1987

A paixão dionisíaca em Tristão e Isolda

por José Miguel Wisnik

Resumo

Tristão e Isolda, narrativa mítica celta trabalhada pelo imaginário cristão e transposta em ópera por Wagner, é um romance de paixão e morte, amor, casamento, adultério. O amor de Tristão por Isolda, cercado de filtros mágicos, intrigas e enganos, vive desta contradição: quando os amantes se encontram não se casam, e quando se casam não se encontram. Tentando decifrar os enigmas dessa história, Denis de Rougemont aponta, em O amor e o Ocidente, a revalorização da cultura clássica no século XII e a poesia cortês provençal que dá um novo lugar social à mulher. Erótica e mística se fundem. A fidelidade amorosa se opõe à realização da paixão. O que se ama, afinal, é o amor. A ideia da morte como separação e união máxima provém das heresias dualistas (cátaras, com ecos distantes platônicos e tântricos), para as quais a matéria é o mal absoluto. Segundo Rougemont, essa paixão sublimada, que será também a de Dante e Camões, só pode falar através da música, e foi o que Wagner intuiu. O “acorde de Tristão” wagneriano, carregado de tensão, leva ao limite o horizonte resolutivo tonal. Nietzsche, primeiro atraído, depois reagindo a Wagner, vai opor às brumas nórdicas de Tristão a clareza mediterrânea da Carmen de Bizet. A dança de Zaratustra sobre o abismo dos contrários salvaria a existência como fenômeno estético. Mas a amizade, hoje, pode ser uma ponte sobre a divisão entre Eros e Tânatos. Um casamento apaixonado é raro, mas possível quando a amizade reconstela e relativiza o amor. E “quem poderá fazer / aquele amor morrer / se o amor é como um grão…”, canta Gilberto Gil em “Drão”.


Tristão e Isolda é a matriz das histórias de amor em que os apaixonados se amam loucamente e morrem de amar, contra tudo e todos, contra o mundo. Denis de Rougemont viu nesse “grande mito europeu do adultério” o próprio nascimento da paixão no Ocidente.[1] O romance data do século XII, quando nos aparece sob a forma de várias versões escritas, possíveis “manipulações artísticas” de um hipotético texto original do qual nunca se encontrou rastro. Suas origens se perdem, portanto, como na lenda e no mito, na bruma dos tempos. Histórias de Tristão e do rei Marcos já eram conhecidas desde o século VII, mas é no século XII que a narrativa celta (trabalhada pelo imaginário cristão) cristaliza-se numa intrincada rede de sentido cuja unidade enigmática e fascinante salta aos olhos apesar da multiplicidade das suas versões (cujas variantes podem ser aliás facilmente reduzidas por comparação crítica).[2]

O fascínio do amor-paixão produziu uma longa trilha de influências na literatura amorosa e serviu para fazer do tema um clichê de larga incidência no romance romântico e nas novelas de massa (onde se desfaz no entanto a trama de implicações sociais, existenciais e religiosas que o originou). Mas a “bela e trágica” história de Tristão e Isolda já era, segundo um historiador, “de longe, a mais popular história profana da Idade Média”.[3] Ir às fontes desse “mito” é reencontrá-lo numa temporalidade onde ele atua, sincronicamente, com a força de uma configuração simbólica em pleno vigor. O romance de Tristão envolve paixão e morte, amor, casamento e adultério; amizade, sexo e desejo. O sagrado e o profano, a ortodoxia e a heresia se debatem em seus bastidores; a constelação contraditória desses temas e as desconstelizações a que os movimentos ambivalentes da narrativa nos convidam fazem ver o seu anacronismo arcaico (mas arquetípico) à luz de uma surpreendente atualidade.

A ópera de Wagner, por onde passa necessariamente esta discussão, procurou também atualizar a seu modo o romance medieval, lido numa versão poética do século XIII, a de Gottfried. Guiado pelo pessimismo de Schopenhauer, Wagner encontrou e exacerbou no canto do amor e da morte, do desejo e do aniquilamento, as potências trágico-musicais da paixão (aliás a virtualidade musical já se encontra na história de Tristão desde os seus primórdios, como veremos). Mas foi justamente a força trágica da ópera que deu elementos para que Nietzsche vislumbrasse na música wagneriana o renascimento do dionisismo grego, previsto em O nascimento da tragédia. Ao longo de sua controvertida relação com Wagner, que vai da apologia à mais virulenta e sistemática contestação (quando o compositor passa a ser visto como o paradigma negativo da força dionisíaca tal como é concebida por Nietzsche), o filósofo mantém inalterada a sua profunda admiração pelo Tristão, como declara em Ecce Homo: “Desde o instante em que houve uma partitura para piano do Tristan […] eu era wagneriano. […] Mas ainda hoje procuro por uma obra da mesma perigosa fascinação, de uma mesma arrepiante e doce infinitude. […] Todas as estranhezas de Leonardo da Vinci perdem seu feitiço ao primeiro acorde do Tristan. Essa obra é absolutamente o non plus ultra de Wagner”. E acrescenta a esse comentário palavras intrigantes e curiosamente extemporâneas para quem firmara já uma posição declaradamente antiwagneriana: “Tomo como uma felicidade de primeira ordem ter vivido no tempo certo, e precisamente entre alemães, para estar maduro para essa obra: até esse ponto chega em mim a curiosidade do psicólogo. O mundo é pobre para quem jamais foi doente o bastante para essa ‘volúpia do inferno’: é permitido, é quase obrigatório usar aqui uma fórmula mística. […] e, sendo assim como sou, forte o bastante para ainda tirar vantagem do mais problemático e perigoso e com isso tornar-me mais forte, denomino Wagner o grande benfeitor de minha vida”.[4]

A paixão de Nietzsche pelo Tristão, que modula nessa passagem a sua relação com Wagner para uma chave diferente da reiterada contraposição de tantos outros escritos, é também assunto para pensar. A divergência que gira em torno do pessimismo (o pessimismo da aniquilação de Wagner e Schopenhauer contra o pessimismo forte e afirmativo de Nietzsche) converge no encanto único de Tristão: a música é forte o bastante para resistir às negações que contém e àquelas que desperta, e abre mais uma passagem através da qual o romance medieval segue seu destino sinuoso e direto até nós. É permitido dizer que o mundo é pobre para quem jamais foi doente o bastante para a paixão?

Este é o roteiro. Para que se possa percorrê-lo, é necessário conhecer a estória do romance, sem o que não se pode entender o comentário de seus meandros (além do que este perderia toda a graça).

Tristão é filho de Brancaflor, irmã mais nova do rei Marcos, rei da Cornualha (numa época que estaria entre a queda do Império Romano e a coroação de Carlos Magno, os séculos da Primeira Idade Média). A narrativa traz as marcas daquilo que Northrop Frye chama estória romanesca, marcas dadas pela presença de filtros mágicos, anões, gigantes, dragões; o rei é caracterizado como descendente de um deus de forma animal do qual herdara orelhas de cavalo, permanentemente escondidas sob seu gorro (como indica também seu nome em língua celta). A estória romanesca respira num tempo que mantém uma certa proximidade com o tempo primordial do mito.[5]

Rivalino, filho do rei de Leónis, jovem príncipe que se apresentara para servir a Marcos e combater por ele, dada a sua fama, apaixona-se por Brancaflor, por quem é correspondido. Os jovens encontram-se secretamente, embora nada impedisse o seu casamento (ao contrário, o rei dá sinais de plena aquiescência). Ferido em combate (a serviço de Marcos), Rivalino está à morte quando é visitado secretamente por Brancaflor, que desfalece ao vê-lo, para em seguida reanimar-se e reanimá-lo (seus beijos devolvem ao príncipe a alegria e a força perdidas). Nesse encontro é concebido Tristão.

Curado, Rivalino vai partir para seu país quando sabe que Brancaflor espera um filho seu. Leva-a consigo em segredo para o país onde se torna rei, sucedendo ao pai que morrera deixando seu domínio parcialmente tomado por invasores. Entre guerras, casa-se com a amada (embora ausente, pois deixa a jovem esposa guardada com honras num castelo, aos cuidados do marechal de sua corte). Brancaflor morre ao dar à luz o filho, a quem deixa em memória um anel de sua estirpe. De volta da guerra o rei entra em profundo desespero, e, depois de prestar à amada as honras fúnebres, manda ao rei Marcos a notícia da morte da irmã e do nascimento do sobrinho, a quem dá o nome celta de Drustan, assimilado pela tradição a Tristão, pelas tristezas de seu nascimento e por aquelas que o destino lhe prepara.

Tristão é o nascido sob o signo da paixão. Na história de seus pais desenha-se já uma espécie de genealogia da desdita amorosa, ou seja, da paixão que não tem lugar, da paixão como lugar sem lugar. Nesse capítulo define-se uma lei que vai vigorar durante todo o romance: os amantes, quando se encontram, não se casam, e, quando se casam, não se encontram. Há um contraponto antitético entre paixão e casamento que faz com que estas duas coisas estejam sempre no lugar oposto: quando namoram, fogem ao casamento; quando se casam, o marido parte; quando volta, a esposa morreu. A fuga ao casamento prenuncia um dos enigmas do sentido da paixão em Tristão e Isolda. O herói nasce desse enigma, e o encontro em que é gerado antecipa a futura morte dos amantes, da qual seus pais só saem (escapam, ou “ressuscitam”) para concebê-lo. Este episódio está para o romance como um prelúdio, e, assim como na ópera de Wagner, o prelúdio contém em embrião o arco da obra.

Tristão é educado como cavaleiro (nas artes da guerra, da caça, da montaria e da falcoaria) e nas artes da música (toca maravilhosamente harpa e rota, uma espécie de sanfona, compõe à maneira dos jograis bretões, canta e imita os pássaros à perfeição). Aos quinze anos, morto o seu pai numa emboscada, Tristão é encaminhado ao rei Marcos, de quem se faz admirado por suas próprias qualidades, sem revelar o laço de parentesco que os une (e que o faz herdeiro, dentro da tradição matrilinear celta): “ Servir-vos-ei da melhor vontade como vosso tocador de harpa, vosso monteiro e vosso servo de gleba”. Acompanha o rei em suas caçadas, dorme no quarto real (privilégio concedido aos íntimos e aos fiéis) e aos vinte anos recebe armas magníficas e um dos mais altos lugares no exército de Marcos.

Agora está preparado para enfrentar um rito de passagem que vai fazer dele um guerreiro consumado: chega à Cornualha um guerreiro de estatura gigantesca, chamado Morholt, e que vem da Irlanda cobrar antigo tributo de guerra (cento e cinquenta rapazes e raparigas na idade de quinze anos). Só Tristão ousa opor-se aos propósitos do Morholt, batendo-se contra o gigante que tem como arma uma espada mortífera, envenenada, preparada por sua irmã, a rainha Isolda, esposa do rei Gormond, da Irlanda. Numa ilha, a certa distância de todas as testemunhas, os dois guerreiros travam luta de morte, vencida por Tristão (que crava e quebra a ponta da sua espada no crânio do inimigo), mas ao preço de sofrer no flanco o golpe da espada envenenada, que lhe abre profunda, negra e incurável chaga.

