1994

A luta com o anjo: Baudelaire e Delacroix

por Leyla Perrone-Moisés

Resumo

Como foi o primeiro encontro entre Baudelaire e Delacroix, em 1845?

O encontro, quase indiferente ao pintor, foi decisivo para o poeta visto a influência do pensamento de Delacroix na obra teórica de Baudelaire.

Delacroix gostava de ser visto como um “puro clássico”. Porém, sua obras são agitadas por uma “turbulência” (palavra utilizada por Baudelaire). Revolucionário ao mesmo tempo que institucional (seus quadros eram regularmente adquiridos pelo Estado), Delacroix reivindicava para a própria pintura a capacidade de pensar.

Baudelaire foi o primeiro a apontar o aspecto trágico da pintura de Delacroix para além da simples melancolia romântica. Para Baudelaire, Delacroix era o “pintor-poeta” pelas pelas características de sua pintura.

O conceito de imaginação é um conceito-chave tanto na teoria de Baudelaire quanto na de Delacroix. Para ambos, a imaginação é pessoal e intransferível, e sua valorização se faz em detrimento das lições recebidas da tradição. Essa concepção de imaginação como faculdade individual e autônoma leva Delacroix a empregar uma palavra que teria um grande papel no discurso da modernidade: a palavra invenção.

Em Baudelaire, os efeitos da arte são análogos aos da natureza; mas eles são construídos, e não copiados. Por isso a estética preconizada por ele não é naturalista mas supernaturalista. Delacroix não acredita nem mesmo na possibilidade de uma pintura realista pois “o realismo deveria ser definido como o antípoda da arte”. Baudelaire partilhava com Delacroix o desgosto pelo realismo artístico.

A modernidade estética que ocuparia lugar central na teoria de Baudelaire não preocupava Delacroix. Entretanto, algumas de suas atitudes e palavras contribuíram decisivamente para que o poeta chegasse a suas conhecidas formulações. Em Delacroix, a modernidade de Delacroix não reside, evidentemente, em sua temática, sua descrença no progresso material era completa. Mas, se considerarmos outros aspectos da personalidade e da pintura de Delacroix, veremos que este contribuiu para a modernidade estética conceituada por Baudelaire.

O controle da inspiração pela inteligência construtiva, que era em Delacroix uma herança clássica, o projetava para a frente, em direção da modernidade.

Outros aspectos da arte de Delacroix parecem anunciar a modernidade; a agilidade de Delacroix diante da tela e aspecto inacabado apresentado em muitos de seus trabalhos que nós, espectadores de hoje, apreciamos pela sua “modernidade”.

Além de aproveitar as ideias de Delacroix na conceituação da modernidade, ultrapassando as intenções do pintor, Baudelaire acentua, neste, alguns traços de personalidade que serão considerados como “modernos”.

 


Para Jean Galard

O ENCONTRO

Em 1845, Eugène Delacroix era um homem maduro e um artista reconhecido. Completara 47 anos e sentia-se velho. Os amores findos, sucessivos lutos e uma laringite crônica, que o mantinha permanentemente febril, tinham-lhe ensombrecido o humor. Vivia sozinho, com uma governanta, na casa-ateliê da rue Notre-Dame-de-Lorette, que logo ele trocaria pelo endereço definitivo da place Furstemberg. Não havia, entretanto, abandonado o mundo. Elegantíssimo, comparecia a recepções da alta sociedade, e sonhava com a nomeação para o Instituto.

Desde seu primeiro quadro de sucesso e escândalo, A barca de Dante, tinham se passado 23 anos, ao longo dos quais ele firmara sua reputação com repetidos e controvertidos êxitos. Dedicava-se agora à pintura do teto da biblioteca do palácio de Luxemburgo, depois de ter decorado o palácio Bourbon.

Realizara a façanha de ser, ao mesmo tempo, um pintor revolucionário e institucional. Suas ousadias temáticas e técnicas irritavam os acadêmicos; mas seus quadros eram regularmente adquiridos pelo Estado, e seus serviços eram requisitados para a decoração dos edifícios públicos, graças ao apoio de personalidades influentes como o ministro Thiers. Diziam as más-línguas que esse apoio se devia ao fato de Delacroix ser filho natural de outro ministro ainda mais ilustre, Talleyrand.

Que cara tinha ele? Seu autorretrato de 1842, O homem do colete verde mostra uma cara de poucos amigos, séria e altiva; uma máscara que se confirmaria nas fotos posteriores de Nadar e de Carjat. Os amigos eram escolhidos a dedo: alguns parentes e companheiros de mocidade, George Sand, Chopin, uns poucos pintores. Baudelaire assim o descreve:

Tudo nele era energia, mas energia derivada dos nervos e da vontade; porque fisicamente ele era frágil e delicado. O tigre atento à sua presa tem menos luz nos olhos e menos estremecimentos impacientes em seus músculos do que o nosso grande pintor, quando toda a sua alma estava dirigida para uma ideia ou queria agarrar um sonho […] Mais de uma vez, ao olhá-lo, pensei naqueles antigos soberanos do México, aquele Montezuma cuja mão hábil podia imolar, em um só dia, três mil criaturas humanas sobre o altar piramidal do Sol; ou então em algum daqueles príncipes indianos que, nos esplendores das mais gloriosas festas, trazem no fundo dos olhos uma espécie de avidez insatisfeita e uma nostalgia inexplicável, algo como a lembrança e a saudade de coisas desconhecidas.

Figure 1. O homem do colete verde (1842). Paris, Louvre
Figure 1. O homem do colete verde (1842). Paris, Louvre

A comparação com um príncipe indiano e com um tigre não eram propriamente novas; Théophile Gautier já as havia usado ao retratar Delacroix. Mas outro trecho do retrato é inconfundivelmente Baudelaire:

Havia em Eugène Delacroix muito de selvagem; era a mais preciosa parte de sua alma, a parte voltada inteiramente para a pintura de seus sonhos e o culto de sua arte. Havia nele muito de mundano; essa parte era destinada a velar a primeira e a fazê-la perdoar. Acredito ter sido uma das grandes preocupações de sua vida a de dissimular as cóleras de seu coração e de não parecer um homem de gênio. Seu espírito de dominação, espírito muito legítimo, aliás fatal, havia quase desaparecido inteiramente sob mil gentilezas. Dir-se-ia uma cratera de vulcão artisticamente recoberta de buquês de flores. [OvED][1]

Esta foi a fera que o jovem poeta, então com 24 anos, enfrentou pela primeira vez em 1845 (ou 46, não se sabe ao certo). Ousadia não lhe faltava. Baudelaire começava sua carreira como crítico de arte e, seguindo o exemplo de Diderot, comentara o último Salão com grande desenvoltura. A relação do poeta com a pintura vinha de longe. Seu pai era pintor, e ele mesmo um bom desenhista. Em suas próprias palavras, seu trabalho consistia em “glorificar o culto das imagens, minha grande, minha única, minha primitiva paixão” (Mon coeur mis à nu).

Sua vida pessoal já se encontrava tumultuada. Em resposta à sua rebeldia e dissipação, sua mãe e seu padrasto o haviam colocado sob interdição judicial. O golpe foi tão duramente sentido que o poeta chegou a tentar o suicídio. O herói da novela La Fanfarlo, Samuel Cramer, pode ser visto como um autorretrato do poeta nessa época. “Comediante por temperamento”, Samuel Cramer tinha “a mania de se considerar igual àqueles que admirava.”

O encontro do mestre pintor com o jovem dândi prometia ser um desastre. A extrema formalidade do primeiro poderia chocar-se com o exibicionismo juvenil do segundo. Entretanto, eles tinham mais em comum do que poderia parecer à primeira vista. Ambos eram filhos de pais iluministas que lhes transmitiram os ideais revolucionários do século XVIII; ambos tinham estudado no prestigioso liceu Louis-le-Grand, onde receberam uma sólida formação humanística. Apesar de separados por uma geração, ambos pertenciam à mesma classe social.

O encontro foi quase indiferente ao pintor, e decisivo para o poeta. Nunca se saberá, ao certo, até que ponto foram frequentes e profundas suas relações. Há pouquíssimas referências a Baudelaire no diário de Delacroix e, numa carta que ele escreveu ao poeta anos mais tarde, as fórmulas polidas de tratamento mostram que não havia intimidade entre eles. Em L’oeuvre et la vie d’Eugène Delacroix, texto escrito em 1863, logo após o desaparecimento do pintor e poucos anos antes de sua própria morte, Baudelaire parece ter pretendido passar a imagem de uma amizade e de uma cumplicidade que realmente não existiram. Escreveram-se teses e livros, ora para dizer que foram amigos, ora para afirmar que mal se conheceram.[2] Valéry, sucinto e certeiro, escreveu: “Devemos nos limitar a dizer: Baudelaire conheceu Delacroix” (Situation de Baudelaire).[3] Não importa, afinal, esclarecer o aspecto social ou afetivo dessa relação. Importa o que dela restou: a profunda e pioneira compreensão, por Baudelaire, do gênio de Delacroix, e as marcas deixadas pelo pensamento do pintor na obra teórica do poeta.

