A narrativa: metáfora e liberdade
Resumo
“Quem ainda encontra pessoas que saibam contar histórias como devem ser contadas? Por acaso, os que hoje estão em seu leito de morte dizem palavras tão duradouras que possam ser transmitidas de geração em geração, como um anel?” Ao fazer essa pergunta em “Experiência e pobreza”, Walter Benjamin lembra que a narração pedia um ouvinte, enquanto a informação pede apenas um consumidor. Desde quando há essa perda? Ela remonta ao “desencantamento do mundo” (Max Weber) nos séculos XVI e XVII, quando a ciência substitui a história e noções abstratas apagam as figurações sensíveis e as metáforas. Na Grécia de Heródoto a história ainda estava próxima da tradição oral. tragédia e fábula faziam da vida um trabalho permanente de reelaboração emotiva, repetição e recriação do passado. Quando essa palavra viva é confinada na literatura, resta transformar o vivido em recordação poética, como fará Baudelaire no seu Spleen de Paris. Mas Benjamin não valoriza a tradição oral por si mesma e sim pela possibilidade de se opor à indiferença em criar que caracteriza a historiografia e a modernidade. Para ele o historiador, como o narrador, tem que ser um profeta que olha para trás, que dá as costas para sua época a fim de ver os cimos que evanescem dos acontecimentos anteriores. Só assim é possível captar instantâneos do presente e realizar uma viagem interior que é uma iniciação à “suprema arte de viver”. “Viajo para conhecer minha geografia”, ele escreveu. E a narração é passagem a esse espaço de liberdade.
A arte de dar conselhos é tecida
na substância viva da existência e tem um nome: sabedoria.
A sabedoria é o lado épico da verdade.
Walter Benjamin, “O narrador”
Experiência, memória e narração pertencem, para Benjamin, a um mesmo campo semântico. Pensar o seu eclipse é interrogar o estatuto da palavra na contemporaneidade. Pensar o moderno significa interrogar, antes de mais nada, a diferença entre narrativa e informação, pois estes não constituem discursos concorrentes mas dois modos de viver e comunicar, dois planos diversos da vida em uma dada cultura. A narração pede um ouvinte, a informação jornalística um consumidor. A narração dirige-se a uma comunidade, a informação visa a um mercado.
Em seus escritos, Benjamin interroga simultaneamente a “sociedade do espetáculo”, a presença da multidão, o fenômeno do consumo e “no ponto central deste mundo de coisas está seu objeto mais sonhado, a cidade de Paris” (Benjamin, “O surrealismo”, em Obras escolhidas I São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 26). Na grande obra projetada por ele, Das Passagen-Werk [O Livro das Passagens ou Projeto das Arcadas, na tradução para o inglês], Paris é o emblema para onde convergem suas reflexões sobre metafísica, política, teologia, materialismo, mito e modernidade: “No plano do livro […], todas as ruas da Paris de Benjamin convergiam como [para] sua Place de l’Étoile” (Adorno. Prismi. Turim, 1972, p. 242). Construído à maneira do surrealismo, por colagem de citações, no Trabalho das Passagens a grande metrópole é um corpo tatuado, um cosmo linguístico onde, “à deriva”, caminha o outsider— narrador ou flâneur—, aquele que tem um saber oculto da conjuntura de uma época destituída de memória e expectativas.
Produzindo anamorfoses do espaço e do tempo, para o narrador cada fragmento de história é o hieróglifo de um texto original que confere à narrativa uma qualidade arqueológica, numismática e misteriosa. Como anota Benjamin: “O fato de falar-se de ‘livro da natureza’ revela que o real pode ser lido como um texto. É o que se deve considerar aqui como a realidade do século XIX. Folheamos o livro do acontecido” (“Erkenntnistheoretisches, Theorie dês Fortschritts”, em Das Passagen-Werk. Frankfurt: Suhrkamp, 1983, vol. I, p. 580). Sua proto-história pode ser encontrada nos séculos XVI e XVII, naquele conjunto de transformações que Weber consagrou na expressão “desencantamento do mundo”. A eliminação da magia como “técnica da salvação” não se limita à “ética protestante e ao espírito do capitalismo”, com o esvaziamento do reino do invisível e do além, com a “deserção” de feiticeiros e magos, há uma revolução ainda mais profunda nas relações do céu com a terra. Para construir uma morada à distância de qualquer dependência divina, Bacon e Descartes, fundadores do espírito moderno, rompem com a tradição, fetiches animistas e magia natural renascentista. A natureza não é mais a physis grega — que unia todos os seres do mundo por uma “inteligência do universo”, tampouco a natura medieval, obra sagrada de Deus. Convertida em espaço quantificável, geométrico e infinito, a nova ciência sustenta-se na crença segundo a qual o “lumen naturale” ou razão é suficiente para ingressar na ordem das coisas, dominando “fatos” por meio das leis gerais que os regem. Assim Horkhei-mer interpreta, no Eclipse da razão, os sistemas racionalistas, de Descartes a Kant. Estes conservaram “Deus mas não a graça, pensaram que a compreensão interna da essência da realidade, da estrutura harmoniosa do universo imanente, dispensa, necessariamente, o amor por este universo” (“Meios e fins”, em Eclipse da razão. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976, p. 22). O cientificismo do século XIX não se separa deste processo de secularização. O novo saber torna-se incompatível com a “vida ética”.
Tanto o “naturalismo” (na ciência) quanto a “nova objetividade” (na história) romperam com a tradição política do conto maravilhoso popular.[1] Nas palavras de Nietzsche: “Nosso tempo é marcado por uma mudança significativa na constelação entre vida e história”, na medida em que algo se introduziu entre elas: “foi a ciência, a exigência de que a história deva ser uma ciência” (“Considerações extemporâneas”, II, 4, em Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 69). Neste horizonte, pode-se compreender as observações de H. Arendt sobre a conversão da história em ciência, quando escreve: “Na época moderna a história emergiu como algo que jamais fora antes. Ela não mais compôs-se das façanhas e sofrimentos dos homens e não contou mais a história de eventos que afetaram suas vidas” (“O conceito de história antigo e moderno”, em Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 89).