Condenado à morte pelo veneno, mas inspirado nos antigos contos celtas, o herói lança-se ao mar sem vela, nem remo, nem leme, levando apenas algum alimento e a harpa, seu único bálsamo. Segundo a tradição celta uma pessoa desenganada jogava seu destino ao mar (que a levaria à perdição definitiva ou à salvação). Vagando sem rumo durante sete dias e sete noites (em outra versão quarenta dias, e, nos dois casos, números rituais da provação), Tristão vai bater na costa da Irlanda, devolvido pelo mar ao lugar de origem do inimigo que o feriu, à origem de sua ferida.[6] Sem poder revelar à corte do rei Gormond a sua condição de matador de Morholt, disfarça-se sob a identidade de Tantris, jogral bretão, e, valendo-se da sedução de sua música, faz-se recebido pelo rei e pela rainha Isolda, a feiticeira, a única a conhecer a cura do seu próprio veneno, que o trata com o auxílio de sua filha de doze anos, Isolda (esta sim, a nossa Isolda), “cuja cabeleira loira tinha o brilho do ouro”. Através dela Tristão recebe a cura, e, temendo ser reconhecido, volta à Cornualha.

Tempos depois o rei Marcos é insistentemente aconselhado por alguns barões da sua corte para que se case e tenha um herdeiro. Tal pressão faz parte de intrigas contra Tristão, que desponta claramente como o preferido e o sucessor do rei (embora não reivindique tal honraria). Para deixar o caminho aberto a Tristão, Marcos tomara “o partido de envelhecer sem descendente e renunciara ao casamento” (mas bem a propósito: nesta história ninguém quer se casar). A certa altura, o rei responde à insistência dos barões com um estratagema irônico: como de manhã lhe entrassem pela janela duas andorinhas voando e se disputando um fio de cabelo dourado, o rei declara que se casará sim, mas somente com a dona daquele cabelo (maneira de apontar, sem dúvida, para a mulher impossível). No entanto, Tristão sabe que um fio tão dourado só pode ter uma dona: a jovem Isolda, filha do rei Gormond, da Irlanda, de quem exalta as qualidades. Propõe-se então a prestar um serviço ao rei Marcos: partir rumo à Irlanda acompanhado de cem guerreiros, na dificílima missão de trazer para esposa 
de seu rei a filha do maior inimigo deste. Para tanto, à maneira de um talismã, faz bordar o fio de cabelo na sua túnica.

Na Irlanda, vence o dragão que atormenta a cidade de Weisefort, e ganha o direito à mão da jovem Isolda, que o rei prometera a quem aniquilasse o monstro. Mas não sem complicações: na luta Tristão recebe novamente um ferimento mortal, dando chance a que um oportunista tome para si a cabeça do dragão e a leve ao rei Gormond apresentando-se como autor da façanha e requisitando o seu direito de casar-se com a jovem princesa. As próprias Isoldas (mãe e filha) vão ao cenário da luta e ali resgatam o corpo de Tristão desfalecido e novamente o levam e o tratam, permitindo-lhe apresentar-se ao rei como o legítimo vencedor do dragão. Nesse intervalo Isolda o identifica, pela espada de ponta quebrada, como o matador de Morholt, seu tio, e são os argumentos de Tristão (de que venceu em luta leal) e o seu próprio medo de ser entregue ao outro pretendente (o oportunista farsante) que a convencem a não denunciá-lo. Mas Tristão declara-se perante o rei Gormond como representante de Marcos, para quem reivindica o direito ao casamento obtido por suas próprias mãos. Aceitas as suas ponderações, jura solenemente, perante os barões de Irlanda e os cem guerreiros que trazia consigo, conduzir lealmente a noiva até seu esposo.

Prestado o juramento, Isolda já é considerada casada com Marcos, figurando Tristão como o marido representativo. Isolda resiste ao casamento compulsório com um rei desconhecido (além do que, ao que tudo indica, simpatiza com Tristão e sente-se preterida por este, que, magnanimamente, com tanta altivez e distância, abdica ao direito de desposá-la). Percebendo o contragosto da filha, a mãe recorre a seus dons mágicos e prepara um filtro, isto é, um vinho composto com ervas e flores que ela mesma vai buscar na montanha, capaz de fazer nascer a paixão no homem e na mulher que o bebessem e destinado à felicidade de Isolda e seu futuro marido. O filtro não é entregue no entanto diretamente a Isolda, mas confiado aos cuidados de sua dama de companhia, Brangia, que deverá acioná-lo no momento oportuno.

Durante a viagem, no calor de uma noite de São João, em pleno solstício de verão (este é um dos sinais, aliás, não numerosos no romance, de cristianização da lenda, pois os celtas não cultuavam a data),[7] quando tudo é sede, e no momento em que o navio está ancorado numa ilha (a distância, os marinheiros dançam entre fogueiras), Tristão e Isolda tomam a poção mágica. As várias versões divergem quanto ao motivo que os leva a tomarem o filtro. Por engano, é o que se diz em algumas delas (tomavam-no como se fosse refresco: não era). Outra versão diz que o ato se deu por intenção de Brangia, que assim o desejou por intuir que era esse o desejo de sua ama. Na versão wagneriana Isolda quer matar Tristão para vingar o guerreiro Morholt, que figura ali como seu ex-noivo, morto em duelo por Tristão, mas o veneno que ela pensa oferecer-lhe para matá-lo e matar-se é trocado por Brangia, que o substitui pelo veneno da paixão. As variantes só modulam o ponto central que nos interessa: que eles caem perdidamente apaixonados a partir desse momento (pode-se ler o símbolo do filtro amoroso como expressão de um sentimento predestinado, “decidido por forças superiores”, mais do que como causa material dele).[8] “Quando fogos de alegria se acendiam na ilha, e os marinheiros cantavam à volta das chamas avermelhadas, os dois, enfeitiçados, renunciando a lutar contra o desejo, abandonaram-se ao amor.”

A mútua entrega se dá na iminência de chegarem à terra onde serão recebidos pelo rei Marcos, e onde tudo se apronta para o casamento. A longa fase que se segue, no romance, joga-se entre o casamento oficial, a paixão clandestina e as intrigas dos barões do rei, que se esforçam para surpreender os amantes e denunciá-los (o que nunca conseguem de todo, permanecendo o rei numa espécie de ponto cego para o segredo — evidente — da paixão). Desenrolam-se peripécias romanescas, armadilhas, confusões e mal-entendidos gerados por essa mistura de casamento, paixão e intriga.

Na noite de núpcias Brangia, a dama de companhia, empresta sua virgindade a Isolda indo para a cama com o rei Marcos, sem que este se dê conta da troca, a pretexto de um antigo costume irlandês que previa para a primeira noite dos casados a mais profunda escuridão.

Tristão e Isolda buscam todo o tempo criar ocasiões de encontro, facilitadas na medida em que o herói tem acesso à sala das mulheres e, conforme já vimos, ao quarto do rei. A propósito o romance sugere uma cartografia curiosa de distribuição de aposentos em que, ali onde os padrões elitizados modernos preveem uma marcada separação de intimidades, reina movimentada promiscuidade: no quarto onde dormem o rei e a rainha dormem também os amigos mais íntimos, guerreiros, visitantes ilustres (como a certa altura os cavaleiros da Távola Redonda). A proximidade permite que, nas noites em que o rei sai para caçar, Tristão deslize até o leito real e ali se deite com Isolda. Em outras ocasiões ele penetra secretamente no lugar onde convivem as mulheres, coniventes; ou se encontram no bosque encantado (mito bretão que realiza aqui a utopia amorosa e que dá lugar, mesmo que transitório, ao sem-lugar da paixão):

Não será este o pomar maravilhoso de que falam os tais bretões? Uma muralha de ar intransponível fecha-o por todos os lados; no meio das árvores em flor, o herói vive sem envelhecer nos braços da amiga e nenhuma força hostil pode quebrar a muralha de ar. Mas, quando se apagava a última estrela, o encantamento desaparecia e Tristão apressava-se a transpor a alta paliçada para regressar ao seu refúgio.[9]

Declarações: Querido amigo, disseste a verdade, sou a madressilva e tu a aveleira, ninguém nos poderá separar um do outro sem causar a morte de ambos; ao que responde Tristão, acompanhando-se à harpa: Bela amiga, assim é conosco:/Nem vós sem mim, nem eu sem vós.[10]

Mas a duplicidade da situação vai-se desdobrar em peripécias curiosas, causadas por malogradas tentativas de denúncia. Num primeiro momento o rei, instruído por seus conselheiros, diz a Isolda (para testá-la) que vai partir em viagem, deixando-a aos cuidados de Tristão. Ela exulta, mas, quando conta o ocorrido a Brangia, esta a adverte de que pode estar caindo numa armadilha. Melhor avisada, Isolda pede ao rei que não parta, que ela ficará mortificada pela sua falta, e que não a deixe entregue a Tristão. Com isso, o rei se convence de que nada se passa.

Mas este é apenas o primeiro episódio de uma série de três. Num segundo momento os invejosos da corte (como a narrativa os caracteriza) buscam o auxílio de um anão astrólogo, figura de sábio grotesco que é capaz de ler nos astros os impulsos que aproximam os amantes. O anão sabe o momento exato, onde e como Tristão e Isolda se encontram. Graças à análise astrológica ele tem conhecimento de que Tristão, alta noite, aproxima-se de um tanque de água por onde passa uma corrente que entra pela casa e vai ter ao quarto de Isolda. Ali, Tristão lança gravetos inscritos contendo recados e avisos; sabendo que Tristão a espera, Isolda vai ao seu encontro. Informado pelos cálculos do anão, o rei Marcos se empoleira, certa noite de lua cheia, no alto de um pinheiro, esperando para ver aquilo que, segundo lhe dizem, acontece. Mas, no momento em que joga as lascas de madeira na água, Tristão percebe a silhueta do rei espelhada na corrente, à luz da lua. Quando Isolda se aproxima, Tristão disfarça e dá a entender a ela que são vigiados; então, eles simulam um diálogo irrepreensivelmente casto, onde dizem um ao outro que são vítimas da inveja daqueles que tramam contra eles afirmando serem amantes. O rei, do alto do pinheiro, assiste a tudo e se convence de que o adultério não passa de invenção de intrigantes.

Num terceiro momento, o mesmo anão usa de um outro estratagema: espalha farinha-flor no chão do aposento real, numa noite em que o rei propositalmente se retira (e, como sempre, para a caça). Tristão salta de sua cama em direção à de Isolda, mas percebendo, ao sair, o ardil armado contra si, vai pisando na ponta dos pés e saltando de modo a não deixar sinais. Acontece que ele tem na coxa a ferida mal cicatrizada de uma recente caçada de javali; sem perceber, jorra sangue nos lençóis de Isolda, e deixa um rastro atrás de si, ao voltar à sua cama. O rei retorna, acende as velas, vê a farinha de fato intacta, mas, advertido pelos seus companheiros, depara com o sangue nas camas onde Isolda e Tristão dormem, como que tranquilamente.[11]

Nesse terceiro episódio de suspeita e armadilha fica caracterizado, portanto, que Tristão e Isolda se amam e se encontram clandestinamente. Os dois são condenados à morte, mas Tristão escapa à execução pedindo, num determinado momento, para orar numa capela, de onde salta por um vitral caindo num patamar à beira-abismo, e fugindo em seguida. Isolda, entregue pelo rei a um grupo de leprosos para que sofra sacrifício mais longo e penoso que a morte, servindo-os sexualmente, é salva por Tristão.

