2005

Anos 70: momentos decisivos da arrancada

por José Arrabal

Resumo

O momento é realmente oportuno para fazer um balanço do teatro dos anos 1970 no Brasil. Polemizar questões que ele levantou, com o objetivo de trazer maiores subsídios para a criação dramática dos próximos anos, sobretudo no que tange ao seu caráter de classe. Isso porque tal período foi definido por experimentações, como só acontece quando se vive um cotidiano opressor – e paradoxal. Como? Na medida em que, se, de um lado, a opressão atravessa o processo de criação cultural, sobretudo porque acoberta as tensões estruturais por trás dele, ela, de outro, derruba mitos formais.

Contudo, por mais que a produção teatral dos anos 1970 pareça marcada pelo momento, ela deve à década anterior, uma vez que foi nela que emergiram, com suas propostas estéticas que se estendem a hoje, as lutas populares em reação ao AI-5.

Momentos decisivos. De um lado, as ambições culturais da ditadura; de outro, as dramaturgias combativas, assim como praticadas por Oduvaldo Vianna Filho, Augusto Boal e José Celso Martinez Correa. Influências tais que, em teatro, qualquer tentativa de romper com a dominação de classe deve passar por elas. Por isso, a necessidade de analisá-las.

A começar por Vianna Filho e o ideário que apresenta no artigo publicado pela revista da “Civilização brasileira” de julho de 1968, intitulado “Um pouco de pessedismo não faz mal a ninguém”. Trata-se de exaltar as experiências de organização teatral e compreensão política tais como concebidas no começo dos anos 60, muito próprias de determinadas ideologias do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb). Sonhos que, em última instância, servem ao mascaramento das relações de classe no Brasil, se não a um ideal de sociedade sem luta de classes.

É preciso, pois, analisar como isso se dá na prática teatral em questão.

Esclareça-se que Vianinha foi um dramaturgo da maior importância para o teatro brasileiro. Seu compromisso com a linguagem dramática é crescente até a radicalização. Tanto que do utilitarismo imediato e direto da arte pela política passa à busca por toda uma sobredeterminação do signo teatral diante das ideologias que tentam naturalizá-lo a favor do imaginário burguês. Daí as concepções de tempo e espaço nada aristotélicas em sua peça “Rasga coração”.

De início, Vianinha luta pela unidade do teatro brasileiro, tendo em vista aspectos mais políticos do que propriamente artísticos e culturais, uma vez que ele mesmo está por se definir como dramaturgo. Tal proposta parte do pressuposto de que haveria um objetivo comum aos profissionais do teatro brasileiro: o de aprimorar as condições gerais do meio em que trabalham; péssimas, normalmente. E isso independente da vertente em questão, seja ela política, esteticista ou comercial. Por isso, a causa comum, ou seja, “a política cultural do governo”. “E não somente a deste governo, que só fez pisar no acelerador”.

Trata-se, pois, de uma luta contra a “industrialização” do teatro, uma vez que seu tempo é o do artesão de bens simbólicos, num universo onde não há relações de exploração, mas uma reversibilidade entre patrão e empregado; em suma, uma comunidade pronta a resistir à ação governamental.

Ao supor o governo como um centro empenhado em não mais do que extinguir o teatro nacional – como se proposta estatal para ele não houvesse –, Vianinha toma as contradições concretas pelas aparências. Mais: suprime do processo seu componente principal, isto é, o desenvolvimento capitalista supranacional. Para Vianinha, “a contradição principal é a do teatro como um todo, contra a política cultural de um governo subdesenvolvido”.

Mas em que consiste esse “teatro como um todo”? Em meio à “insatisfação geral”, algo que é preciso construir com o que se tem, apesar de tudo inibir a função crítica e a constituição de um mercado de trabalho?

A partir disso a tendência é concluir pela intenção de criar uma instância que unifique os empresários teatrais, conscientes de suas funções e papéis sociais. No mais, constata-se a dificuldade de organização sindical do meio, como que desprovido de sua consciência de luta.

Fato é que os argumentos de Vianinha servirão a todo tipo de manipulação ao longo dos anos. Notadamente para consolidar o Estado como mediador de todo um processo cultural voltado para o capitalismo espetacularizado.

Já Augusto Boal não reivindica o “teatro como um todo”. Na verdade, não está sequer preocupado com qualquer proposta que possa resolver as dificuldades dos produtores teatrais em geral. E isso pelo seguinte motivo: para ele, não há o “em geral”; antes, uma divisão entre clássicos e revolucionários. De um lado, Oscar Ornstein, por exemplo; de outro, o Teatro de Arena. Ou seja: de um lado, uma linguagem que cristaliza, como a do CPC ou da UNE; de outro, o que está em constante desenvolvimento, coordenado e necessário. Coordenado artisticamente; necessário socialmente.