O grande êxito da ciência mundana, tanto as exatas quanto as da natureza exerceriam papel determinante no advento de uma “história científica”, almejando participar do ideal de “racionalidade” que fizesse dela uma “ciência de rigor”. A história oficial, linear e contínua, por um lado, indiferente à dor do homem singular, de outro — só fala do individual em termos universais: desafetivando acontecimentos, celebra uma história do gênero humano, como o esperanto faz com as línguas.
Nos “Paralipômenos e variantes das teses sobre o Conceito de História”, Benjamin mostra que a narrativa esquiva-se dos encadeamentos causais — essa “memória voluntária da humanidade”— que só escreve a história do fait accompli e do après coup, como se se tratasse de uma fatalidade mítica:
Há (ao contrário) um conceito do presente segundo o qual ele não é senão o objeto (inintencional) de uma profecia. Tal conceito é o correlato (ou complemento) daquele de história, para a qual ele aparece como um esplendor (éclair) […]. Tal é o sentido esotérico da fórmula: o historiador é um profeta que olha para trás, dá as costas à sua própria época, seu olhar de vidente ilumina-se à vista dos cimos que evanescem no passado crepuscular dos acontecimentos anteriores. É a este olhar de vidente que a história se faz mais claramente presente que aos (próprios) contemporâneos (Section 3, em Écrits Fran çais. Paris: Gallimard, 1991, p. 351).
Por um secreto heliotropismo, a narrativa questiona a falsa precisão naturalista da ciência da história, não dualiza história individual e história coletiva, pois conjuga o passado (subjetivo) com o choque atual (a sociedade de massa e de consumo, a Primeira Guerra Mundial, o fascismo, a ciência, a técnica). Na narrativa, o passado entrecruza-se com o presente, o já-sido com a trama do atual — o tempo que o recorda: “Como raios ultravioleta, a lembrança mostra a cada um, no livro da vida, uma escrita que, invisível, na condição de profecia, glosava o texto” (Benjamin, “Madame Ariadne, segundo pátio à esquerda”, em Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 2a ed., 1987, p. 64). A rememoração narrativa diferencia-se da regra geral da adequatio que prevaleceu em todas as figuras do raciona-lismo filosófico e científico, no dualismo essência e aparência, causa e efeito, abstrato e figurativo. Benjamin inicia seu ensaio “O narrador” referindo-se a fábulas como forma de “dar conselhos”,[2] arte tecida na “substância viva da existência” e tem um nome: sabedoria. A sabedoria é o lado épico da verdade, pois o poeta, ao lado do sacerdote e do adivinho, diz o que é, foi e será. A poesia é, no dizer de Aristóteles, uma forma superior de memória. E o poeta é o “mestre da verdade na Grécia antiga”. Seu nascimento é narrado por Píndaro. Em um poema hoje perdido, ele descreve as festividades do casamento de Zeus. Durante o banquete pergunta aos deuses lá reunidos se algo lhes faltava para a plena bem-aventurança — a que responderam pedindo que criasse novos seres divinos que soubessem magnificar belas obras com música e palavras de mel. Zeus criou, assim, os poetas que “auxiliavam os homens a sobreviver a seus atos e atingir a imortalidade”, porque “a história das coisas feitas só sobrevive se for narrada, se o que é dito, for bem dito” (H. Arendt, em A vida do espírito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, p. 101). A “intuição do efêmero”, a percepção da transitoriedade e a necessidade de resguardar do esquecimento o que merecia glória imortalizante, transmitindo-o no fio das gerações, revelam que o homem não é só zoé— vida natural nua —, mas também, e sobretudo, bíos. À diferença dos animais e plantas, tem vida biográfica, tem história e imaginação. Quem senão Homero reconstruiu Tróia de que até as ruínas haviam desaparecido? “História”,[3] pois em Homero significa “testemunha ocular”. O poeta é “oracular” — e sob inspiração e entusiasmo (en theos) apreende a “hora ocular”, o instante da vidência.
A estética adquire valor ético e político, pois não se separa do sentido de uma vida: “poetas e historiadores fazem reviver os antepassados, ou melhor, fazem-nos efetivamente viver porque sua vida natural não era nada mais que um contínuo desaparecer” (Mário Perniola, A estética do século XX Lisboa: Estampa, 1992, p. 19). Também Heródoto quer relatar acontecimentos suficientemente próximos para poderem ser, de alguma forma, vistos, ele é ístor, ele mesmo viu os acontecimentos ou ouviu dizer por outros que os viram. Heródoto não pretende abarcar o passado distante, com o que se diferencia da narrativa mítica — a do tempo longínquo das origens, de heróis e deuses dos quais “só as musas”, escreve Heró-doto em suas Histórias, “filhas da Memória (Mnemosyne) podem fazer lembrar, pois sem elas não podemos saber o que não vimos”. Heródoto escreve, ou melhor, narra em terceira pessoa:
Heródoto de Halicarnasso apresenta aqui os resultados de sua investigação, para que a memória dos acontecimentos não se apague entre os homens com o passar do tempo e para que os feitos admiráveis dos helenos e dos bárbaros não caiam no esquecimento, dá, inclusive, as razões pelas quais eles guerrearam.
