1994

A máscara, o véu, o coração ou Um erro de Montesquieu, sobre o harém, nas “Cartas persas”

por Renato Janine Ribeiro

Resumo

A máscara é um traço distintivo de qualquer cultura. Através dela o homem assume uma identidade, uma persona. Mas nos habituamos a ver a máscara como algo que falsifica. Para Rousseu, a máscara esconde a verdade do coração que deve ser libertada pela confissão livre (e não mais a inquisitorial imposta pela Igreja). A confissão moderna é uma crítica à sociedade e, em Rousseau, tem um objetivo fraternal (conforme um dos lemas da Revolução francesa). Essa crítica aparece também nas Cartas persas de Montesquieu, por um viés que se poderia chamar de feminista. Lembra o artifício de Scherazade que busca vencer o despotismo ciumento do Xá contando-lhe histórias nas Mil e uma noites. Mas Montesquieu comete um erro significativo: ao dizer que o véu, que tem uma função pública, passa a ser usado dentro do harém, ele sugere que a mulher cativa conserva a liberdade de seduzir. Essa complexidade ainda não existia no Ocidente do século XVIII. Usar máscaras, como no Carnaval de Veneza, era tomar as relações sociais de forma lúdica, como um meio de ampliar a excitação e o gozo. É com Rousseau que a sociedade deixa de ser um jogo entre máscaras para se tornar um conflito entre pessoas. Nas Cartas persas o desenlace trágico indica igualmente um primado do privado sobre o público. Antes, o véu (ou a máscara) escondia o rosto da mulher ao mesmo tempo em que liberava seu olhar sobre os homens. Com a condenação da máscara se perde a medida do que deveria ser artificial na sociedade, mas se perde também a suspeita, um traço essencial da reflexão.


De todas as máscaras que poderíamos examinar — sendo o mascarar-se um dos traços distintivos da cultura, de qualquer cultura, na medida em que distingue o homem da natureza não só por assumir ele uma identidade, mas, além disso, uma identidade falsa ou pelo menos factícia —, vamos deter-nos, sobretudo, nas do século XVIII. Poderíamos trabalhar máscaras mais recentes ou mais antigas, como as dos índios, as que Lévi-Strauss, por exemplo, aborda em seu La voie des masques, num trocadilho hábil, aliás, entre via e voz. Poderíamos discutir máscaras infantis, as de folguedos; máscaras de bandidos, assassinas, máscaras de culto, aquelas que entre nossos indígenas ou na liturgia dos orixás aproximam o homem do divino. Mas nos conteremos nas máscaras cujo papel é fundador, pela derivação e pela repulsão, de nossa sociabilidade presente. Assim, ainda que sempre pela via torta, discutiremos algumas questões essenciais à arte, se esta se caracteriza primeiramente por ser ars, construção humana que se distingue em face da natureza, além disso por ser fingimento, e mesmo dissimulação, e finalmente, muitas vezes, por pretender embelezar o dado, instituí-lo num estilo — elencando assim sucessivamente a cultura, a mentira e as belas-artes, ou a instituição do humano, da ética e da estética; e ao pensamento, se considerarmos a importância que temas como a verdade, a sinceridade, e inversamente a mentira e o logro, por um lado, e por outro temas como a opressão, a liberdade, o amor, o sexo, podem aparecer numa obra literária que é a de um dos maiores philosophes do século XVIII. Refiro-me a Montesquieu e a suas Cartas persas.

Temos um certo hábito de ver a máscara como algo que falsifica. Não será errado dizer, esse pressuposto, rousseauísta: a máscara oculta uma verdade interior. A verdade reside no âmago, no coração, tem portanto um caráter que se afasta da razão ou do público, para mergulhar-se, mais e mais, no sentimento, desde, claro, que depurado. Citemos a passagem célebre da Profissão de fé do vigário saboiano, em que Rousseau faz seu contraponto àquelas condições que Descartes havia enunciado como necessárias para reconhecer, como verdadeira, uma proposição:

Levando pois em mim o amor da verdade como única filosofia, e por único método uma regra fácil e simples que me dispense da vã sutileza dos argumentos, volto com esta regra ao exame dos conhecimentos que me interessam, resolvido a admitir como evidentes todos aos que, na sinceridade de meu coração, não puder recusar meu assentimento, como verdadeiros todos os que me parecerem ter uma ligação necessária com os primeiros, e deixar todos os outros na incerteza, sem os rejeitar nem os admitir, e sem me atormentar com os esclarecer desde que não me levam a nada útil na prática.[1]

Temos desta forma, em vez das regras de clareza e distinção, de que Descartes fizera o cânone da verdade, a simplicidade confirmada pelo coração. Há, como em Descartes, uma crítica à retórica (“a vã sutileza dos argumentos”), mas o critério de verdade será diferente do cartesiano. Podemos, aliás, dizer que a verdade, desde o século XVIII, vai perdendo credibilidade na teoria do conhecimento e se alojando no coração: ao mesmo tempo que a filosofia cada vez menos crê na verdade objetiva ou absoluta (pelo menos assim entendem Nietzsche e parte significativa da filosofia mais recente), vai-se dando maior e simétrico relevo a uma verdade interna, subjetiva, que já não seria a do mundo mas a do indivíduo, melhor dizendo, da pessoa, dado que se trata de um ser moral, cuja estrutura é basicamente a de seus sentimentos. Deste ponto de vista, até podemos atribuir relativamente pouca importância a uma distinção, não obstante, considerável, que é a entre consciente e inconsciente: pouco importa que o coração seja de nós conhecido ou ignorado; em todos os casos, ele aparece como o locus, a sede de uma verdade que deixou de ter objetividade, para alojar-se na diferença de cada qual.

Esta verdade tem um caráter, além disso e sobretudo, confessional. Não é apenas algo que tenha, nos sentimentos, sua tranquila residência. É algo que se confessa, que se revela: um ocultado que irrompe. O fundamental é, pois, o fato de que a verdade esteja encerrada num esconderijo, e que se produzam as condições que regulam sua saída do mesmo, entendida, portanto, como alguma sorte de libertação. Veja-se — num autor que falou de si, o que é raro em filosofia, nas Confissões — o início dos Devaneios cio caminhante solitário: o autor Rousseau se dirá, “aplicará o barômetro a [sua] alma”, para com isso produzir uma obra cujo sentido essencial consiste em suplementar a vida (na falta de amigos, a leitura das páginas que escreveu sobre si proporcionará a única e deleitável companhia possível: a obra supre a sociedade que se esvaiu). Se a era clássica valorizou a obra em detrimento do “eu detestável”, a nova era procura na vida a chave para a obra, opondo-as como o princípio que pulsa a suas realizações sempre limitadas, sempre parcas. Rousseau, em suas várias obras, aplicando-se a vários campos distintos da atividade humana, estará frequentemente montando cenários, dispositivos, que permitam fazer eclodir essa verdade: que será a da vontade geral, no Contrato, ou a do homem a quem se educa, no Emílio, ou ainda a do homem desenganado dos homens, nos Devaneios — mas, em todos os casos, o esquema é mais ou menos semelhante. Algo que está barrado deve vir à tona. A obra rous-seauniana é peculiar, é diferente das demais porque, justamente, propõe os meios para que esse precioso proibido, delas outras esquecido, se liberte.

A confissão traz, porém, certos problemas. Obviamente, ela não constitui novidade. O Antigo Regime e já a Idade Média davam-lhe grande importância, que se inicia, aliás, desde que recebe o juízo de Deus, o ordálio. Como mostra Joseph Langbein,[2] o Concílio IV de Latrão, em 1215, proibindo a participação do clero nos rituais que invocam o Senhor a manifestar Sua vontade entre as partes em batalha, praticamente pôs fim ao juízo de Deus e com isso abriu novo espaço à confissão como veículo da prova judicial. O juízo de Deus é uma batalha santificada. As formas são humanas, especialmente quando duelam campeões representando as partes, mas nelas se deve manifestar algo divino, verdadeiro, mais ainda: justo. Ou seja, os gestos se tornam signos, e isso graças à invocação proferida pelo clero. Essa sacralização da justiça, dispensada pela voz, mesmo que indireta, mesmo que traduzida ou interpretada, de Deus, torna desnecessária a confissão, porque constitui um sistema, considerado objetivo, de apuração de culpa e inocência.

