2005

A televisão e o poder autoritário

por Santuza Naves RibeiroIsaura Botelho

Resumo

Há um aspecto contraditório no papel da televisão brasileira nos anos 70. Se por um lado há iniciativas que se poderiam chamar de “progressistas” com relação à programação, também não se pode deixar de considerar a função conservadora que assumiu o veículo, reproduzindo o discurso do governo no período em que o “milagre econômico” coexistiu com o auge da repressão política e mesmo na fase posterior de readequação do poder autoritário no final da década.

Já no final dos anos 70, a televisão resolve discutir mais frontalmente temas da realidade brasileira, abrindo maior espaço para os debates políticos, criando jornais que tentam uma linha mais analítica e lançando programas como o Abertura, da TV Tupi. Por outro lado, a TV Globo coloca no ar uma nova linha de seriados brasileiros, como Malu mulher, Carga pesada e Plantão de Polícia, e os programas humorísticos ressuscitam a sátira política. Tudo indica, portanto, que a televisão brasileira encampa o projeto governamental de abertura política.

O caráter híbrido da programação da televisão brasileira, nestes anos, tem muito a ver com a “ideologia do dono” e com a “relatividade” da nossa democracia. De uma maneira geral, sendo um veículo da cultura de massa, a televisão não se dirige a um público específico, homogêneo. Não pode, portanto, dar-se o luxo de veicular conteúdos que possam dividi-lo. Nesse sentido, a cultura que ela transmite pretende abarcar diversas classes sociais.

A televisão precisa atender a um público heterogêneo, tem que responder a questões atuais, isto é, veicular pelo menos o “clima” de abertura política que seu público está vivendo em outras esferas e, ao mesmo tempo, não pode tomar posições contra o sistema político vigente.

A década de 70 é representativa das rearticulações políticas e econômicas que se processam a partir de 1968 quando uma nova aliança se redefine, à medida que os setores “tradicionais” que apoiaram o movimento de 64— a burguesia rural e os setores médios da população de orientação direitista — vão sendo progressivamente afastados do poder em favor dos setores “modernos”, ou seja, a grande empresa, a grande indústria, a tecnocraciaetc.O conglomerado de Roberto Marinho configura-se, evidentemente, como grande empresa nesse período.


Como se inicia a discussão sobre o papel da televisão brasileira nos anos 70? Um dado importante é o aspecto contraditório deste papel, pois se por um lado não se pode negar a existência de iniciativas que se poderiam chamar de “progressistas” com relação à programação, também não se pode deixar de considerar a função conservadora que assumiu o veículo, reproduzindo o discurso do governo no período em que o “milagre econômico” coexistiu com o auge da repressão política e mesmo nesta fase posterior de readequação do poder autoritário que estamos vivendo. A análise do problema deve levar em conta, portanto, as tensões existentes entre diferentes projetos culturais e políticos, para não correr o risco de tornar-se linear. Mesmo porque seria ingênuo considerar que a realidade de nossa televisão se traduz num eterno ponto de encontro com o poder e as classes dominantes, a menos que a sociedade, no seu conjunto, permaneça alijada da dinâmica desse processo de comunicação.