Todos os comentaristas sublinham o fato de que entre o Salão de 1845 e o Salão de 1846 ocorre um notável salto qualitativo na crítica de Baudelaire. O impressionismo do texto de 45 desaparece no de 46, suas afirmações começam a estear-se numa fundamentação teórica antes inexistente. Essa fundamentação lhe foi fornecida, segundo ele mesmo reconhecerá depois, pela frequentação de Delacroix, a quem ele chamará de Mestre.

A última vez que o poeta viu o pintor, contentou-se em observá-lo à distância, e fixou essa visão num biografema:

Um dia, um domingo, vi Delacroix no Louvre, em companhia de sua velha empregada, aquela que tão devotadamente o serviu durante trinta anos, e ele, o elegante, o refinado, o erudito, não desdenhava de mostrar e explicar os mistérios da escultura assíria àquela boa mulher, que aliás o ouvia com uma ingênua aplicação. [OvED]

OS PARADOXOS DE DELACROIX

Delacroix nasceu ainda no século XVIII, em 1798, e morreu já na segunda metade do XIX, em 1863. A maior parte de sua produção se situa portanto na primeira metade do século XIX. Nas décadas de 20 e 30 fora considerado, à sua revelia, como o chefe da escola romântica em pintura, o Victor Hugo das artes plásticas. Delacroix não apreciava esta designação, preferia apresentar-se como “um puro clássico”. De fato, na escolha de seus temas e na concepção dos usos da pintura ele sempre se manteve fiel aos princípios tradicionais. Tinha sido discípulo de Guérin, o qual fora aluno de David. Apegado, nesse ponto, aos ensinamentos neoclássicos, Delacroix concebia um quadro como a ilustração de um tema nobre, cena histórica, religiosa ou literária. Na melhor tradição, considerava que a pintura atingia um alto objetivo na ornamentação de interiores de igrejas ou palácios. Contrariamente a seus contemporâneos, pintou poucos retratos, cenas domésticas ou paisagens, preferindo os temas históricos, magnificados pelo tempo, ou exóticos, sublimados pela distância espacial. A intenção de Delacroix era continuar o trabalho dos grandes pintores desde o Renascimento. Na verdade, nele a linha ininterrupta se quebrava. Embora na temática e na composição do quadro ele se mantivesse fiel às lições dos antigos, suas obras são agitadas por uma “turbulência” (a palavra, exata, é de Baudelaire) que indicia a ruptura entre o artista e a instituição, o indivíduo e seu meio, o mundo natural e o sobrenatural.

Assim, não tendo pretendido efetuar nenhuma revolução artística mas apenas se igualar aos mestres que admirava, sempre surpreendeu e mesmo chocou o gosto institucional. Algumas das encomendas oficiais que recebia vinham acompanhadas da recomendação de que a obra não fosse “demasiadamente Delacroix”. Para o olhar de hoje, informado pela grande mutação ocorrida na pintura desde o impressionismo, as grandes machines de Delacroix parecem velhas pela gestualidade patética das personagens, e no entanto já nossas contemporâneas pela gestualidade inquieta do pintor.

Seu gosto literário era predominantemente clássico. A grande maioria dos autores franceses citados em seu diário pertence aos séculos XVII e XVIII. As obras de seus contemporâneos não caíam em seu agrado. Admirava Stendhal como pessoa e se impressionava mais com suas frases de salão do que com seus romances. Considerava Balzac muito vulgar e ignorava solenemente a poesia de seu tempo, inclusive a de Baudelaire. A única referência aos escritos do poeta, em seu diário, concerne à sua tradução de Poe, cujos contos ele leu com restrições. Assim, depois de ter tentado, em vão, implicá-lo na batalha romântica, Victor Hugo concluíra: “Revolucionário em seu ateliê, era conservador nos salões, negava qualquer solidariedade para com as ideias novas, desacreditava a insurreição literária e preferia a tragédia ao drama”.

Quanto a Baudelaire, este explicava o contraste entre a moderação dos escritos de Delacroix e a turbulência de sua pintura como uma espécie de compensação procurada no oposto, um antídoto.

Embora o gosto literário de Delacroix fosse clássico, alguns de seus quadros mais importantes foram inspirados pela leitura de Byron, ou pela releitura romântica que então se fazia de Dante e Shakespeare. Para explicar essas contradições, tornou-se quase que um lugar-comum dos comentaristas de Delacroix a divisão cronológica de sua obra em uma fase juvenil, romântica, e uma fase madura, clássica. Mas essas duas tendências coexistiram nele ao longo de toda a sua vida, a clássica como opção declarada, a romântica como uma sensibilidade reconhecida a contragosto por ele mesmo. Se aceitarmos a definição de Baudelaire, segundo o qual “o romantismo não está nem na escolha dos assuntos nem na verdade exata, mas na maneira de sentir”, Delacroix era de fato romântico, isto é, um individualista, um melancólico, um imaginativo, um apaixonado. Mas nunca um romântico ingênuo e espontâneo. A liberdade com relação aos preceitos da Academia não o identificava, porém, com os românticos puramente intuitivos, entregues apenas aos mistérios da inspiração. Suas posições e sua prática estiveram sempre esteadas na reflexão. Entre o sentimento e a razão, Delacroix ficava com os dois.

Em seu elogio póstumo, Baudelaire caracterizou o homem Delacroix como um produto do século anterior. Tendo sido formado, por seu pai, no ideario iluminista,

Eugène Delacroix conservou sempre as marcas dessa origem revolucionária. Pode-se dizer dele, como de Stendhal, que tinha muito medo de ser enganado. Cético e aristocrático, só conhecia a paixão e o sobrenatural pelo convívio forçado com o sonho […] Os sinais hereditários que o século XVIII havia deixado sobre sua natureza pareciam provir sobretudo daquela classe tão afastada dos utopistas quanto dos furibundos, a classe dos céticos polidos, os vencedores e os sobreviventes, que geralmente tinham mais a ver com Voltaire do que com Jean-Jacques [Rousseau]. [OvED]

Nas opções políticas, Delacroix foi se tornando cada vez mais conservador à medida que envelhecia. Se em 1830 ele se entusiasmara com o tema da Liberdade conduzindo o povo, em 1848 a nova revolução o irritou pelo vandalismo e pelos transtornos trazidos ao seu cotidiano. Da mesma forma, na vida particular, o jovem apaixonado por muitas mulheres transformou-se num senhor assentado, preocupado apenas com seu trabalho e com sua saúde, “um perfeito gentleman sem preconceitos e sem paixões” (Baudelaire).

Esse “perfeito gentleman” partilhava a concepção aristocrática da arte que era a de um Stendhal, republicano convicto mas escritor para os “happy few”, que seria a de Baudelaire e de toda a linhagem dele descendente e na qual se inscreve, entre outros, Fernando Pessoa. O dandismo de estilo inglês, do qual Delacroix foi um dos introdutores na França, foi uma atitude nunca abandonada em sua vida, evoluindo apenas da mera pose juvenil de seguidor da moda até a postura estóica do artista maduro, que afirma sua diferença e seu distanciamento com relação a uma sociedade grosseiramente prática com a qual ele não se identifica.

Apesar de ter realizado tantos quadros religiosos, Delacroix não tinha fé. Consta que recusou a extrema-unção, o que era uma atitude radical em seu tempo. Em suas “Reflexões sobre os pintores”, ele constata o esvaziamento do céu, numa posição mais próxima da nostalgia expressa por Nerval e do niilismo posterior do que da religiosidade romântica e baudelairiana: “Não temos mais agora devoção aos santos nem devoção ao belo. Fizemos fugir todos os deuses”.[4]

A OBRA DE DELACROIX

No dia 22 de junho de 1863, Delacroix escreveu em seu diário a última anotação:

O primeiro mérito de um quadro é o de ser uma festa para os olhos. Isto não quer dizer que não seja necessária a razão. É como os belos versos, toda a razão do mundo não os impede de ser maus, se eles chocam o ouvido. Diz-se: ter bom ouvido, todos os olhos não são próprios para apreciar as delicadezas da pintura. Muitos têm o olho errado ou inerte, veem literalmente os objetos, mas não o sutil.[5]

A pintura de Delacroix sempre surpreendeu os olhos da crítica. Seu primeiro grande quadro foi Dante e Virgílio nos infernos ou A barca de Dante (1822). O tema não era original nem polêmico em seu momento. Outros artistas da época apresentavam, nos salões, quadros inspirados nas cenas da Divina comédia. Mas o quadro provocou escândalo e polêmica. Os corpos nus não têm a nobreza do ideal; mostram uma lividez cadavérica e manchas de decomposição. Não são figuras alegóricas, mas restos humanos lutando por uma sobrevivência que parece ditada mais pelo instinto animal do que pela aspiração à graça divina. O gesto de Dante e a capa de Virgílio imprimem à barca um balanço inquietante. Os representantes do Bem e do Belo parecem tão ameaçados de naufrágio quanto os condenados. A cena toda se passa numa pavorosa escuridão apenas rompida, ao fundo, por vagos clarões de incêndio. O incêndio seria, daí por diante, um dos subtemas obsessivos de Delacroix.