Este sistema, porém, se alguma vez teve plena eficácia, com certeza já se havia diluído em torno do século XII. Guilherme, o Ruivo, rei de Inglaterra, reclama em inícios desse século que num condado inteiro todos os suspeitos submetidos ao ordálio haviam sido absolvidos: fossem submetidos à prova da água ou à do fogo, todos escapavam sem culpa. O recesso de Deus ante os julgamentos não é, pois, súbito, nem é correto imaginar que a sociedade em que vigia o ordálio se portava como aquelas comunidades orgânicas em que não há conflitos sociais, em que todos compartilham idênticos valores. Mas o recuo de Deus, quer antes, quer depois do Concílio de 1215, efetua uma certa laicização dos julgamentos. Não havendo mais a vox Dei, recorre-se agora à doutrina romana da prova, que para condenar exige duas testemunhas oculares, ou a confissão do culpado. Como a obtenção de duas testemunhas é difícil, vai-se apostar, mais e mais, na confissão. Como, na filosofia aristotélica que então se retoma, a causa eficiente é menos importante que o telos ou causa final, sendo pois os meios que produzem menos relevantes que a finalidade a que se chega, vai-se considerar igualmente válida a confissão espontânea e aquela ajudada pelo uso criterioso da força bruta sobre o corpo do suspeito. Criterioso, porque há medidas objetivas que permitem caracterizar alguém como suspeito: para se aplicar a tortura judicial, exige-se meia prova (por exemplo, uma testemunha ocular); e há leis determinando como ela será aplicada (sempre com um tabelião do lado), quem dela está isento (grávidas, advogados) e outras questões relevantes.

Estamos, por sinal, no mesmo mundo que o da Inquisição, tribunal que tem por um de seus principais procedimentos o da confissão. Melhor dizendo, no Santo Ofício a confissão é meio e fim. Meio de atestar a culpa do acusado, os crimes do demônio. Mas, também, fim: reconhecimento, pelo réu, da jurisdição do tribunal, da verdade da fé cristã, da comunhão à qual ele tentará, purgando sua culpa, reintegrar-se.

Esta rápida referência a uma tradição judicial leiga de apuração confessional das culpas e a uma outra linhagem, paralela e comunicante, de exame confessional das heresias deve servir para mostrar que a confissão não é, quando Rousseau dela faz uso, novidade alguma. Poderíamos, aliás, simplificar as coisas, recordando que o mundo cristão tem uma de suas bases na confissão. Esta é o veículo da reintegração do desgarrado. O fiel reconhece as culpas passadas e, prometendo emendar-se, regressa à comunhão. Temos aqui os traços básicos da confissão: culpa, reconhecimento da mesma, promessa de correção (arrependimento), reintegração. Mas serão estes os pontos que escoram a visão moderna, pós-século XVIII, do confessar-se?

A grande novidade que a era contemporânea traz à confissão está em. desculpabilizá-la, pelo menos em certa — porém larga — medida. A confissão conserva seus traços essenciais. Ela institui, no tempo, um corte; cria um tempo mais ou menos linear, mas seguramente histórico, no qual presente, passado e futuro deixam de ser simples códigos no dorso dos volumes de uma biblioteca, apenas localizando dados de experiência que em seu cerne independem por completo dessas marcas que os situam. Com o corte, as datas tornam-se lugares qualitativamente diferentes. Sua relação com aquilo que elas situam deixa de ser casual, arbitrária, convencional, passando a dizer respeito a sua própria natureza, a dizer algo sobre os acontecimentos narrados. O passado foi erro, o futuro é promessa e redenção. O presente, instante da confissão, é pois o momento em que o erro se corrige, em que o homem servo de suas paixões ou do demônio se converte em sujeito de sua fé, senhor de seus atos, que por sua vontade visa e alcança o futuro redimido.

Mas o que muda do século XVIII em diante são o estatuto do erro passado e do arrependimento. Estes próprios termos perdem sentido, na medida em que ocorre uma atávica desculpabilização, se assim podemos dizer, do homem em confissão. Evidentemente, continuará havendo culpas, mas em sentido fraco: alguém é culpado de um ato localizado, pequeno. Ora, o que caracterizava a culpa na confissão cristã era seu caráter fundamental, a recordar o pecado original. Por isso, o homem que agora se confessa, que põe a nu a alma, não está mais bradando sua culpa, embora ainda esteja voltado para um anseio de reforma. Ele, se proclama o erro, não será um erro pessoal que culpe. Será um erro a corrigir, mas cuja responsabilidade incumbirá, muitas vezes, não ao indivíduo, mas à sociedade, ou mesmo ao acaso. Tomemos alguns exemplos.

A confissão do homem psicológico, aquele que para pôr termo a suas infelicidades trata de sua psique, pode ser devastadora, mas nela a culpa jamais passa de uma aparência. Continua ocorrendo um ajuste de contas com um tempo em que as paixões dominavam o homem, reduzido a seu joguete; mas estas paixões deixam de ser significante do diabo, como seriam outrora, para se tornarem, elas mesmas, alvo de um saber e de uma prática. Dizendo de outro modo, no esquema anterior a luta que se travava na confissão opunha, por intermédio das paixões e da vontade, o Diabo e Deus; agora, estas duas partes desaparecem; a própria vontade tem sua caracterização modificada, bem como a alma; as paixões se enfrentam na psique, e algum nível de consciência se tenta destilar, para que se tornem mais bem administradas.

A própria meta de felicidade, ou de redução da dor, ou de auto-conhecimento, ou mesmo de saúde mental (termos estes que conforme a família a que pertence o psicólogo ou analista serão desdenhados), já nada tem em comum com a velha meta da redenção no outro mundo. Tudo, agora, pertence a este. Quando éramos apenas o teatro em que se batiam Deus e o diabo, faltava-nos inteligibilidade própria; o homem aparecia como ser limitado, temporário, cenário precário de um drama cósmico; quando, porém, a psique adquire perfil próprio, passa igualmente a propor saídas também próprias e, num mundo laicizado, a dispensar a transcendência.

Na verdade, com o recesso da culpa muda o próprio cerne do esquema confessional. Lembremos, de Sennett, a afirmação segundo a qual nossa sociedade — rousseauísta, entende ele — tem a convicção primordial de que, se conversarmos, se pusermos tudo a nu, se dissermos a verdade inteira, acabaremos por nos entender.[3] Quer dizer que por trás de todas as aparências existiria um magma de compreensão recíproca; por baixo do artifício, uma natureza fraternal. Este, aliás, um dos sentidos do terceiro lema da Revolução Francesa, o que propõe, depois da liberdade e da igualdade, a fraternidade: despindo-nos dos artifícios, do artificioso, chegaremos à natureza, à verdade, à comunhão.

Podemos retomar em outro plano estas ideias. A confissão, no Antigo Regime, era porta de revelação do mal. Servia, no culto católico, a preparar a comunhão, mas enquanto confissão era a assunção pessoal de culpas e a manifestação — social ou mesmo cósmica — dos poderes do Maligno. Desde Rousseau, porém, ela se torna porta de acesso ao que temos de me-Ihor. Não desdobra mais o Mal, proclama o Bem.

Essa má expectativa em relação a quem se confessa, até o século XVIII, esclarece-se melhor se recorremos, dentre muitas ilustrações, à da confissão despótica. Numerosos textos que concebem o harém dizem o extremo ciúme que se apodera do homem, embora — ou porque — senhor único dos corpos femininos. Bom exemplo desta operação encontramos nas Cartas persas, de Montesquieu, seguramente o melhor texto ocidental a tematizar o serralho e os desejos que nele se encerram. Valendo-se das oportunidades que lhe proporciona o gênero epistolar, Montesquieu tece críticas à sociedade europeia; seus persas são bons philosophes, que desmontam os preconceitos e as falhas da sociedade francesa e, por vezes, do próprio gênero humano.

Nesse romance filosófico, mostram-se curiosamente raros os enredos, as histórias. De modo geral, os que aparecem visam a ilustrar alguma ideia, a comprovar algo: age-se para discutir-se, melhor dizendo, terceira(s) pessoa(s) age(m) para que a primeira e a segunda a(s) comentem. A ação é narrada não tanto por quem a pratica, mas, sobretudo, por quem a analisa. Aliás, a rigor as histórias são anedotas, episódios curtos, de que se pode extrair uma moral.