Esta discussão adquire maior importância quando se verificam, hoje, os recuos do poder discricionário diante da pressão popular. Verificamos, por exemplo, neste momento, que a imprensa tradicional – um camaleão que exibiu roupagens liberais no período mais forte da ditadura – reassume agora a sua feição conservadora. Já a televisão, ao contrário, híbrida, tanto apresenta propostas progressistas, como mantém o seu discurso reacionário. Temos, por exemplo, neste momento, uma penetração do projeto político governamental de “abertura” em toda a programação. Há alguns anos atrás tinha-se uma demarcação maior de espaços: de um lado, programas que propunham uma abertura em relação ao tratamento de temas mais ligados à realidade brasileira, procurando tratá-los de forma – embora tímida – mais crítica (novelas como O casarão, de Lauro Cézar Muniz, alguns programas do Globo repórter, entre outros exemplos), e de outro, programas nitidamente reacionários, divulgadores da ideologia do Brasil grande (por exemplo: Amaral Neto, o repórter, da TV Globo). Neste final de década, a televisão resolve discutir mais frontalmente temas da realidade brasileira, abrindo maior espaço para os debates políticos, criando jornais que tentam uma linha mais analítica e lançando programas como o Abertura, da TV Tupi. Por outro lado, a TV Globo coloca no ar uma nova linha de seriados brasileiros, como Malu mulher, Carga pesada e Plantão de Polícia, e os programas humorísticos ressuscitam a sátira política. Tudo indica, portanto, que a televisão brasileira encampa o projeto governamental de abertura política.

Desde 1974, quando o general Ernesto Geisel foi empossado com a missão de preparar este processo que ora vivemos, a televisão vem também se preparando para assumir esse projeto político que se efetiva neste final dos anos 70. E da mesma forma que a deflagração do processo de abertura política — motivado pelo fracasso do modelo econômico que gerou a falsa euforia do “milagre brasileiro” — foi realizada de cima para baixo, também na televisão esse novo posicionamento frente à realidade brasileira é reflexo de decisões de cúpula.

A televisão vende a pseudo-abertura política. Este projeto serve a ela, na medida em que lhe dá maior liberdade de criação e diminui as contradições geradas pela censura política. Eis como Paulo Afonso Grisolli[1] argumenta que o público estaria preparado para receber as mudanças empreendidas na televisão:

Você tem que caminhar para descobrir as tendências do consumo. Mas isso levaria, nos dias de hoje, a uma televisão extraordinariamente ousada, sobretudo nessa fase supostamente final da ditadura brasileira. A avidez desse mercado por uma informação livre, pelo debate, determinaria, em termos de mercado, uma televisão livre, ousada, inquieta, debatendo coisas. E você vê que há arremedos disso aí. Porque o que é um Malu mulher e por que há uma resposta ao Malu mulher desse nível? O que é o Abertura como um programa jornalístico de informação, senão isso? É a televisão que gostaria de chegar lá. Pouco importa a ideologia do dono, porque a ideologia básica dele é conquistar o mercado. Depois de conquistado o mercado, ele pode até induzir esse mercado para outras coisas.

O caráter híbrido da programação da televisão brasileira, nestes anos, tem muito a ver com a “ideologia do dono” e com a “relatividade” da nossa democracia. Seria simplismo, portanto, atribuir a indecisão da fala televisiva à censura que se fez presente na década de 70. A censura oficial já não incomoda tanto as emissoras. O que pressiona e censura a televisão hoje é, por um lado, obviamente a relutância de seus “donos” em veicular uma ideologia antagônica à sua e, por outro, também no momento da veiculação desse discurso antagônico, as contradições que se processam entre os empresários de televisão e o governo. Exemplo disto foi o episódio recente da saída de Daniel Filho da direção da Central Globo de Séries. Segundo consta, a ousadia por parte de Daniel Filho ao abordar determinados temas até então considerados tabus teria gerado divergências internas na Globo, apesar do sucesso que as séries brasileiras vêm alcançando junto ao público.

A televisão caminha com um passo à frente e outro atrás. Observando a programação da Rede Globo a partir da classificação de seus programas em novelas, seriados, shows e jornais, notam-se, por exemplo, as diferenças entre um tipo e outro de programa. Aos seriados (e anteriormente às novelas das 22h) é conferida a função renovadora de discutir os temas prementes da realidade brasileira. Observa-se que o horário das 22h sempre foi aquele em que, de acordo com Homero Icaza Sanchez (diretor do Departamento de Análises e Pesquisa da Rede Globo de Televisão), “pode-se soltar mais, ousar mais, experimentar”[2], por contar com um público mais selecionado. Segundo Sanchez, a maioria dos telespectadores das chamadas classes C e D costuma se recolher antes da programação ir ao ar, pois tem que acordar cedo. Os shows não chegam a inovar em matéria conteudística. Retomam agora, com o processo de abertura, a linha de humor político do rádio, embora enfeitados pelos sofisticados padrões da emissora. Quanto ao telejornal, mesmo respeitando as suas características informativas, pode-se afirmar que aspectos importantes dos acontecimentos nacionais são omitidos ao telespectador.