Figure 2. A Barca de Dante (1822). Louvre, Paris.
Figure 2. A Barca de Dante (1822). Louvre, Paris.

Sobre este quadro, diz Baudelaire:

Um quadro de Delacroix, Dante e Virgílio, por exemplo, deixa sempre uma impressão profunda, cuja intensidade cresce com a distância. Sacrificando sempre o pormenor ao conjunto, e temendo enfraquecer a vitalidade de seu pensamento pelo cansaço de uma execução mais lenta e mais caligráfica, ele goza plenamente de uma originalidade inapreensível, que é a intimidade com o assunto. [S46]

O segundo grande quadro do pintor é de 1824, Os massacres de Quio. Como muitos de seus contemporâneos, o jovem Delacroix comoveu-se com a luta dos gregos contra os invasores turcos, que levaria Byron ao engajamento e à morte. A destruição da cidade de Quio e o massacre de seus habitantes, na maioria mulheres e crianças, era um tema atual. Entretanto, mais do que um manifesto pela Grécia, o quadro era para Delacroix o pretexto para praticar um orientalismo patético que Gros explorara, vinte anos antes, em Os pestiferados de Jafa. Já em 1821, ele escrevera a seu amigo Raymond Soulier, que se encontrava em Nápoles, pedindo esboços de “sítios pitorescos” que ele aproveitaria nesse quadro, o qual, pela atualidade do assunto, seria para ele “um meio de [se] distinguir”.

Figure 3. Massacres de Quio (Salão de 1824). Paris, Louvre
Figura 3. Massacres de Quio (Salão de 1824). Paris, Louvre

Para pintar as vestimentas, Delacroix serviu-se da reserva de acessórios do ateliê de monsieur Auguste (Jules-Robert Auguste), que mais parecia um bazar atulhado de panos e objetos exóticos. Toda essa preparação predispunha à produção de um quadro convencional, artificialmente concebido para responder à demanda pública de pitoresco e de engajamento à distância.

Como na Barca de Dante, porém, algo arranca esse quadro do simples virtuosismo acadêmico. O poderoso movimento espiralado do grupo à direita se inspira em certas cenas mitológicas de Rubens. Mas em Delacroix o grupo emaranhado perde o caráter saudável e atlético que tinha em Rubens e assume um caráter cruel e fatídico. O que dá o tom são os olhares das personagens: a expressão implacável do algoz turco e a melancolia resignada das vítimas gregas. Só o cavalo de crina eriçada tem a expressão de pavor e revolta que falta aos humanos, e que a situação toda merece. O patético é criado pelo contraste entre o sofrimento das vítimas e o colorido suntuoso dos tecidos, e sobretudo pelo grande céu, calmo, indiferente, incongruente com a terra arrasada.

A morte de Sardanapalo é de 1827-8. Inspirada numa cena descrita por Byron, a representação do soberano assírio que, ao morrer, carrega consigo seus tesouros, mulheres, cavalos e escravos tinha tudo para ser um imenso quadro pompier, e disso escapa por um fio. Mais do que nos Massacres de Quio (fig. 7), o orientalismo de Delacroix, que ainda não fizera sua viagem ao Marrocos e à Argélia, é falso, construído laboriosa e insistentemente de turbantes e presas de elefante, brincos e cimitarras, arreios e ânforas, dignos de um cenário de ópera. As mulheres nuas, em suas poses retorcidas parecem meros exercícios de anatomia à moda de Rubens. Os escravos negros à esquerda e a mulher caída ao pé do leito não têm nenhuma veracidade, são escultóricos e ornamentais. Esse grande exercício acadêmico não parece, nesses pormenores, ir além daqueles executados para a decoração dos palácios reais pelos pintores franceses do século XVII, Vouet, Le Sueur e Le Brun. Aliás, o escravo assassino no primeiro plano à direita é nitidamente inspirado num escravo pintado por Le Brun num dos quadros da série “História de Alexandre”.

Figure 4. A morte de Sardanapalo (Salão de 1827). Paris, Louvre.
Figure 4. A morte de Sardanapalo (Salão de 1827). Paris, Louvre.

Se o quadro não convence no pormenor, o conjunto se impõe entretanto sem discussão. Seria um péssimo quadro, não fosse o prodigioso movimento em turbilhão submisso à diagonal traçada pelo olhar indiferente de Sardanapalo, não fosse a iluminação da cena, que hoje chamaríamos de cinematográfica, uma iluminação que doura como que do interior os corpos das mulheres, faz explodir o vermelho-coral da colcha inverossimilmente extensa e deixa na penumbra, contrariando a lição clássica, o rosto da personagem principal; não fosse a sensualidade sádica que retorce os corpos das vítimas e faz com que elas caiam em posições amorosas; não fosse o cavalo à esquerda, que novamente parece o único a se horrorizar com o que sucede; não fosse a escuridão esfumaçada do fundo, que mergulha nas profundezas inimagináveis da história antiga, com seus maciços palácios incendiados; não fosse o clima todo de pesadelo orgasmático; não fosse Delacroix, que já encontrou definitivamente o caminho de seus acertos na exacerbação de suas obsessões pessoais.

Apesar de adorar esse quadro, Baudelaire não é particularmente brilhante quando fala dele. Talvez porque o adorasse por razões extrapictóricas. Comentando a Exposição Universal de 1855, ele anota: “Estou zangado porque o Sardanapalo não reapareceu este ano. Teríamos visto aí lindas mulheres, claras, luminosas, rosadas, pelo menos assim me lembro delas”.

Para sua satisfação, o quadro reapareceu em 1862; e Baudelaire escreve: “Muitas vezes meus sonhos se encheram com as formas magníficas que se agitam nesse vasto quadro, ele mesmo maravilhoso como um sonho. O Sardarrapalo revisto é minha juventude reencontrada!”.

Em 1830, Delacroix pintou A Liberdade conduzindo o povo. Alexandre Dumas, que percorreu as ruas de Paris durante a revolução de 1830 em companhia do pintor, conta que este teve muito medo dos revolucionários, e que só se entusiasmou quando viu a bandeira republicana hasteada na catedral de Notre-Dame, e isto porque eram as três cores do Império napoleônico, pelo qual haviam lutado seu pai e seu irmão. Mais do que um manifesto ideológico, este quadro é um manifesto pictórico. É, primeiramente, uma homenagem a Géricault, que ele admirava muito e cujo quadro A jangada da Medusa é aqui explicitamente referido. De Géricault ele mantém a composição clássica, a figura vetorial que comanda o conjunto, o primeiro plano de corpos jacentes e até mesmo um pormenor que é uma citação: o cadáver que conserva um pé calçado, toque patético que Géricault dera a uma das vítimas de seu naufrágio. Se a composição é clássica, muitos outros aspectos do quadro não o são. O grupo não é escultórico, como nos pintores da escola de David ou mesmo em Géricault, mas animado por um movimento perturbador da ordem. A figura alegórica da Liberdade contracena com figuras realistas de populares; o ideal se mistura com o real, num hibridismo pouco canônico. E, sobretudo, o quadro é um exercício cromático a partir das três cores da bandeira, que se disseminam por todo o seu espaço, desde as roupas dos revolucionários até os reflexos nas nuvens, mais avermelhados do lado esquerdo da bandeira, mais azulados de seu lado direito. As cores funcionam aí como os sons numa composição musical, são variações de um tema.

Figure 5. A liberdade conduzindo o povo (1830). Paris, Louvre.
Figure 5. A liberdade conduzindo o povo (1830). Paris, Louvre.

Em 1832, Delacroix fez uma viagem ao Marrocos e à Argélia. Dessa viagem resultou um magnífico caderno de esboços, que transformaria sua pintura e a alimentaria por muitos anos. O orientalismo exterior, pitoresco, seria desde então substituído por um orientalismo assimilado e interiorizado. A luz meridional libertaria seu cromatismo dos entraves de ateliê; mas sobretudo contribuiria para que o pintor passasse a compor uma verdadeira teoria da cor. Mulheres de Argel, de 1834, foi o melhor resultado dessa viagem e da reflexão de Delacroix sobre a cor. Além das considerações técnicas de seu diário, conhecemos algumas de suas colocações a respeito da cor pelo registro que delas fez a amiga George Sand em suas memórias.[6] George Sand reproduz as falas em que Delacroix exprimia uma teoria dos “reflexos”. Segundo ele, os grandes pintores, como Rembrandt, sabiam que as cores não devem ser brutalmente justapostas, mas ligadas entre si pelos reflexos respectivos, porque “tudo é reflexo na natureza e que toda cor é uma troca de reflexos”; lição que, segundo ele, seu rival Ingres não tinha aprendido, confundindo coloração com cor, acreditando que a luz existe para embelezar quando ela existe para animar. É de fato uma lição de iluminação e de sutileza cromática que Delacroix oferece nas Mulheres de Argel.