Abre-se agora uma nova fase da estória. Os amantes partem para o mais recôndito coração da floresta, onde passam a viver sozinhos uma vida de privações, sem pão e sem sal, primeiro na cavidade de um rochedo, depois numa choupana. Só têm a companhia de um cão e um ajudante leal de Tristão, Gorvenal, e mais um eremita, que vive nas proximidades. O eremita Ogrin concita-os ao arrependimento, mas eles não veem como se arrepender do efeito de uma poção mágica; o eremita os acolhe e os abençoa (como se celebrasse, na solidão da floresta, um casamento paraclerical). (Hilário Franco Jr., em seu ensaio “A vinha e a rosa: sexualidade e simbolismo em Tristão e Isolda”, chama a atenção para o fato de que o “estranho personagem” do eremita, que “não impõe nenhuma penitência aos amantes” e que será o mediador da volta de Isolda à corte de Marcos, “lembra mais um druida […] que um sacerdote cristão”, confirmando o fato de que no romance o índice de clericalização da lenda celta não é forte, e sem dúvida menor do que em A demanda do Santo Graal.)[12]

Um dia, o rei Marcos vem a ter notícias de que Tristão e Isolda vivem num certo lugar da floresta. Aproxima-se da choupana onde os amantes dormem e vê que, entre os dois, deitados lado a lado, está a espada nua de Tristão a separá-los. Comovido diante da visão, que interpreta como sinal de castidade, Marcos volta a vê-los como vítimas de um mal-entendido (juntos, estão separados). Troca a espada de Tristão por sua própria espada, em sinal de reconhecimento e de perdão, e ao mesmo tempo o anel de Isolda pelo seu.

Nesse ponto, aproxima-se o tempo em que o filtro perderá o seu efeito, que havia sido previsto para três anos. As versões não são unânimes quanto a isso, e algumas não se referem sequer à cessação do poder mágico da bebida (o acontecimento, incidindo de novo sobre o solstício de verão e modulando o símbolo do apogeu e do declínio do sol, e do amor, resulta possivelmente de uma clericalização da lenda). Mas, como já dissemos, não importa aqui insistir na ideia da poção mágica como causa da paixão (o filtro pode ser entendido sem dificuldade como placebo). O que interessa, e de fato chama a atenção, é que a essa altura a relação dos amantes muda de intensidade, ou de qualidade:

Sinto como tu que o sortilégio chegou ao fim. O nosso amor continua, como dizes, mais forte do que nunca, mas cessou de ser uma coação mágica, uma força exterior, invencível e fatal. Vamos amar-nos agora como os outros homens e as outras mulheres desde que o mundo é mundo; eis-nos restituídos à condição comum de todos os mortais. Doravante estaremos sujeitos aos caprichos do destino, à flutuação dos nossos desejos, a todos os movimentos contrários, a todos os remorsos das nossas vontades. Daí que a esta hora, sem cessarmos de nos amar, estejamos a conceber o projeto de nos separarmos.[13]

Parece-me que a questão da duração do efeito do filtro, seja qual for a história e a causa de sua inserção no romance, faz jus a uma percepção da paixão como curva, como um transporte que descreve um arco e declina, como febre de ressonância narcísica que arrefece: este é o momento delicado em que os amantes, colocados pela flutuação das vontades diante da imperfeição do outro (que implica a própria), e cessado o mágico encanto dado pela potência divina do entusiasmo (etimologicamente: endeusamento) passional, ou se desiludem, ou convertem a paixão numa relação amorosa baseada na aceitação do limite e da carência. Mas uma aceitação continuada e amorosa da imperfeição do outro e da própria imperfeição configura casamento, fugindo ao anseio de ilimitado que marca no romance as figuras da paixão. E a saída de Tristão e Isolda será outra: cansados das privações em que vivem, pensam em separar-se, voltando Isolda ao rei Marcos, o que vem de fato a acontecer através da mediação de Ogrin. Mas, a partir do momento em que a volta se consuma, e o regresso de Isolda é festejado em toda a Cornualha, acende-se novamente entre eles a paixão e o desejo do encontro secreto. (De novo: se estavam juntos, se separam; mas, ao se separarem, querem estar juntos.) Tristão é recebido novamente na corte do rei Marcos, que lhe pede em separado que se mantenha a distância e sirva a outro rei, para não fomentar intrigas. O herói simula a retirada para longe, mas vive num esconderijo subterrâneo sob um celeiro e, em contato com a rainha, reata com Isolda a vida clandestina.

Reconstituída a situação anterior os barões “invejosos” voltam a atacar, propondo agora que Isolda declare solenemente, em juramento ritual, que ama só o rei Marcos, seu marido, e que só com ele se encontra. O empenho da palavra, no contexto medieval (atestado por várias outras situações no romance), é de enorme gravidade. O juramento terrível deve ser feito no quadro de um julgamento simbólico, o ordálio, onde o veredito cabe a Deus: Isolda deve segurar um ferro em brasa e dizer a verdade. Se isso for feito, o ferro não queima (pois, como acreditava a mente medieval, a Providência divina não provocaria o sofrimento de um inocente). Mas Isolda lança mão de um estratagema: pede a Tristão que, disfarçado de barqueiro, a leve ao lugar onde se dará o julgamento, o que o obriga a carregá-la nos braços para colocá-la em terra. Segurando o ferro em brasa, Isolda declara então que só esteve nos braços de um homem, em toda a sua vida, que é o rei seu esposo, e evidentemente também nos braços de um outro, aquele barqueiro que ali está. Numa outra versão, equivalente a esta, Tristão faz-se um leproso que leva a rainha nos ombros ao atravessar um charco; ao jurar, Isolda afirma que somente o rei e aquele pobre homem estiveram entre suas coxas. Nos dois casos, como ela diz a verdade, o ferro de Deus não queima, e goza da ambiguidade da artimanha dos amantes. (Sintomaticamente, a Igreja aboliu em 1215, data pouco posterior às primeiras versões do romance, a prática do ordálio como prova jurídica, por ser difícil discernir a natureza da magia, divina ou diabólica, que operava em cada caso; esse fato parece indicar uma crise de concepções arraigadas que o romance de Tristão e Isolda também punha em causa.)[14]

Mesmo depois da derrota que infringem a seus inimigos, através desse juramento, Tristão e Isolda continuam a ser permanentemente vigiados, e “sua felicidade era frágil e sempre ameaçada” (antes de se deitarem, Tristão flecha o olho de um intrigante que os observa: “Apesar da embriaguez da vingança, só experimentaram nessa manhã um prazer misturado com inquietação e amargura”).

Tristão resolve partir em campanha para a Pequena Bretanha, afastando-se de Isolda. À distância, é tomado de saudade e de ciúme. Cansado de sua vida de constante exilado, resolve casar-se com outra mulher, que se chama: Isolda (temos três Isoldas no romance, como desdobramentos de um mesmo símbolo — mãe, amante e esposa). Casado com Isolda, a de mãos brancas, como é chamada aqui, em oposição a Isolda, a loira, Tristão se propõe “a apreciar o encanto que há nas carícias sem amor”. No entanto, na noite de núpcias a paixão se interpõe ao prazer, o casamento não se consuma sexualmente, e Tristão vive um casamento branco com Isolda, a de mãos brancas. Sabendo do casamento, Isolda, a loira, se entristece e enraivece com Tristão, julgando-o não mais fiel e leal. Há entre eles dúvidas, suspeitas, mal-entendidos.

Consumido pela tristeza e pela distância, Tristão faz uma incursão desesperada ao encontro de Isolda: disfarçado de louco e dizendo-se Tantris, apresenta-se na corte de Marcos e, diante do rei, da rainha e de uma grande assistência, pede Isolda para si. A corte e o rei se divertem com aquilo que parece ser produto dos delírios extravagantes de um miserável demente que, indagado sobre o destino que daria à rainha, diz que a levaria para sua habitação, uma sala no céu “toda feita de vidro, bela e grande: pendurada nas nuvens e toda banhada pelo sol, qualquer que seja a violência dos ventos não se mexe nem cai. Perto da sala há um quarto feito de cristal; quando o sol se levanta a claridade é maravilhosa”.[15] Escudado na aparência de sua loucura Tristão diz, em linguagem esotérica, toda a história do seu conhecimento de Isolda até chegar ao ponto crucial do filtro amoroso, quando, em vez de falar, passa a cantar (“começou a cantarolar com ar inspirado, como alguém que sabe mais do que quer dizer”). Ou seja: a paixão só se diz, em última instância, pelo canto, pela música (donde o princípio musical, incluso no romance, que Wagner irá levar às últimas consequências).

Pateticamente solitário na expressão pública e cifrada do seu amor, implacavelmente irônico e inspirado, Tristão não é reconhecido por Isolda, que pensa ver um estranho adivinho. Só mais tarde apresenta-se a ela e declara sua identidade, lamentando ter sido reconhecido antes pelo cão que viveu com eles na floresta que pela amada (“Lembra-se melhor dos cuidados que tive com ele do que vós do amor que vos dediquei”). Tristão se banha das tinturas que cobriam seu corpo e faziam seu disfarce, e dormem juntos pela última vez:

“Belo amigo, toma-me nos teus braços e leva-me então para o país afortunado do qual me falavas não há muito, o país do qual ninguém regressa. Leva-me!” “Sim, iremos juntos para o país afortunado dos vivos. Aproxima-se a altura: não bebemos já toda a miséria e toda a alegria? Aproxima-se a altura: quando tiver chegado, se te chamar, Isolda, virás?” “Amigo, bem sabes que irei.” Então Tristão despediu-se da amiga, mas jamais em vida a devia tornar a ver.[16]

De volta à Pequena Bretanha, Tristão constrói uma sala secreta de imagens que contém toda a memória de sua história de amor. Sofre novo golpe de lança envenenada. Ferido de morte, manda buscar Isolda, instruindo o mensageiro para que ao voltar hasteie uma bandeira branca no navio, se Isolda estiver nele, ou uma bandeira negra, se ela estiver ausente, para que, em sua agonia, tenha alento para resistir ou sucumbir, se for o caso. Tempos depois, quando o navio retorna ostentando a bandeira branca, Tristão pergunta a sua esposa qual a natureza do sinal e Isolda, a de mãos brancas, diz que a bandeira é negra. Tristão, morre, e Isolda, ao chegar e vê-lo morto, estende-se sobre ele, rosto com rosto, boca com boca, e nesse abraço expira e morre.

O rei Marcos os recebe com grandes honras, reconhecendo o destino dos apaixonados, e no túmulo onde jazem lado a lado nascem uma roseira vermelha e um cepo de vinha, entrelaçados inseparavelmente.

