1987

A melancolia de Ulisses

por Olgária Chain Féres Matos

Resumo

A Odisseia de Homero é o texto fundamental da civilização europeia, escrevem Adorno e Horkheimer em A dialética do Iluminismo. Ali se imbricam o mito e a ciência, o mito que antropomorfiza a natureza e a ciência que a objetiva para dominá-la. No episódio do canto das sereias, Ulisses se amarra ao mastro do navio para poder escutá-las sem ser enfeitiçado. Ele é fraco e sabe que o é, mas conta com seu autocontrole e sua astúcia para derrotar as paixões. Passagem da natureza à cultura. Ao sobreviver através do sacrifício e da repressão dos instintos, ao conquistar a maioridade através da renúncia (noutro episódio da viagem ele resiste a comer o lótus que faz perder a memória), Ulisses antecipa a ideologia burguesa do risco como justificativa moral dos lucros, a lógica do domínio que nasce da cisão cartesiana entre corpo e consciência. A promessa frustrada de felicidade (Kafka dirá, num conto, que o que Ulisses ouviu foi o silêncio das sereias) gera a melancolia, sentimento vago de um objeto renunciado que continua a ser desejado. Na gravura alegórica de Dürer, a figura da Melancolia aparece paralisada pelo pensamento, apenas segurando um compasso, símbolo da geometrização do espaço. O retorno de Ulisses a Ítaca, ponto fixo arquimediano do seu espaço e do seu mundo, a encontrará modificada pelo tempo. Toda a sua viagem é um sonho melancólico que persegue uma felicidade deixada no passado. O canto das sereias é o sempre ainda por vir e a impossibilidade de realizar a ânsia por um fim.


Mas vós com laços estreitíssimos deveis amarrar-me, para que eu fique seguro, de pé no mastro do navio; para isso, as cordas me prenderão. E se eu vos suplicasse, se vos ordenasse de soltar-me, com nós mais numerosos, apertai-me.

Odisseia, canto XII

ULISSES E O ILUMINISMO DA RAZÃO

Na Dialética do Iluminismo, Adorno e Horkheimer escrevem: “Nenhuma obra dá testemunho mais eloquente das imbricações entre razão e mito que a de Homero, que é o texto fundamental da civilização europeia”.[1] Tanto a mitologia quanto o Iluminismo filosófico (dos séculos XVII e XVIII) e científico encontram suas raízes nas mesmas necessidades básicas: sobrevivência, autoconservação e medo (Angst): “o Iluminismo, no sentido mais amplo do pensamento em contínuo progresso, sempre teve por alvo tolher o medo aos homens e torná-los senhores. Porém, toda a terra inteiramente iluminada brilha sob a luz de uma triunfante desventura”. O impulso à autoconservação nasce do medo mítico de perder o próprio eu, medo da morte e da destruição, que se manifesta em toda circunstância que determina sua diminuição ou opressão, gerando um recolhimento egocêntrico do sujeito sobre si mesmo. O eu se torna tão importante para si que tudo o que lhe é exterior, outro em relação a si, não tem valor nenhum a não ser um, negativo: o outro é visto como hostil, perigoso e devendo ser dominado. Para tanto, mito e ciência têm procedimentos diversos: no mito, o recurso ao mimetismo; na ciência, à identidade. No mito, graças ao mimetismo, um diálogo comunicativo entre o homem e a natureza exterior que o ameaça é possível. O feiticeiro — pela imitação das forças naturais — realiza gestos de cólera ou apaziguamento para conter sua angústia frente ao desconhecido. Na ciência, acredita-se vencer o medo quando nada mais houver de ignoto, de estranho. A ciência se reporta a uma natureza não mais qualitativa e animada, mas quantitativa e formalizada. O mito antropomorfiza a natureza, a ciência a objetiva para dominá-la intelectualmente, para reduzi-la à dimensão do mesmo — o Sujeito. A alteridade é negada porque a simples existência do outro é a fonte genuína da angústia. Para Adorno e Horkheimer, desde Sócrates aos sistemas racionalistas contemporâneos, a razão se condena à sua própria idolatria, o que se manifesta de maneira exemplar na figura de Ulisses e, em particular, no episódio do canto das sereias, na estreita e dolorosa conjunção entre pensamento e sobrevivência, entre o julgamento que discerne e a disciplina que ele impõe, para si e para os outros. Na Dialética do Iluminismo, Ulisses escapa ao perigo do canto, obrigando seus companheiros a remar com os ouvidos tapados, enquanto ele, solitário, com os ouvidos livres, preso ao mastro, escuta desesperado as vozes encantadoras do gozo recusado.

Deste ponto de vista, o desejo, condenado pela razão dominadora, representa uma espécie de resistência marginal e interrogativa com relação à racionalidade. As paixões são aquilo que lateralmente vêm perturbar a ordem da razão, enclaves nunca de todo colonizados e que retornam vagamente rebeldes. Quando se pretende ter penetrado no segredo da natureza, a felicidade e o sofrimento surgem como anomias inquietantes, como excesso ou falha não contabilizáveis que ameaçam e geram medo. Para vencê-lo, a razão tem que exercer uma constante vigilância e utilizar artimanhas a fim de se desfazer de tudo o que venha a provocar desequilíbrio.