Evitar o esquecimento de fatos e feitos, a desvalorização do que é valoroso e glorioso, bem como conhecer as razões (aitia) dos conflitos entre os povos, eis sua intenção. Quanto às causas das guerras entre o Oriente e o Ocidente grego, cita, criticando-a, a tradição que chegou até ele, tradição que recua aos mitos orientais a explicação dos conflitos, que encontrava suas causas na “captura de mulheres”: Europa raptada por Zeus, Medeia fugindo com Jasão, Helena com Páris. A se aceitar a tradição mítica, a do poeta épico, a origem das guerras médicas deveria ser buscada na guerra de Tróia. Para Heródoto tais narrativas não são confiáveis, variam segundo quem as conta e não conseguem explicar os acontecimentos, pois ninguém de bom senso acreditará que a guerra de Tróia pode ter acontecido por causa de uma mulher, “a adúltera Helena”. Em nome de um logos recusa o mythos. Não obstante, suas Histórias encontram-se ainda próximas da tradição oral – quando se aprendia de cor, sem auxílio da escrita ou da leitura, na imediatez da palavra falada e escutada como na Ilíada ou na Odisseia. As Histórias aproximam-se, também, das tragédias, narrativas exemplares, mímesis de ações de heróis de outras épocas e lugares, imitação criadora da experiência temporal viva, pelo recurso à narrativa ficcional mesclada à da história.
Forma modelar da imparcialidade, a história não se apresenta como neutralidade e indiferença:
“A imparcialidade”, escreve H. Arendt, “e com ela toda a historiografia legítima, veio ao mundo quando Homero decidiu cantar os feitos dos troianos não menos que os dos aqueus, e louvar a glória de Heitor não menos que a grandeza de Aquiles. Essa imparcialidade homérica ecoa em Heródoto que decidiu ‘impedir que os gregos e bárbaros perdessem seu devido quinhão de glória’ […]. Não apenas deixa para trás o interesse comum no próprio lado e no próprio povo que até nossos dias caracteriza toda historiografia nacional, mas descarta também a alternativa de vitória ou derrota, considerada pelos modernos como expressão do lulgamento objetivo’ da própria história e não permite que ela interfira com o que é julgado digno de louvor imortalizante” (“O conceito de história antigo e moderno”, em Entre o passado e o futuro, São Paulo: Perspectiva, 1979, 2′ ed., p. 81).[4]
Nisto reside a importância de Homero, Heródoto e dos poetas trágicos.
Por exemplo, Orestes de Eurípides e o que esta tragédia ensina. Nela, contrapõem-se gregos e bárbaros, em particular no diálogo entre Tíndaro e Menelau, quando Tíndaro o censura por ter dirigido a palavra a Orestes que acabara de assassinar sua mãe Clitemnestra: “Eis-te tornado bárbaro; tu barbarizas por teres permanecido muito tempo entre os bárbaros”. E Menelau responde: “É grego respeitar sempre quem tem a mesma origem”. Mas Tíndaro lhe diz: “Quanto às leis, de qualquer modo, é grego não querer estar acima delas”. Diferença, pois, entre duas formas de universalidade: uma, imediatamente pública, comum a todos (a de Tíndaro), e outra que é extensão da vida familiar e ligação consanguínea (a de Menelau).
Contraposição, portanto, entre o espaço político do tribunal e o tempo brutal da vingança. E mais: Atenas é a pátria do logos, da palavra dialogada, e a pátria de um homem não é senão aquela do logos. Quanto aos bárbaros, por não terem uma fala inteligível que os coloque em comunhão e companhia, são sem logos, sem discurso, sem “razão”. A força imagética da palavra encontra-se no arrebatamento que suscita, mobilizando sentimentos, influenciando comportamentos, tornando-os inteligíveis. A tragédia revela, entre outras coisas, que os gregos descobriram e criaram a vida na cidade, isto é, a vida ética. Heródoto nos fala da “comunidade dos iguais” (homoioi) em Atenas que derrubou a tirania: “isto significou colocar o problema do poder no centro das discussões na pólis, fazendo-o migrar do interior do palácio do rei para a Agora, para que ele não seja mais ‘propriedade de um só’, mas do ‘círculo dos pares’ (bomoioi), substituindo o segredo pelo debate público, a palavra despótica pela liberdade da palavra”. (Cf Barbara Cassin, Nicole Loraux e Catherine Peschanski, em Estrangeiros, gregos e bárbaros: a cidade e seus outros. Rio de Janeiro: Ed. 34,1993). Os cidadãos não apenas são iguais diante da lei mas “todos igualmente legisladores”. Em suas Histórias, Heródoto reconhece a antiguidade e a sabedoria dos egípcios mas os coloca lado a lado com os bárbaros porque foram e são “incapazes de viver sem reis”. Quanto aos gregos, a homofonia de um consenso contagiante funda a vida pública e diante disso todas as outras línguas são “balbucios de criança”. O grego se define pelo respeito às leis; o bárbaro, com respeito à raça.
A tragédia e a fábula são formas de narração que transformam a vida em trabalho permanente de reelaboração emotiva, de repensamento do acontecido. A narração cria, assim, espaços de liberdade, é força hermenêutica e transformadora. Em seu ensaio “O narrador”, Benjamin trabalha o ato de recordar através de histórias anônimas da tradição oral, a fim de compreender por que “um fenômeno que consistia em forças seculares pouco a pouco afastou o narrador do domínio da palavra viva para confiná-lo na literatura”. O “romance burguês” estreita o mundo na “consciência privada” com o que, nele, a ficção não consegue mais, como outrora a narrativa, integrar uma história contada com uma “moral da história”. O “aspecto épico da verdade” é o desdobramento de uma sabedoria transmitida desde “o fundo dos tempos” cujo desaparecimento Benjamin detecta no presente.[5]
O olhar do narrador pode ser dito teatral ou político, pois nele se mesclam os modos discursivos do mito, da tragédia e da história, que são figurativos como metáforas. Estas deslocam significados e os reúnem, reconhecendo semelhanças no que é dessemelhante, ou criando semelhanças, como quando se diz: “o outono da vida”. “A metáfora”, escreve, por sua vez
- Arendt, “confere ao pensamento abstrato, desprovido de imagens, uma intuição cuja procedência é o mundo do aparecer (da aparência), dos fenômenos” (“O pensar”, em A vida do espírito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, p. 80). Considerando o discurso metafórico o mais adequado ao pensamento e à faculdade de julgar, linguagem e étimos filosóficos podem ser considerados, à maneira de Nietzsche, Benjamin e H. Arendt, entre outros, como “conceitos-metafóricos”. Em O livro do filósofo, Nietzsche escreve que as noções abstratas escondem sempre uma figuração sensível, corpórea, que se gastou, sendo, deste modo, a história da linguagem metafísica a usura de uma imagem que, apagada, perde sua “mais-valia” linguística, converte-se em conceito. Reaver a metáfora significa construir uma “política antiplatônica” da narração.