Um único enredo sobressai e se alonga pelo romance afora, distinguindo-se deste perfil: é o do que se passa no harém de Usbek. Aqui temos a única história que não apenas excede uma carta (outras poucas se estendem por algumas cartas, mas sucessivas, sem perder a ligação), como também vai pontuando, irregularmente, o romance, feito um tema musical, até que o domina e deita sobre ele uma perspectiva que, a princípio melancólica (carta 9: o eunuco contando como perdeu o sexo), culmina em tragédia (a sequência final) e, por esta via, em crítica devastadora, submetendo a seus poderes o próprio homem que se pusera a criticar a política e os costumes sociais da Europa.

Dizendo de outros modos: modo feminista: durante mais de cem cartas foi a perspectiva do varão, homem credenciado à vida social, que contestou a sociedade e os costumes; soa, finalmente, a hora de que a mulher, privada por essa sociedade dos direitos básicos de humanidade, faça uma crítica que será radical, porque contesta a uma só vez a sociedade e seu crítico manso, interno, o crítico que a própria sociedade destila e que por isso ela tolera, já que sua contestação não passa de conversação, que se esgota no salon, sem resultar em atos, em fatos. Chegamos pois, com a revolta feminina, à crítica forte, que afeta os fundamentos e desemboca, portanto, em morte. Ou modo público/privado: até começar o finale, o que se criticou foram, sobretudo, ações que se davam a público; algumas alusões eram feitas à sexualidade ou à família, mas sob o modo teórico ou, se não, apenas discreto; na série final de cartas, porém, o mundo privado revela-se em toda a sua crueza: a dimensão que o ego considerava mais ou menos regulada vem agora a nu, o ocultado manifesta-se, os porões de uma sociedade são escancarados.

Dos dois modos que leiamos o último ato do romance, o que surge é algo radical. Não é por acaso que assim se bascula a obra, pondo-se termo ao empreendimento, que agora percebemos vão, de crítica que inspirava Usbek em sua tranquilidade europeia: porque, se quem morre é a favorita, proclamando a impossibilidade de ser livre a mulher num mundo regido pelo harém, ao mesmo tempo falece a obra. Usbek não escreverá mais cartas nem as lerá; sua viagem europeia acabou; melhor dizendo: Usbek, enquanto personagem, morre. Finda o livro, e ele, que só existe dentro do livro, que haure sua vida europeia e pública do harém distante, que pode passear sua varonice graças somente à negação de gozo a que submete suas mulheres e eunucos, cessa, quando cessa a economia das privações alheias, também ele, de existir. Há algo de vampiresco nesse registro, em que um homem passeia sua vida pública à medida que priva de gozo homens e mulheres a milhares de quilômetros de distância. (Modo feminista, ainda uma vez, mas não só: modo de uma economia dos desejos, que nos permite ver de que maneiras a insatisfação produzida da libido alheia constitui um determinado ser para o público, uma determinada aparência social que faz um homem, à custa da mulher ou dos homens mais pobres, privados de algo essencial, poder ostentar a máscara da sociabilidade. É por aí que se articulam uma análise social e uma psicológica dos costumes, numa sociedade marcada pela desigualdade.) Era a morte parcial de seus dominados, a morte em vida da mulher enclausurada e do homem castrado, que davam viço a Usbek; mas a morte consumada da vítima, convertida em denúncia, acaba por tirar-lhe, também, a vida.

O harém aparece como espaço pertencente a Usbek, lugar de seus deleites mas também de seu repouso, território em que ele está seguro, ao contrário do espaço público. Diante do rei e da corte persas, ele se sentia ameaçado; é em casa, no seu mundo privado, que tem descanso e força. Por isso mesmo necessita manter intacto, ainda que distante e sem utilidade visível para si, o harém. Um serralho ineficaz enquanto gozo presente ou físico serve porém a fins imaginários, emocionais, na economia um tanto perversa da sublimação na viagem, no poder e no saber. Daí que suas primeiras lembranças, nas cartas que escreve para casa, sejam boas. Somente destoa destas evocações, por um lado, o blablablá feminino (queixas vãs, intrigas de mulheres reduzidas ao que têm de mais tolo) e, por outro, o pungente lamento do primeiro eunuco, que relata a vida de um homem castrado, projetando no desejo de poder o não poder saciar seus desejos.

Pelo fim do livro, porém, o harém se revolta. Descobre-se, por trás dos pequenos problemas, das pequenas fofocas ou queixas, enorme tensão, melhor dizendo: um vulcão prestes a eclodir. Tínhamos, como Usbek, uma impressão falsa. Ela, por sinal, se escandiu no tempo graças a uma sucessão de contratempos, visivelmente cômicos, retardando as comunicações entre a França e o serralho. A tragédia finalmente explode, graças até ao retardamento, que assim constituiu uma relativa unidade de tempo, daquelas aristotélicas, condensando em alguns meses uma tensão que vinha repontando desde anos. Nela, podemos então ler uma severa crítica àquele que posava, na Europa, de philosophe. O registro da vida privada vem devastar o da atuação pública, o plano do desejo inquina de nulidade os discursos da razão, o escondido desmonta o explícito. Notemos, porém, que não se trata exatamente de uma vitória do privado sobre o público, porque na verdade o que se mostra é em que larga medida a vida privada já está marcada pelo poder, e portanto por uma política. Se ela diz a verdade daquilo que era aparência, se desmascara a representação, é porque nela ocorre a apropriação privada do que deveria ser pu-blico, a transposição ao espaço da mansão sem janelas daquilo que devia mostrar-se na praça: porque mulheres que deveriam ser livres sexualmente, homens que deveriam ser inteiros, foram retirados do mundo amplo que deveriam percorrer, para serem submetidos ao ferro que corta uns e enclausura outras. Usbek, de público, fazia-se de racional. Mas é Roxana quem, ao morrer, lhe arranca a máscara e com isso desmantela sua encenação. A verdade, expressa na confissão, destrói a construção falsa dos poderes.

Voltaremos a alguns destes pontos. Por ora, vejamos o que significa a confissão, do viés do senhor despótico e ciumento: ela é sempre a revelação do mal. Isto ocorre sucessivas vezes, no romance. Tanto o eunuco marido da jovem Astarté quanto o mau Ibraim devassam os muros, acreditam o tempo todo ser enganados. Evidentemente, estas personagens já anunciam a verdade de Usbek. Ibben, narrando a Usbek o amor de Aféridon e Astarté (na carta 67), ou Rica, contando-lhe a fábula de Zulema e Ibraim (carta 141, poucas antes de começar o drama final), inconscientemente no plano pessoal, mas de forma muito bem localizada no plano da obra, advertem Usbek sobre aquilo em que ele está se tornando: alguém que só reprime, que somente priva. São justamente seus dois interlocutores preferenciais quem, bem ao estilo das Mil e uma noites, em que Sheherazade pela narrativa tentava curar o xá cruel por ciúmes, lhe narram histórias que possam moderar sua injustiça, alertá-lo para o erro que é o descompasso radical entre os direitos do homem poderoso e a carência completa a que submete mulheres e eunucos. Mas já o primeiro eunuco lhe dizia, na carta 96, depois de arrolar as precauções tomadas para a boa disciplina das mulheres a seu encargo:

Mas, magnífico senhor, tudo isso nada significa sem a presença do marido. O que podemos fazer com esse vão fantasma de uma autoridade que nunca se delega por inteiro? Representamos, com pouca nitidez, apenas a metade de ti: tudo o que lhes podemos exibir é uma severidade odiosa. Tu és aquele que modera o temor graças às esperanças — mais absoluto acariciando do que ameaçando.[4]

A tempestade dá sinais de sua próxima chegada.

Usbek vai assim, pela ausência, deslizando para a figura do repressor; mas essa gradual mudança nada faz, como mostrará Roxana em sua carta de morte, além de expor a verdade intrínseca do senhor no serralho. Ora, o que esperam esses homens ciumentos, o eunuco marido de Astarté, o mau Ibraim, Usbek, finalmente, dos instrumentos de tortura com que armam seus eunucos,[5] a quem ainda faz eco o eunuco Solim, invocando em sua última carta, de número 160, um imaginário público feminino, a quem deseja “estarrecer com todo o sangue que ir[á] derramar” (p. 260)? Esperam todos eles, senhores do harém ou seus representantes, a revelação de uma verdade que suspeitam horrível. Esse caráter assustador e mau da verdade é-lhes fundamental. Pertence à essência do despotismo considerar que a verdade está oculta e que é má, horrível — porque o despotismo se funda no temor, e este retorna sobre o sultão, ou sobre as imitações deste que são os senhores de haréns. Se o réu resistir a todas as torturas, a fim de fazer o que a justiça inquisitorial ou tardo-medieval chamava a “purgação das culpas”, ainda assim o desconfiado no poder continuará acreditando que a verdade é má. Dizendo de outro modo, faz parte da estrutura do despotismo o ciúme, e pertence a esta figura difícil, porém cujo nome expressa uma tautologia — o déspota ciumento —, uma franca predisposição a crer no pior e a descrer do melhor, em outras palavras, a esperar a traição e não dar crédito à lealdade.