ULISSES E A RACIONALIDADE IMPERFEITA

Por isso, Ulisses é astucioso: capaz de ludibriar o próprio Zeus, conhece o meio adequado para alcançar seus fins; nele, ardil e razão constituem a racionalidade. Mas qual é seu estatuto lógico, se tomarmos por referência a fórmula canônica da Razão, a de Descartes, para quem “a principal astúcia da razão é a de não querer de forma alguma utilizar astúcia”?[2]

Ulisses não é um ser plenamente racional: um ser racional não recorreria a um tal estratagema. Tampouco é o veículo passivo e irracional de seus desejos e de seu querer, já que obtém indiretamente o mesmo fim que um ser racional realizaria diretamente. A situação de Ulisses é: ser fraco e saber que o é. O episódio do Canto XII da Odisseia trata da fragilidade da vontade ou ainda de uma insuficiência da razão. Por ser imperfeita, a racionalidade necessita de regras que a tornem autossuficiente: “Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e o mais resoluto possível em minhas ações, em não seguir menos constantemente do que se fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas, sempre que eu me tivesse decidido a tanto. Imitando nisso os viajantes que, vendo-se extraviados nalguma floresta, não devem errar volteando, ora para um lado, ora para outro, nem menos ainda deter-se num sítio, mas caminhar sempre o mais reto possível para um mesmo lado, e não mudá-lo por fracas razões, ainda que no começo só o acaso talvez haja determinado a sua escolha: pois, por este meio, se não vão exatamente aonde desejam, pelo menos chegarão no fim a alguma parte, onde verossimilmente estão melhor que no meio de uma floresta”.[3] Para tal empreendimento, Descartes se confrontará com a fragilidade da razão face à supremacia das paixões. A filosofia clássica acreditou que “basta bem julgar para agir bem e se consolar”. A ciência do claro e do distinto depara com o confuso para combatê-lo. No tratado As paixões da alma, Descartes distingue dois modos para enfrentar as paixões: “Aqueles em quem naturalmente a vontade pode o mais facilmente vencer as paixões e paralisar os movimentos do corpo que as acompanham têm, sem dúvida, as almas mais fortes; mas há os que só podem experimentar sua força porque jamais combatem sua vontade com suas próprias armas, mas apenas com aquelas que algumas paixões lhes fornecem para resistir a algumas outras. Aquilo que chamo suas próprias armas são juízos firmes e determinados, que tangem o conhecimento do bem e do mal, segundo os quais ela resolveu conduzir as ações de sua vida.”[4]

A vontade pode, por meio da força, derrotar as paixões; pode também usar uma estratégia indireta: colocar as paixões umas contra as outras. Para isso, é preciso conhecer detalhadamente a maneira pela qual se processa o conhecimento, com a finalidade do autocontrole — no caso de Ulisses, como pôde amarrar-se ao mastro ou a isso obrigar-se.

A viagem de Ulisses a Ítaca é, segundo Adorno e Horkheimer, o caminho da constituição do sujeito racional que deve rivalizar com as manifestações adversas da natureza exterior e interior, ele, sempre fisicamente mais fraco em relação às forças contra as quais deve lutar para permanecer vivo. Ulisses não pode desafiar o poder das sereias diretamente: é impossível ouvir tal canto sem sucumbir. Para Ulisses, a liberdade “é idêntica ao controle da natureza, em nós e fora de nós, através da decisão racional”.[5] Ulisses se separa da natureza, de sua natureza: “O astucioso sobrevive somente ao preço de seu próprio sonho, que paga desencantando-se a si mesmo e desencantando as potências externas. Ele não pode jamais ter tudo. Deve saber esperar, ser paciente, renunciar; não deve provar o lótus ou comer os bois do deus sagrado Hiperion e, navegando através do estreito, deve contar com a perda dos companheiros que Cila arranca da nave. Ele se esquiva e se desvia: a luta é sua sobrevivência. E toda a fama que ele outorga a si mesmo ou que os outros lhe outorgam só faz destacar que a dignidade do herói só se conquista mediante a humilhação do instinto contra uma completa, universal e indivisa felicidade”.[6]

Ulisses domina a natureza pelo cálculo racional: ele representa a racionalidade contra o poder do destino. Esta racionalidade, porém, assume uma forma restritiva: só enfrenta a presença constante da natureza através da razão dominadora. Suas aventuras — o confronto com a deusa Circe, a tentação das sereias, o Lótus — são desafios constantes à sua autonomia potencial. Onde há fascinação e perigo, lá onde o impulso ou o instinto governam a ação, o sujeito que se está afirmando é ameaçado de destruição. Para garantir a autoconservação deve perseguir uma política puramente pragmática de autointeresse. Apenas através da repressão dos instintos e de sacrifício contínuo Ulisses sobrevive. A passagem da natureza para a cultura se faz pela prática da renúncia. Deste ponto de vista, Odisseu é interpretado como a grandiosa tentativa de dar forma e conteúdo preciso ao Sujeito no momento crucial de sua constituição histórica. Segundo Horkheimer e Adorno, o sujeito homérico é em sua estrutura lógica mais íntima o mesmo que dará, mutatis mutandis, Lutero. Os artifícios de Ulisses são o protótipo da renúncia burguesa. A astúcia passa a ocupar o lugar do sacrifício, astúcia que é injustiça porque logra a natureza e cada mudança na lei — a injustiça — ameaça e, ao mesmo tempo, reforça o eu. Ao abandonar os ritos sacrificiais que colocavam em risco seus próprios vínculos do ego, o si se libera da ameaça de dissolução opondo suas faculdades de conhecimento à natureza, conquistando assim o controle racional de seu em torno. A viagem atraiçoadora de Ulisses antecipava a ideologia burguesa do risco como justificativa moral dos lucros. O homem se realiza na medida em que se sacrifica: “O absurdo do capitalismo totalitário, cuja técnica de satisfação das necessidades torna em sua forma objetiva e determinada pelo domínio aquela satisfação impossível e tende à destruição da humanidade: este absurdo está exemplarmente pré-formado no herói que se subtrai ao sacrifício sacrificando-se”.[7] Quando Circe enreda com sua beleza aqueles marinheiros de Ulisses enviados para explorar a ilha, ela os tenta a “entregarem-se ao instinto”.[8] Aqueles que se abandonam aos poderes de Circe são transformados em animais mansos e selvagens: “a forma animal do homem tentado sempre foi associada à reversão ao impulso básico”.[9] Não são por isso machucados ou injuriados: “o mandamento mítico ao qual sucumbem libera ao mesmo tempo a natureza neles reprimida. A repressão do instinto que faz deles indivíduos […] e os separa dos animais era a introversão da repressão no ciclo fechado sem esperança da natureza […]. Mas, porque uma vez foram homens, a épica civilizada representa o que lhes aconteceu como nada, a não ser degradação inconveniente”.[10]