Na sua longa leitura do Romance de Tristão e Isolda, Denis de Rougemont chama a atenção para certos pontos de contradição, incongruências aparentes, falhas e lapsos significativos ao longo da história, cujo exame ele se propõe a levar às últimas consequências. Nesses pontos de fratura é que o mito falaria o percurso e as vicissitudes do desejo, armando interrogações subjacentes que não se respondem senão através de uma rede de “enigmas”, cuja enumeração é o ponto de partida de sua análise. Retomarei os principais dentre eles.

Em primeiro lugar: se quisesse, Tristão poderia casar-se com Isolda, depois que se apaixonou por ela. Ele poderia dispor do direito do mais forte, regra aceita no mundo feudal. Existem outros exemplos no livro. Se alguém disputa em duelo uma dama, mesmo com o rei, e vence a luta, tem o seu direito como indiscutido. E sabe-se que ninguém ousa enfrentar Tristão, mesmo o rei Marcos. Há um outro episódio no livro, bastante curioso e ilustrativo deste ponto, que parece estar lá para confirmar a cisma, ou a hipótese, de Rougemont: um barão de Irlanda chega à Cornualha com uma harpa incrustada de ouro e, depois de ter cantado algumas canções e o rei ter-se disposto a retribuir com aquilo que ele desejasse, demanda a posse da rainha; o rei nega, o seu oponente o desafia a lutar, mas, como ninguém se anima a fazê-lo, carrega Isolda consigo. Tristão, que se encontrava ausente, retorna e salva Isolda com astúcia, devolvendo-a ao rei Marcos. Reclamar Isolda para si é um poder do qual Tristão dispõe e do qual não lança mão: o casamento não está no horizonte dos amantes.

Em segundo lugar: por que quando, juntos na floresta, o rei os olha, a espada se interpõe entre seus corpos? A interpretação dessa passagem é controvertida. A tradição corrente, que Rougemont adota, vê a espada nua interposta como símbolo de castidade, índice de uma enigmática continência sexual por parte daqueles que, vivendo maritalmente na floresta durante dois anos, não deixaram de fazer amor uma única noite (a não ser aquela). A pergunta suscitada pelo episódio é: por que a união contém a separação simbólica, confirmada em seguida pela devolução de Isolda ao marido? Outra interpretação[17] considera ao contrário que a espada está ali como símbolo fálico a indicar a disputa pela posse sexual de Isolda entre os dois homens, Tristão e Marcos, razão pela qual este troca a espada do herói pela sua. Segundo essa ótica, a versão da “espada da castidade”, que teria comovido o rei, levando-o a crer na inocência dos amantes, seria uma interferência cristianizante rasurando a força erótica da lenda celta. Este ponto crucial dá bem a medida, a meu ver, da ambivalência do mito como campo de cruzamento de interpretações: é essa intertextualidade pagã/cristã que produz a história da paixão, onde a espada se lê como sexualidade e castidade (pois a história amorosa suscita o impulso sexual mas demanda também a ressimbolização do sexo, no momento mesmo em que a paixão declina, como é o caso nesse momento da narração).

A questão anterior desdobra-se naturalmente numa terceira: por que Tristão devolve a rainha ao rei Marcos, mesmo nas versões em que o filtro continua a agir, e por que buscam o reencontro assim que se separam? Ou, nos termos caros a Rougemont: que segredo o amor ocidental guarda sobre si mesmo que o faz viver intensamente da sua impossibilidade?

E, finalmente, sob que perspectiva é contada uma história onde os servidores leais ao rei aparecem como “pérfidos” e “invejosos”, enquanto a esposa adúltera e blasfema aparece como virtuosa dama, e Tristão, que engana o rei cinicamente é visto como cavaleiro modelar?

Os comentários a essa série de enigmas começam com mais facilidade a partir do fim. A passagem da canção de gesta ao romance bretão é indicadora de importantes deslocamentos de perspectiva que se dão no século XII, quando as transformações psicossociais que marcam a chamada “revolução feudal” promovem a revalorização, laica e citadina, da cultura clássica, com a consequente recuperação da sacralidade e legitimidade do amor carnal, resgatando-o da marca pecaminosa com que o discurso clerical oficial o marcou. Juntamente com isso, a mulher ganha um lugar novo na vida social, que deixa seus sinais inscritos na cultura. No século XIII, por exemplo, o jogo de xadrez verá a substituição de uma peça masculina (o fierce, espécie de senescal) pela figura da rainha, que ganhará depois, no século XV, o papel central no jogo, que detém até hoje.[18] Mas a experiência do amor cortês, doutrina ligada à poesia trovadoresca, é decisiva: nela, “pela primeira vez desde os gnósticos dos séculos II e III, eram exaltados a dignidade espiritual e o valor religioso da mulher”.[19] As “inovações radicais” introduzidas pelas Cortes de Amor provençais, “a exaltação da Mulher e do amor extraconjugal”, implicavam “uma cultura superior e complexa”, uma mística e uma ascese, além de uma erótica. A cumplicidade camarada entre poetas e mulheres, que criam para si uma refinada educação sentimental, cerimonializando o amor e o sexo num mundo regido pelo “comportamento brutal ou indiferente dos maridos”, se dá portanto contra o clero celibatário e a aristocracia laica guerreira (sediada sobre o primado da força física). Ela cria uma outra Lei, a lei do Amor, alternativa e oposta à lei patriarcal do mundo feudal. Assim, ao contrário da canção de gesta, o romance bretão irá encenar essa duplicidade, a vinculação do herói a duas ordens: como o trovador provençal, o cavaleiro professa vassalagem a uma dama eleita, mas é ao mesmo tempo vassalo de um senhor. Serve a dois senhores desiguais: um senhor e uma senhora. Segundo a moral feudal, é pérfido aquele que não denuncia ao senhor tudo aquilo que o prejudique. Segundo a regra cavalheiresca, pérfido é aquele que revela os segredos do amor cortês.[20] Tristão se vê entre as duas leis; obedece inicialmente à do costume feudal, servindo em tudo ao rei Marcos, até que toma o filtro da paixão, quando passa a obedecer à lei do segredo amoroso.

A narração se faz da perspectiva dos apaixonados, da lei do amor contra a do casamento. Antes de mais nada, contra o casamento como jogo entre homens, movido por interesses financeiros e políticos, ocasião senhorial de enriquecer e anexar terras dadas ou previstas em herança (ao que se seguia facilmente o repúdio à mulher). O amor cortês afirma a primazia da paixão sobre uma ordem brutal onde as transações conjugais, isto é, as mulheres, aparecem como instrumento na guerra dos interesses feudais. O Romance será o gênero que dá largas a essa contradição, tomando o casamento e a figura do marido como foco de humilhação (apesar de sua nobreza e magnanimidade, o rei se encontrará muitas vezes na posição desqualificada e quase caricata do iludido que se empoleira num pinheiro para ser enganado).

Mas passamos agora a um outro ponto, com o qual Rougemont avança em direção ao núcleo de sua tese: ao mesmo tempo em que se opõe ao casamento, a fidelidade passional cortês se opõe também (curiosa e misteriosamente) à própria satisfação da paixão amorosa. “Nada sabe verdadeiramente do amor aquele que deseja a inteira posse da sua dama” (esse lema cortês diria bem de um quadro mental onde o movimento amoroso supõe aproximações e distanciamentos, que o romance de Tristão e Isolda descreve vivamente). Ao mesmo tempo em que se encontram e são atraídos um para o outro com furor, os amantes se separam e produzem sistematicamente o obstáculo que os separa (quando não há, o inventam, como nos casos da espada nua, do “casamento branco” de Tristão com outra mulher, da devolução de Isolda ao rei). Dito de outro modo, a paixão oscila em torno da transgressão e do interdito, como se fosse à raiz da necessidade que une esses dois termos.[21]

A impossibilidade da plena realização do encontro amoroso, que o percurso dos amantes indica, teria que ser entendida já como um extravasamento, uma excedência que os faz, mais do que se amarem um ao outro, serem presas do amor, “o amor do amor”, num grau de narcisismo para além do espelhamento pessoal. A situação dos amantes é “apaixonadamente contraditória”: “eles se amam mas não se amam” (são “vítimas” de uma poção mágica, “sofrem” tautologicamente a paixão, confessam-se mas não querem curar-se, nem buscam o perdão). “Sentem-se arrebatados para além do bem e do mal numa espécie de transcendência das nossas condições comuns, num absoluto indizível incompatível com as leis do mundo, mas que eles sentem como mais real que este mundo.”[22] O que os liga de modo indissolúvel é uma “força estranha”, “tormento delicioso” que opera no estranhamento e na fusão dos contrários. Transportados, entusiasmados, endeusados pela paixão, drogados de si e do outro, o que eles amam é o próprio ato de amar, o amor em si, e tudo o que se opõe a isso o exalta ao infinito (no instante do obstáculo absoluto que é a morte).

Pensada assim, a separação dos amantes resulta da própria dinâmica da paixão. Como o filtro amoroso, que é sua metonímia e sua metáfora, e que detém a mesma eficácia-placebo dos símbolos, a paixão é limitada mas conduz à experiência do ilimitado. O finito e o infinito travam nela uma luta paradoxal de vida e morte onde a criação do obstáculo tem um lugar decisivo para os amantes, imbuídos do mito da união sem falha e nada dispostos à aceitação do limite. Se, passada a febre da paixão, os amantes se veem frequentemente diante da perspectiva da desilusão ou do amor (como transfiguração da febre passional em aceitação dos limites do outro e de si mesmo, que se santifica no casamento), Tristão e Isolda, personagens míticos e diferentes nisso, buscam o ilimitado da paixão a qualquer custo, espicaçado contraditoriamente pela criação do obstáculo, obstáculo que remete o desejo a uma outra instância de (ir)realização. Mas se o obstáculo externo faz recrudescer a ação da paixão (o que acontece quando o rei Marcos substitui a espada) é o obstáculo interno que a conduz a resolver-se na morte, onde a máxima separação é a máxima união. Segundo Rougemont, os amantes, sem o saber, sem o querer, não desejaram outra coisa senão a transfiguração da morte como vingança contra a paixão despertada pelo filtro involuntário (a morte prolonga a paixão, eterniza a paixão, supera o limite que a mata, põe fim ao fim).

A paixão mortal é Noite perante o Dia da vida, inteligível e explicável pelas palavras, mas essa Noite, que é Dia perante os sofrimentos e os limites da matéria, fala através da música, a “velha e grave melodia” que viu o herói nascer da morte. Decorrem daí duas pontuações importantes. Primeiro: a história de Tristão e Isolda é fadada à música, o núcleo que a move não é “narrável” verbalmente; nos termos de Rougemont, o Ocidente só confessa em música o desejo de aniquilamento que habita o coração de sua concepção de amor, e, não por acaso, o romance atravessou os séculos para ser musicado por Wagner, que encontrou nele a substância mítica de uma força musical voltada ao pessimismo. E, em segundo lugar, a erotização da morte, a fé sem tréguas na febre passional, só pode ser inteiramente compreendida através do pano de fundo místico que a envolve de maneira secreta, e que vem a ser dado, segundo a hipótese de Rougemont, pelo maniqueísmo e pela heresia cátara.