Tomemos agora o tipo de máscara que aparece no mundo do harém. É o véu. As muçulmanas andam, desde que se tornam mulheres, com a primeira menstruação, veladas. Poderíamos discorrer sobre o real funcionamento desse costume; dois livros recentes são notáveis a este respeito: Princesa (1992), redigido pela americana Jean Sasson[6] a partir das revelações e críticas de uma mulher, membro da dinastia saudita, ao estatuto de seu sexo, no único país do mundo que porta o nome da família reinante; At the drop of a veil (1971), da americana Marianne Alireza,[7] que se casou com um príncipe saudita em 1944 e, do ano seguinte até 1957, passou a maior parte do tempo no país do marido. Marianne Alireza escreve um livro sem hostilidade, de teor quase etnográfico, expondo, pela simpatia com que penetra os costumes locais, o sentido que assumem, ao passo que Princesa está bem mais marcado por valores ocidentais (um dos temas centrais é o anseio de que as sauditas possam guiar carros). Em nenhuma das obras chega a haver uma temática social, embora em Princesa esta desponte no caso das moças importadas da Ásia que descobrem, tarde demais, que faz parte de seu trabalho dormir com o patrão. Contudo, não está aqui em tela discutir a realidade do mundo velado, e sim a imagem que ele constitui no século XVIII europeu, e que continua, nos dois séculos que se seguem, a ser um dos fatores determinantes para o Ocidente pensar o mundo islâmico.

Apenas notemos, com referência ao admirável La sexualité en Islam, de Abdelwahab Bouhdiba (1975), que o lugar da mulher e os próprios costumes do véu e do harém são muito mais complexos do que Montesquieu concebeu. Acima de tudo, o que aliás é óbvio, mas em Montesquieu fica somente insinuado (nas cartas 112-22), só uma pequena minoria desfruta dos privilégios da poligamia. Na verdade, no campo ela é praticamente ausente, tanto por serem os homens pobres e a poligamia requerer dinheiro, quanto porque as mulheres trabalham a seu lado e por isso não se velam. O harém e o véu são fenômenos basicamente urbanos. Pode-se até opor um amor beduíno, romântico, monógamo a ponto de se fazer trágico, ao amor citadino, no qual mais facilmente ingressam a incontinência masculina e a posse do harém. Lembrar-se-á, aqui, a importante obra de René Nelli sobre a erótica dos trovadores, na qual o débito dos autores das cantigas d’amigo com o Islão era claramente expresso.

Retracemos os traços essenciais da velação. Ela estabelece a feminilidade: a partir do momento em que a mulher existe — criada pela menstruação —, em que pode pois constituir objeto de desejo resultando em relações sexuais passíveis de gravidez (e note-se como está implícito que antes de poder procriar a menina não suscita desejo: que o ato sexual vise à gravidez), ela recebe o véu. Não o deixará mais, sequer quando cesse de ter regras e, portanto, envelhecida ou tida como tal, já não possa ter filhos. O véu é menos a marca de um desejo constante do qual a mulher possa ser objeto, do que a marca indelével de tal desejo. Uma vez lançado, nunca poderá ser abandonado. Não depende da beleza, da juventude, dos atrativos reais, mas do fato de que um dia a mulher lubrificou, com o próprio sangue, seu órgão sexual. É, assim, da essência do véu a ideia de uma sexualidade feminina misteriosa. Se o órgão feminino é oculto, fechado à vista, e azeitado pelo próprio sangue — tema, portanto, sacrifi-cal: a mulher regularmente dá seu sangue a seu sexo —, da mesma forma deve a mulher, que ele marca, que ele determina, ser ocultada. E uma vez ocultada, para sempre oculta.

A velação, porém, somente tem sentido extra muros. O termo harém significa “o que é sagrado, proibido” (Petit Robert), o que a palavra serralho (italiano serraglio), por sinal, expressa igualmente bem, dado que remete à ideia de chaves e fechaduras, de ferragens e ferros utilizados para trancar. Mas apelemos, por um momento, ao mais elementar bom senso. Se a mulher dentro do harém frequenta só outras mulheres, crianças impúberes, homens castrados (os eunucos) — e somente um homem inteiro, o marido —, por que haveria de velar-se ali dentro? O véu tem lugar e sentido estritamente fora do harém. E aqui merece destaque uma passagem de Montesquieu, um erro, mas que como tal é altamente revelador de seu pensamento. Na carta 156, quando a guerra já está declarada no serralho, e Usbek conferiu todos os poderes ao eunuco Solim para que descubra quais de suas mulheres o traem e as puna com rigor máximo, o ditador castrado — o vigário horripilante do senhor ausente, o homem que não possui porque impotente mas que representa o homem que não possui, embora potente, porque ausente — decreta que as mulheres portem, agora, o véu também dentro do harém. (É Roxana, que antes nunca escreveu a Usbek embora fosse sua favorita, quem reclama: “Cada uma de nós tem de ficar trancada em seu aposento e, embora fiquemos sozinhas, exige ele que nunca retiremos o véu” [p. 257].) Ora, num texto admiravelmente bem composto, ingressa, fugindo à própria estrutura da construção (da qual demos sinais opondo, por exemplo, há duas frases, ausência/representação, castração/pênis etc.), simplesmente, o erro.

Se as mulheres andarem veladas no próprio serralho, de que modo seus repressores, os eunucos, saberão quem é quem? Se elas precisam ser reprimidas, para saber-se qual delas trai, como fazê-lo se portarem, a mando dos repressores mesmos, véu, máscara? E, embora se conheça o caso de algozes que encapuzam as vítimas (vedando-lhes os olhos), onde se viu um repressor mandar a vítima mascarar-se, isto é, enxergar sem ser vista? (O véu é o inverso do capuz, pois é máscara e permite ver, mas passa por capuz, na representação que dele fazem os europeus.) Se o poder é em. boa medida um direito de olhar, o que os franceses admiravelmente expressam em sua expressão jurídica droit de regard, cujo sentido podemos tentar traduzir em nosso, igualmente excelente, “direito de supervisão” , por que Montesquieu fará então essa confusão tremenda, em que se pune uma mulher justamente liberando-lhe o olho?

Na verdade, o véu é o harém portado extra muros. Com ele, a mulher leva consigo o serralho, entendido como um recorte básico entre o que se pode mostrar e o que se deve resguardar da curiosidade alheia, masculina, que devassa e perturba. Não se desconheça, porém, o quanto a própria velação pode ter de erótico, constituindo um jogo entre o que Bouhdiba chama de “contra-strip-tease” (a mulher que, quanto mais oculta, mais seduz, pelo cheiro, pelo barulho das jóias, pelo porte) e o “voyeurismo” masculino.[8] De todo modo, quando a mulher sai a passeio, vela-se. Quando está no harém, mostra o rosto. O véu, como o harém, é uma negação ao olhar estranho. Sendo ambos negações, no caso de se juntarem engendrariam uma dupla negação: a mulher que se velasse no interior do serralho deixaria de dar ao véu sua função correta, e acabaria por se furtar à própria vigilância dos eunucos. Este o erro de Montesquieu: de tanto querer vigiar as mulheres, o eunuco termina por lhes dar o meio de fugir à vigilância, porque, veladas, poderão trocar as identidades, embaralhar seu olhar. Ora, o olhar de que elas podem e devem se resguardar é o olhar alheio, dos homens de quem estão separadas pelo interdito. Do de seu amo e senhor, não podem se furtar — nem do daqueles homens que, por serem menos homens, o marido incumbe de representá-lo na função de guarda e controle.