A viagem de Ulisses é a viagem metafórica que a humanidade precisou realizar para efetuar a passagem da natureza à cultura, do instinto à sociedade, da autorrepressão ao autodesenvolvimento. O eu homérico que distingue as forças obscuras da natureza e a civilização expressa o medo original da humanidade diante do outro. O ato sacrifical repetido organiza a identidade do sujeito com as forças da natureza, a fim de lhe permitir purificar-se da natureza no interior da própria humanidade. A substituição que ocorre no sacrifício não deve ser separada da divinização do sacrificado — “embuste que é a racionalização sacerdotal do assassínio pela apoteose do escolhido […]. A substituição do sacrifício pela racionalidade autoconservadora não é menos troca do que o fora para o sacrifício”.[11] O núcleo comum entre o sacrifício ritual e a ratio abstrata burguesa é o princípio da troca, o equivalente. O sacrifício significa, para Adorno e Horkheimer, uma das formas mais originárias da troca racional. Os sacrifícios são prestados quando a consciência chega ao momento da mais terrível das ameaças — viver em estado de natureza. Nessa primeira etapa a natureza é um estado indiferenciado, do qual o indivíduo ainda não se separou; para dela destacar-se deve passar por um processo de dilaceramento e sofrimento, pois a indivisão do homem e da natureza é vivida como situação de puro prazer.

O primeiro perigo para Ulisses é o lótus e a lotofagia, que faz perder a memória. Seus companheiros que comem a flor não querem continuar a viagem, viagem da subjetividade. Uma vez comida a flor, mergulham em uma relação harmoniosa com seu meio. Mas a harmonia e a felicidade criadas não são fruto de um trabalho autoconsciente. Ou, antes, refletem uma unidade orgânica entre o homem e a natureza: “Para aqueles que aderem à autoconservação, esse tipo de idílio […] não é permitido; para Ulisses, a felicidade oferecida pelo lótus é mera ilusão, uma vegetação tola […] e, no melhor dos casos, a ausência da consciência do infortúnio”.[12]

Quanto a Odisseu,[13] só pode afirmar-se rompendo com a natureza; pelo autossacrifício não come a flor, não entra em fusão com o estado de felicidade inorgânico e pode constranger seus marinheiros que choram e sofrem por não querer o regresso a voltar ao navio. Só Ulisses é sujeito porque conserva a memória, a possibilidade de manter a tradição, vale dizer, a cultura. Ulisses cede a integridade de seu ego contra o inevitável da fatalidade natural. No Canto XII, as sereias são o passado e a tentação de retorno a ele. Prometem plenitude e felicidade, mas ameaçam a autonomia do sujeito. Neste episódio, os marinheiros são heterossacrificados com o artifício de Ulisses: “O trabalhador com os ouvidos tapados com cera deve olhar para a frente, atento e concentrado, ignorando tudo o que se passa ao lado”. Quanto a Ulisses, ele se autossacrifica desenvolvendo a subjetividade. Ele, o proprietário do navio, consciente do fascínio da melodia e não obstante querendo ouvi-la, amarra-se ao mastro: “Ulisses faz com que seus homens o amarrem como o burguês que se recusa à felicidade tanto mais obstinadamente quanto mais perto chega dela pelo crescimento de seu poder”. Os marinheiros, com os ouvidos tapados, desconhecem o perigo mas também a beleza do canto. Esta tem sido a experiência subsequente da humanidade: à maioria foi negado o conhecimento da beleza e do amor.

Ulisses é a figuração do indivíduo lutando por uma vida independente das vicissitudes do destino e da tentação. Onde o impulso ou o instinto comandam a ação, o sujeito que a realiza é ameaçado de destruição. Ulisses foge ao chamado das sereias apenas submetendo-se voluntariamente à sua tortura.

