiva por meio da consciência do pecado, da introjeção da culpa, da produção do temor e da angústia através da figura autoritária do sacerdote, e da restituição de uma realidade individual por meio da redenção institucional dos pecados, isto é, por meio da nova identidade institucional adquirida. A confissão define assim o processo iniciático e portanto institucionalmente preestabelecido, e ao mesmo tempo misterioso e hermético, do novo homem americano.

A leitura destes tratados de confissão parece uma ilustração compendiosa e aumentada da “genealogia da moral” de Nietzsche. A combinação dos mandamentos e da confissão como seu instrumento de interiorização permite estabelecer de maneira sumária e eficaz um controle interno e externo sobre a totalidade dos aspectos da vida, desde as dietas alimentares e a atividade econômica daquele que se confessa, até sua vida amorosa e seus sonhos mais íntimos. Particularmente o Confesionario de Acosta oferece um modelo ao mesmo tempo maravilhoso e terrível, tanto no tocante ao virtuosismo estratégico que define, quanto na instrumentação da culpa, da angústia e da exigência permanente de visualização das representações conscientes e inconscientes, como meio de controle sistemático e racionalizado da nova identidade subjetiva e sua dependência institucional.
Entre as três etapas ou momentos assinalados do processo colonizador existe um nexo específico. A concepção heróica da conquista, sua ulterior revisão ou reforma humanista como princípio de subjetivação ou de identidade abstrata e, por último, sua subsunção a um processo indefinido (que a rigor mesmo hoje não pode ser dado como finalizado) de culpabilidade individual e redenção institucional da identidade pessoal e coletiva constituem um continuum por baixo das aparentes rupturas e conflitos. Existe uma comunidade de objetivos entre o conceito de guerra justa de Ginés de Sepúlveda e o conceito de liberdade de Las Casas, embora este elemento comum só pareça relevante para a nossa visão atual, isto é, a visão negativa com relação ao processo inacabado de colonização americana.
No entanto, isto não significa que esta lógica da colonização deva ser contemplada como um discurso fatalmente necessário, um logos histórico filosófico irremediável e um processo absolutamente imposto. Embora não sejam poucos os signos da fatalidade histórica que hoje envolvem a realidade latino-americana, precisa ou particularmente naqueles territórios antes povoados pelas civilizações mais altas do período pré-colonial, a utopia transcendente da sua destruição e substituição por uma realidade totalmente nova — que pode ser chamada de civilização cristã ou de projeto modernizador — não foi cumprida. A lógica da colonização também não se confunde com o processo real da colonização americana. Esta coincidiu e coincide, ao mesmo tempo, com as diversas figuras de resistência intelectual e social, com os sonhos milenares de emancipação, com profecias revolucionárias e com uma destruição que afetou tanto o substrato biológico das populações americanas quanto a ordem cosmológica e sagrada do seu universo, sem poder substituí-lo efetivamente por outro. 
A reconstrução desta lógica da colonização também é relevante no que diz respeito à teoria crítica da sociedade contemporânea. A ordem colonial requeria o processo de morte, culpa e redenção institucional através de uma identidade intimamente ligada às instâncias políticas e à força de trabalho coloniais, e em primeiro lugar à Igreja romana como mediação interiorizadora deste sistema de dominação. Mas este processo histórico é precisamente aquele que a filosofia da Ilustração alemã e Hegel em particular tinham definido e elogiado como o nascimento da razão na história, o princípio constitutivo do Estado moderno, o reino concreto da cultura e da liberdade. A lógica da colonização define assim o próprio discurso racional da modernidade e do progresso. Mas não só o define como também ressalta seu oposto: o rosto oculto da constituição do Estado e da identidade modernos, seu princípio constitutivo de violência, seu caráter de identidade absoluta e vazia.
Mas em todas as latitudes da América hispanizada o sistema falhava e rangia, tanto no âmbito da dominação externa por meio de tantas e tantas figuras de revoltas e resistências que se sucederam até os dias de hoje, quanto no âmbito interno de uma fantasia e de uma imaginação coletivas que não deixaram de estimular uma das mais ricas culturas poéticas universais em todas as artes, particularmente nas do século atual.
As posições intelectuais do século XVI também não se alinharam totalmente atrás dos marcos desta lógica da colonização. Os testemunhos de uma resistência intelectual e da elaboração de alternativas políticas ao imperialismo político da Igreja de Roma reiteram-se: desde Vives e Erasmo a Sebastian Frank e Paracelso. Por outro lado, na América, as crônicas dos vencidos e da resistência, as chamadas inadequadamente de “crônicas do impossível”,[17] tentaram introduzir furtiva ou abertamente valores e categorias do mundo pré-colombiano no novo universo social e no projeto de civilização imposto pela Espanha. As crônicas de Titu Cusi Yupanqui ou de Guamán Poma de Ayala são exemplos notáveis de tentativas de redefinir a violência colonizadora a partir de uma memória histórica preservada e de uma tradição das próprias formas de vida americanas. São tentativas ou ensaios de uma “conversão convertida” ou de uma gentilidade cristianizada como meios ou estratégias de resistência ou de redefinição da lógica da colonização. Essas obras e documentos configuraram o começo de uma resistência ao mesmo tempo espiritual e política, cuja influência continua em vigor no mundo de hoje. A obra do Inca Garcilaso ocupa um lugar destacado neste panorama, tanto pela sua riqueza literária e sua erudição humanista, quanto pelo alcance histórico do seu projeto elementar de uma civilização americana que conjugava os ideais da tradição política e religiosa pré-colombiana com os conceitos de harmonia universal de Platão e de liberdade do filosófico sefardita Judá Abravanel, bem como da filologia humanista espanhola.
Se hoje podemos contemplar a descoberta da América como o início de um empreendimento civilizador, e admirar suas obras que se sobrepõem ao trabalho infatigável de uma destruição que ainda não cessou, isto se deve a esta tradição crítica, indubitavelmente fragmentada e fragmentária, que resistiu à dialética da colonização, reformulando-a e transformando-a quanto aos seus conteúdos e sentido, ao longo de um processo até hoje ininterrupto. A colonização europeia da América foi um empreendimento ambíguo. O relato que a percorre como uma racionalidade interna passa pela destruição e pela morte, e pela constituição das identidades de sempre renovados poderes. Seu fundamento teológico foi a aspiração apocalíptica do cristianismo à constituição de um poder universal, mediante um processo indefinido de conversão, que no século XVI chegou às portas da sua realização. Sua reformulação moderna é a ideia de um progresso técnico-econômico indefinido que também hoje atinge os limites da sua formulação apocalíptica, como sistema universal e como destruição ecumênica, simultaneamente.
O relato daquelas crônicas americanas, escritas desde a apostasia ou desde a gentilidade, sempre formuladas a partir de um ideário humanista, oferecem-nos o delicado fio de ouro com o qual podemos entretecer ao mesmo tempo uma compreensão mais profunda da história americana e pensar as suas alternativas de amanhã.