Figura 6 - As mulheres de Argel (1834). Paris. Louvre.
Figura 6 – As mulheres de Argel (1834). Paris. Louvre.

Baudelaire foi sensível à beleza melancólica dessas mulheres, mas observou também a originalidade no uso da cor:

Esse pequeno poema de interior, cheio de repouso e de silêncio, sobrecarregado de luxuosos tecidos e bugigangas de toilette, exala não sei que alto perfume de lugar escuso, que nos guia rapidamente para os limbos insondados de tristeza. Em geral, ele não pinta mulheres bonitas, do ponto de vista mundano. Quase todas são doentes, e resplandecem de uma certa beleza interior. Ele não exprime a força pela grossura dos músculos, mas pela tensão dos nervos. É não apenas a dor que ele sabe melhor exprimir, mas sobretudo — prodigioso mistério de sua pintura — a dor moral! Essa alta e séria melancolia cintila com um brilho embotado, mesmo em sua cor, larga, simples, abundante em massas harmônicas, como a de todos os grandes coloristas, mas queixosa e profunda como uma melodia de Weber. [S46]

Consta que Delacroix não apreciou esse comentário de Baudelaire, que atribuía a suas mulheres doenças e vícios pertencentes ao universo do poeta mais do que ao seu. Ele preferiu o comentário posterior do crítico Louis Peisse, que tratava especificamente da cor como uma linguagem capaz de veicular ideias e sentimentos (em Le Constitutionnel, 31 de maio de 1853).

O quadro mais célebre de Delacroix talvez seja a Entrada dos cruzados em Constantinopla (fig. 10), de 1852. O pintor já estava então com 54 anos e não tinha mais nada a provar. A obra foi feita sob encomenda, com intenções religiosas e patrióticas. Há um século e meio ela tem sido objeto de inúmeros comentários e citações, dos quais os mais recentes se encontram no filme Passion, de Godard (1980), e num texto de Michel Butor.[7] Por que essa obra continua fascinando, para além das implicações ideológicas de seu assunto? Baudelaire deu uma resposta a essa pergunta:

O quadro dos Cruzados é tão profundamente penetrante, mesmo se fizermos abstração do assunto, por sua harmonia tempestuosa e lúgubre! Que céu e que mar! Tudo aí é tumultuoso e tranquilo, como após um grande acontecimento. A cidade, escalonada atrás dos cruzados que acabam de atravessá-la, se estende com uma prestigiosa verdade. E sempre essas bandeiras cintilantes, ondulantes, fazendo desenrolar e estalar suas pregas luminosas na atmosfera transparente! Sempre a multidão ativa, inquieta, o tumulto das armas, a pompa das vestimentas, a verdade enfática do gesto nas grandes circunstâncias da vida! Esses dois quadros [o outro é A barca de Dante] são de uma beleza essencialmente shakespeariana. Porque ninguém, depois de Shakespeare, consegue como Delacroix fundir numa unidade misteriosa o drama e o devaneio. [EU55]

Figure 7. Entrada dos cruzados em Constantinopla (1840). Paris, Louvre
Figure 7. Entrada dos cruzados em Constantinopla (1840). Paris, Louvre

Baudelaire foi o primeiro a apontar o aspecto trágico da pintura de Delacroix, para além da simples melancolia romântica: “Contemplando a série de seus quadros, diríamos que se assiste à celebração de algum mistério doloroso”. [S46]

Tudo, em sua obra, é desolação, massacres e incêndios; tudo testemunha contra a eterna e incorrigível barbárie humana. As cidades incendiadas e enfumaçadas, as vítimas estranguladas, as mulheres violentadas, as próprias crianças jogadas sob as patas dos cavalos ou sob o punhal de mães delirantes; toda essa obra, repito, parece um hino terrível composto em honra da fatalidade e da dor sem remédio. [OvED]

Antecipando-se à psicanálise, o próprio Delacroix identificara em si a pulsão de morte: “Há em mim algo de negro que é preciso contentar”. Pierre Jean Jouve considera que a obra de Delacroix é sempre o resultado do contraste entre dois universos, um feroz, outro de paz e beleza: “Em várias telas, há um morto sob um céu azul”.[8]

É compreensível a reserva com que a pintura de Delacroix foi recebida em seu tempo. Enquanto outros enchiam os Salões com obras que respondiam às demandas patrióticas, sentimentais ou simplesmente decorativas, ele colocava nas suas uma violência erótica e um sentimento trágico da existência que constituíam um excesso insuportável para o público em geral, mas que eram plenamente compreendidos por alguns de seus pares, pelos poetas mais do que pelos pintores.

O PINTOR-POETA

De todos os elogios feitos a Delacroix por Baudelaire, o maior é chamá-lo de “pintor-poeta”. Já no Salão de 1846 ele dizia que “as obras de Delacroix são poemas” e que Delacroix era poeta na pintura”.

A afinidade com os poetas existia, inicialmente, porque o pintor também escrevia. Delacroix chamava de “anfíbios” os artistas que, como ele, sabiam manejar o pincel e a pena. Se ele nunca foi um escritor, no sentido pleno da palavra, foi um exímio praticante da linguagem verbal. De sua formação humanística, ficou-lhe a familiaridade com os clássicos e o hábito constante da leitura literária. Seu diário é estimável tanto pelas reflexões estéticas aí expressas quanto pelo estilo correto e elegante. Como autor, Delacroix é um hábil expositor de ideias e usuário da retórica em seus registros mais finos, como a persuasão e a ironia. Como teórico, ele se inscreve naquela categoria dos artistas pensadores de sua arte, que se tornou frequente desde o romantismo alemão e teve sua continuação nos maiores da modernidade. Criação, teoria e crítica nele se uniam e se completavam de maneira original, que já não era a obediência cega aos preceitos clássicos mas a decorrência de uma experiência individual.

Delacroix reivindicava, para a própria pintura, a capacidade de pensar. Madame de Staël dizia que a pintura e a música se situam acima do pensamento, pelo caráter “vago” de ambas. Delacroix não concordava, e respondia: “Tendo feito um quadro, não escrevi um pensamento. É o que dizem. Como eles são simplórios. Tiram à pintura todas as suas vantagens” (diário, 10 de outubro de 1822).

Algumas de suas reflexões teóricas foram publicadas em jornais e revistas especializados de seu tempo; muitas outras ficaram consignadas em seu diário. O discurso público de Delacroix era mais convencional do que sua prática pictórica. Baudelaire apontou essa dualidade do pintor, dizendo que este “escrevia” melhor seu pensamento numa tela do que podia “pintá-lo” num texto (OvED).

A pintura de Delacroix é “literária” em vários sentidos, e isso pode ser dito como elogio ou como desapreço. O ponto de partida da maioria de seus quadros é uma obra literária. Herdeiro de uma longa tradição de pintura mitológica e religiosa, Delacroix considerava os textos narrativos como estimulantes naturais da imaginação plástica.

Este interesse pelos mitos, ele o estendeu a obras literárias mais recentes e mesmo contemporâneas. Antes de Baudelaire, Théophile Gautier já sublinhara a afinidade de Delacroix com a poesia de seu tempo:

Embora em suas palavras ele afetasse certa frieza, Delacroix sentia mais intensamente do que ninguém a febre de sua época. Recebera dela o gênio inquieto, tumultuoso, lírico, desordenado, paroxístico. Todos os sopros tempestuosos que atravessavam o ar faziam estremecer e vibrar sua organização nervosa. Ele executava como pintor mas pensava como poeta, e o fundo de seu talento é feito de literatura. [La Presse, 19 de abril de 1847]

Em seus grandes momentos, a pintura de Delacroix não é literária no sentido de anedótica ou meramente ilustrativa. Se o ponto de partida de muitos de seus quadros é literário, seus meios e objetivos são essencialmente plásticos. Mais do que um assunto ou um argumento, Delacroix buscava nos escritores uma inspiração, um impulso desencadeador de imagens sonhadas, e nisso sua relação com o texto era já totalmente diversa da dos neoclássicos davidianos. “Como eu gostaria de ser poeta! tudo seria para mim inspiração!”, dizia ele. Tomando a atividade poética como modelo, Delacroix inverte o famoso preceito de Horácio, “ut pictura poesís”.