As etapas vencidas na viagem de volta a Ítaca são aquelas realizadas pela humanidade para poder chegar, partindo do mito, ao despregamento vitorioso da ratio: submissão dos instintos a um controle — repressão que é uma luta que se inicia com a conquista interna perpétua sobre as “faculdades inferiores”. Pelo menos desde Platão, a subordinação dos instintos é vista como elemento necessário da razão humana. A luta culmina em um sistema produtivo cuja manutenção requer que o corpo humano se submeta a suas necessidades. Ao dominar-se a natureza exterior, domina-se a interior. Em Ulisses convergem Iluminismo e Mito. Que pretendia o mito? Capturar o fato, a imediatez nos símbolos do acontecimento arcaico, de modo que pudesse subjugar o novo das redes do velho, o destino e a repetição aplacando o medo, porque também eliminavam a esperança. O sobrenatural, espíritos e demônios, são imagens espelhadas dos homens que se permitem estar assustados pelos fenômenos naturais. O mito pretende liberar os homens dos perigos da existência natural — animal e vegetal — e protegê-los a partir de níveis cada vez mais altos de Iluminismo, por temor de uma regressão à condição de sujeição, ainda mais arcaica, ao poder das forças naturais. Que faz o Iluminismo moderno? Desencanta o mundo para aprisioná-lo “em um gigantesco juízo analítico”. Nos dois casos, “não é a realidade que carece de esperanças, mas o saber”.[14]

Toda tentativa para quebrar a sujeição à dominação da natureza, “porque a natureza está quebrada”, penetra “cada vez mais profundamente na escravização da natureza”[15] O si, que fez seu aprendizado na “escola da submissão ao mundo externo”, descobre que “a verdade está no pensamento que dispõe”. Todos os resíduos do natural devem ser eliminados deste novo conceito do si. Este não mais deverá ser o corpo ou o sangue; a alma ou o eu natural: o si, uma vez sublimado no sujeito lógico ou transcendental, constitui-se como ponto de referência da razão. É esta a astúcia de Ulisses: “perder-se para se conservar”, afastar o múltiplo para ganhar a identidade. A Odisseia revela os poderes celebrados no poema, suas relações com a dominação e a exploração; mostra como, desde o início do pensamento ocidental, a luta pela autoconservação e autonomia se vinculou ao sacrifício, à repressão, à renúncia. Na passagem diante das sereias, o chamariz era a tentação de perder-se no passado. Mas o herói que é submetido à tentação chegou à maioridade pelo sofrimento. A dominação do homem sobre si mesmo — que funda sua ipseidade — é inevitavelmente uma realização paradoxal: envolve a mutilação do sujeito a serviço do qual é efetivada. Esta autonegação em nome da autoafirmação é “o núcleo de toda racionalidade civilizatória”.[16] Na Dialética do Iluminismo, o ego que luta pela segurança externa e interna não pode ser seguro e estável enquanto se confronta com a resistência da natureza. O processo pelo qual estabelece uma distância da natureza através do controle — que torna possível a identidade do eu — é reiteradamente a fonte do medo com relação à natureza, e este medo só pode ser eliminado através do controle renovado, que necessita dissimular sua origem no medo. O processo de dominação crescente exercida pelo sujeito racional, no qual a superioridade da natureza em relação aos homens é reafirmada, se consegue ao preço da crescente inflação da “segunda natureza”, uma camisa de força de coerções sociais e psíquicas. Só assim se forma a identidade do eu. O sujeito da civilização é moldado por uma cadeia de renúncias, um eu que, frequentemente, dá mais do que recebe a fim de assegurar sua própria vida: “o homem iluminado, o Aufklärer, contém o homem mitológico e as cicatrizes não reconciliadas da luta do sujeito como homem histórico”.[17]

A luta do Iluminismo é para demitizar o mundo, com o saber científico, do terror sobrenatural: “O Iluminismo é a angústia mítica radicalizada”.[18] Não pode haver nada de exterior, o concreto múltiplo e diverso é reduzido à identidade. A abstração do qualitativo e plural também liquida a alteridade do outro. O sujeito iluminado se sente ameaçado em sua absolutez “no menor resíduo do não-idêntico”. Para ele, o não-ser, o outro, é destruído e reduzido à dimensão do Mesmo. Esse eu liquida a alteridade e nega a si próprio, convertendo-se em subjetividade vazia.

O processo de dominação crescente exercida pelo sujeito racional é a história do esforço do homem para subjugar a natureza: subjugação do sujeito pelo próprio sujeito. Privilegiando a consciência e reprimindo tudo o que se apresenta como natureza, a lógica do domínio, que nasce da cisão cartesiana da realidade corpórea e da consciência, era guiada, em sua ação, pelo objetivo de oferecer ao sujeito a possibilidade de exercitar o próprio controle sobre toda a realidade a ele contraposta. A civilização burguesa, que se afirmou no primado atribuído por Descartes à consciência, institucionalizou o conflito entre o eu e o mundo. Neste contexto, em que tudo converge para a manipulação e o domínio, o amor, ao contrário do que afirmava o racionalismo espinosano, “está associado à veneração do ser que o desperta”.[19] E mais, o amor comporta o abandono do amante ao amado e, consequentemente, um momento de não domínio por parte do sujeito. Contrapõe-se à lógica instrumental que exige que cada um tenha em suas ações atitude racional e calculada em relação à planificação das vantagens a serem conquistadas: “A humanidade paga pela superação do medo do outro internalizando a vítima”. A renúncia torna o homem triste, e a necessidade de amor, a necessidade do outro como única garantia de não agressão, converte-se em melancolia.