Por que Montesquieu erra? Há uma razão óbvia. É que a concepção ocidental do Oriente, no século XVIII, concentra-se na ideia de uma sexualidade diferente, essencialmente a do homem que possui várias mulheres e as faz vigiar no harém: a ideia de uma dissimetria radical entre o homem polígamo e livre, e suas mulheres enclausuradas, e seus vigias castrados. Note-se esse descompasso abissal, primeiro no interior do mundo masculino, sendo que destes homens um tem tudo a seu dispor, e outros perderam tudo; segundo, entre homem pleno e mulheres, repetindo-se o mesmo dispositivo (ele circulando no mundo, elas presas no harém; ele senhor de sua sexualidade, elas mero objeto). Consequência desses dois antagonismos entre o monopolista e os espoliados, é a semelhança extrema que surge entre homens amputados e mulheres: eunucos e esposas são pensados, todos, sob o modo da privação. Mas é precisamente essa semelhança, essa quase-identidade que os torna antagonistas, acentuando o único elemento distintivo que lhes resta, o fato de que eles as vigiam e elas padecem seu olhar (o que já torna difícil entender que por vezes suceda o contrário, isto é, elas olharem — por trás do véu, ou pela treliça da sacada — sem serem vistas). Definidos, eles e elas, por sua posição de vítimas em face daquele que os priva a todos de uma sexualidade autônoma, por isso mesmo lavra, entre eles, a guerra: ao eunuco sobra somente o consolo de reprimir a mulher que jamais poderá possuir; à mulher, resta apenas a satisfação de em certas ocasiões conseguir do marido e senhor a vingança contra seu guardião e repressor.

O essencial em ambas as séries, na do descompasso como na da identificação, vê-se que está na carência. Resulta, pois, que assuma por signos, no imaginário ocidental, os elementos que indicam a privação. Deles, temos por um lado a materialidade da carência do pênis, natural (na mulher) ou artificial (no castrado) — por outro, os elementos simbólicos, emblemas poderosos, que são o véu e o harém.

Digamos que Montesquieu os pensa como símbolos e não como funções. Funções que fossem, sua economia mostraria bem que são incompatíveis ao mesmo tempo. Como signos, porém, podem ser inflacionados. Ambos, assim, em vez de aparecerem como desempenhando a mesma função, e por isso não podendo coexistir, sob pena de se anularem mutuamente, surgem como podendo se reforçar reciprocamente. Seu comércio mútuo passa a ser o do endosso, da multiplicação, do reforço, enquanto signos da repressão. Daí que um eunuco repressor some os dois sinais de amputação; daí que a negação se conceba como amputação, que se pode ampliar, e não como negação propriamente dita, que rumaria para a negação da negação, e portanto para a afirmação. A liberdade da mulher, resultando do porte do véu no harém, seria efeito indesejado. É um erro de Montesquieu, mas que, por isso mesmo, abre caminho para uma discussão interessante sobre o harém.

As Cartas persas não são significativas apenas pela qualidade literária. São-no também porque Montesquieu nelas condensa, melhor que ninguém, a imagem que o século XVIII, na esteira do XVII, concebe da sexualidade oriental, melhor dizendo, islâmica. Tratemos, como prometíamos, desta. A relação do Ocidente com ela é ambígua, não fosse o sexo um objeto, sempre, fadado a investimentos que tendem ao contraditório. Se consideramos a imagem ocidental do Oriente, naqueles séculos, notamos que em outros campos há menos matizes. Em seu belo livro sobre Montes-quieu,[9] Louis Althusser propõe uma interpretação mais imediata para a. imagem ocidental do despotismo oriental, sugerindo que a figura do déspota representasse a do monarca absoluto: assim, a passagem da figura a seu conteúdo, do significante a seu real significado (cuja pertinência não julgaremos, aqui), pode ser direta, sem matizes, sem tensões internas. Mas, desde que se pense em sexualidade, tema, por sinal, que fica ausente tanto da obra de Althusser como do belo ensaio de Franco Venturi sobre o “despotismo oriental” cunhado na Europa,[10] a ambiguidade ressalta. A obra mais significativa a respeito é, certamente, a Anatomia do harém, de Alain Grosrichard.[11]

Na verdade, o que interessa ao europeu não é como a sexualidade é vivida pelo oriental, em geral, mas sim pelo muçulmano, e isto por uma razão bem simples: a soma de vários dispositivos, que se congregam em torno da figura do harém. Teremos assim, por um lado, a condenação à repressão que no Oriente se pratica. Isto se lê, com todas as letras, em várias passagens de Montesquieu. Nas Cartas persas, além da voz que se dá ao eunuco para lamentar a perda que sofreu, há a surda queixa feminina, finalmente vozeada por Roxana agonizante, há, ainda, a longa série de cartas (nos 112-22) a mostrar como a população do mundo depende do registro imperante de sexualidade: por isso, o pior dispositivo a regular o sexo é o que consiste na poligamia, dominante nos países islâmicos e que resulta no tédio do homem por suas mulheres e, pois, numa baixa taxa demográfica. Depois deste, também é péssimo o casamento mono-gâmico indissolúvel, vigente nas nações católicas, e que ata um casal que já não se deseja (na verdade, como o eixo da questão é a procriação, o problema é o homem não desejar mais a mulher, ou seja, sempre se lê esta questão tendo o homem por sujeito e a mulher por objeto do desejo). Finalmente, a melhor solução é a protestante, da monogamia dissolúvel.

É portanto de dois pontos de vista que se condena o registro do harém. Em parte porque ele atenta contra a liberdade do desejo, amputando a maior parte dos homens, fisicamente, de seu sexo, a totalidade das mulheres, moralmente, da escolha de seu parceiro. Em parte, também, porque disso resulta um crime contra o gênero humano, que acaba tendo a população reduzida. Há uma crítica de princípio, de valor, que diz respeito à liberdade e aponta como seu titular o indivíduo, homem ou mulher, a quem se atribui o direito de escolher o parceiro no amor. E há uma crítica por assim dizer de efeito, de resultado, já não jurídica ou tão filosófica, mas sociológica ou econômica, que considera como repercute a liberdade ou a servidão do desejo na organização da sociedade: sai-se aqui da esfera do indivíduo, ingressa-se na da coletividade. O desejo funciona, pois, como ponto a articular o indivíduo e a sociedade, o direito e o resultado, razão por que pode ser lido tanto do ponto de vista da liberdade quanto do viés da necessidade. Estaremos introduzindo um anacronismo bastante duvidoso, no século XVIII, porém, se entendermos estes dois pontos de vista como antagônicos ou mesmo como desvinculados, como em nosso tempo se pretende. Com efeito, hoje é comum entender a liberdade sexual como tanto maior quanto mais frouxa for a necessidade de que ela implique a gravidez.[12] Na verdade, porém, no século XVIII esses dois pontos de vista se prendem um ao outro. A redução demográfica é um ônus da falta da liberdade. Quem ama se reproduz, quem se reproduz é porque se ama.

Ao mesmo tempo, contudo, que se condena o harém, a profusão dos relatos que o tomam por objeto atesta inegável curiosidade do público ocidental. Sabe-se que o interesse por esse tipo de texto sofreu enorme estímulo com a publicação, nos últimos anos do reinado de Luís XIV, da tradução que Antoine Galland fazia das Mil e uma noites. O erotismo desta obra, embora velado pelas escolhas que Galland fez e que as traduções recentes trataram de rever, foi, considerada a época, de grande impacto. Uma imagem generalizada de sensualidade difunde-se sobre o Oriente, aparecendo não apenas nas descrições da sexualidade, mas numa atmosfera generalizada de prazer (por exemplo, a alimentação, o conforto, o exótico) e de mistério (sendo o harém um dos principais signos deste último). Os registros da clausura, do contraste entre o poder absoluto de um e a privação completa de outros/outras em matéria sexual, constituem então fonte quase inesgotável de fantasias, para os ocidentais. Não é fora de propósito pensar que muito das fantasias a que Sade dá forma tenha alguma inspiração nesse rebatimento de inspiração — ou atribuição — islâmica do poder absoluto, que passa da esfera propriamente política ou do mando para as relações amorosas e mais especificamente sexuais.