Para compreender o que significa “pintor-poeta” na crítica de Baudelaire, é preciso compreender o que significa “poeta” no sentido moderno que ele está ao mesmo tempo praticando e procurando conceituar. Em L’oeuvre et la vie d’Eugene Delacroix, este é inicialmente chamado de pintor-poeta num sentido mais geral: um pintor próximo dos poetas por amizade e por afinidade, um pintor culto, contrariamente à regra de seu tempo. Segundo Baudelaire, “o nível intelectual geral dos artistas baixara singularmente”, e fora de seus ateliês os pintores modernos nada sabiam, enquanto Delacroix “era, ao mesmo tempo que um pintor apegado ao seu ofício, um homem de educação geral”.

Num sentido mais restrito, ele merecerá a designação de “pintor-poeta” pelas próprias características de sua pintura: “Delacroix é o mais sugestivo de todos os pintores, aquele cujas obras, mesmo escolhidas entre as secundárias e as inferiores, fazem pensar mais, e lembram à memória o maior número de sentimentos e de pensamentos poéticos já conhecidos, mas que acreditávamos perdidos para sempre na noite do passado”.

Não é pela temática mas pela maneira de pensar e de sentir que Delacroix é reconhecido como poeta. O conceito de imaginação é um conceito-chave na teoria de Baudelaire, como na de Delacroix. A imaginação, para ambos, não é apenas a faculdade de conceber imagens, mas a capacidade de criar imagens de uma qualidade particular, feita de intensidade, de ardor, de paixão, de sonho, de magia, de melancolia; estas são algumas das palavras mais frequentemente usadas por Baudelaire para caracterizar a qualidade poética da pintura de Delacroix.

Uma comparação de Delacroix com Ingres é particularmente esclarecedora. A rivalidade entre os dois mestres-pintores era motivo geral de discussão e, como já acontecera em outras épocas na história da pintura, tomara a forma de polêmica da cor contra o desenho. Baudelaire desarmou essa falsa polêmica considerando, já no Salão de 1846, que há vários tipos de desenho. O de Ingres, segundo ele, é exato, “fisionômico”, mas não é um “desenho de criação”. E o que seria um “desenho de criação”? É um desenho que “negligencia a natureza para representar uma outra, análoga ao espírito e ao temperamento do autor”. “O desenho de criação”, acrescenta ele, “é o privilégio do gênio. A grande qualidade do desenho dos artistas supremos é a verdade do movimento, e Delacroix nunca viola essa lei natural.” Numa nota, Baudelaire lembra que era isso que Thiers chamava de “imaginação do desenho”. A imaginação, portanto, é concebida como uma faculdade demiúrgica, voltada não para a reprodução mas para a produção de imagens, não para a representação mas para a criação; e essa faculdade estaria indissoluvelmente ligada ao temperamento individual do autor, à sua natureza e à sua vitalidade. O conceito de gênio superara o conceito de talento, a técnica não mais bastaria como pré-requisito à atividade artística e, em certos casos, como na comparação de Ingres com Delacroix, possuir essa técnica em demasia podia ser considerado como um defeito e, inversamente, desdenhá-la em função da intensidade gestual seria uma qualidade.

No comentário à Exposição Universal de 1855, Baudelaire volta ao paralelo e à carga. O ideal de Ingres, diz ele, “é feito metade de saúde, metade de calma, quase que de indiferença, algo análogo ao ideal antigo ao qual ele acrescentou as curiosidades e as minúcias da arte moderna”; esse ideal é caracterizado como um “adultério irritante”. Mas é ainda no próprio desenho de Ingres, naquilo em que ele é reconhecido como um mestre, que Baudelaire vai encontrar suas maiores objeções: a seu ver o desenho de Ingres é sistemático, simétrico, estilizado, enganador (tricherie), correto e sem vida. Assim, conclui ele, “M. Ingres pode ser considerado um homem dotado de altas qualidades, um amador eloquente da beleza, mas desprovido daquele temperamento enérgico que faz a fatalidade do gênio”. Ora, Baudelaire reconhece que Delacroix não é um desenhista tão hábil quanto Ingres. No entanto, ele é um gênio, “imenso e flamejante”, seu desenho é “como a natureza, vivo e agitado”. E isso é a imaginação, desde a teoria do romantismo alemão: não reproduzir as imagens da natureza mas criar imagens, como a natureza as cria. Depois de tantos séculos em que se concebeu a arte como representação, a grande mutação romântica consistiu em concebê-la como expressão. “O modelo” já dizia Diderot, “está na alma, no espírito, na imaginação mais ou menos viva, no coração mais ou menos quente do autor.”

O diário de Delacroix está semeado de considerações sobre a imaginação na pintura. “A imaginação me domina e me conduz” (8 de outubro de 1822); ela é “a única fonte do gênio” (27 de abril de 1824); “(…) a novidade está no espírito que cria, e não na natureza. A natureza colocou em depósito, nas grandes imaginações futuras, mais novidades a dizer sobre suas criações do que coisas criadas” (14 de maio de 1924); o pintor deve “tirar de sua imaginação os meios de reproduzir a natureza e seus efeitos, e reproduzi-los segundo seu próprio temperamento” (22 de novembro de 1855).

Em seu projeto de dicionário, Delacroix define a palavra imaginação como “a primeira qualidade do artista”, e a concebe não como um devaneio espontâneo mas como uma capacidade construtiva, a aptidão para combinar e compor imagens: “A imaginação, no artista, não se limita a representar-se tais ou tais objetos, ela os combina para o fim que ele deseja obter; ela faz quadros, imagens que ele compõe segundo seu desejo. Onde está, pois, a experiência adquirida que pode dar essa faculdade de composição?”.

Para Baudelaire, a imaginação é “a rainha das faculdades” (S59). À semelhança de Delacroix, ele a concebe como criadora de formas e, nesse sentido, identificada ao pensamento do artista. Para ambos, a imaginação é pessoal e intransferível, e sua valorização se faz em detrimento das lições recebidas da tradição. Essa concepção de imaginação como faculdade individual e autônoma leva Delacroix a empregar uma palavra que teria um grande papel no discurso da modernidade: a palavra invenção. Falando de Dante e de Shakespeare, ele diz que estes não devem nada a ninguém: “Quem pode lamentar que, em vez de imitar, eles tenham inventado?” (“Des variations du beau”, 1857). Coerente com essa convicção de que a qualidade essencial do artista é intransmissível, Delacroix não abriu seu ateliê a nenhum discípulo.

A valorização da imaginação implica, necessariamente, a desvalorização da representação de tipo realista. As mesmas objeções e a mesma recusa com relação ao realismo se encontram nos textos do pintor e nos dos poetas de seu tempo. Delacroix dizia que “as mais belas obras de arte são as que exprimem a pura fantasia do artista”, e que o artista é aquele que sabe “ver ali onde os outros não veem”.

Para Baudelaire, os efeitos da arte são análogos aos da natureza; mas eles são construídos, e não copiados. Por isso a estética preconizada por ele não é naturalista mas supernaturalista (surnaturaliste, termo que ele já aplica à pintura de Delacroix no Salão de 1846). São ideias dessa natureza que Balzac, inspirado em suas conversas com Delacroix, coloca em Le chef-d’oeuvre inconnu.[9]

Entre a ditadura neoclássica que ainda pesava sobre a pintura em sua juventude, e a nova escola realista que despontou quando ele já chegava ao fim de sua existência, Delacroix viu-se obrigado a contestar sempre as convenções representativas. Em seu diário, há numerosas considerações sobre o realismo artístico. Na representação dos objetos concretos, Delacroix distingue dois tipos de apreensão, que se dão simultaneamente no observador:

Esse tipo de emoção, própria da pintura, é por assim dizer tangível; a poesia e a música não a podem dar. Fruimos da representação real desses objetos, como se os víssemos de verdade e, ao mesmo tempo, o sentido que essas imagens têm para o espírito nos aquece e nos transporta. Essas figuras, esses objetos que parecem a própria coisa a uma certa parte de vosso ser inteligente, funcionam como uma ponte sólida sobre a qual a imaginação se apoia para penetrar até a sensação misteriosa e profunda cujas formas são uma espécie de hieróglifo, mas um hieróglifo muito mais falante do que uma simples representação, que seria apenas como um caráter tipográfico. [diário, 20 de outubro de 1853]

Na verdade, Delacroix não acredita nem mesmo na possibilidade de uma pintura realista: “O mais obstinado dos realistas é forçado a empregar, para representar a natureza, certas convenções de concepção ou de execução” (diário, 1° de setembro de 1859).