ULISSES E A MELANCOLIA

As sereias simbolizam muito do que nas mulheres é atraente e temível para os homens. São a promessa de felicidade na forma do amor que ameaça: o amor erótico. No século XVII, Jacques Fernand escreve: “O amor ou a paixão erótica é uma espécie de devaneio procedente de um desejo de desfrutar do objeto amado. Ora, se esta espécie de devaneio é acompanhada de medo ou tristeza, chama-se melancolia”.[20] Nos termos da Dialética do Iluminismo, esta melancolia provém do medo de perder o próprio eu, de onde a renúncia, o autossacrifício. Romano Guardini[21] escreve: “Aqui reside antes de mais nada o enigmático de melancolia: como a vida se volta contra si mesma; como os impulsos de autoconservação […], de exigência de autorrealização podem bloquear-se, tornar-se inseguros e desarraigar-se pelo impulso de autonegação. Poder-se-ia dizer que, na imagem fundamental da melancolia, o aniquilamento se converte em valor positivo, em algo desejado e planejado”.

Ulisses se torna melancólico porque o objeto renunciado continua a ser desejado. Nas análises freudianas, essa impossibilidade de abandonar o objeto amado é a fonte natural da tristeza. Freud, porém, distingue a tristeza da melancolia: “A tristeza”, escreve Freud, “é geralmente a reação à perda de um ser amado ou de uma abstração equivalente: a pátria, a liberdade, o ideal […]. Mas em que consiste o trabalho executado pela tristeza? […] O exame da realidade mostrou que o objeto amado já não existe e exige que a libido abandone todas as relações com o mesmo […]. Apliquemos agora à melancolia os conhecimentos que adquirimos do estudo da tristeza. Em uma série de casos constitui, também, evidentemente, uma reação à perda de um objeto amado […], mas não conseguimos distinguir claramente o que o sujeito perdeu e devemos admitir que também a ele é impossível concebê-lo claramente”.[22] O melancólico causa uma impressão enigmática porque não se pode descobrir o que é que o absorve tão intensamente.

Talvez seja a tristeza intensa — reação à perda de um ser amado — o que integra a cessação de interesse no mundo exterior e a submissão total à dor, o que fez com que a acedia na Idade Média fosse representada por um homem e uma mulher adormecidos, com incapacidade de ação, com inibição da vontade e perda do desejo, assimilados à preguiça, ao “sono culpado”, à “inação”. Giorgio Agamben,[23] ao examinar a interpretação que os doutores da Igreja dão da acedia, nos mostra que eles não a colocam sob o signo da preguiça mas da tristeza angustiada e do desespero. Segundo Santo Tomás, na Suma Teológica, a acedia é uma espécie de tristeza diante dos bens espirituais essenciais do homem, um recesso temeroso diante da obrigação feita ao homem de se manter diante de Deus. Porém, que o acidiosus se afaste de seu fim divino não significa de maneira alguma que chegue a esquecer ou cesse, na realidade, de desejá-lo: “Se em termos teológicos o que falta não é a salvação, mas a via que conduz a ela, em termos psicológicos, o recessus traduz menos um eclipse do desejo do que a colocação fora de alcance de seu objeto: trata-se de uma perversão da vontade que quer o objeto, mas não a via que a ele conduz e que ao mesmo tempo deseja e barra o caminho a seu próprio desejo”.[24] Nesta perspectiva, a tristeza de Ulisses não é apenas fuga do canto das sereias, mas também uma fuga em direção a ele, com o qual se comunica no modo da negação e da carência. Mas o que significa o canto? Qual seria sua existência?

Torna-se aqui esclarecedora a referência à concepção moderna da Melancolia, tal como modelada por Dürer. Panofsky [25] estabelece um paralelo entre a gravura de São Jerônimo e a Melancolia I: na primeira obra, o estar a serviço de Deus em uma vida apaziguada de felicidade e sabedoria divina está em contraposição à trágica inquietação da criatura humana. Panofsky observa que os ideais antitéticos desses quadros não são ocasionais: São Jerônimo está confortavelmente instalado em sua escrivaninha, entregue ao estudo em ambiente caloroso e ensolarado; sua cela, preenchida por seus animais prediletos, bem nutridos e satisfeitos; quanto a ele, está serenamente absorvido por seu trabalho teológico.

Já a Melancolia é alada. Está agachada em uma laje de pedra de um edifício cuja construção ficou inacabada. Situa-se em um ponto frio e solitário, não longe do oceano, fracamente iluminada pela luz do luar. Está acompanhada por um Eros moroso instalado em uma pedra afiada e abandonada. Ela rabisca qualquer coisa em uma lousa, perto de um cão arrepiado e maltratado. Está proscrita em uma inação melancólica: negligente no vestir, cabelos em desalinho, descansa a cabeça na mão e com a outra segura mecanicamente um compasso, seu braço apoiado em um livro fechado. Seus olhos estão erguidos, seu olhar é desperto, sombrio, fixo. O estado de espírito de seu gênio infeliz se reflete na quantidade de objetos em desordem, contrastando com a arrumação limpa e eficiente dos pertences de São Jerônimo. A Melancolia está plenamente acordada, com o olhar fixo em busca desejada mas infrutífera. É inativa não por preguiça, mas porque o trabalho perdeu o sentido: sua energia está paralisada não pelo sono, mas pelo pensamento. A melancolia não é, deste ponto de vista, somente um caso mental, mas um ser pensante em perplexidade. Na tradição medieval, Saturno é o planeta da melancolia que Dürer representa no compasso: constrói uma melancolia cercada das ferramentas e símbolos do espaço criativo e da pesquisa científica — o compasso, uma esfera torneada de madeira, emblemas que subjazem às artes da arquitetura e carpintaria. Astrolábios e compassos dizem respeito à geometrização do espaço.