De uma maneira geral, entretanto, sendo um veículo da cultura de massa, a televisão não se dirige a um público específico, homogêneo. Não pode, portanto, dar-se ao luxo de veicular conteúdos que possam dividi-lo. Neste sentido, a cultura que ela transmite não pode exprimir os valores de nenhuma classe em particular. Disso resulta, de acordo com Muniz Sodré (1977), o sincretismo da cultura por ela veiculada. Assim, a seleção de público feita pela televisão se limita a determinar linhas de programação de acordo com o horário. O horário das 22h em diante é agraciado com uma programação pretensamente mais séria, mais voltada para o “real” (no que se refere à produção nacional). Já um esforço de classificação no intervalo “nobre” (entre 18h e 22h) seria em si mesmo contraditório, pois este horário mantém o pico da audiência e congrega o telespectador médio. Vejamos o que nos diz Homero Icaza Sanchez[3] a respeito:

Se você assistir a todos os jornais da Globo, se dará conta de que muita notícia aparece em outros horários. Então, por exemplo, o horário das 7h é um horário pouco assistido pela sua classe, mas muito assistido pelo subúrbio. Então, se o subúrbio assiste ao noticiário das greves às 7h, diz assim: “Veja só: Crime, quebra-quebra, porrada, o diabo a quatro…” Então, há uma distribuição da notícia. Eu já ouvi gente dizer que todo mundo entrevista Brizola e a Globo não entrevista. Ora, a nossa entrevista com o Brizola foi de mais de uma hora, mas apareceu no último jornal e pouca gente viu.

Assim, o horário das 22h serve como poderoso álibi para uma censura interna aos temas mais controversos e a realidade brasileira vai sendo veiculada em doses homeopáticas, como argumenta Grisolli[4].

De repente, às 10 da noite a televisão começa a ficar classificada. Não é um horário popular por natureza. O povo vai dormir cedo para trabalhar de manhã. E começa a ser um horário mais intelectualizado, mais sofisticado, e começa a permitir, na medida em que esse mercado de consumo vai sendo gratificado pelo nível de debate, da temática, da elaboração, que se vá ficando mais aficionado. E vai consumindo televisão e vai se tornando o novo mercado consumidor conquistado pelo seriado.

O que garante, em geral, uma determinada linha de programação é justamente esse público diferenciado, o qual, até o momento, longe de fragmentar-se em diversos núcleos de sustentação de uma proposta televisiva, exige que a televisão alterne seus projetos, sincretize sua fala e, consequentemente, homogeneíze os conteúdos que veicula. A Rede Globo alterna, no horário “nobre”, novelas do tipo que poderíamos chamar “experimentais”, que tentam não só novas formas de linguagem como também abordam temas menos “vendáveis” (arriscaríamos até a dizer mais complexos), com autênticos novelões. Às novelas com propostas novas de um Bráulio Pedroso ou um Mário Prata, às 19h, segue-se um Cassiano Gabus Mendes, mais ao gosto “popular” ou, citando Homero Sanchez, “uma coisa leve, gênero fotonovela”[5]. E no horário das 20h, alterna Lauro Cézar Muniz com Janete Clair.