O próprio olho humano seleciona e organiza as impressões recebidas, sem o que o espetáculo seria incompreensível. Nesse sentido, o olho pensa, o olho imagina, o olho sente:

Diante da própria natureza, é nossa imaginação que faz o quadro: não vemos os talos da grama numa paisagem, nem os acidentes da pele num belo rosto. Nosso olho, na feliz impotência de perceber esses pormenores infinitos, só faz provir a nosso espírito aquilo que este deve perceber; nosso espírito, por sua vez, efetua à nossa revelia um trabalho particular; ele não retém tudo o que o olho lhe apresenta; liga as impressões que experimenta com outras anteriores e seu gozo depende de sua disposição presente. [idem]

Essas considerações, que chamaríamos hoje de pré-proustianas, o levam à afirmação definitiva:

O realismo deveria ser definido como o antípoda da arte. Ele é talvez mais odioso na pintura e na escultura do que na história e no romance; não falo da poesia: pois pelo simples fato de que o instrumento do poeta é uma pura convenção, uma linguagem medida que coloca o leitor acima do terra-a-terra da vida cotidiana, uma poesia realista seria uma curiosa contradição de termos, se tal monstro pudesse ser concebido. O que seria, em escultura por exemplo, uma arte realista? Os mais simples moldes feitos sobre a natureza seriam sempre superiores à imitação mais perfeita que a mão do homem pode produzir. Como se pode conceber que o espírito não guie a mão do artista, e acreditar que ao mesmo tempo, apesar de toda a sua aplicação em imitar, ele não tingirá esse trabalho singular com a cor desse espírito? A menos que se suponha que o olho e a mão por eles mesmos possam produzir, não direi apenas uma imitação exata, mas qualquer obra que seja! Para que realismo não seja uma palavra vazia de sentido, seria preciso que todos os homens tivessem o mesmo espírito, o mesmo modo de conceber as coisas […] A arte, a poesia, vivem de ficções. [diário, 22 de fevereiro de 1860]

É exatamente por não acreditar em representações realistas que Delacroix se interessou pela fotografia. Ele não via nesta uma rival da pintura, mas um modo de fixar o real; isto é, justamente o que a pintura, segundo ele, não era. Delacroix fez-se fotografar várias vezes e lamentou que a fotografia tivesse sido inventada tão tarde e ele não tivesse podido usá-la como substituta dos modelos. Baudelaire, em suas investidas contra a fotografia, afinal pensava a seu respeito o mesmo que Delacroix. O que irrita o poeta é a convicção do público burguês de que a fotografia substituiria o quadro, já que tal público acreditava na arte como representação fiel do real, não buscava o Belo mas o “Verdadeiro” (S59).

Baudelaire partilhava com Delacroix o desgosto pelo realismo artístico: “Apesar de sua admiração pelos fenômenos ardentes da vida, nunca Eugène Delacroix será confundido com essa turba de artistas e literatos vulgares cuja inteligência míope se abriga sob uma palavra vaga e obscura: realismo” (OvED).

As manifestações antirrealistas do pintor e do poeta intensificaram-se a partir de 1855, em resistência contra a campanha realista de Champfleury e Courbet. O primeiro lançara um manifesto pela reprodução exata da realidade e contrário à imaginação em arte, posição sustentada desde 1856 pela revista Réalisme. Baudelaire era amigo de ambos, principalmente de Courbet, que o retratou mais de uma vez; entretanto, discordava da teoria realista.

A concepção da natureza como um depósito de imagens que o artista deve ligar e organizar, pelos sentidos e pela imaginação, é um dos legados da teoria romântica. Um dos ensinamentos de Delacroix que mais marcaram Baudelaire está consignado no Salão de 1859 e mais tarde reproduzido no elogio póstumo do pintor:

A natureza é apenas um dicionário, repetia ele frequentemente. Para bem compreender a extensão do sentido implicado nessa frase, é preciso pensar nos usos ordinários e numerosos do dicionário. Procura-se neste o sentido das palavras, a geração das palavras, a etimologia das palavras, enfim, extraem-se dele todos os elementos que compõem uma frase ou uma narrativa; mas ninguém jamais considerou o dicionário como uma composição, no sentido poético do termo. Os pintores que obedecem à imaginação procuram em seu dicionário os elementos que se acomodam à sua concepção; ajustando-os com uma certa arte, dão-lhes uma fisionomia inteiramente nova. Os que não têm imaginação copiam o dicionário.

Em sua teoria pessoal, Baudelaire dará a essa ideia um sentido místico privilegiado por muitos artistas românticos, mas inexistente na postulação de Delacroix. Neste, há apenas a ideia de que a natureza é um repertório de signos (o dicionário) que só adquirem sentido na composição efetuada pelo artista (a frase); esse sentido é “espiritual”, compreendendo ele o “espírito” como a aliança do intelecto com o sentimento, no artista que cria e no espectador que recria. Em Baudelaire, essa ideia vai tomar a forma mística da teoria das correspondências: a natureza é “uma floresta de símbolos” e a analogia universal, captada pelos poetas, decorre da “profunda e tenebrosa unidade” constituída por Deus. Baudelaire dará então à imaginação uma função sobrenatural que não está presente nas considerações de Delacroix. Para este, a imaginação estabelece ligações entre as sensações, os sentimentos e as ideias, produzindo o objeto artístico. Para Baudelaire, a imaginação passará a ser a capacidade de captar a grande analogia universal que é a verdade profunda da natureza e remete à unidade divina. Numa carta a Toussenel, em 1856, diz ele: “A imaginação é a mais científica das faculdades, porque só ela compreende a ontologia universal, ou aquilo que uma religião mística chama de correspondência”.

As reflexões de Delacroix se colocam e se desenvolvem sempre como teoria estética, base de uma prática concreta, e não extrapolam para o terreno metafísico, e muito menos para o místico. As de Baudelaire, como sua obra inteira, são impregnadas de religiosidade. George Sand conta que, numa conversa sobre cores, tons, reflexos, efeitos, Chopin teria dito a Delacroix: “Isto é alquimia!”. Ao que Delacroix respondeu: “Não, é química pura”.

DELACROIX E A MODERNIDADE

Nada preocupava menos Delacroix do que a questão da modernidade estética, que ocuparia lugar central na teoria de Baudelaire a partir de 1863. Entretanto, algumas de suas atitudes e palavras contribuíram decisivamente para que o poeta chegasse a suas conhecidas formulações.

A modernidade de Delacroix não reside, evidentemente, em sua temática. Ele não é, de modo algum, “o pintor da vida moderna”. Contrariamente a Baudelaire, considerava as roupas de seu tempo extremamente feias e não achava qualquer grandeza na vida cotidiana da metrópole. Nos últimos anos de sua vida, via Paris e as grandes transformações por que passava a cidade com um espanto que chegava a ser medo:

Este mundo novo, bom ou mau, que busca sair de nossas ruínas, é como um vulcão sob nossos pés e só permite respirar àqueles que, como eu, começam a verem-se como estrangeiros àquilo que acontece e para quem a esperança se limita a um bom emprego do dia presente. Eu só saí uma vez nas ruas de Paris: fiquei apavorado com todas aquelas caras de intrigantes e de prostitutas. [carta ao primo Lamey, 3 de setembro de 1857]

Sua descrença no progresso material era completa. Tendo visitado a Exposição Agrícola de 1856, previu para o mundo dos transportes rápidos uma padronização que aplastaria todas as diferenças, e para a humanidade um futuro de tédio e de submissão ao dinheiro:

Vejam esses ociosos condenados a arrastar o fardo de seus dias, sem saber o que fazer com o tempo que as máquinas tornam ainda mais breve. Viajar era, outrora, uma distração para eles […] Atualmente eles são transportados com uma rapidez que não permite ver nada; contam as etapas pelas estações de estrada de ferro, todas parecidas umas com as outras […] As roupas, os costumes variados que eles iam buscar no fim do mundo, em breve serão semelhantes em toda parte […] Ver não é mais nada: é preciso chegar para partir de novo. Iremos da Bolsa de Paris à de São Petersburgo: os negócios ocuparão a todos, quando não houver mais colheitas a efetuar com os braços, campos a velar e a melhorar com cuidados inteligentes. Essa sede de adquirir riquezas que darão tão poucas satisfações terá feito deste mundo um mundo de corretores de bolsa. [diário, 6 de junho de 1856]

Os artistas românticos viam com maus olhos os progressos da ciência e da técnica. Como observaria mais tarde Valéry: “ao ídolo do Progresso respondeu o ídolo da maldição do Progresso; o que produziu dois lugares-comuns” (Propos sur le progrès, 1929). Baudelaire, que como dândi e esteta partilhava essa visão apocalíptica de Delacroix, diferentemente deste conseguiu ver beleza na vida moderna e grandeza heroica no artista sem auréola. Mas Baudelaire não conseguiu encontrar, entre os pintores de seu tempo, aquele que fosse “o Balzac da pintura”. Teve de contentar-se com a obra talentosa mas menor de Constantin Guys para ilustrar sua teoria no que se refere à representação da vida moderna, ausente da obra daquele que para ele era o maior pintor de seu tempo. Entretanto, se considerarmos não a temática mas outros aspectos da personalidade e da pintura de Delacroix, veremos que este contribuiu para a modernidade estética conceituada por Baudelaire.