De fato, com a expressão “poikíloi logoi”— discursos cintilantes e multicoloridos Platão cunhou para a tradição ocidental a prevenção contra artistas, prestidigitadores, sofistas e oradores que seduzem uma assistência de ouvintes ou espectadores com brilho enganador, capaz de transportar tanto crianças quanto adultos experientes. Procedendo assim, a metafísica marca a exclusão de tudo o que é vário, misturado, contaminado, relacionados ao “demoníaco”, ao embaralhamento da visão e do pensamento. Proscrito da República platônica, o poeta — narrador épico ou artista trágico — torna-se um “maldito”, pois mistura sons, palavras e sentidos em lugar da unidade e da unicidade do verdadeiro. Em consequência, a arte de contar histórias e de narrar é exilada no campo das aparências dissimuladoras.
Em certas ocasiões, é certo, as aparências enganam. Mas outras vezes, não. Paradoxo essencial presentificado nas narrativas e na noção de pseudos: falsidade, erro, mentira mas também ilusão, fabulação, ficção. O pseudos, não obstante, foi platonicamente reduzido à condição do falso em oposição ao verdadeiro, verdade que institui a fratura entre razão e imaginação. Se, para Platão, a verdade é uma e una, a rnímesis se retrai à condição de indigência ontológica, sendo, tão-somente, aparência que duplica ou imita o que é original — como a pintura, o retrato, a escritura; seu perigo: medo de que o representado substitua o representante ou modelo, como um “trompe l’oeil”. O mimetizado, o fabulador — e com ele a narrativa mito‑poética é expulso da cidade platônica como uma vítima expiatória, a fim de separar o que é impuro, tanto em sentido mágico-religioso quanto medical. Catharsis: purificação purgadora do contaminado. Cátaros: os “puros”.
A contrapelo da perspectiva metafísica, abstrata, que pode provocar o esquecimento e levar os homens a dirigir suas vidas pautados exclusivamente por ficções racionais e atemporais, como a lógica, a narrativa apresenta-se como memória, o pensamento narracional não reduz situações complexas a conceitos, sacrificando suas vozes, mas reconstitui, pela imaginação, seus significados.[6] À fria luz do “raciocínio lógico” corresponde o devir vazio da história, na qual confundem-se tradição e passado — o que é “invenção permanente” (tradição) e o que é repetição sem memória (o apego ao passado só por ser passado), de modo a rejeitá-los do presente, desqualificando-se a recordação como fonte de conhecimento e experiência.
Em “O narrador”, Benjamin fala do “contador de histórias”, hoje “conselheiro sem ouvintes”, presente em uma tradição que era compartilhada pela continuidade da palavra transmitida de pai para filho. As histórias não eram simplesmente lidas ou ouvidas, mas escutadas e seguidas. Essa capacidadade de dar e receber conselhos constituía fator de orientação na vida e no pensamento. O tempo da narração não dualiza lendas e mitos, por um lado, história coletiva, de outro, não separa tradição oral e conceitual, o dizer do crer. Neste sentido Benjamin escreveu:
O primeiro verdadeiro narrador é e permanece aquele das fábulas. Quando o conselho era mais difícil, a fábula sabia indicá-lo, e onde a angústia era mais grave, seu auxílio era mais próximo. Esta angústia era a do mito. A fábula se constrói com as primeiras disposições que a humanidade tomou para exorcizar o pesadelo que o mito fazia gravar no peito (“O narrador”, XVI, em Illuminationen. Frankfurt: Suhrkamp, 1980, p. 403).
Em outras palavras, a fábula é a história tornada experiência. A experiência alia-se à ideia de viagem.[7] Viagem, registram os dicionários, é “mudança de lugar”, é deslocamento entre “lugares distantes”— com o que se insinua a ação do tempo — constituído de traumas,[8] feridas, descontinuidades. Manter o passado em sua dispersão é demarcar os acidentes e ínfimos desvios e mesmo inversões completas que lhe deram nascimento. Na ideia de tradição manifesta-se em Benjamin e H. Arendt a presença de Nietzsche:
A herança não é uma aquisição, um bem que se acumula e se petrifica, é, antes, um conjunto de falhas, de camadas heterogêneas que a tornam instável. A pesquisa da procedência (Herkfunt) agita o que parecia idêntico e imóvel, fragmenta o que parecia unido. Mostra a heterogeneidade do que parecia e se imaginava em conformidade consigo mesmo (Gaia ciência, parágrafo 348-9. Paris: Gallimard, 1950, pp. 297-9).
A possibilidade de contar e de ouvir estórias é tecida pelo próprio esquecimento, esquecimento que permite narrar uma mesma história, sempre a mesma e sempre outra, pelas lacunas abertas por nossa própria indetermin.ação, indeterrninação pela qual se exerce a ação de tempos heterogêneos[9] e que configuram nossa identidade. Neste sentido, o narrador proustiano comenta não ter a princípio podido reconhecer Odette após tantos e longos anos, “não porque ela houvesse mudado, mas sim porque ela não mudara.[10] A recordação se faz com as transformações pelas quais passamos, pelo conjunto de experiências que nos conferem identidade.