Sem que isso esteja explicitado ou seja demonstrável historicamente em alguma parte, o nascimento da paixão estaria ligado, segundo a conjectura crítica de Rougemont, ao contexto cultural e religioso que viu nascer as cortes de amor trovadorescas mas também as heresias dualistas, que professavam uma descrença radical em qualquer possibilidade de redenção do corpo, condenado ao equívoco e à infelicidade. Trata-se de uma religiosidade permeada por concepções orientais (como aquelas, iranianas e órficas, que estariam nas origens do próprio platonismo). O dualismo radical que separa o mundo do espírito e o da matéria, vendo nesta o Mal absoluto, já operaria desde longa data (século III) como religião subterrânea, através de seitas gnósticas, órficas e maniqueístas. Aparentado com um amplo espectro de religiões que vão dos magos iranianos aos brâmanes, passando pelo platonismo e druidas celtas, ressoando em Ormuz e Zaratustra, o maniqueísmo vai encontrar sua expressão forte no século XII através da Igreja cátara (o nome, do grego katharós, “puro”, firma-se na altura de 1163). Nesse momento, contemporâneo das primeiras versões literárias do Tristão, difusos movimentos religiosos dualistas, de feição camponesa, transformam-se “numa seita de ritos monásticos e de doutrina especulativa na qual a desavença entre o dualismo e o cristianismo é cada vez mais sensível”.[23]

A influência da Igreja cátara é bastante ponderável. Instalada na Itália, irradia-se pela Provença, prosseguindo até o Reno e os Pireneus, organiza-se em bispados, promove concílios, consegue conversões politicamente importantes. Sofrendo perseguições implacáveis ao longo de todo o século XIII (a “Cruzada contra os albigenses” é a única vitoriosa em toda a história do cruzadismo), a Igreja cátara desaparece por volta do ano 1330, junto com aquela civilização meridional que dera origem às “Cortes de Amor” provençais e à poesia trovadoresca.

O mito maniqueísta afirma o mistério do Dia e da Noite, bem como sua luta mortal no homem, e opõe um Deus da Luz incriada e intemporal, que habita o Espírito, a um deus das Trevas, autor do Mal, que domina toda a criação visível. O mundo não é criação de Deus, mas de Satã, que assim o fez para aprisionar o espírito na matéria. A vida humana temporal resulta da intromissão maligna e equívoca do demônio na obra de Deus, adendo indesejável ao qual os cátaros contrapõem práticas ascéticas e, no horizonte, o ideal do desaparecimento da humanidade (donde os rituais suicidas — deixar-se morrer de fome — praticados por alguns dentre os Puros, a recusa ao matrimônio e à procriação e uma prática sexual ambivalente entre a continência e a orgia). “O ódio contra a vida e o corpo […] e o dualismo absoluto separavam o catarismo ao mesmo tempo da tradição vétero-testamentária e do cristianismo”, do qual se constitui numa interpretação sui generis, “de estrutura e origens orientais”.[24] Os cátaros não acreditavam no Inferno, nem no Purgatório, pois o domínio de Satã é o próprio mundo da matéria impura, que escapa à competência de Deus, donde a inutilidade dos sacramentos, o casamento, o batismo, a eucaristia e a confissão, substituídos pela purificação do Espírito Santo, descendo sobre o fiel através da imposição das mãos.

Embora nenhum documento ateste a ligação entre os cátaros e a origem do Romance de Tristão e Isolda, Rougemont ressalta o “ar de família” que une o amor-paixão mortal e o dualismo radical dos Puros, pensando o plasma cultural que engendra a narrativa como formado pela base celta, cristianizada e assimilada pela ortodoxia, mas vazada pela heresia. É nesse quadro que a Mulher aparece como um ser divino e profético: símbolo ambivalente do sexo e do espírito (o desejo sem fim que se projeta no ilimitado). A paixão oscila entre o encontro e a separação dos amantes porque o impulso erótico que ela desencadeia clama por uma união absoluta para além da limitação dos corpos, sacudindo e despertando a alma esquecida, que se descobre como prisioneira das formas criadas pela intrusão demoníaca, da Noite e da matéria. Na vida dos corpos a intensa (in)felicidade da paixão dá acesso, como a morte transfiguradora, à reintegração no Uno e na luminosa indistinção.

Por outro lado a paixão, como a fé maniqueísta, só se diz de um modo lírico, na “outra” linguagem: o salmo (assim o segredo de Tristão não se diz, mas se canta). Sobre esse ponto há que observar uma coincidência intrigante, do maior valor poético (rastilho casual ou pista esotérico-filológica?), que leva ao núcleo da tese de Rougemont, embora não anotada por ele. A prática amorosa inclusa na ordem de um cerimonial elaborado, onde a intensidade erótica se combina ao mesmo tempo com a ascese e a paixão, encontra correspondência nos rituais tântricos, cujas técnicas sexuais “podem ser compreendidas tanto ao pé da letra como no contexto da fisiologia sutil, ou num plano puramente espiritual”. É nesse quadro religioso, nos diz Mircea Eliade, que a experiência mística é mais bem ilustrada pelo amor adúltero (de uma mulher casada, Radha, pelo jovem deus Krishna) do que pelo matrimônio. Esse exemplo “confirma a autenticidade e o valor místico do ‘amor-paixão’; ajuda-nos, além disso, a distinguir a unio mystica da tradição cristã (empregando a terminologia nupcial, ou seja, o casamento da alma com Cristo) daquela, específica à tradição hinduísta, que, precisamente para ressaltar o absoluto instaurado pela experiência mística e a dessolidarização total da sociedade e de seus valores morais, utiliza não as imagens de uma instituição venerável por excelência, o casamento, mas as do seu contrário, o adultério”.[25]

Que dizer, assim, do episódio em que Tristão se apresenta à corte do rei Marcos sob o viés da loucura sagrada, contando/cantando a sua paixão de maneira direta e cifrada, confrontando o chamado casamento ao chamado adultério, sob o nome de Tantris? Os avessos que se desenham nesse episódio estão curiosamente condensados no significante reverso do nome do herói, Tristan/Tantris, celta, cristão e tantra, ocidental e oriental.[26]

Sobre essa antítese entre o cristianismo e os dualismos orientais é preciso dizer alguma coisa mais, no rastro de Rougemond. O cristianismo inverte a perspectiva das religiões antigas e orientais ao postular a encarnação de Deus no homem. O movimento da divinização não passa simplesmente pela linha que vai do corpóreo ao espiritual, mas pela verdadeira reversão provocada pelo casamento de Deus com a humanidade através do Filho: o Espírito se faz carne. Assim, a condição mortal, assumida por Deus para ser redimida, deixa de ser o termo último para ser a condição primeira daquele que é batizado: morrer para si próprio é o começo de uma vida nova; morto para si e para o mundo do pecado, mas devolvido e recebido por um Deus que quer salvar, abandonando o egoísmo e a angústia, o cristão deve voltar-se para a vida e para o próximo (que nasce justamente dessa inversão).

Sendo assim, enquanto o Eros pagão busca a transfiguração no infinito (um Eros que abraça Tânatos), o amor cristão busca o caminho da santificação pela obediência no presente. À paixão infinita da alma em demanda de luz se opõe a união de Cristo e da Igreja, modelo de casamento. À mística unitiva que demanda pela ascese uma fusão total com a divindade (e onde o pecado original é ter nascido) opõe-se a mística epitalâmica em que a descida da Graça vinda de Deus ao homem quer reparar o abismo essencial entre os dois planos (e onde o pecado não é ter nascido, mas termos perdido Deus, tornando-nos autônomos). Dualista radical na concepção que faz da gênese, o maniqueísmo é monista na escatologia (onde reina a unidade do Espírito); monista na concepção que faz de um mundo criado por um Deus único, o cristianismo projeta um dualismo escatológico, onde se opõem Céu e Inferno. E finalmente, para completar esse campo de paradoxos onde as religiões e as eróticas disparam a sua dialética vertiginosa, veja-se que, ali onde reina a doutrina da união mística associada à ideia de um amor humano limitado e infeliz (como na Grécia de Platão), a experiência da paixão é rara e desvalorizada. Mas, ali onde a doutrina de uma comunhão (sem união essencial) entre Deus e o homem aponta para o amor ao próximo e para o casamento resignado e feliz (como no Ocidente cristão), despontam os conflitos dolorosos e o mito da paixão exaltada, que acaba por emprestar seu próprio repertório de imagens (sensuais, eróticas) ao discurso místico (que em Santa Teresa é um discurso da paixão).

Tudo isso contribui certamente para ler as ambivalências do Romance de Tristão e Isolda como fecundas (elas prefiguram o campo de uma poética onde o sentimento do paradoxo e o trânsito sutil ou declarado entre as fronteiras do profano e do sagrado, do sexo e da ascese, darão margem à grande poesia de Dante e Petrarca a John Donne e toda a poesia barroca, passando por Camões e Gregório de Matos). E convém sublinhar que não se trata de reduzir aquilo que se lê no romance à esfera da explicação religiosa: o texto testemunha um mergulho doloroso e alegre na experiência desencontrada e singularmente feliz da paixão, ele não se abisma nas sombras teológicas do pessimismo ou da promessa, das quais se sai com extraordinária vitalidade, fundando um outro mito. Entre os limites dados pelas ortodoxias e pelas heresias, entre o casamento da Igreja católica e o casamento branco da Igreja cátara, poetas cúmplices das mulheres, em regime de franca camaradagem, escreveram uma história de amor atravessando os tempos, no vácuo das religiões.