Em Le peintre de la vie moderne (1863), Baudelaire propõe o estabelecimento de “uma teoria racional e histórica do belo, em oposição à teoria do belo único e absoluto”. Sua definição do belo estava destinada a uma grande celebridade: “O belo é feito de um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil de determinar, e de um elemento relativo, circunstancial, que será, por assim dizer […] a época, a moda, a moral, a paixão”.

A modernidade seria exatamente “o transitório, o fugitivo, o contingente, do qual a outra metade é o eterno e o imutável”. O que Baudelaire chamava aí “modernidade” não era um determinado momento histórico, mas apenas o momento contemporâneo de qualquer pintor, fosse ele renascentista ou oitocentista. Mas como, no mesmo estudo, ele aponta aspectos essenciais de seu próprio momento histórico, a palavra modernidade aí acaba por ganhar um significado específico. O reconhecimento, e mesmo a exaltação dessa metade transitória do belo por Baudelaire abria o caminho para todas as negações do “belo eterno” e mesmo de qualquer beleza que caracterizariam a arte do século XX.

Ora, essa historicização do belo lhe fora inicialmente inspirada pelas considerações de Delacroix em Questions sur le beau e Les variations du beau, onde o pintor falava daquele “belo imutável que muda a cada vinte ou trinta anos”. Tal variação era vista por Delacroix com ironia, e atribuída à recepção da arte (a crítica e o público), não à sua natureza essencial. O objetivo de Delacroix era “a história do belo verdadeiro” que, segundo ele, mesmo variando historicamente, seria sempre o mesmo. Das duas metades do belo, Delacroix ficava pois com a “eterna”, enquanto Baudelaire se sentia fatalmente atraído pela metade “efêmera”.

Em outros pontos teóricos, Delacroix defendia atitudes que o distinguiam tanto do classicismo quanto do primeiro romantismo, projetando-o naquela modernidade estética definida por Baudelaire. O sentimentalismo, o “abuso de pitoresco”, o “estilo chorão” dos românticos eram por ele rejeitados. Ele não acreditava na pura inspiração milagrosa: “O belo é fruto de uma inspiração perseverante, a qual nada mais é do que uma série de trabalhos obstinados” [Ea].

Em seus escritos Delacroix se refere muito mais ao pensamento do artista do que ao seu sentimento. Pensamento, para ele, era sinônimo de composição, e a composição visava ao controle dos efeitos, nas artes plásticas como na literatura. “Qual é a arte na qual a execução não siga tão intimamente a invenção? Na pintura, na poesia, a forma se confunde com a concepção”, escreve Delacroix (diário, 23 de janeiro de 1857). Ou: “Um bom quadro, fiel e igual ao sonho que o gerou, deve ser produzido como um mundo” (frase citada por Baudelaire, S59). E ainda: “É preciso muita inteligência na imaginação” (diário, 12 de outubro de 1853). O pensamento está na concepção da obra e em sua fatura; a cor e a própria pincelada são meios de fixá-lo. Esse controle da inspiração pela inteligência construtiva, que era em Delacroix uma herança clássica, o projetava para a frente, em direção da modernidade.

Outros aspectos da arte de Delacroix parecem anunciar a modernidade. A fidelidade ao pensamento gerador exige, frequentemente, uma grande rapidez de execução, para que a ideia não se perca. Vários contemporâneos comentam a agilidade de Delacroix diante da tela, e muitos de seus trabalhos apresentam um aspecto inacabado que a crítica acadêmica de seu tempo condenava e nós, espectadores de hoje, apreciamos pela sua “modernidade”, atribuindo talvez abusivamente a simples esboços e estudos uma intenção de inacabamento que corresponde a nosso gosto atual. Entretanto, é inegável que Delacroix manifestava ele mesmo um certo apreço pelo inacabado. Entre seus preceitos mais conhecidos está o seguinte: “Há duas coisas que a experiência deve ensinar: a primeira, é que é preciso corrigir muito; a segunda, é que não se deve corrigir demais” (diário, 8 de março de 1860).

Quanto às outras “inovações” introduzidas por Delacroix na pintura, devemos ser ainda mais prudentes. A tendência a escrever a história das artes de forma progressista e teleológica leva a ver como “anúncios” fenômenos que podem ser, pelo contrário, retomadas de experiências do passado. Assim, podemos nos perguntar se o cromatismo de Delacroix anuncia o impressionismo ou remete à experiência e à “teoria do reflexo” dos pintores venezianos, aprendida sobretudo com Veronese, que ele apreciava no Louvre. Da mesma forma, sua pincelada rápida e sintética tanto pode nos remeter para a pintura posterior a ele quanto para trás, para Velásquez e Frans Hals, ou Goya e os pintores ingleses que ele tanto admirava. Se Baudelaire, como o primeiro dos modernos, queria ir “ao fundo do desconhecido para encontrar o novo”, Delacroix não acreditava tanto nas novidades. Dizia: “O que faz os homens de gênio, ou melhor, o que eles fazem, não são as ideias novas, mas a convicção de que aquilo que foi dito ainda não o foi suficientemente” (diário, 15 de maio de 1824).

Além de aproveitar as ideias de Delacroix, na conceituação da modernidade, ultrapassando as intenções do pintor, Baudelaire acentua, neste, alguns traços de personalidade que serão considerados como “modernos”. Desde o famoso ensaio de Walter Benjamin,[10] deu-se a devida atenção ao tema do heroísmo do artista moderno nos textos de Baudelaire. O dandismo de Delacroix pode ser encarado, à luz dessa leitura, como “o último brilho heroico em tempos de decadência”. Mas seu heroísmo maior se manifestou na dedicação ao trabalho. Em seu texto sobre Constantin Guys, Baudelaire apresenta o artista como um lutador solitário, isolado de seus concidadãos por sua atividade inútil e por seus horários extravagantes. Ora, a mesma imagem do artista que atravessa a noite à luz da vela, do “esgrimista” empunhando a pena ou o pincel em lugar de espada, foi aplicada por Baudelaire a Delacroix. A casa do artista é comparada a uma toca de animal feroz, onde ele se entregava a “verdadeiras orgias de trabalho”. [OvED]

Em Le degré zéro de récriture[11] Roland Barthes observaria que, por volta de 1850, a dúvida que começa a pairar sobre a função espiritual e social da literatura fará com que se substitua ao valor de uso da mesma um valor-trabalho, que é finalmente um valor burguês. A ênfase colocada por Baudelaire sobre o trabalho do artista moderno tem esse fundamento paradoxal, apontado por Benjamin. Mas o que torna o trabalho do artista diverso do trabalho burguês e do trabalho proletário é seu caráter desinteressado, por um lado, e livre, por outro; o que torna o artista, no fim do século XIX, virtualmente suicida.

A vida de Delacroix, pelo menos no relato feito pelo poeta, foi a de um lutador. As encomendas oficiais permitiam ao pintor viver sem grandes dificuldades econômicas, mas apenas isso. Baudelaire insiste na incompreensão e na hostilidade sofridas por ele durante toda a sua existência, e nas lutas que teve de travar para impor sua arte: “Jamais um artista foi mais atacado, mais ridicularizado, mais entravado” (EU55). Todos os quadros de Delacroix foram, segundo o poeta, “insurreições, lutas e triunfos”.

Quatro anos depois, uma carta do pintor ao poeta confirmaria essa hostilidade da crítica que o acompanharia até o fim. A luta contra os críticos seria porém, segundo Baudelaire, a mais fácil enfrentada pelo pintor:

Para um homem como este, dotado de tal coragem e de tal paixão, as lutas mais interessantes são as que ele tem de travar consigo mesmo, os horizontes não precisam ser vastos para que as batalhas sejam importantes, as revoluções e os eventos mais curiosos ocorrem sob o céu do crânio, no laboratório estreito e misterioso do cérebro. [S46]

A última grande obra de Delacroix é a decoração da capela dos Anjos, na igreja de Saint-Sulpice, realizada de 1856 a 1861. Dos três painéis que compõem essa decoração, o mais importante, em todos os sentidos, é a Luta de Jacó com o Anjo. Muitos foram os exegetas que discorreram acerca dessa obra, atribuindo-lhe sentidos variados: Maurice Barrès, Henri Focillon, Pierre Jean Jouve, René Huyghe… No consenso geral, ela constitui o testamento artístico de Delacroix.