Krzystof Pomian aponta o paradoxo presente em toda racionalidade calculadora, de índole cartesiana, quanto trata da “Melancolia de Dürer”: “Os instrumentos e objetos científicos adquirem a estranha ambivalência que consagra o hífen entre geometria e melancolia”.[26] Deste ponto de vista, a floresta cartesiana, na qual o homem fica ao extravio, deveria ser superada pelo triunfo da linha reta, pela garantia de um ponto fixo: “Esforçar-me-ei”, escreve Descartes na Segunda Meditação Metafísica, […] “e seguirei novamente a mesma via que trilhei ontem, afastando-me de tudo em que poderia imaginar a menor dúvida, da mesma maneira como se eu soubesse que isto fosse absolutamente falso; e continuarei sempre no meu caminho até que tenha encontrado algo certo, ou pelo menos, se outra coisa não me for possível, até que tenha aprendido certamente que nada há de certo no mundo. Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outra parte, não pedia nada mais exceto um ponto que fosse fixo e seguro”.[27]

Por que a geometria não exclui a melancolia? Sabemos que o luto é um estado consecutivo a uma perda realmente ocorrida, o desaparecimento de um ser amado, enquanto na melancolia é difícil determinar o que foi perdido: “É preciso admitir que uma perda ocorreu, mas sem que se chegue a saber o que foi perdido”. Trata-se de uma situação enigmática de uma “perda sem objeto perdido”, uma “perda desconhecida”, “perda do objeto que escapa à consciência”. Assim, o compasso saturnino revela a impotência da razão abstrata e calculadora em remover o sentimento da incoerência da vida.

Essa aliança entre geometria e melancolia tem uma longa tradição: aqueles dotados para a geometria são predispostos à melancolia, porque a consciência de uma esfera situada fora de seu alcance faz sofrer àqueles que têm o sentimento da limitação e insuficiência no plano do espírito.[28] Já o filósofo escolástico Henry de Ghent apontara a existência de duas espécies de pensadores: por um lado, os espíritos filosóficos — aqueles que não têm dificuldade na compreensão de noções puramente metafísicas, como a ideia de um anjo ou de um vazio fora do mundo. Por outro, aqueles “em quem o poder imaginativo ultrapassa o do conhecimento”. Estes “não serão receptivos à demonstração a não ser na medida em que sua imaginação possa seguir todo o percurso […]. Seu intelecto não pode transcender os limites de sua imaginação […], só pode apreender o espaço (magnitude) ou o que tem uma localização e uma posição no espaço […]. Não importa o que pensem, sempre se reportará a uma quantidade, ou se localizará em um volume, por exemplo, um ponto. Eis porque tais homens são melancólicos e tornam-se excelentes matemáticos mas péssimos metafísicos”.[29] Tal como o objeto inexistente na melancolia, os entes geométricos têm natureza melancólica.

Cabe agora uma pergunta acerca das sereias e de seu canto. Teriam efetivamente existência? E, se existissem, teriam realmente cantado? A esse respeito Kafka nos responde com seu conto O Silêncio das Sereias, onde se lê:

Prova de que mesmo medidas inadequadas, verdadeiramente tolas podem ser suficientes para a autoconservação.

Para proteger-se das sereias, Odisseu tapou os ouvidos com cera e deixou-se acorrentar ao mastro. Naturalmente todos os viajantes desde a origem mais remota poderiam ter feito algo da espécie (exceção feita àqueles que as sereias seduzem mesmo a distância), mas era conhecido de todo mundo que isso não poderia possivelmente ajudar, o canto das sereias penetrava tudo, mesmo na cera, e a paixão daqueles que elas seduziam teria rompido mais do que corrente e um mastro. Mas Ulisses não pensava nisso, ainda que tivesse escutado falar; confiava completamente em seu punhado de cera e no seu feixe de correntes, e com prazer inocente de seus poucos recursos navegou em direção às sereias.

Ora, as sereias têm uma arma ainda mais terrível do que seu canto, a saber, seu silêncio. Embora nunca tivesse acontecido, é talvez concebível que alguém pudesse ter escapado de seu cantar, mas de seu silêncio certamente não. Ao contrário do que faria crer a ideia de tê-las superado com suas próprias forças e a consequente arrogância que tudo arrasta com ela, nenhuma resistência material é possível.

E, de fato, quando Odisseu chegou, essas poderosas cantoras não cantaram, seja por acreditarem que contra seu oponente apenas o silêncio poderia conseguir alguma coisa, ou então porque a expressão de bem-aventurança na face de Odisseu, que estava pensando apenas em cera e corrente, levou-as a esquecer tudo a respeito de seu canto.

Odisseu, contudo, se é possível expressar assim, não escutou seu silêncio. Ele acreditava que elas estavam cantando, e que somente ele estava preparado para não ouvi-las; por um primeiro momento passageiro ele viu o movimento de suas cabeças, sua respiração profunda, seus olhos tristes, suas bocas semiabertas, mas ele imaginava, que isso resultava das árias que ecoavam não ouvidas a seu redor. Mas logo tudo isso fugiu de sua visão, que se fixava na distância, as sereias positivamente desapareceram de sua preocupação, e no momento preciso em que ele estava mais próximo não se ocupava mais delas.

Mas elas — mais adoráveis que nunca — esticavam-se e se torciam, deixavam seu medonho cabelo flutuar livremente com o vento; deitavam suas caudas sobre as rochas; elas não queriam mais seduzir, tudo o que desejavam era captar a radiação refletida nos grandes olhos de Odisseu.