A recordação é uma forma de repetição, é Eingedenken. Mas esta modalidade de memória não é una e interior — o Ein não é interioridade e internalização unificadora que, à maneira de Hegel, retorna a si mesma afirmando sua auto-atualização na rememoração do percurso de sua formação. Tampouco denken é estritamente pensamento. Eingedenken é “paralisação”, é choque: Eingedenken inaugura a repetição do que, propriamente falando, nunca aconteceu […]. Anuncia o retorno de possibilidades perdidas” ( R. Comay, “O fim de partida de Benjain”, em A filosofia de W Benjamin , Peter Osborne e Andrew Benjamin (orgs.) Rio de Janeiro: Zahar, 1995, p. 274). A narrativa comporta uma “sabedoria prática”,[11] um caráter “épico”.
O mito, a fábula, o narrador tradicional contava “estórias” tecidas coletivamente e repetidas no fio do tempo porque a tradição renascia e encontrava na palavra transmitida um tesouro. Em seu ensaio “Experiência e pobreza”, Benjamin anota:
Sabia-se bem o que era a experiência: as pessoas mais velhas sempre a passavam aos mais jovens. De forma concisa, com a autoridade dos anos, em provérbios; ou de forma prolixa, com loquacidade, em estórias; ou ainda através de narrativas de países estrangeiros, junto à lareira, diante de filhos e netos. Mas para onde foi tudo isso? Quem ainda encontra pessoas que saibam contar histórias como devem ser contadas? Por acaso, os que hoje estão em seu leito de morte dizem palavras tão duradouras que possam ser transmitidas de geração em geração, como um anel? Quem ainda tentará lidar com a juventude invocando sua experiência? A quem ajuda, hoje em dia, um provérbio?[12]
Provérbios, sabemos, encontram-se, em larga medida, na Bíblia. Benjamin chama a atenção, em sua correspondência com o teólogo socialista Karl Thieme (carta de 10/10/1937), para a dimensão “épica e dialética” da Bíblia — que se encontra também em “O narrador”:
Existe entre a narração e seu objeto — a experiência humana — E…) uma elaboração da qual o provérbio nos oferece, talvez, mais facilmente uma ideia, se o considerarmos como ideograma de uma narração. Os provérbios são, por assim dizer, ruínas que se erguem no lugar que outrora ocupavam as histórias, em meio às quais, como a hera nas muralhas, uma moral reveste, serpenteando-o, um gesto (parágrafo final de “O narrador”, op. cit., pp. 409-10).
Assim, o Levítico: “Amarás o estrangeiro”. Se o amor é alvo de um mandamento é por não ser natural e espontâneo amar o outro, o estranho, aquele que não pertence a uma comunidade de origem, como se, de imediato, se procurasse afastá-lo, excluí-lo, recusá-lo. Ao final do versículo aprendemos que esta obrigação apóia-se em uma identificação retrospectiva com a sorte que cabe ao estrangeiro: se é preciso amá-lo é porque, conclui o Levítico 19,34, “tu mesmo foste estrangeiro em terras do Egito”.
A história como “saber prático”, areté grega, virtus latina ou justiça messiânica, preserva, na narração, sua “qualidade mística”. Um provérbio é compreendido na instantaneidade dramática do instante de uma fulguração como “imagem dialética”.[13]Trata-se da presentificação da história por imagens, o que é, por si só, uma narrativa, uma “apresentação teatral” (Darstellung), porta-voz de experiências que, em uma fantástica abreviação, condensam experiências de uma época inteira. Assim, os revolucionários de 1830 nas ruas de Paris: no primeiro dia da luta, em diversas regiões da cidade, e independentemente uns dos outros, os combatentes atiraram contra os relógios murais. Uma testemunha ocular, observa Benjamin, os descreve como “novos Josués”: “Uma testemunha ocular, que deve talvez sua adivinhação à rima, escreveu: ‘quem acreditaria: dir-se-ia que irritados contra o dia, novos Josués, ao fim de cada via, atiraram nos quadrantes para parar o dia” (Tese np. XV , in Illuninationen, op. cit., p. 259; São Paulo: Brasiliense, p. 230). Gesto ou imagem dialética que Benjamin reconhece, também, na viagem de conquista de Cipião, o Africano, para a tomada de Cartago: desgastados, seus exércitos não pretendem levar a termo a guerra. Quando desembarca, tropeça e cai no chão apoiando-se para amortecer a queda. O que poderia ser sinal de derrota, Cipião, em um gesto, transforma em êxito, gritando a senha da vitória: “Tenho-te a ti, terra africana”[14] — e assim os romanos tomaram Cartago.
A quintessência da narração pertence à tradição oral que conseguia “despertar no vivido o espírito da história”. Silenciando a história anônima dos oprimidos, privilegia-se a história dos historiadores. Em certo sentido, a “história narrativa” introduz a questão das vidas sem fama e sem palavra na contemporaneidade, pois os “(bens culturais) não nasceram apenas dos grandes gênios que os criaram mas simultaneamente da anônima corveia imposta aos contemporâneos desses gênios”.[15] A história, nesta perspectiva, guarda uma relação com o fazer épico, embora sem heróis míticos, se lembramos que o poeta épico também “rearranjava” narrativas para torná-las inesquecíveis. O “historiador narrador” também ele “remodela” a “matéria vertente”, pois a imensa força das narrativas provém de uma intensidade imaginativa que imita a liberdade divina, pois é a faculdade de criação (que, na tradição, sempre caracterizou algo de divino). Em outras palavras, a “tradição” não é nostalgia elegíaca mas inspiração para criar o radicalmente novo que nossa liberdade engendra, reabrindo o tempo histórico e suas possibilidades perdidas. Esse tempo despertado pelas palavras e nomeações do narrador é “visual”:
Nomes são imagens, estas são ícones, objetos sacralizados. Há um fascínio pela figura do mundo, um fascínio de origem mágica, que dá ao nome do ser uma aura de motivação arcana e medusante […]. Nomen., numen […]. (A fala) poética, corrente de ‘alumbramentos’, desloca-se de um fundo sem fundo da memória […]. (Nela) cumpre-se o presente sem margens do tempo, […] dá voz à existência simultânea dos tempos que invoca, evoca, provoca (Bosi, A., em O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 141).