Além da consequente neutralização das diferenças de classe que a linguagem da televisão em si já produz, é interessante verificar a explicitação disto em determinados momentos como, por exemplo, é o caso do editorial abstrato do encerramento do Fantástico, quando o locutor Cid Moreira adverte gravemente o “cidadão-telespectador” sobre situações que compõem um máximo denominador comum social. O programa não se engaja, nesse quadro, com questões específicas de uma classe; ao contrário, ele filtra os problemas. O recado é construído, portanto, em cima de temas relativos à “solidão nas grandes cidades”, ao “desamor”, à “esperança” etc.

A televisão precisa atender a um público heterogêneo, tem que responder a questões atuais, isto é, veicular pelo menos o “clima” de abertura política que seu público está vivendo em outras esferas e, ao mesmo tempo, não pode tomar posições contra o sistema político vigente.

Chegamos num ponto em que a discussão sobre a televisão e o Estado, no Brasil, encaminha-se para algumas vertentes. Um primeiro aspecto a ser considerado são as características das nossas emissoras como empresas privadas, de natureza comercial-industrial, que exploram uma concessão governamental — e do seu produto, muito bem descritas por Paulo Afonso Grisolli:

A televisão brasileira é uma indústria de lazer e entretenimento popular. E a regra do jogo é esta: a regra capitalista do sistema de televisão brasileiro. Ela tem que buscar avidamente a tendência de consumo popular e não pode escapar disso enquanto empresa. Se você fabricar realmente refrigerante, não adianta fabricar refrigerante amargo que ninguém consome. Você tem que caminhar para descobrir as tendências do consumo mesmo. Ela está condenada ao mercado e isso é terrível. Se ela quiser assumir funções sociais extramercado, ela está correndo risco.[6]

Um outro lado da questão é justamente o fato de que a televisão, no Brasil, é uma concessão governamental a título precário. Isto reafirma, em primeiro lugar, a afinidade ideológica com o poder dos grupos que exploram os canais de televisão, pois não se pode anular a força deste veículo de comunicação de massa nem os riscos que ela representa para o establishment. Trata-se de uma constatação óbvia, a menos que detalhemos a situação das empresas do gênero e reconheçamos a trajetória ascendente da Rede Globo, por exemplo, para o setor “moderno” da economia. A década de 70 é representativa das rearticulações políticas e econômicas que se processam a partir de 1968. Uma nova aliança se redefine, à medida que os setores “tradicionais” que apoiaram o movimento de 64— a burguesia rural e os setores médios da população de orientação direitista — vão sendo progressivamente alijados do poder em favor dos setores “modernos”, ou seja, a grande empresa, a grande indústria, a tecnocracia etc. (CARDOSO 1975). O conglomerado de Roberto Marinho configura-se, evidentemente, como grande empresa nesse período. E, de maneira análoga ao que se processa entre os setores da classe dominante, a Rede Globo assume uma situação de monopólio, enquanto as emissoras mais artesanais se esfacelam (como é o caso das TVs Rio e Excelsior, ou das tentativas constantes de sobrevivência da TV Tupi). Walter Avancini analisa o processo:

A associação com o grupo Time-Life permitiu um modelo empresarial que toda multinacional se propõe, um modelo determinado por altos padrões tecnológicos utilizando o talento e a mão-de-obra nativa. Como essa estrutura não existia, na época, nas outras emissoras de TV, o monopólio foi fácil. Coincidiu também com o modelo caudilhista governamental — note que são quinze anos de ditadura e quinze anos de Globo.[7]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

SODRÉ, Muniz. O monopólio da fala. Petrópolis, Vozes, 1977.

CARDOSO, Fernando Henrique. Autoritarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975.

Notas

  1. Entrevista concedida aos realizadores deste trabalho em 30/8/1979.
  2. Homero Icaza Sanchez, revista Veja n° 422, outubro de 1976.
  3. Entrevista concedida aos realizadores deste trabalho em agosto de 1979.
  4. Entrevista citada.
  5. Revista Veja n° 422, outubro de 1976.
  6. Entrevista citada.
  7. Entrevista aos realizadores deste trabalho.

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