Se as sereias tivessem possuído consciência elas teriam sido aniquiladas naquele momento; como elas permaneceram, apenas Odisseu delas escapou.

Há ademais um complemento, que igualmente chegou até nós. Odisseu, dizem, era tão astuto, era tal esperta raposa que nem mesmo a deusa do destino poderia ler seu coração. Talvez. Embora isso ultrapasse a compreensão humana, ele realmente se deu conta de que as sereias estavam silentes, e enfrentou-as e aos deuses com o episódio simulado acima meramente como uma espécie de proteção.[30]

Ulisses é melancólico pois a racionalidade que o guia é, ao mesmo tempo, hostil a sua própria morte e a sua própria felicidade. Quer tenham as sereias cantado ou silenciado, a racionalidade de Ulisses o faz fracassar no instante mesmo em que triunfa. Torna-se racional e melancólico:

A peculiaridade mais singular da melancolia [escreve Freud] é sua tendência para se transformar em mania, ou seja, num estado sintomaticamente oposto […]. Podemos dizer que a mania equivale a um verdadeiro triunfo, com a ressalva de que o Eu ignora totalmente que objeto o obteve.

Verifica-se, portanto, que, na mania, o Eu deve ter dominado a perda do objeto (ou a tristeza produzida pela perda citada ou talvez o próprio objeto), ficando disponível toda a soma da contracarga atraída do Eu pelo doloroso sofrimento da melancolia […]. O maníaco evidencia-nos sua emancipação do objeto que o fez sofrer, empreendendo com ânsia novas cargas de objeto”.[31]

Mas onde teria ocorrido a perda de Ulisses? Ao final da viagem ao interior de si mesmo, não há lugar de repouso, porque ela é a renúncia convertida em autonomia. Com o autossacrifício do desejo, com a repressão da natureza interior ao homem, pode-se dizer que a perda é uma perda que ocorre no próprio eu, quando renuncia a seu sonho: “Guiando-nos pela analogia [da melancolia] com a tristeza”, diz Freud, “deveríamos deduzir que [o sujeito] sofreu a perda de um objeto que teve lugar em seu próprio eu”.[32]

Tal é a racionalidade imperfeita de Ulisses que se afirma negando-se. A nostalgia de Ulisses é o sentimento de quem não tem morada, em nenhuma parte de si mesmo encontra repouso. Se, para Adorno e Horkheimer, na épica de Homero há prefigurações importantes da Ilustração, ela comporta também um forte elemento de nostalgia, de aspiração à reconciliação. O “lar” para o qual Ulisses procurava regressar estava, porém, alienado da natureza, enquanto a verdadeira nostalgia se justificava apenas quando o “verdadeiro lar” significava natureza. Assim, para uma tal dor, há um remédio: o retorno. Ítaca é para Ulisses o nome do remédio. Porém, como nota Jankélevitch, “os lugares não são intercambiáveis e indiferentes como deveriam sê-lo no espaço abstrato e homogêneo dos geômetras”.[33] Se a melancolia se desfizesse no retorno que preencheria o vazio e a ausência, o desequilíbrio cederia ao equilíbrio, a instabilidade e a inquietude à imobilidade, a tensão ao repouso. Para Ulisses, Ítaca é o centro do mundo, seu eixo arquimediano, o ponto fixo. Porém, o repatriado não encontra em sua pátria aquilo que procurava, não reconhece seu “lugar natural”. Quando volta, ele mesmo está mudado e Ítaca não permanecera tampouco a mesma: “A deusa Atena, no momento do retorno de Ulisses, envolve Ítaca com uma nuvem que impede que Ulisses a reconheça”.[34] A terra natal transforma-se em terra estranha, por uma dialética sutil do espaço e do tempo: Ulisses reencontrará, pois, sua Ítaca lá mesmo onde a havia deixado; mas o Ulisses de outrora, aquele que deixou sua ilha, ele não encontrará mais. Ulisses é agora um outro Ulisses, que reencontra outra Penélope. E Ítaca é também uma outra ilha, no mesmo lugar, mas não na mesma data. A viagem no espaço é uma viagem no tempo, e o ponto de chegada, o ponto fixo ansiado não existe, deixando-nos à deriva. Talvez por essa razão, a Odisseia de Nikos Kazantzakis comece onde termina a de Homero. Ulisses parte para uma segunda Odisseia. O deslocamento no espaço produz a ilusão da mudança, mas é no tempo que tudo muda.

O canto das sereias era o passado e a tentação de perder-se nele. A viagem ao passado é uma viagem “em sentido inverso ao da morte”, é busca da promessa de felicidade vislumbrada, por assim dizer, na infância, aquela reserva de energia que os anos por vir comprometerão irremediavelmente ou resgatarão. O adulto quando se torna melancólico é chamado a precisar e a desocultar a própria infância durante toda a sua vida. Na Dialética do Iluminismo, Horkheimer e Adorno reconhecem na infância uma stendhaliana “promesse de bonheur”, “um impulso para o futuro que se obscurece na idade adulta, em virtude da adaptação passiva à realidade para a qual os homens se induzem”.[35] A infância é uma espécie de Heimat, de pátria, de morada na qual “ninguém ainda chegou”. A experiência do unheimlich pode encontrar na memória o caminho do retorno à pátria: “O forasteiro participa de algo que só podem sentir os antigos moradores de um lugar, pois a infância é a vara de condão que aponta sempre para a solidão e o desconsolo”.[36] Esta navegação para o passado visa a algum fim? Blanchot[37] diz que é possível pensar que todos os que se aproximavam do canto das sereias só haviam conseguido chegar mais perto desse fim perecendo ou de impaciência por, prematuramente, terem afirmado: é aqui, aqui eu jogarei a âncora, mas também o contrário, pois era tarde demais, o alvo já fora ultrapassado. Sempre ainda por vir, sempre já perdido, o lugar onde cantam as sereias significa a impossibilidade de realizar a ânsia por um fim, por uma destinação última.