Tradução de Cláudia Schilling

(*) As encomiendas eram uma instituição colonial espanhola na América e seu objetivo era a repartição dos índios entre os conquistadores. O índio tinha que trabalhar ou pagar um tributo ao seu dono, denominado encomendero, o qual tinha a obrigação de ensinar-lhe a doutrina cristã, instruí-lo e protegê-lo. (N. T.)

[1] A visão do índio como descendente das tribos de Israel aparece em algumas crônicas cristãs, como a de Bernal Díaz del Castillo (Historia verdadera de la conquista de la Nueva Espana, vol. 1, México, 1977, p. 56). Em alguns autores, como Gregorio García em Origen de los índios del nuevo mundo (1607; México, 1981, p. 88), essa tese desempenha uma função legitimadora da guerra santa: “Digo apenas que, pela sua incredulidade, pouca firmeza na fé, e menos cristandade, Deus está acabando com eles, como realmente estão acabando os índios, que eram inúmeros na ilha Espanhola […] E Deus também permita que se cumpra com eles o que disse aos do seu Povo, ameaçando-os com pestilência, para que eles vão se acabando e consumindo nas outras Províncias com pestes e doenças, que a cada dia o Senhor lhes envia […]”.

[2] Georg Friederici, El caracter del descubrimiento y de la conquista de América, México, 1973, pp. 323 ss.

[3] Manuais de conversão do século XVII, como o Informe contra Idolorum Cultores del Obispado de Yvcatan, de Pedro Sánchez Aguilar, reiteram os argumentos de Sepúlveda sobre a guerra justa contra os gentios. Cf. Pedro Ponce et alii, El alma encantada, México, 1987, p. 51.

[4] Juan Ginés de Sepúlveda, Tratado sobre las justas causas de la guerra contra los índios, México, 1987, pp. 137 e 139.

[5] Felipe Guamán Poma de Ayala, Nueva crónica y buen gobierno, ed. R. Adorno e J. L. Unos-te, vol. 2, Madri, 1987, p. 392.

[6] Francisco de Vitoria, Relectio de Indis, Madri, 1989, pp. 83 ss.

[7] Idem, ibidem, p. 112.

[8] Bartolomé de Las Casas, Tratados, vol. 2, México, 1965, pp. 745-47.

[9] Juan Ginés de Sepúlveda, Tratado sobre las justas causas de la guerra contra los índios, op. cit., pp. 104-5.

[10] Bartolomé de Las Casas, Tratados, op. cit., vol. 2, pp. 17 e 55.

[11] Frei Bernardino de Sahagún, Historia general delas cosas de Nueva Espana, México, 1956,

  1. 17.

[12] Frei Toribio de Benavente, Historia de los indios de la Nueva Espana, Madri, 1985, p. 78.

[13] Frei Diego Durán, Ritos y fiestas de los antiguos mexicanos’ (1576-78), pp. 70-1.

[14] Jose de Acosta, De procuranda, p. 460.

[15] Pedro de Córdoba, Doctrína cristiana para instrucción de índios (1544-48), Salamanca, 1987, p. 283.

[16] José de Acosta, De procuranda, p. 559.

[17] Frank Salomon, Chronicles of the impossible: Notes on three Peruvian indigenous historians, in Rolena Adorno (ed.), From oral to written expression: Native Andean chronicles of the early colonial period, Syracuse, 1982, pp. 9 ss.

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