Confrontada com a interpretação que acabamos de ver, a ópera wagneriana aparece clarissimamente como atualização da heresia dualista, em termos que são os do pessimismo schopenhaueriano. Este, aliás, alimentado por uma explícita postura budista da qual o cristianismo, no melhor espírito herético, não seria mais que ressonância. Em carta a Lizst, escrita poucos anos antes do Tristão, e marcada de seu antissemitismo, Wagner dizia que o cristianismo judaizado permanecia como fenômeno distorcido e contraditório, “enquanto que a pesquisa moderna mostrou ser o Cristianismo puro e sem mistura nada mais do que um ramo do venerável Budismo, o qual, após a campanha indiana de Alexandre, se propagou até as costas do Mediterrâneo”. Esse cristianismo primitivo, livre dos dogmas otimistas do judaísmo, “ainda reconhecia a fatuidade e a insignificância deste mundo, e ansiava pela cessação da existência individual — o grande ensinamento da antiga religião dos brâmanes, transformada e levada à perfeição no Budismo”.[27]

Na teoria de Schopenhauer, a tragédia ensina a inutilidade da vontade individual, revelando-lhe a ilusão: “O que confere a toda tragédia, seja qual for a sua forma, o seu impulso característico, é o despertar do conhecimento de que o mundo, de que a vida não pode oferecer verdadeira satisfação e, por conseguinte, não merece a nossa lealdade. Esta é a essência do espírito trágico; portanto, conduz à resignação” e à compreensão do “erro fundamental que está no âmago da própria existência” como sendo o de “ter nascido”.[28] O anseio do Nada, o impulso ao nirvana que a sabedoria trágica ensina e a busca da “expressão extática” desse “estado de ânimo […] induzido por Schopenhauer” seriam os motivos inspiradores do Tristão.[29] Numa das páginas ácidas de O caso Wagner, Nietzsche dirá que o compositor começou navegando nas águas do otimismo revolucionário, mas seu navio se chocou contra o rochedo do pessimismo de Schopenhauer, o que o levou a pique e o obrigou, como meio de salvar-se, a interpretar o naufrágio pessimista como meta, “como sua intenção recôndita, como o verdadeiro sentido de sua viagem” (o que levaria Wagner a rever o argumento de O anel dos nibelungos nessa perspectiva).[30]

Na ópera o romance sofre uma redução dramática. No primeiro ato Tristão traz Isolda de navio para a Cornualha, onde a entregará ao rei Marcos. Querendo vingar a morte de seu noivo, Isolda chama Tristão porque quer matá-lo com o veneno que pensa oferecer-lhe disfarçado em vinho. Preso ao comando do navio, Tristão, como Ulisses, resiste a esse canto de sereia, mas sucumbe ao convite ao brinde, feito pela mulher, e caem ambos em transe amoroso. No segundo ato, já no reino de Marcos, os amantes se encontram, contra toda a prudência, e louvam a Noite. Esse canto, parafraseando em muito o poema de Gottfried, tem intensas ressonâncias maniqueístas: é uma saudação frenética ao mergulho nas trevas propícias, longe das separações diurnas e solares. Unidos nos “espaços ilimitados”, os amantes tornam-se um (“Tristão tu, eu Isolda, não mais Tristão/Tu Isolda, Tristão eu, não mais Isolda”) num canto de amor regido certamente não pela mística epitalâmica do casamento mas pela mística unitiva da heresia. Imersos na sua volúpia, caem na armadilha dos intrigantes, e Tristão é ferido. No terceiro ato Tristão, exilado e febril, espera longamente a sua salvadora, ouvindo a melodia do pastor que o acompanha desde o nascimento (“Para que destino nasci eu? A velha melodia me repete: para desejar e para morrer; não, desejar, desejar, e, moribundo, me consumir de desejo, e não morrer deste desejo”). Isolda chega apenas a tempo de que ele morra. Ela canta (perante o rei Marcos) seu canto de amor e morre também.

O que dá em Wagner uma excepcional e renovada intensidade ao mito romanesco é a força da música e “o convincente significado metafísico”,[31] isto é, o poder de convicção que ela empresta à representação da paixão, falando-lhe a (outra) linguagem. A potência da representação do desejo, que se surpreende nela, advém de um deslocamento da linguagem musical tonal, que ela empreende desde os primeiros compassos, onde o motivo condutor (leitmotiv) do filtro amoroso introduz um fato harmônico novo, conhecido nas histórias da música como o “acorde de Tristão”. Trata-se de um encadeamento que “ficou célebre entre todos tanto pela extrema tensão obtida pela acumulação de apogiaturas como pela ambiguidade de sua interpretação […]”.[32] O movimento cadencial que estrutura a linguagem tonal, fazendo-a oscilar entre as posições de dominante/tônica, num jogo que engendra um intercâmbio permanente de tensão e repouso, é levado ao limite onde o horizonte resolutivo ao mesmo tempo que se apresenta se afasta e onde a promessa de resolução desliza sempre para uma nova tensão. Esse procedimento, que corresponde a um acirramento cromatizante das cadências tonais, dá lugar a uma tonalidade parafraseada, ou alargada, migrante para a atonalidade (onde se desfazem os eixos resolutivos), e mimetiza agudamente o movimento do desejo como ânsia e falta, impulso e carência.[33] É o que acontece em seguida à apresentação inicial do motivo do filtro mágico: depois de sua reiterada e fluida incidência, por três vezes, ele “faz efeito” e prorrompe no motivo do desejo, frase infinita que atravessará todo o prelúdio numa montante de tensões/intensidades harmônico-modulatórias que ultrapassa qualquer previsão em sua capacidade de atingir novos ápices, até declinar circularmente numa reevocação do motivo inicial. O arco impressionante desse prelúdio, para além de todos os clichês que o uso dos seus estilemas fixou, é símile do arco da paixão, e o esplêndido canto do cisne da música tonal, anunciando o seu abalo.

Não é à toa que Nietzsche ouviu nela “o terremoto através do qual uma força elementar, há muito reprimida, veio finalmente à superfície, indiferente a se tudo o que antes era chamado de cultura seria abalado e desmoronaria durante o processo”.[34] Mas essa força deslocadora revela logo a sua ambiguidade, ao buscar o repouso do aniquilamento: “O proveito que Wagner deve a Schopenhauer é imenso. Precisamente o filósofo da decadência se deu a si mesmo o artista da decadência”.[35] Em outra chave, dialética, Adorno analisa a trama ambivalente de progresso e reação que constitui a linguagem musical de Wagner e que permeia as suas fantasmagorias mítico-ideológicas. Interpretando as transformações que Wagner impõe ao tecido musical e as “fanfarras arcaizantes” com que as recobre como um duplo movimento de rebelião e impotência “diante das contradições técnicas e das contradições sociais que as engendram”,[36] Adorno vê na obra wagneriana o cruzamento ambíguo de decadência e progresso artístico. “A obra de Wagner testemunha o começo da decadência burguesa. Seu instinto de destruição antecipa pela imagem o da sociedade; é nesse sentido e não naturalmente no sentido biológico que é legítima a crítica nietzschiana da decadência wagneriana.”[37] Essa decadência, no entanto, pela inequívoca grandiosidade da derrocada que nos apresenta, como a de um “imperialista que sonha a catástrofe do imperialismo”,[38] acaba por se investir de uma propriedade cara a Adorno, a da negatividade. Mais do que um “profeta dócil e esbirro esforçado do imperialismo e do terror da burguesia em seu estágio tardio” (conteúdos que permeiam toda a sua obra), “Wagner dispõe ao mesmo tempo da força da neurose de olhar de frente a sua própria decadência e de transcendê-la […]”; “poderíamos nos perguntar se a exigência nietzschiana de saúde vale mais que a consciência crítica a que se eleva a fraqueza grandiosa de Wagner na comunhão com as forças inconscientes de sua própria derrocada. Ele se torna, na sua queda, mestre de si mesmo”.[39]

Mas voltemos aos meandros em que o pessimismo se divide entre a busca da morte e a devolução à vida (encruzilhada que surpreende também a teoria freudiana do desejo). A força da música wagneriana contida no Tristão é para Nietzsche um modelo de dionisismo, quando ele escreve O nascimento da tragédia: nela se experimenta um mergulho para além da individuação, no Uno primordial, onde a dor da existência é potenciada e superada pela catarse trágica. No entanto, a adesão ao wagnerianismo contém ali já o elemento da cisão que se abrirá depois: enquanto o ensinamento pessimista em Schopenhauer e Wagner aponta para a negação da vida e a resignação, Nietzsche insinua nesse texto o pessimismo forte e afirmador que tomará mais tarde nele um cunho declarativo e se constituirá num lema antiwagneriano. Em algumas passagens decisivas contrapõe à renúncia budista à Vontade (que assume em Schopenhauer o caráter de uma força moral) a justificação não moral da estética: “Somente como fenômeno estético a existência e o mundo estão eternamente justificados”.[40] É esse fundamento, animado pela música dionisíaca, que confere força ao pessimismo trágico, fazendo-o escapar do aniquilamento: “o profundo grego, extraordinariamente suscetível como ninguém ao mais terno e ao mais severo sofrimento, consola-se olhando frontalmente para a terrível destrutividade da chamada história do mundo, assim como para a crueldade da natureza, e está em perigo de ansiar por uma negação budista da Vontade. A arte resgata-o, porém, e através da arte — a vida”.[41]

Muitos não entenderão jamais como que uma disposição radicalmente trágica pode dar origem a uma posição afirmativa como aquela que Nietzsche defenderá, atacando; mas é que essa disposição, que parece se abismar para estes no puro paradoxo (o que no caso quer dizer, no incompreensível), tem também sua origem na vivência terrível e alegre, tautológica, da vida e da morte, da música. Eterno retorno: de como a aceitação da necessidade pode significar liberdade? De como a destruição implacável dos valores tradicionais que justificam o mundo pode dar lugar à justificação do mundo e da vida por si próprios, em seu jogo de criação/destruição? “[…] fazer com que o todo reflita sobre si mesmo, que tudo retorne, que o vir-a-ser coincida consigo mesmo, se confirme e seja incomparável, que a ampulheta cambalhote eternamente sobre si mesma, é como Nietzsche, para além do niilismo, passando através do niilismo, encontra a fórmula da afirmação”.[42]

Assim, Nietzsche se empenha em mostrar o anseio do Nada como “o oposto” da sabedoria trágica, e sua pergunta sobre a possibilidade de um pessimismo forte (e alegre) constitui-se num salto mortal/vital que reverte, como se imagina facilmente, toda a história da paixão atraída pela morte e pelo desejo de uma unidade repousada. Esse salto (reter no homem as energias que desaguam na divindade das religiões) será a dança de Dionísio/Zaratustra sobre o abismo dos contrários.

Hollinrake interpreta o Assim falou Zaratustra como a resposta do filósofo, tornado poeta ditirâmbico, ao desejo de criação que projetara em Wagner e que viu frustrar-se, assim como viu frustrar-se (e esse ponto é nada desprezível para o entendimento de seu ímpeto destruidor) o desejo de ver-se reconhecido por Wagner como músico-criador.[43] O confronto das leituras de Rougemont, sobre a história da paixão, e de Hollinrake, sobre a questão do pessimismo na história das relações entre Nietzsche e Wagner, acaba por iluminar, em sua complementaridade, o ponto decisivo da questão, a saber, o estado em que nos chega a paixão (e ela só chega depois da reversão nietzschiana). Pois, ao tomar a figura de um Zaratustra dionisíaco para negar o niilismo, Nietzsche vai ao fundamento do dualismo, o dualismo forte do zoroastrismo, para revertê-lo por dentro: “a vitória da moral sobre si mesma […] é o que significa em minha boca o nome de Zaratustra” (o maniqueísmo superado na dança dos contrários; da paixão maniqueísta a uma não-oposição de corpo e alma).[44]

Mas, onde os opostos não se excluem, deverá desaparecer o lugar que deu origem ao prestígio absoluto da paixão amorosa no Ocidente; gerada no interior de uma moral que proíbe o sexo e condena o corpo, ela perde a sua primazia e o estrelato que desfruta, se desloca. “[…] o cristianismo conseguiu fazer de Eros e Afrodite — grandes potências capazes de se tornarem ideais — duendes infernais e espíritos enganadores, pelos martírios que fez surgir na consciência dos crentes por ocasião de todas as emoções sexuais. Não é pavoroso fazer de sentimentos necessários e regulares uma fonte de miséria interior e, dessa forma, querer fazer da miséria interior, em todo homem, algo necessário e regular? […] essa demonização de Eros teve um desfecho de comédia: o ‘demônio’. Eros tornou-se pouco a pouco mais interessante aos homens do que todos os anjos e santos, graças aos cochichos e aos ares de mistério da Igreja em todas as coisas eróticas: ela fez com que, até em nossos tempos, a história amorosa se tornasse o único interesse efetivo que é comum a todos os círculos, em um exagero inconcebível para a Antiguidade e que um dia ainda dará lugar à zombaria. Todas as nossas obras de poesia e pensamento, da maior à mais ínfima, são marcadas pela extravagante importância com que a história amorosa entra nelas como história principal, e mais do que marcadas: talvez por causa delas a posteridade julgue que em todo o legado da civilização cristã há algo de mesquinho e demente”(!).[45]