Abstrações lógicas e atemporais, tanto as metafísicas quanto científicas, ao contrário, “organizam o esquecimento”, levam os homens a dirigir suas vidas por uma espécie de “ficção racional”, em face do que a narrativa apresenta-se como memória. A narração retém as lembranças em sua desordem e em sua contingência, inserindo nela conceitos. Nesse sentido, poesia, teatro, drama — linguagens metafóricas, são modalidades de narração disruptivas do fluir abstrato do tempo, as mais próximas do ato de pensar, de julgar e imaginar, isto é, da ampliação do conhecimento, transformação da sensibilidade e da consciência — um outro nome de nossa liberdade. Nas palavras de H. Arendt:
O mentiroso[16] é por natureza um ator, tira partido da inegável afinidade de nossa capacidade de agir, de mudar a realidade com essa misteriosa faculdade que temos que nos permite imaginar as coisas diferentes do que realmente são e nos possibilita dizer “o sol brilha” quando chove a cântaros.[17]
O que se diz da narrativa histórica pode abranger a metafísica: seus pensamentos são “metáforas contraídas”. Por isso, ele escreve: “Nada tenho contra os metafísicos. Eles são os verdadeiros trovadores de uma razão arredia” (Carta a Brentano, 22/4/1939, em Gesammelte Briefe, Band VI. Frankfurt: Suhrkarnp, 2000, p. 270).
Ver, ouvir, lembrar, significam: completar, finalizar uma recordação por uma narrativa. Em Os pressupostos pré-filosóficos da filosofia grega, H. Arendt observa que não são os atores trágicos, mas os espectadores — se capazes de imaginação e recordação — quem faz da pólis uma organização criadora de memória e de histórias, para que a história verdadeira se transforme em uma história narrada. O flâneur benjaminiano e o storyteller arendtiano distanciam-se, ambos, do passado massificado por meio da capacidade de narrar que ambos mantêm viva. Para Benjamin, se a superestrutura da sociedade de massa é a uniformalização do tempo, do gosto e do pensamento, é porque a contemporaneidade está desterrada não de uma tradição, mas de toda tradição, também para H. Arendt, o homem da massa é um ser “desolado”, “des-solado”, sem solo, sem lugar de pertencimento ao mundo. Com a mimesis, o narrador e o poeta – flâneur produzem narrativas e fábulas que são “o consolo da história”.[18]
O storyteller e o flâneur, por um dépaysement linguístico, evocam o passado para torná-lo transmissível, mantendo com ele uma relação performática. Como Baudelaire. A começar pelo título de uma de suas obras: O spleen de Paris, cuja perplexidade nos toma já no título: uma palavra inglesa (spleen) em lugar do francês, e uma cidade (Paris) tema que nunca fora nobre na poesia até então. Esse duplo “desterro” — a língua inglesa e a cidade industrial que desenraíza o homem moderno — transforma a perda da memória da cidade e a de seus moradores em narrativa poética, em recordação, pois, como também diz H. Arendt, uma dor pode ser reparada quando dela se pode narrar uma história ou fazer dela uma história.[19] A narração retém algo de perturbador do passado, perturbador diante do torpor do presente: ela o mantém como labirinto. Para Benjamin, no mais profano, numa cidade, Paris, o passado sobrevive, realizando “o antigo sonho da humanidade — o do labirinto”. “Perdendo-se” no labirinto das ruas e da multidão — Baudelaire o “pintor da vida moderna” — faz vacilar a modernidade quando desestabiliza o moderno e sua crença no progresso.[20] E para isso, Benjamin valoriza a tradição oral e artesanal, não em si e por si mesma, mas como herdeira de quanto se possa opor ã indiferença em criar que caracteriza a historiografia e a modernidade, onde não há o novo mas tão-somente a novidade.[21]
O narrador, como o fiâneur, ao contrário da luta entre as classes e do pathos revolucionário, não luta nem levanta barricadas, mas desprivatiza o tempo imposto pela mercadoria, pelo consumo de massa, pela lógica da dominação, pelo princípio da indiferença que regem a troca mercantil e a livre circulação do capital. O fiâneur e o narrador, ao contrário do déspota totalitário e de seus cúmplices — que renunciam a qualquer juízo pessoal captam instantâneos fotográficos do presente pelos quais realizam uma “viagem interior”. A viagem é como a narrativa poética: “iniciação à suprema arte de viver”. Ato mágico e místico de apropriação do passado, esse outro tempo é o mesmo desdobrável, bem como sua narrativa requer a busca de um sentido que permanece em aberto e é, assim, fonte de nossa liberdade.[22] Por isso Benjamin escreveu: “eu viajo para conhecer minha geografia”.
[1] Para Benjamin, a narração foi oprimida juntamente com a história dos oprimidos. A. modernização na exploração dos homens é simultânea às transformações científicas e ao declínio da arte de narrar. (Cf “O narrador”, em Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1986.)