Ora, o interessante é que as fantasias são, por vezes, de duplo sentido. Convém remeter a uma viajante inglesa, esposa do primeiro embaixador regular da Grã-Bretanha junto ao Império Otomano, lady Mary Montagu.[13] Ela, em 1717, oferece um relato muito diferente da condição feminina entre os turcos, pretendendo, é claro, como todos em seu tempo, que sua análise valha para o mundo islâmico em geral, dado que se trata de seu principal centro político. O importante é ter ela acesso ao mundo das mulheres, ao harém que, como notou Alain Grosrichard, constitui um espaço de extraordinária atração para os ocidentais, em cujos países se multiplicam os livros prometendo revelações sobre o interior do serralho. Basta ver, por sinal, o rol das obras proibidas pela Mesa Censória em Lisboa, no século XVIII, para ver com que frequência ocorre a circulação de tais títulos, o mais das vezes fruto da simples inventividade e senso comercial de seus autores. Ora, como dizem Anne-Marie Moulin e Pierre Chuvin, o harém “não é, equívoco ocidental, uma prisão de mulheres voltadas para o prazer do senhor; havia pouquíssimos casos desse gênero. É, antes de mais nada, um espaço interior de inviolabilidade garantida”.[14] Lady Montagu observa que, à europeia de condição social elevada, muitas vezes é negado o direito de sair e passear desacompanhada, de modo que uma vigilância existe sobre sua circulação no mundo. Ou esta se encarna na figura, de origem ibérica, da dueña, geralmente uma parenta velha, solteirona, pobre, que segue a dama em toda a parte; ou se corporifica, pelo menos, no olhar social, que faz de cada passeio uma exibição, e desta um espetáculo sujeito ao controle de todos os que conhecem a mulher em questão. Além disso, a europeia está sujeita financeiramente ao marido; deve, dizem os manuais de orientação, suportar cristãmente suas infidelidades, numa dissimetria radical de comportamentos (o famoso “duplo padrão moral”, que vigia até há poucos anos); enfim, somente então começa a ter em casa um espaço que possa dizer seu, no qual receba as amigas (e mesmo o dr. Johnson negava à mulher esse direito à intimidade).

Graças ao véu, a oriental está a salvo de boa parte desses controles. Pode andar sozinha. Pode até mesmo seduzir o homem a quem desejar, sem que seu marido, seus parentes ou sequer o feliz amante tenham a menor ideia de quem ela seja: inúmeros contos, nas Mil e uma noites e em outras obras, repetem esse padrão. Traduzindo o que diz lady Montagu numa linguagem que seria, ainda, a de seu tempo: o que a mulher perde ao portar o véu é a exibição, é portanto a vaidade, mas, de forma alguma, a liberdade. Ao contrário, esta ela ganha. Isso, se entendermos a liberdade basicamente em termos de ausência de controle social, e seu efeito como sendo o de poder relacionar-se não só sexualmente com o homem a quem desejar, mas, acima de tudo, de socializar-se com as mulheres que quiser, constituindo uma espécie de sociedade paralela cujo poder cresce na mesma proporção que sua discrição. Lady Montagu pode ter exagerado; há depoimentos da mesma época que mostram o harém menos tentador do que ela o faz; mas notemos que sua leitura confere sentido a uma série de passagens, quer das Mil e uma noites quer de narrativas árabes, que de outro modo ficariam mais ou menos descosidas, quase incompreensíveis.

Assim anotada a complexidade do véu, podemos retornar ao Ocidente, e portanto à máscara. Dissemos, no começo, que das muitas figurações que ela possa ter no correr da história nos deteríamos numa única, melhor dizendo, naquelas que assume.no século XVIII europeu. Ora, naquele período a máscara não possui, ainda, o sentido que depois adquirirá, o da mentira, o da falta à verdade. Seu papel é, sobretudo, lúdico. A referência mais frequente que naquele tempo se faz à máscara diz respeito ao Carnaval, e sobretudo ao de Veneza. Na República Sereníssima, como o Carnaval dura seis meses, por todo esse tempo se portam máscaras. Em representações que transcorrem no século XVIII, como as do Don Giovanni de Mozart, é praxe utilizarem-se máscaras: veja-se o filme de Losey de mesmo título. Por isso, a figura do incógnito, daquele que se disfarça, constitui entre os homens e mulheres, pelo menos da bonne compagnie, da boa sociedade, uma sociabilidade de prazer, porque de jogo. As relações sociais se tornam de certa forma brincadeira. O prazer nelas ingressa pela via do jogo identitário. Embaralhadas as identidades, podemos nos divertir com elas. Vamos a um ou outro exemplo.

Primeiro exemplo, o cavaleiro de Faublas, romance erótico das vésperas da Revolução Francesa, assinado por Louvet de Couvray.[15] O cavaleiro em questão, ainda adolescente, é convencido por um amigo, o marquês de Rosambert, a ir travestido, como se fosse uma suposta mademoiselle de Faublas, jantar com o marquês e a marquesa de B, a qual é amante do próprio Rosambert. O resultado, picante, é que o marquês traído se enamora da falsa moça, e a marquesa a convida para dormir com ela, disso resultando que o jovem Faublas se tornará amante da marquesa, numa das cenas de maior densidade erótica da literatura francesa do século XVIII.[16] Mais tarde, o recurso ao travesti se repetirá, com Faublas tornando a se vestir de mulher e a marquesa envergando trajes de homem.

Nestas histórias, se a máscara não é literal (não se tapa o rosto), o mascaramento está porém presente, constituindo um mundo de desejo. Embora a relação entre Faublas e a marquesa seja já por si bastante sexuada, o recurso ao disfarce, o procedimento que desidentifica, aparece como um jogo que amplia as possibilidades de excitação e de gozo. E no entanto é como se Faublas constituísse o réquiem desse estado de coisas — porque o rapaz vai ter, a par da paixão sexual pela marquesa, uma paixão mais integral por Sophie. Esta será a um tempo o anjo puro, com quem ele quer se casar, e a mulher com quem também viverá sua sexualidade. De modo que a marquesa se vê como que deportada para a experiência da iniciação sexual: o rapaz virgem deu-lhe sua donzelice, a energia de seus primeiros arroubos, mas depois encontrou a amada, e agora a larga. Não se trata de uma oposição entre amor casto e amor profano, dado que a noiva terá a totalidade do amor, desejo incluído, de seu companheiro.

Assim, a moral da história é de certa forma a ruína dos jogos do desejo: por um lado, eles se saldam em catástrofe, com a marquesa se apaixonando pelo rapaz, que já não a quer, e o marquês morrendo em duelo com ele (no segundo volume do romance); por outro lado, eles são superados por algo mais completo, o amor-paixão-total por Sophie.

Este roteiro permite medir o que, recordando Sennett, podemos chamar a vitória do rousseauísmo (claro que com matizes: afinal, o amor com Sophie, apesar das dificuldades, se anuncia sexuado e feliz). Um amor vale mais, na medida em que não se esgota no desejo, e por isso mesmo já não precisa da dimensão lúdica, dos jogos, que faziam a força da sociabilidade que chamaremos a da máscara. Mais ainda: este novo amor tem a força de uma revelação; não por acaso, Sophie é a filha que o benfeitor de Faublas havia perdido, anos antes; o amor se volta para um objeto que é retomada, reencontro. Temos aqui alguns traços essenciais da confissão, se esta é antes de mais nada revelação do que estava oculto ou ocultado. Sophie aparece com uma força que diremos profunda, telúrica. Assim podemos opor o mundo dos jogos, que remete a um sem-sentido, melhor, que circula suspendendo o sentido das coisas, e por isso mesmo não possui telos, a um mundo verticalizado, aberto em profundidade, no qual mergulhamos como num poço, à busca de sentido, à busca de raízes ou razões, melhor, de algo que precede a razão mas tem a natureza e a força de uma resposta. As máscaras pertencem, claro, ao mundo dos jogos carentes de sentido, da circulação ininterrupta, enquanto o amor assume as feições da descoberta do outro e de si.

Segundo exemplo: uma passagem de Stendhal em seu interessantíssimo ensaio “A comédia é impossível em 1836”. Comparando o jovem de classe alta de seu tempo a seu homólogo de cem anos antes, observa Stendhal que hoje o tenente, tendo diante de si a possibilidade da promoção, vive competindo com os colegas, olhando-os com raiva e temor; a socialidade se tornou áspera, tensa, hostil; ao passo que, um século atrás, o mesmo tenente, sabendo que pouco importavam suas qualidades, porque teria aos vinte e poucos anos a patente máxima a que seu nascimento o destinava, podia viver de muito melhor humor. E conclui a passagem: “nem lhe passa pela cabeça a ideia de organizar uma divertida mascarade para o próximo Carnaval”.[17] O termo mascarade é extremamente feliz. Ao pé da letra, a sociedade deixou de ser festa. As relações sociais, tomadas pela mobilidade, e portanto pela competição, tornaram-se graves: o prazer, a alegria, a douceur de vivre, para citarmos Talleyrand, foram-se.