Outra consequência da reversão nietzschiana sobre as figuras da paixão: desviando-se de Wagner, e de Isolda, ele encontra a Carmen de Bizet. Outra música: pela primeira vez uma “sensibilidade meridional, morena, queimada”, livre das “umidades” nebulosas do Norte, comparece à música culta da Europa.[46] Em vez da melodia infinita, que nos faz perder o pé, obrigando-nos a nadar, em vez de dançar (!),[47] temos os “dourados meios-dias” da dança mourisca (essa observação sugere uma outra aproximação: a de que um dionisismo consistente só é possível depois da penetração da música africana na América e na Europa). Outra mulher: em vez da “jovem sublime”, uma Isolda morena, “africana”, trazendo à tona uma concepção de amor (“a única digna do filósofo”) que os artistas, como todo mundo, raramente encaram — “o amor que em seus meios é a guerra, e em seu fundamento o ‘ódio mortal’ dos sexos”.[48] Na Carmen, em oposição ao Tristão, os amantes se matam de amor, não só morrem de amor.

Mas a questão é justamente traçar o lugar em que a trama mortal do amor se faz força de vida, ali onde o amor é vida e morte, movimento dos sujeitos desejantes constituídos sobre a falta. Para dizer sucintamente, e só por instâncias fragmentárias, as perguntas que nos fazemos hoje sobre paixão, casamento, amor, amizade se desconstelam e se reconstelam provisoriamente em configurações que são mutáveis, ou estão em mutação, ou em crise e desagregação produzindo acordes, e estranhas músicas. Um aforismo de Nietzsche, lido certa vez por Caetano Veloso num show, contém uma constelação onde a polarização paixão/casamento é harmonizada pelo brilho de outra estrela: a amizade. “O casamento foi inventado para os seres humanos medianos, que não são aptos nem para o grande amor nem para a grande amizade, portanto para a maioria. Mas também para aqueles, raríssimos, que são aptos tanto para o grande amor quanto para a grande amizade.”

Durante muito tempo, de uma maneira que remonta às mais antigas relações entre a ideia de amor e a de casamento, o princípio da paixão se opõe ao do matrimônio, como o da estabilidade da órbita dos planetas se opõe ao desgarramento e à ruptura. Os teólogos da Igreja chegaram a dizer que o marido ardente, que se comporta com sua esposa como amante, trai o próprio princípio do casamento desde dentro, constituindo-se numa estranha forma de adúltero (não se estranhe portanto que o amor-paixão e o casamento passional sejam figurados como antítese e transgressão do matrimônio).[49] Mais recentemente, como afirmação de um processo de “normalização” que data do século XVIII, sanciona-se jurídica e religiosamente o casamento por amor, concebido como um contrato indissolúvel assumido publicamente (nesse momento o amor e casamento passam a ser vistos como elementos a serem conjugados pelos cônjuges, mas desde que subordinados à lei civil).[50] A elaboração de uma sensibilidade que transforma hoje a herança ocidental é um fenômeno difuso, exotérico: íntimo mas ressonante na ordem dos símbolos de massa (especialmente na música popular). Novas seitas, não sectárias, quase irreais (no sentido de que sua realidade é apenas aflorante, e muitas vezes virtual) estão transformando alquimicamente entre “a dor e a delícia”, a experiência e a simbologia do amor. A nossa herança contém a expectativa de conciliação entre a singularidade errática do amor-paixão com a estabilidade duradoura do casamento. Essa expectativa é calcada em instâncias jurídicas e religiosas que se dissipam na prática, sob o céu moderno, além de não ter precedentes históricos. Mas o acorde entre o desejo de permanência, em que o amor se inscreve, e o fato de que essa permanência não pode se apoiar em nada senão no seu próprio desejo de permanência é um desafio que se abre e que é irrecusável no plano simbólico.

As seitas não-sectárias a que me refiro não se confundem com a “liberação” da sexualidade (porque exercem o desejo como o sem-lugar) (ver O quereres, Caetano Veloso) nem com a compulsão repetitiva tanática (que neutraliza e nega qualquer relação amorosa). O arco de Eros vai da dispersão tanática, estética, transgressiva, “inconsequente”, da paixão e da homossexualidade, que não produz filhos e paga alto o preço de não se incluir na ordem das trocas produtivas, até a decisão ética do amor voltado para o casamento, gerador da célula familiar (segundo a ambivalente oscilação antitética entre arte e casamento formulada por um artista casado, Thomas Mann, citado por Caetano Veloso no seu maravilhoso e até aqui ainda malvisto Cinema Falado).

Entre a solidão e a anomia, a neutralidade sem outro e sem alternativa do que há de mais opaco no mundo de massas, a demanda de amor passa pelo mapa não fixado dessas constelações mutáveis e extremamente relativas, que se expressam às vezes de formas enigmáticas e outras vezes de formas claríssimas. “[…] não pense na separação/ o verdadeiro amor é vão/ estende-se infinito/ imenso monolito/ nossa arquitetura/ quem poderá fazer/ aquele amor morrer/ nossa caminhadura/ dura caminhada/ pela estrada escura” (Gilberto Gil, Drão). Aqui, o casamento e a separação são contidos por algo que os suporta e os transcende, que é o amor vão, o amor que não tem finalidade, não tem fim, não se destina, enorme vão livre, monolito, monumento no nada, afirmação e desejo (que permanece, mas não tem onde se apoiar senão em si mesmo). Fragmentos passagens dessa relação entre vida e morte trabalhada de novas formas, na tradição da paixão e de sua metafísica (que diz respeito a uma concepção de sujeito constituído sobre a falta), mas revertendo num salto-mortal a dimensão de aniquilamento que o amor contém: “Quem poderá fazer aquele amor morrer/ se o amor é como um grão/ morre e nasce trigo/ vive e morre pão”.

Sem tentar nenhum sobrevoo sociológico sobre o campo convulsionado das ordens familiares, das relações amorosas e sexuais e suas transformações nos tempos recentes, sem arriscar (e sem condições para fazê-lo) nenhuma teoria sobre as configurações ou direções que essas relações vêm assumindo no quadro produtivo, me ocorre dizer que o casamento apaixonado, descolado de instâncias públicas (leigas ou religiosas) que o controlem, volta a ser, como o era na Antiguidade, mas inteiramente outro pela própria história, um segredo raro, uma anomalia luminosa, irradiadora;[51] raro não necessariamente num sentido quantitativo, mas no sentido mesmo de sua qualidade, e pela maneira como se acerca, ao mito da conciliação entre o errático do desejo e a permanência da memória. Mas esse amor só se concebe e só se sustenta pela transformação das relações entre o homem e a mulher, relacionado com a emergência da amizade como uma força que desloca o amor, o reconstela, o relativiza e joga para outros planos a eterna guerra e paz dos sexos. (Me parece que é isto que faz Caetano Veloso dizer em prosa e em verso que a amizade é superior ao amor: a assunção da amizade parece que vem corrigir [vou dizê-lo mais uma vez] a trama mortal do amor.)

Mas não há nenhuma nova ordem nem nenhuma nova desordem amorosa a defender. Muitos padrões de comportamento modelizados e modelizadores, muitos padrões de comportamento rebelde, nenhum padrão. Só quem atravessa é que sabe o segredo de algo que é vivido de maneira singular, constelações que não estão codificadas pela cultura e pela sociedade, puras singularidades. E estas singularidades, dimensão a que estamos remetidos quando entramos por esses labirintos, essas singularidades são heréticas, eu digo entre aspas, “heréticas”, porque elas não têm lugar nos códigos dados, nos códigos prontos, movimento que passa pelas malhas das ortodoxias. (“Não importa com quem você se deite/ que você se deleite seja com quem for/ apenas te peço que aceite/ o meu estranho amor”, Caetano Veloso, Nosso estranho amor.) Segredo poético-musical, claríssimo, oculto e óbvio, eclipse oculto, lugar-comum. O que será.

Para não dizer que não falo de nenhum objeto, ei-lo: Je vous salue, Marie, o filme de Godard — nele os trânsitos do amor e da paixão ganham a sua maior visibilidade no lugar onde ela se torna a mais oculta possível. A virgindade e a maternidade, o feminino, o homem e a mulher, parafraseando o texto bíblico, passam por questões que envolvem a realizabilidade e a irrealizabilidade do amor (ele tem algo a ver com o Tristão e faz par com Prénom Carmen). Da transparência da água, onde o espírito de Deus paira apenas levemente como riscos fugazes de uma totalidade inapreensível, brotam, com a mais luminosa violência da beleza, a mãe e seu filho, nus. Essa visão é de uma inteireza absoluta, é uma revelação, no sentido de que uma revelação possa estar, no vácuo das religiões, se dando através, de passagem, transparente e não codificada, pelo seio pulverizado do moderno. Este é o filme mais mal-entendido em todas as frentes. Vetado pela Igreja, proibido pelo Estado, estranhado pelas “noviças do vício”, mal-entendido por aqueles que o defendem contra a censura, não cabe no sermão nem no comício (ver Merda, de Caetano Veloso). A epifania meta/religiosa (no sentido daquilo que está para além das religiões) é a heresia da paixão contemporânea.

Hoje (8/10/1986), na Folha de S. Paulo, se falava da “Geração paixão” a propósito deste curso, como se o ciclo geracional e a faixa etária descrevessem aquilo que se passa aqui e explicassem o interesse deste público por estas questões. Por um mecanismo que é comum, a reportagem projeta a seu modo uma imagem do fenômeno (que faz parte também da produção dele) e em seguida, afetando certa superioridade, o critica. Mas a referência ao tempo geracional apenas simula, com o frisson existencial que a reportagem cultural quer imprimir às suas pautas, o tempo de duração de uma notícia (no caso, a “geração paixão” dura menos que um mês). Se porventura algo estiver acontecendo aqui, nessas falas e na consistência deste silêncio, será num tempo absolutamente diferente.

A propósito, parafraseando uma canção de Luiz Tatit[52] (que diz da multiplicidade e das relações contraditórias que a paixão mantém com o tempo), não é nem época de paixão.

São Paulo, setembro 86/abril 87

(dedicado a Lúcia e Laura, luz e mistério)

Notas

[1] Denis de Rougemont, O amor e o ocidente, Lisboa, Moraes Editores, 1968. p. 15. Edição original: L’amour et l’occident, Paris, Plon, 1939.