[2] Benjamin refere-se à fábula “O ancião e seus três filhos”. O editor espanhol das Fábulas esópicas diz que estas se inscrevem em uma tradição antiquíssima, pois na própria Grécia já cram conhecidas muito antes de Esopo (que viveu, provavelmente, no século vi a. C). Hesíodo, em seus Os trabalhos e os dias, inclui a fábula “O gavião e o rouxinol”, também Platão no Alcibíades, 1, recomenda as fábulas de Esopo e acrescenta que Sócrates, nos últimos dias de sua vida, aplicou-se em colocar em verso algumas das fábulas de Esopo. Quanto a Heródoto, escreve que enquanto compunha suas Histórias (II, 134), circulavam em Atenas obras do antigo fabulista (cf. Esopo, Fábulas esópicas, e o estudo introdutório do editor. Madri: Íntegra, 1999). O que mais interessa Benjamin é a estrutura da fábula: uma situação de base expõe um conflito entre personagens, e sua atuação é fruto de uma livre decisão, escolhida entre as possibilidades de suas circunstâncias; por fim, avaliação do comportamento eleito que se manifesta no resultado da ação, qualificada, assim, como inteligente ou desastrosa. As personagens não possuem valor fixo, estão sujeitas a ser advertidas em meio ao erne’ do. Na conclusão do relato, sua intenção moral.
A etimologia da palavra “fábula” pode ser esclarecedora. Proveniente do verbo fari — “falar” e também “predizer”, também em seus derivados significa aquilo que é por revelação e é declarado justo; de fan i procede também “fama”: o que tem reputação excepcional é fábula. (Cf. Mario Perniola. Pensando o ritual. São Paulo: Studio Nobel, 2000, pp. 149-50.)
[3] Do grego historiè, este termo remete a histôr: “juiz” ou “testemunha”. Sua raiz grega é id, que corresponde ao latim vid- , ambos indicando o ato de ver.
[4] Também Políbio inscreve-se nesta linhagem quando escreve: “Na vida comum de uma pessoa, certas considerações são permitidas — um homem honesto deve amar sua pátria e seus amigos, deve associar-se a seus desafetos e afeições; mas quando alguém se torna historiador, é preciso esquecer todos os sentimentos deste gênero, é necessário, frequentemente, louvar seus inimigos e exaltá-los ou, ao contrário, convencer-se dos erros e proceder às mais vivas reprovações, referentemente àqueles que mais se ama” (apud Croiset, Histoire de la littérature grecque, II. Paris: De Broccard, 1951, p. 275).
[5] Benjamin refere-se ao papel funesto desempenhado pela informação da notícia de jornal, que pretere o aspecto lúdico e místico da narrativa, uma vez que o jornalismo pretende-se apoiar na “plausibilidade” e não na ficção. (Cf parágrafo 6 de “O narrador”.) O jornalismo é responsável pelo crescente desprestígio da verdade oral, pois fornece explicações inúteis ou superficiais dos acontecimentos, “explicações” pretensamente ancoradas na “opinião comum”. Com o que o jornalismo não impõe opiniões, mas sim impede de formá-las.
[6] Para todo pensamento metafísico, o sentido de palavras e coisas subordina-se à questão do verdadeiro e do falso. Ambiguidades e equívocos da linguagem são considerados insuficiências que afastam a razão das ideias claras e distintas, indignas, pois, do filósofo ou do cientista: “[Seus objetos] são subtraídos a toda contingência e deverão, se possível, modelar-se pelos entes matemáticos […]. Cumpre purgar o pensamento de tudo que é confuso e inconsistente, dos produtos da imaginação, do que é individual, mutável. Pensemos, por exemplo, em Pascal que no século xvii racionalista denunciava esta arrogância da razão: “Sei que Deus pôs na alma as (verdades divinas) da maneira que lhe apraz. Sei que ele quis que entrassem do coração para o espírito e não do espírito para o coração, para humilhar esse soberbo poder do raciocínio” (“De l’art de persuader”, em Oeuvres. Paris: Pleiade,1941, p. 375).
[7] A palavra alemã Erfahrung provém de fahren — viajar — e em seu sentido mais antigo diz respeito a “atravessar uma região durante uma viagem” (cf Gagnebin, J. M. Narração e história em Walter Benjamin, São Paulo: Perspectiva).
[8] A palavra grega “trauma” traduz-se por “ferida”.
[9] O narrador de Grande sertão: veredas, o jagunço-filósofo Riobaldo, diz: “O senhor mire e veja, o importante e bonito do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior é o que a vida me ensinou […], que a coisa mais linda é que o homem não está nunca terminado”.
[10] Cf Proust, “O tempo redescoberto”, Em busca do tempo perdido. Rio de Janeiro: Globo, 1988, p. 214.
[11] “Sabedoria prática” pode nos remeter a Aristóteles que em sua Ética a Nicômaco escreveu que a obra possui o objetivo de ajudar os homens a se tornarem virtuosos e bons, sem o que o trabalho seria totalmente vão.
[12] Expressão exemplar dessa experiência ligada à tradição era a palavra do agonizante, não por algum saber secreto que tinha a revelar, mas porque, no limar da morte, condensava em uma intimidade repentina o mundo vivo e familiar com o outro mundo, inteiramente desconhecido e, no entanto, comum a todos. Como viajantes que retornam de uma longa ausência, o agonizante está provido dessa autoridade suprema que a última viagem lhe confere (cf Benjamin, W “O narrador”, op. cit. Em Obras Escolhidas I, ed.Brasiliense, 1986).
[13] Nesta expressão, Benjamin tensiona duas tradições rivais: a da imagem — ligada ao sensível — e a do conceito, vinculado, este, ao inteligível
[14] No dia 9/10/2000, um gesto semelhante, “imagem dialética”, poderíamos dizer, ocorreu na ex-Iugoslávia. Quando, depois de anos de “limpeza étnica”, promovida contra os albaneses na guerra contra a Bósnia, e dos bombardeios de populações civis pela OTAN, submetido à pressão popular, o ditador da Sérvia, Milosovic, deixa, finalmente, o poder, já é noite, o presidente eleito Kostunica, de admirável juventude, sobe, então, ao palanque, aclamado pela multidão concentrada em praça pública, e abrindo os braços, diz: “Boa noite, Sérvia livre!”.