Mais precisamente, porém, a festa em questão seria uma mascarade: ora, é o jogo das máscaras que se perdeu. Cem anos antes, cada qual podia portar, num curioso jogo de identidade e de afastamento, a máscara que era sua na hierarquia social; o simples senhor de Saint-Vincent, melhor guerreiro que seu primo, conde de Saint-Vincent, aceitava sem problemas que este fosse seu superior hierárquico, por vir da corte; essas posições sociais constituíam máscaras que ambos portavam em sociedade, ao mesmo tempo, porém, que o preterido sentia que era algo mais que essa máscara; mas isso não o incomodava. Justamente porque a máscara não portava o sentido: apenas fazia circular o jogo pelo mundo. Ora, o problema é quando, reduzido o papel das máscaras, a hierarquia das posições sociais passa a supor-se representar o verdadeiro valor de cada um. O que era minha máscara torna-se, agora, meu rosto. São as faces que se enfrentam. O duelo ameno, que era mediado por máscaras sem sentido, passa no século XIX a ser uma guerra entre o valor interior de cada um dos membros da sociedade.

Em outras palavras: a vida em sociedade deixa de ser um jogo entre máscaras, para se tornar conflito de pessoas. Até a Revolução Francesa, o que amenizava o conflito interindividual era ele ocorrer entre imagens públicas mais do que entre pessoas, contrapondo figurações de notória artificialidade e irrealidade. Com a Revolução, com Rousseau ou o romantismo — como se queira —, ocorre uma naturalização desses agentes do conflito. Deixam as principais posições na sociedade de constituir simples posições, ocupadas por atores ou máscaras, para remontarem a algo mais fixo, forte mesmo: identidades. Graças às máscaras, o século XVIII podia estabelecer uma relação mais flutuante com as identidades. Tratava-se, antes, de nominações; os lugares eram ocupados por títulos, não por pessoas; através do ritmo das sucessões, quem fora príncipe de Conti tornava-se príncipe de Condé, quem era monsieur-le-duc virava monsieur-le-prince, e assim era referido, o que por sinal nos causa alguma dificuldade na leitura das memórias ou romances de época, como as de Saint-Simon ou os de mme. de La Fayette.

As identidades, porém, se fixam quando o mundo se torna sério. Ao jogo, que permitia a célebre douceur de vivre, sucede uma dimensão superiormente trágica, que cristaliza os destinos em torno das identidades. Sucede, à fluidez identitária, uma fixidez. As identidades remontam, agora, a alguma natureza: do coração vem a verdade. Nas relações sociais pré-revolucionárias, o caráter artificial do mundo se proclamava, como se podia ver quer no uso abundante de cosméticos, de perucas, de disfarces — de novo, as máscaras —, quer na importância que naquela aristocracia, mais que em qualquer outra desde, talvez, a romana,[18] desempenhava a. constituição de um estilo sofisticado de vida, a afastar-se de códigos supostamente naturais.

Isto se comprova, a contrario, pelo papel devastador que a referência ao direito natural vai desempenhar na luta contra o Antigo Regime. A evocação da natureza ou de leis naturais destrói, em sucessivas vagas, os costumes e depois as estruturas de poder vigentes. Isto se vê na valorização de vários modos de amor, do materno ao conjugal; na mudança pregada das relações sociais, que devem fundar-se cada vez mais em parâmetros propostos pela natureza; na crítica em regra à desnaturação, assimilada a uma degradação. Quem melhor expõe esse verdadeiro programa de um novo mundo é Rousseau — exaltando o amor da mãe que amamenta o filho, ou do casal que se ama e por isso procria (verdadeiro lugar-comum que se alastra pelo século), ou, ainda, proclamando, no Discurso sobre a desigualdade, que o homem é o único animal que pode alçar-se acima de seus condicionantes naturais, mas, igualmente, decair abaixo das bestas vis. Essa natureza, enfim, tem como veículo de sua revelação o coração. É ele que lhe dá voz.

Não será por acaso que Rousseau insistirá tanto, em sua obra, na necessidade do que podemos chamar o coração puro. Lembremos, na Profissão de fé do vigário saboiano, a passagem já citada que melhor responde às regras cartesianas do método, e na qual Rousseau confere ao coração o papel de decidir soberanamente da verdade ou falsidade das proposições filosóficas, substituindo os critérios de clareza e evidência por aquele da conformidade à natureza de animal senciente. Recordemos, no Contrato social, o momento em que se fala da vontade geral: esta, que se distingue da vontade de todos por fugir à soma dos particularismos, tem por única condição a recusa das facções: é preciso que da coisa pública só se fale em público, que todos os homens, quando falarem de todos, somente falem a todos, sem jamais se permitir a fala sorrateira, clandestina, particular e particularizante. Assim, e apenas assim, será possível que a verdade surja, brilhante, sem tacha, do debate público: certamente, porque não será possível tramar facções, partidos, que cindem a totalidade; provavelmente, porque se terá produzido a coincidência, a unidade entre todos, enquanto primeira, segunda e terceira pessoas do discurso.

O que temos em fins do século XVIII é a crise da máscara e da persona, para em seu lugar destacar-se a pessoa enquanto intimidade. Sennett assinalou a perda da dimensão pública que isto acarreta. Vimos, nas Cartas persas, como o desenlace indica um certo primado do privado sobre o público, melhor dizendo: como, à fácil representação de Usbek enquanto iluminista, de público, responde o seu desmascaramento enquanto repressor, na vida privada; é o obscuro, o fechado, o caseiro, o feminino, que desfaz a representação que o homem quer dar de si. Algo que podemos variadamente chamar de feminino, de privado ou íntimo vai vindo à luz e desqualificando uma imagem pública, que podemos também chamar de masculina ou dominante. O coração revela seus poderes como portador de verdade.

Talvez o mais forte, nas Cartas persas, seja o fato de que deste modo a máscara se torna véu. Máscara, ela propunha outra identidade, cuja força, aliás, consistia no fato de que o rosto sob ela nada possuía que se pudesse dizer propriamente autêntico: eis, para voltar a criticar o belo filme de Stephen Frears, Liaisons, leitura rousseauísta e portanto errada de Laclos, um ponto adicional em que ele romantiza um romance duro, de Antigo Regime (outro lugar em que isto ocorre é quando ele dá à morte dos dois amantes o sentido de encontro, e não de desencontro, de wagneriana Liebestod, ao invés de desamparo terrível).[19] Quando termina a história, e a Merteuil é castigada, o que sucede no filme é simplesmente tirar-se a máscara (os cosméticos) e revelar-se o rosto nu, verdadeiro e horrível. Lembremos que nas cartas o que sucedia era uma doença: a varíola deformava-lhe o rosto, e a sentença definitiva sobre ela era que a deformação dizia a verdade sobre ela, mas, na solução de Frears, as coisas se simplificam em demasia: é o rosto, sem cosméticos, que porta já a maldade, que revela.

A diferença, nas Cartas persas, é que no lugar da máscara temos o véu. Este apenas vela; não propõe uma outra identidade, no lugar da que temos, somente encobre. Seu papel é simplesmente negativo, o de introduzir trevas no lugar da pessoa, o de apagar a identidade, o de esconder e ocultar, ao passo que a máscara simulava. Por trás da aparente semelhança entre máscara e véu, o que na verdade temos é a distância enorme entre uma sociedade concebida enquanto representação, teatralidade, em que as identidades circulam e em vez de serem referidas, como modernamente, ao íntimo, à pessoa, remetem ao título, à posição social, à imagem pública — e outra sociedade na qual tudo se concebe como fechamento, clausura, em que as identidades femininas são caladas e, por isso mesmo, despertam no leitor, e em muitos homens, aqueles que não têm o que poderíamos chamar o direito ao harém (eunucos, castrados de modo geral — mas também os namorados esbulhados, como o de Roxana, morto a seus olhos, e por quem ela também se mata —, aqui sim introduzindo uma morte de amor, com os amantes satisfazendo na renúncia à vida o encontro de que foram privados neste mundo), o desejo fundo de que essas identidades se dêem à luz, de que seus rostos, corpos e mais que eles, suas pessoas, se tornem visíveis. Dizendo de outro modo: a própria máscara passa a ser concebida como véu. O mundo que ela simula e exibe vai perdend) interesse, em favor do mundo que ela vela — o qual, antes, não despertaria curiosidade quase nenhuma. Mas o importante são as duas sociedades assim postas em jogo, a da simulação generalizada e a da verdade encoberta.