Doente e cansado, o pintor investiu uma espantosa energia na execução desse trabalho. Na solidão gelada da igreja, o tema do painel devia evocar, para ele, as lutas todas de sua existência. No dia 1º de janeiro de 1861, ele escrevia em seu diário:

A pintura me atribula e atormenta de mil maneiras, como a mais exigente das amantes, há quatro meses que saio de manhãzinha e corro para esse trabalho encantador, como para junto da amante mais querida, o que de longe me parecia fácil de superar apresenta-me horríveis e incessantes dificuldades. Como explicar que esse eterno combate em vez de me abater me levanta, em vez de me desanimar me consola e preenche todos os meus momentos depois de eu o deixar?

Muitas são as leituras que a obra permite: o enfrentamento do homem com o sobrenatural, a vitória do espírito sobre a matéria, da fé sobre a descrença, a dolorosa marca recebida de Deus pelo homem de destino excepcional. Pensando-se mais especificamente na vida e na obra de Delacroix, o combate do homem com o anjo pode ser visto como a luta do artista com o ideal; ou a batalha das paixões românticas contra a impassibilidade clássica, ou a do lado contingente da Beleza com seu aspecto eterno e imutável.

O texto da Bíblia nos diz que a vitória foi do Anjo. Mas no painel de Delacroix a luta prossegue sempre, sem que tenhamos de escolher o vencedor, seduzidos que somos tanto pela beleza calma, anacrônica e um tanto adocicada do Anjo, como pelo ímpeto que anima o corpo musculoso e obstinado de Jacó. A luta (ou a dança?) prosseguirá indefinidamente, assim como será perpétuo o movimento circular indicado pela caravana de Jacó, que sobe à direita do quadro, e a torrente que desce pelo lado esquerdo, contornando a árvore imensa e soberana, que tanto pode ser lida como um símbolo, na tradição cristã, como ser recebida como mero signo de algo extremamente poderoso e profundamente enigmático, na leitura moderna e materialista que o ceticismo do pintor autoriza. E talvez esse carvalho grandioso fosse apenas uma resposta de Delacroix à pintura paisagística de Courbet e da nova escola de Barbizon: “Eu também sou pintor”. E é como pintor que Delacroix vence a batalha final, provando com essa obra derradeira, como se isso ainda fosse necessário, sua imaginação visionária e sua maestria técnica.

Entretanto, no momento em que a concluiu, ela já era uma obra antiga. Manet já estava pintando Le déjeuner sur l’herbe e Degas, La famine Bellini. A obra toda de Delacroix envelheceu muito rapidamente, no que se refere à sua temática. Vinte anos após a sua morte, os pintores estariam já tão longe dele como se séculos os separassem. Seriam majoritariamente pintores da vida moderna, e não mais da vida ideal.

Embora ele não quisesse esse lugar, Delacroix foi, sem dúvida, o grande pintor do romantismo francês. Como na literatura, esse romantismo é ainda comprometido formalmente com o classicismo. A própria obra de Baudelaire tira seus efeitos do contraste entre a versificação clássica e o imaginário moderno. O passado da pintura pesa entretanto mais na obra de Delacroix do que o passado da poesia na de Baudelaire. René Huyghe sintetiza bem a diferença entre o romantismo de ambos:

O que, para Delacroix, é uma concessão frequentemente nostálgica, para Baudelaire, homem da geração seguinte, é uma vocação que o entusiasma e da qual nascerá seu dogma da modernidade. Assim se precisa, entre eles, a comunidade de duas gerações próximas, marcando entretanto as etapas diversas da mesma evolução. Eles são como as duas vertentes de um teto com declives opostos, mas unidos por uma mesma cumeeira.[12]

A pintura de Delacroix é, finalmente, como o século XIX: misturada, eclética, indecisa entre a nostalgia do passado e a gestação do futuro. A síntese e a harmonia já não eram mais possíveis, certeza cujo peso ainda carregamos hoje. É precisamente por ser tão contraditória e tão desigual que sua obra ainda perturba, faz sonhar e faz pensar. Baudelaire declarara que “O belo deve ser bizarro”. Ora, já nas Considerações sobre o belo e o sublime, Kant via uma gradação descendente, ou uma degradação, que ia do sublime ao ridículo, passando pelo bizarro. Delacroix se move muitas vezes nesse patamar perigoso do bizarro, que carrega o luto de um sublime perdido, recuperável só na fantasia e no sonho.

A tentativa de rotular Delacroix, de o encaixar num movimento preciso de seu tempo é finalmente vã. O mesmo ocorre com Baudelaire. Ambos apresentam traços de várias e às vezes conflituosas tendências, assim como o século todo em que viveram. Examinar esses traços tem apenas a vantagem de nos fazer, uma vez mais, desconfiar dos rótulos colocados pela historiografia. E não apenas no que se refere ao século XIX. A definição de modernidade que decorre do estudo de Baudelaire é frequentemente indistinta da definição de romantismo. E os traços levantados por alguns para definir a pós-modernidade como totalmente diversa da modernidade, mostram-se, na prática, muito simplificadores desta última. Como dizer, diante de Baudelaire e tantos outros poetas, que a modernidade se caracterizou pela racionalidade, pelo culto ao progresso, pelo significado, pela ausência de ironia? Como dizer, diante de Delacroix, que só a pós-modernidade é eclética, mutante, desejante, presentificadora do passado, citacional, descentrada? Talvez o mais aceitável seria pensar que, no domínio das artes, temos assistido, desde o fim do século XVIII, a muitas metamorfoses do romantismo. Mas isso já é outra história, e longa.

Um último aspecto do encontro de Baudelaire com Delacroix deve ser aqui assinalado: o da crítica de arte exercida pelos próprios artistas. O que resultou do contato com o pintor, na teoria e na crítica do poeta, é o melhor exemplo desse fenômeno característico da modernidade: a arte pensada pelos próprios artistas, resultado e afirmação da crescente autonomia de uma atividade que, desde o romantismo, independe de preceitos e inventa seus princípios de dentro para fora, isto é, na própria prática. Baudelaire dizia: “Não surpreenderá o leitor que eu considere o poeta como o melhor dos críticos. Quem fala melhor da pintura do que nosso grande Delacroix? Diderot, Goethe, Shakespeare, grandes produtores e grandes críticos” (Richard Wagner et Tannhauser à Paris).

E não apenas no discurso teórico e crítico. Baudelaire é também o formulador de uma proposta que encontraria seguidores em nosso século: a da “crítica” de uma obra de arte por outra obra de arte: “O melhor comentário de um quadro poderá ser um soneto ou uma elegia” (S46). E a demonstração disso é a estrofe do poeta sobre o pintor no poema “Les phares”:

Delacroix, lac de sang hanté des mauvais
anges,

Ombragé par un bois de sapins toujours vert,

Où, sous un ciel chagrin, des fanfares étranges

Passent, comme un soupir étouffé de Weber[13]

Nenhum quadro de Delacroix corresponde a essa descrição; a arte de Delacroix, sim.

Notas

  1. Charles Baudelaire, Oeuvres complètes, Pichois (ed.), 2 vols., Paris, Gallimard “Pléiade”, 1975. Usarei aqui as seguintes abreviações: OvED: L’oeuvre et la vie d’Eugène Delacroix; S46: Salão de 1846; EU55: Exposition Universelle de 1855; S59: Salão de 1859.
  2. Lucie Horner, Baudelaire critique de Delacroix, Genebra, Droz, 1956; Armand Moss, Baudelaire et Delacroix, Paris, Nizet, 1973.
  3. Paul Valéry, Oeuvres, J. Hytier (ed.), 2 vols., Paris, Gallimard “Pléiade”, 1970.
  4. Eugène Delacroix, Ecrits sur l’art, F.-M. Deyrolle & C. Denissel (eds.), Paris, Séguier, 1988. Para designar esta obra usarei doravante a abreviação Ea.
  5. Idem, Journal (1822-1863), pref. H. Damisch, A. Joubin (ed.), Plon, 1981.
  6. George Sand, Impressions et souvenirs, Paris, Aujourd’hui, 1977 (ed. fac. sim. Michel Lévy, 1873).
  7. Dialogue avec Eugène Delacroix sur L’Entrée des croisés à Constantinople, Saint-Etienne, Sprinter, 1991.
  8. Pierre Jean Jouve, Défense et illustration, Neuchatel, Ides et Calendes, 1943.
  9. A admiração do romancista pelo pintor também se expressa na dedicatória de La fille aux yeux d’or.
  10. Walter Benjamin, “A modernidade”, em Obras escolhidas III, trad. J. C. Martins Barbosa, São Paulo, Brasiliense, 1989.
  11. Paris, Seuil, 1953.
  12. “Le poète à l’école du peintre”, em Charles Baudelaire, Pour Delacroix, Paris, Complexe, 1986.
  13. “Delacroix, lago onde anjos maus banham-se em sangue,/ Na orla de um bosque cujas cores não se apagam/ E onde estranhas fanfarras, sob um céu exangue,/ Como um sopro de Weber entre os ramos vagam.” Trad. Ivan Junqueira, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.

 

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