[15] “Sobre o conceito de História”, tese n” vii, op. cit. Pode-se reconhecer aqui uma concepção oposta mas também complementar à de Burckhardt. Para o autor de História da cultura do Renascimento e de Reflexões sobre a História: “grandes” ou gênios são Esquilo, Fídias, Platão, Rafael, Copérnico, Galileu, Kepler. São únicos e insubstituíveis, ao contrário dos grandes navegadores: América poderia ser descoberta mesmo se Colombo tivesse morrido recém-nascido. Mas o quadro ‘A transfiguração’ não teria sido pintado se Rafael não o tivesse feito”. Grande é aquele sem o qual o mundo seria incompleto.
[16] Tomado o termo na polissemia do pseudos,grego: ardil, erro, engano propositado, fraude, a mentira, falsidade, ficção e invenção poética. (Cf. Derrida, J., “História da mentira: prolegômenos”, em Revista de Estudos Avançados n 27,USP, maio/agosto 1996.)
[17] Cf Hannah Arendt, “guagem e metáfora”, “A metáfora e o inefável em A vida do espírito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, e Crise de la culture. Paris: Gallimard, 1972
[18] O autor de quem mais se aproximam Benjamin e H. Arendt é, também neste ponto, Nietzsche. A história não é para o autor de Vantagens e desvantagens da história para a vida um objeto inteiramente explicável e seguramente compreensível, é, antes, a maneira pela qual o espírito se depara com fatos que lhe são obscuros, aproximando aspectos “descosidos” da vida, de modo a substituir o ininteligível pelo inteligível. A história monumental, celebrativa, toma, frequentemente, por causalidade histórica aquilo que, talvez, só se entenda a partir de nosso mundo interno. Ou admite, por vezes, a existência do acaso onde múltiplas pequenas causas podem estar realmente em ação: “Poderia haver uma espécie de história”, afirma Nietzsche, “que não contivesse nenhum vestígio de realidade e, no entanto, merecesse ser considerada objetiva no mais alto grau” (parte Iv, Vantagens e desvantagens da história para a vida) . Imparcialidade, pois: ser absorvido pelo objeto da mesma forma que o pintor “vê um quadro e se esquece de si mesmo, sem qualquer preocupação prévia de ‘objetividade’ ou ‘imparcialidade'”. As narrativas da história, a retórica de ações e acontecimentos despertam as palavras escondidas nas palavras, quebrando seu encadeamento esperado e habitual, possibilitando a expressão simultânea de crenças, sonhos e intuições que se situam fora da lógica abstrata, dedutiva ou indutiva. A narrativa não procura convencer pelo raciocínio mas mobiliza, por suas figuras de linguagem, a imaginação, e o espírito pelas surpresas de que são portadoras e dos vínculos inapreensíveis que as palavras estabelecem entre conceitos diferentes em uma espécie de “alquimia verbal”. Não podendo ser tomada ao pé da letra, ela é, no dizer de Aristóteles, um bom enigma — uma vez que ela diz algo que é “problemático” do ponto de vista proposicional, a meio caminho entre um sentido comum de uma palavra e outro atual que modifica o antigo mas, ao mesmo tempo, o preserva, “negociando” sua inteligibilidade: ‘As feridas do espírito”, escreveu Marcuse, “caso se curem, deixam cicatrizes” (Eros e civilização)
[19] Presença, pois, do épico, pois há uma diferença entre uma coisa feita e uma pensada: a história não é acessível ao agente no momento da ação, mas ao espectador ou ouvinte. Tal circunstância manifesta-se, em particular, nos versos de Homero que relatam a chegada de Ulisses ao reino dos feácios. Por ordem do rei, é entretido por um bardo que canta uma história, história que é a da própria vida de Ulisses — a de seu enfrentamento com Aquiles. Ao ouvi-lo, Ulisses esconde seu rosto nas mãos e chora, apesar de não ter nunca chorado antes, nem mesmo nas ocasiões em que os fatos que ele agora ouve, ocorreram. Tão-somente neste instante torna-se consciente de seu pleno significado: “o significado daquilo que realmente acontece e aparece enquanto está acontecendo só é revelado quando desaparece. A lembrança, por meio da qual tornamos presentes para nosso espírito o que de fato está ausente e pertence ao passado, revela seu significado na forma de uma história. (Arendt, H., A vida do espírito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, p. 102.
[20] O perigo do desastre que aguarda o ideal baconiano de poder sobre a natureza através da tecnologia científica deriva não tanto de suas falhas de desempenho quanto da magnitude de seu sucesso” (Hans Jonas, apud Bauman, Z., em Modernidadde e ambivalên-cía. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 27).
[21] Cf meu ensaio “O flâneur, espião do mercado capitalista”, in Pensara República, ed. UFMG, 2000.
[22] Kant resumiu esta situação de maneira inimitável: o homem descobre que habita o mundo pelo “crime dos pais primordiais” que colocaram no mundo pessoa autoritariamente, sem pedir seu consentimento. O choro do recém-nascido deve, para Kant, ser interpretado como expressão desta amargura e de sua indignação. E os pais devem agir de tal forma que os filhos se resignem com uma tal situação. E como? Despertando neles as forças de autodeterminação que irão facultar o libertar-se dos constrangimentos externos. É esta a obra da razão. É ela que compensa um nascimento que não foi desejado. Na razão descobre-se a liberdade de todo novo nascimento, de um recomeço. Para suportar que outros tenham decidido sobre o nosso começo, devemos aprender a começar por nós mesmos. O despertar da razão é, para Kant, um segundo nascimento. Entrando no mundo malgrado si mesmo, o homem pode inaugurar a si próprio.