Que balanço podemos, para terminar, fazer desta leitura constitutiva de nossa modernidade? Duas palavras. Primeira: ao se condenar o véu, esquece-se que ele existe de dois lados, em dois rumos. O véu esconde o rosto da mulher aos homens, mas também libera seu olhar sobre os homens. Não é interessante que a denúncia da velação, e por consequência do harém, retome apenas o primeiro desses efeitos, desconhecendo por completo o segundo? Não será este talvez o melhor indício de que se trata de uma denúncia masculina, cujo intuito pode até mesmo ser o de liberar as mulheres enquanto objeto do desejo masculino, mais do que como sujeitos de seu próprio desejo? Falando-se em repressão infligida à mulher, não se estará ignorando toda uma dimensão na qual o íntimo se relaciona com o exterior, pela via do véu, do harém, da treliça que permite às mulheres se debruçar sobre a sacada e acompanhar o que acontece nas ruas sem serem vistas? Sem tomar, em absoluto, a defesa do véu, é preciso, pelo menos, lê-lo em seus termos.

Segunda palavra: ao se condenar a máscara, às vezes versão ocidental do véu, às vezes seu contrapeso, perde-se mais do que se deveria a medida do que é artificial na sociedade. Ela é naturalizada. Sua verdade vem do coração, sua medida, da natureza. Conviria recuperarmos, no século XVIII, a convicção do artifício: ela nos dará uma medida mais equilibrada para sabermos o que, em nosso mundo, merece uma curiosidade menos enganada pelas aparências do natural, mais desconfiada, já que é próprio do artifício suscitar a suspeita, e que esta é traço importante, essencial, da reflexão.

NOTAS

[1] Emílio ou Da educação, trad. Sérgio Milliet (a que fizemos alterações mínimas), Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1992, p. 309; o grifo é nosso Emile, Paris, Classiques Garnier-Flammarion, 1966, p. 351.

[2] Torture and the law of proof Europe and England in the Ancien Régime, Chicago, University of Chicago Press, 1977. Comentei este livro em Ao leitor sem medo. Hobbes escrevendo contra o seu tempo, São Paulo, Brasiliense, cap. 6, “In tormento ventas”.

[3] O declínio do homem público. Ver o belo comentário de Gérard Lebrun a este livro, em Passeios ao léu, São Paulo, Brasiliense (“O desmoronamento da Res Publica”), pp. 255-62.

[4] Cartas persas, trad. Renato Janine Ribeiro, São Paulo, Pauliceia, 1991, p. 160.

[5] Usbek, carta 148, ao primeiro eunuco: “Recebe com esta carta um poder ilimitado sobre todos no serralho: manda com tanta autoridade como se fosse eu mesmo. Andem a teu lado o temor e o terror; vai de aposento em aposento como o emissário das punições e dos castigos. Que tudo viva consternado; que tudo se faça lágrimas só de ver-te” (p. 251). Carta 154, a suas mulheres: “Chegue esta carta como o raio que cai em meio aos relâmpagos e à tempestade! Solim é [agora] vosso primeiro eunuco, mas não para vos guardar e sim para vos punir. Ajoelhe-se todo o serralho e curve-se diante dele!” (p. 255)

[6] Jean P. Sasson, Princesa. A história real da vida das mulheres árabes por trás de seus negros véus, trad. Regina Amarante, 5 ed., São Paulo, Best Seller, s.d. [19931. A primeira edição americana é de 1992.

[7] Marianne Alireza, At the drop of a veil. The true story of an American woman’s years in a Saudi Arabian harem, Boston, Houghton Mifflin Co., 1991 (1 ed., 1971).

[8] Bouhdiba observa o caráter sensual da velação, a que corresponde um voyeurisme masculino: descrevendo uma egípcia que anda na rua, “[e]la podia sem dúvida estar velada, mas seu andar, o derreamento do corpo e o porte do véu, o tinido das jóias e os eflúvios de perfume só fazem exibi-la ao público. Os homens a devoram com os olhos e acentuam seu deslumbramento com exclamações diversas, mais ou menos sujas. A mulher diminui então o ritmo de seu andar, reduz o passo, sentindo nas palavras assim proferidas a medida de sua própria sedução. Tudo isso não passa, afinal de contas, de uma forma velada de ‘contra-strip-tease’ ” (Abdelwahab Bouhdiba, La sexualité en Islam, 3 ed., 1982, p. 250 [1 ed., 1975]). E o autor acrescenta: “Compreende-se o lugar do voyeurisme numa sociedade que regula e codifica, nos mínimos detalhes, o olhar” (p. 251).

Um depoimento mais recente, o da princesa Sultana: “A menina [que teve regras pela primeira vez] entra na loja [onde comprará seu primeiro véu], mas quem sai é uma mulher, coberta com véu e, a partir daquele dia, em idade de se casar. Sua vida muda naquela fração de segundo. Os homens nem reparam na menina que entra na loja, mas, depois que ela veste o véu e o manto, passa a ser alvo de olhares discretos” (Princesa, p. 64).

[9] Montesquieu, la politique, l’histoire, Paris, PUF, 1964. Há tradução em português.

[10] “Oriental despotism”, Journal of the History of Ideas, vol. 24, n° 1, 1963, pp. 133-42.

[11] São Paulo, Brasiliense.

[12] Devemos evitar transpor a outros tempos o antagonismo, que ficou pronunciado nestas últimas décadas, entre a liberação do desejo sexual e o ônus de ter filhos. Desde a pílula, esta oposição se radicalizou em escala antes inédita. É óbvio que em todos os tempos houve alguma forma de oposição assim entendida — veja-se, no próprio século XVIII, o romance erótico Teresa filósofa (1748), possivelmente de autoria do marquês d’Argens mas ela não encontrava a mesma radicalidade que atingiu desde a década de 1960. (Há edição em português: L&PM, 1991, prefácio de Renato Janine Ribeiro, pp. 11-24.)

[13] Lady Mary Montagu, L’Islam au péril des femmes. Une Anglaise en Turquie au XVIIf siècle, Paris, La Découverte, 1981.

[14] Idem, ibidem, Introduction, p. 41.

[15] A primeira parte das aventuras de Faublas é publicada em 1787, com o nome de Une année de la vie du chevalier de Faublas. Em 1788, seguem-se as Six semaines de la vie du chevalier de Faublas, completando-se a obra em 1790 com o Fin des amours du chevalier de Faublas. Posteriormente, o conjunto foi publicado com o título que lhe damos na nota seguinte.

Louvet foi deputado girondino à Convenção, sendo perseguido sob o Terror, e reintegrado depois da queda de Robespierre. Morreu em 1797, aos 37 anos.

[16] Louvet de Couvray, Les amours du chevalier de Faublas, Paris, 1966, pp. 69-70, col. 10/18.

[17] “La comédie est impossible en 1836”, em Mélanges, IL Journalisme, nas Oeuvres complètes de Stendhal, Genebra, Cercle du Bibliophile, 1972, p. 266.

[18] Cf. Paul Veyne sobre a aristocracia romana, por exemplo em seu capítulo no vol. I da História da vida privada.

[19] No romance de Laclos, fica absolutamente em aberto a questão se Valmont estivera ou não apaixonado pela sra. de Tourvel. Tanto pode ter sido isso, e que ele tenha sacrificado essa paixão a uma incapacidade sua de entregar-se, ou mesmo ao desejo — vaidoso — de possuir de novo a marquesa de Merteuil (que é mais ou menos o eixo que Frears vai seguir no filme), quanto pode ser que realmente, uma vez possuída Tourvel, ele já não a queira, ou, ainda, que seu verdadeiro objeto de amor e desejo fosse, sempre, Merteuil.

Essa ambiguidade é essencial ao romance. Ora, o que faz o cineasta é reduzi-la a uma incapacidade do aristocrata do século XVIII para o amor-paixão, e introduz (outro elemento rousseauísta) uma confissão de Valmont, à morte, dizendo ele no momento fatal que amara, mesmo, a Tourvel. Esta, por sinal, morre ao mesmo tempo — de amor. Os dois amantes, graças à montagem cinematográfica, podem se encontrar numa Liebestod. Terão sucumbido ao preconceito que ainda controlava a alma de Valmont; sua história assim será altamente crítica em relação ao Antigo Regime e à sua cultura, abrindo-se para um novo tempo.

É claro que esta é uma leitura possível da história, mas que a simplifica numa única direção.

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