[2] As cinco versões do século XII (Béroul, Thomas, Eilhart, La Folie Tristan e o Romance em prosa) são a base de inúmeras imitações posteriores, entre as quais se destaca a versão de Gottfried von Strassburg. Das primeiras, encontra-se a edição de Jean Charles Payen (Paris, Garnier, 1974); o texto de Gottfried encontra-se editado por Bernd Dietz (Madri, Nacional, 1982). A concordância entre as versões básicas a partir da montagem de fragmentos foi realizada por Joseph Bédier (Le roman de Tristan et Iseut, Paris, Union Générale d’Éditions, 1981) e René Louis (Tristan et Iseut, Paris, Librairie Générale Française, 1972), cuja tradução tem uma edição portuguesa (Lisboa, Europa-América, 1975), na qual me baseio, e uma edição brasileira (da Livraria Martins Fontes

[3] Cf. R.S. Loomis, Development of Arthurian Romance, citado por Mircea Eliade em “O catolicismo ocidental de Carlos Magno a Gioacchino da Fiore”, in: História das crenças e das ideias religiosas, Rio de Janeiro, Zahar, 1984, tomo III, p. 129.

[4] Ecce Homo, “Porque sou tão esperto”, § 6 (cito na tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho incluída nas Obras incompletas de Nietzsche da coleção “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 372).

[5] Ver Northrop Frye, “Modos da ficção: preâmbulo”, in Anatomia da crítica, São Paulo, Cultrix, 1973, pp. 39-42. Na tipologia de Frye o mito tem um deus (ou deuses) como personagens: os mitos clássicos tardios, célticos ou teutônicos, trabalhados durante a Idade Média pelo cristianismo (como mito “devorador de rivais”), deslocam-se para o âmbito da estória romanesca na sua forma secular (cavalaria e paladinismo) e religiosa (lendas de santos). “Ambas apoiam-se […] em miraculosas violações da lei natural […].”

[6] O mito do solitário amoroso que se lança ao mar recebe uma surpreendente atualização na viagem/ livro de Amir Klink (100 dias entre céu e mar, Rio de Janeiro, José Olympio, 1986). O sentimento oceânico como vicissitude do desejo, em seu percurso tautológico, viagem sem fim, sem finalidade: por que, para chegar ao ponto de partida, preciso atravessar o Atlântico? Viver não é preciso? A saga de Amir Klink é mais uma contribuição do esporte brasileiro para a poetização do universo.

[7] Cf. Hilário Franco Jr., “A vinha e a rosa: sexualidade e simbolismo em Tristão e Isolda”, in: Renato Janine Ribeiro (org.), Recordar Foucault, São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 166-7.

[8] Sobre a questão do filtro amoroso, ver Hilário Franco Jr., op. cit., pp. 165-7.

[9] Tristão e Isolda, p. 61.

[10] Idem, pp. 60-1.

[11] Aqui vemos a relação entre o ciúme e a imagem da fusão das secreções corporais, tratada por Jorge Coli em sua conferência “O lenço e o caos”. A ferida do javali e o sangue estão como metonímia de uma metáfora sexual, atualizada em outra parte do romance, o sonho de Kariado, “fiel do rei Marcos” que deseja Isolda enciumadamente: “[…] viu um enorme javali arremessar-se da floresta, de boca aberta; aguçava as defesas e agitava-se tão violentamente que parecia querer devastar tudo. O animal avançou para o castelo. Nenhum dos barões de Marcos o ousou enfrentar. O javali correu a grunhir pelo palácio até o quarto do rei. Atravessou as portas, precipitou-se no aposento, rasgou e sujou com a espuma do focinho o leito de Marcos e os seus ornamentos” (“A inveja de Kariado”, capítulo XII de Tristão e Isolda, p. 50).

[12] Hilário Franco Jr., op. cit., p. 157.

[13] Tristão e Isolda, p. 94.

[14] Cf. Hilário Franco Jr., A Idade Média: o nascimento do Ocidente, São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 155.

[15] Tristão e Isolda, p. 146.

[16] Tristão e Isolda, p. 150.

[17] Hilário Franco Jr., “A vinha e a rosa”, p. 169-70.

[18] Cf. Hilário Franco Jr., A Idade Média: o nascimento do Ocidente, p. 82.

[19] Mircea Eliade, op. cit., p. 125.

[20] Idem, ibidem, p. 126.

[21] Aqui se abriria a possibilidade de um longo comentário de Tristão e Isolda a partir da teoria do erotismo em Georges Bataille. Infelizmente não há lugar para isso. Bataille se apoia nas teorias de Lévi-Strauss sobre o parentesco e o incesto e nas de M. Mauss sobre o dom. A proibição de certas trocas sexuais interfamiliares, ao mesmo tempo que interdita uma área da sexualidade, permite e promove, ou, na verdade, funda o campo da sexualidade não-animal, humana, erótica (separando cultura e natureza). O erótico se nutre dessa oscilação constitutiva entre a transgressão e o interdito, que permeia as instituições do dom, do tabu do incesto e do casamento (cujo caráter venerável, mas transgressor na sua origem, simbolizado pela festa ritual que o celebra, Bataille frisa várias vezes). Na primeira fase do romance, a troca de dons está retida pelo tributo de guerra (troca unilateral compulsória interrompida pelo “parricídio” primordial de Tristão, ao matar Morholt, que abrirá uma nova fase de trocas matrimoniais entre os reinos, mas também a ferida incurável que pede a cura, origem da paixão). Na fase seguinte, da paz armada, o casamento se instaura como pacto entre homens, em que se trocam fêmeas (sob suas regras aparentes fomenta-se no entanto a história secreta: reabre-se a demanda do desejo, e a mulher que cura a ferida do homem quer, em contrapartida, ser amada). Na terceira fase, da eclosão da paixão promovida por uma cadeia de vínculos femininos, temos a insurgência do objeto da troca, subvertendo o seu agente, Tristão, que ocupa bem o lugar simbólico ambivalente na trama entre o incesto e o dom (o agente matrimonial é ao mesmo tempo o transgressor da regra do casamento). O casamento, obstáculo transgredido pela paixão, permanece no entanto na categoria ambígua de obstáculo necessário, reposto na medida em que os amantes se negam à pura troca utilitária de prazeres, e trocam, em última análise, a morte, dom puro que cessa a cadeia interminável de dons mortais. (Ver “L’histoire de l’érotisme”, in Oeuvres complètes, VIII, Paris, Gallimard.)

[22] Denis de Rougemont, op. cit., p. 34.

[23] Mircea Eliade, “Movimentos religiosos na Europa: da Baixa Idade Média à véspera da Reforma”, in História das crenças e das ideias religiosas, tomo III, p. 210.

[24] Idem, ibidem, p. 217.

[25] Idem, “O catolicismo ocidental…”, p. 125.

[26] A propósito do jogo de simetrias entre o Ocidente e o Oriente, passando pelo tantrismo, ver o ensaio de Octavio Paz, Conjunções e disjunções (São Paulo, Perspectiva, 1979, tradução de Lucia Teixeira Wisnik).

[27] Citado por R. Hollinrake, Nietzsche, Wagner e a filosofia do pessimismo, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1986 (tradução de Álvaro Cabral), p. 154. Este ensaio, como se verá, me foi extremamente valioso.

[28] Citado por Hollinrake, op. cit., p. 76.

[29] Citado por Hollinrake, op. cit., p. 212.

[30] O caso Wagner (traduzo da edição em espanhol, Obras completas de Federico Nietzsche, vol. XI, Buenos Aires, M. Aguilar, 1950, p. 169).

[31] A expressão é do próprio Nietzsche em O nascimento da tragédia no espírito da música, § 21.

[32] Definição do dicionário Science de la musique, dirigido por Marc Honneger, no verbete “Acorde de Tristão” (Paris, Bordas).

[33] Arnold Schoenberg trata do acorde de Tristão no seu Manual de harmonia, nos itens “Nos confins da tonalidade” e “Suspensão e eliminação da tonalidade”; e também em Funções estruturais da harmonia, no capítulo “A tonalidade alargada”.

[34] A gaia ciência (traduzo da edição francesa, Le gai savoir, Paris, Union Générale d’Éditions, 1981, § 370, p. 390)

[35] O caso Wagner, p. 170.

[36] Theodor W. Adorno, Essai sur Wagner, Paris, Gallimard, 1975. Sobre as implicações ideológicas da técnica composicional wagneriana ver, em especial, o capítulo III, “Motif’.

[37] Idem, ibidem, p. 207-8.

[38] Idem, ibidem, p. 209.

[39] Idem, ibidem. À mesma p. 209, Adorno comenta o amor-paixão: “Morrer de amor: isso significa tomar consciência também da fronteira que a ordem da propriedade impõe no próprio homem: descobrir que almejar o prazer, se tiramos disso todas as suas consequências, faria justamente explodir essa pessoa autônoma que se pertence a si mesma e que degrada sua vida em coisa, essa pessoa que crê cegamente encontrar prazer na possessão de si mesma, e que justamente essa possessão priva de prazer”. Nas páginas seguintes Adorno termina o ensaio, depois de uma longa e severíssima (para dizer pouco) crítica da obra e da mitologia wagneriana, celebrando, no terceiro ato do Tristão, o “anátema” que este lança contra o “filtro cruel” e enganador da música (a melodia do pastor), “a revolta, seja ela vã ou não, da música contra seu próprio destino”, único caminho para que ela “reconquiste o conhecimento (e a posse) de si mesma”. E nisso, segundo Adorno, Wagner prepara e prenuncia Schoenberg (ver p. 209-12). “A passagem do começo do terceiro ato do Tristão em que, na orquestra, como se ali na fronteira entre nada e alguma coisa, a trompa capta a melodia melancólica do pastor no momento em que Tristão se agita, essa passagem viverá tanto tempo quanto as experiências fundamentais da era burguesa possam ser vividas pelos homens” (p. 205).

[40] O nascimento da tragédia, ver § 5 e 24.

[41] Idem, citado por Hollinrake à p. 216.

[42] Rubens Rodrigues Torres Filho, “A virtus dormitiva de Kant”, in Ensaios de filosofia ilustrada, São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 51.

[43] Hollinrake dá minuciosos elementos para a compreensão dessa passagem. Ver, em especial, a p. 252.

[44] Ecce Homo, “Porque sou predestinado”, § 3.

[45] Aurora, § 76 (“Pensar mal significa tornar mau”) (Cito “Os Pensadores”, p. 166-7).

[46] O caso Wagner, p. 164.

[47] Nietzsche contra Wagner (cito o mesmo volume da edição em espanhol que contém O caso Wagner, à p. 205).

[48] O caso Wagner, p. 165.

[49] Ver Jean-Louis Flandrin, “A vida sexual dos casados na sociedade antiga: da doutrina da Igreja à realidade dos comportamentos”, in: Ariès e Béjin (orgs.), Sexualidades ocidentais. São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 144.

[50] Ver Ariès, “O casamento indissolúvel”, in: Ariès e Béjin, op. cit.

[51] Ver Ariès, “O amor no casamento”, in: Ariès e Béjin, op. cit., em especial p. 158-61.

[52] Luiz Tatit, “Época de paixão”, grupo Rumo (LP independente).

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