Sonho melancólico o de Ulisses, que seguia “saudoso de sua verde Ítaca”, perseguindo uma felicidade deixada no passado, cujo significado é a imagem da felicidade “como o fim da tensão, do sofrimento, da perda e da morte: volta do exílio […], reconciliação do homem consigo mesmo, da natureza com a história”.[38]

Notas

[1] Dialectique de la raison, Paris, Payot, p. 70.

[2] Descartes, Oeuvres complètes, 11 vols., Paris, Vrin, 1897-1910, v. IV, p. 357.

[3] “Discurso do método”, in Obras escolhidas, São Paulo, Difel, 1962, p. 60-1.

[4] Oeuvres complètes, v. IX, op. cit., pp. 366-7.

[5] Horkheimer, Kritische Theorie, v. II, Frankfurt a.M., Fisher, p. 157.

[6] Idem, Dialectica del Iluminismo, Buenos Aires, Sur, p. 76.

[7] Idem, Dialetic der Aufklärung, Frankfurt a.M., Fisher, p. 3.

[8] Idem, ibidem, p. 69.

[9] Idem, ibidem, p. 69.

[10] Idem, ibidem, p. 70:1.

[11] Idem, ibidem, p. 260..

[12] Idem, ibidem, p. 69.

[13] Odisseu tem como raiz Udeis, que significa em grego ninguém, isto quer dizer que durante todo o tempo em que Ulisses não se constitui como sujeito plenamente racional ou, em outras palavras, enquanto não se constituiu a passagem da natureza para a cultura. Ulisses é ninguém, ainda não tem um nome, ele é anterior ao mundo conceitual. Essa passagem pode ser encontrada em particular no episódio do encontro de Ulisses com Polifemo na ilha dos Ciclopes. Os ciclopes são gigantes de um único olho no meio da testa, o que significa que eles desconhecem a tridimensionalidade do espaço, desconhecem o universo da cultura. Ulisses havia sido advertido por Circe de que não deveria amanhecer na ilha dos Ciclopes para não ser por eles atacado. Porém sua curiosidade faz com que imagine um estratagema para poder explorar a ilha sem correr risco de vida. Embriaga Polifemo e, enquanto este se encontra adormecido, fere seu olho, cegando-o. Polifemo desperta com a dor, gritando “Udeis me feriu”. Os demais ciclopes acorrem, mas quando ouvem “ninguém me feriu” recolhem-se novamente, como Ulisses havia calculado. Portanto, uma vez consolidada esta racionalidade astuciosa, Ulisses ganha este nome.

[14] Horkheimer, Dialetic der Aufklärung, p. 43.

[15] Idem, ibidem, p. 19.

[16] Idem, ibidem, p. 61.

[17] Massimo Canevacci, O conceito de iluminismo, Universidade de Roma, 1974, mimeo.

[18] Horkheimer, Dialectic der Aufklärung, p. 24.

[19] Idem, Dialectica del Iluminismo, p. 16.

[20] Traité de l’essence et guérison d’amour ou de la Melancolie Erotique, Toulouse, 1612, p. 27.

[21] “Von Sinn der Schwermut”, citado por Igor Caruso in La Sepiración de los Amantes, Siglo Veintiuno, 1978, p. 18.

[22] Freud, Obras Completas, v. V, Rio de Janeiro, Delta, 1959, pp. 494-5.

[23] “Parole et fantasme dans la culture occidentale”, in Stanze, Paris, Christian Bourgois, 1981.

[24] Idem, ibidem, p. 26.

[25] The Life and Art of Albrecht Dürer, Nova York, Princeton University Press, 1971.

[26] A Libre Montage, Raymond Klibansky, Erwin Panofsky, Fritz Saxal, “Saturne et la mélancolie”, Le Débat, op. cit., p. 126.

[27] Meditação metafísica, in op. cit., Difel, 1962, p. 124.

[28] Cf “L’esoterisme d’Albrecht Dürer”, Hamsa, 1, no 7, Spécial.

[29] Idem, ibidem, p. 19.

[30] “The Silence of the Sirenas”, in Kafka F., Description of a Struggle and Others Stories, Penguin Books, 1979.

[31] Freud, Luto e melancolia, op. cit., p. 503-4.

[32] Idem, ibidem, p. 496.

[33] L’Irreversible et ia Nostalgie, Paris, Flammarion, 1974, p. 341.

[34] Idem, ibidem, p. 362.

[35] Perlini, “Infancia e felicitá in Adorno”, Comunitá, 161-2, fev. 1978. p. 78.

[36] Benjamin, Haxixe, Brasiliense, 1984, p. 19.

[37] Le Livre à Venir, Paris, Gallimard, 1959.

[38] Rouanet, Paulo Sérgio, Édipo e o Anjo, Tempo Brasileiro, 1981, p. 101-102.

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