Trata-se – difícil negar – de uma divisão um tanto arbitrária e subjetiva, assim como a seguinte previsão acerca do teatro que se seguirá ao modelo “agônico”: “O único caminho que parece agora aberto é o da elitização. E ele deve ser recusado, sob pena de transformarem-se os artistas em bobos da corte burguesa, ao invés de encontrarem no povo sua inspiração e o seu destino”. Ora, tal julgamento descarta a possibilidade de organização livre e independente segundo a politização dos artistas e trabalhadores desse suposto “teatro de elite”. Segue Boal: “A quem interessa que o teatro seja popular? Descontando-se o povo e alguns artistas renitentes, parece que a ninguém de mando e poder. Vindo o que vier, neste momento de morte clínica do teatro, muitos são os responsáveis: devemos todos analisar nossas ações e omissões. Que cada um diga o que fez, a que veio e por que ficou. E que cada um tenha coragem de, não sabendo por que permanece, retirar-se”. A questão parece, pois, ética. E é. Social também. Tanto que Boal quer organizar um sistema de produção dramática e cênica ágil, constante e simples, de modo que se possa cobrar menos pelo ingresso e deslocar-se facilmente. É o método “coringa” – que, ao assumir caráter pedagógico e propagandístico, estrangula seus próprios fins libertários. Nada horizontal, dialógico ou crítico, ele, ao dificultar a relação entre palco e plateia, reduz esta à ideia que faz dele o artista pequeno-burguês que se quer itinerante com sua mercadoria. Assim, vige um modelo moralizante e estático, uma vez que não vê no povo o sujeito das transformações históricas. Mesmo assim, há que se destacar o comprometimento de Boal com os setores populares.

Como logo se conclui, não se trata de uma solução para o “teatro como um todo”. Nem de uma organização dos trabalhadores artistas conscientizados de seus papéis profissional e político.

O método “coringa” traz, contudo, uma contribuição significativa à criação e organização de grupos teatrais não empresariais que rodam pelo interior do país, sobretudo os estudantis.

Já no fim de 1968, insatisfeito com impasses postos pelo seu próprio método, Boal parte para o “agit-prop”, em torno do qual pretende reunir, mais uma vez, os tais “artistas renitentes”. Dessa vez, é o AI-5 que frustra seu projeto. O Teatro de Arena vive, então, uma crise interna.

Inquieto, Boal arrisca o “teatro-jornal”, cujo objetivo é passar técnicas cênicas para as camadas populares para que elas criem formas de resistência e comunicação políticas. O grupo que trabalha em tal movimento chega mesmo a abandonar o mercado.

Em 1971, Boal é preso e exilado. Mesmo sem ter conseguido alcançar seu objetivo primeiro, é a partir da concepção teatral dele que surge o dinâmico Teatro Independente, que, em anos de pesada repressão, cresce fora do circuito e hoje, em meio a tantas contradições, luta para articular-se como crítica à política cultural do regime.

Cabe, enfim, analisar o projeto teatral de José Celso Martinez Correa, o mais radical dos três dramaturgos. Ele que não só critica o populismo comum aos modelos teatrais progressistas ainda comprometidos com as ilusões políticas anteriores ao golpe militar, a exemplo do “agit-prop”, como polemiza o papel do artista criador, a autonomia do código cênico frente às ideologias de dominação e o sentido do teatro revolucionário e suas relações com o público. Alinhado ao ideário de 1968, José Celso vale-se mais de suas intuições artística e política do que de uma linha de raciocínio estabelecida, o que, de modo algum, desmerece sua contribuição à história do teatro brasileiro, que tanto se originou quanto se destina à classe média radical. Assim, é de supor que ela parta de uma consciência social mais avançada, que critica sobretudo as condições de produção e existência do fenômeno cultural.  Daí sua natureza constantemente subversiva, que ideologicamente deve muito a Sartre. Do ponto de vista atual, pode-se divisar que sua militância criativa, que se estendeu a Portugal e Moçambique, aprofundou-se com o tempo. À frente do grupo Oficina, lutou contra todo e qualquer modo de dominação enraizado no imaginário burguês. Chega a provocar, agredir mesmo a plateia (segundo a imprensa, sobretudo). O mais justo é referir-se a uma agressão que se volta para as normas da linguagem teatral, embrionária, aliás, de uma série de debates que se alongariam por anos.

Irracional, eis como se costuma qualificar o teatro de José Celso. Isso que só faz sentido quando ele é comparado à racionalidade mercadológica, que “bem atende” sua freguesia.

No mais, questionar a montagem de José Celso para “Roda viva” a partir de uma consideração metafísica da violência é matá-la.

Nas palavras do próprio José Celso: “Nada que é novo nasce sem violência. Não há uma violência absoluta, sem partido. Tem a violência fascista, mas tem também a violência revolucionária, popular, que é legítima, porque se põe contra a violência do dia-a-dia.”

O ápice disso se dá com a montagem de Galileu Galilei de Bertold Brecht, o primeiro trabalho do grupo Oficina, no exato dia em que é decretado o AI-5.


Para Yan Michalski

(A história do teatro, no Brasil, sabe por quê)

Em determinadas épocas a loucura e a realidade se unem e se tocam. O que é desumano e irracional é aceito com tranquilidade, o que ameaça por ser novo é controlado imediatamente, o que representa novos valores, novas aspirações é cerceado violentamente, o que eclode como a maior possibilidade do ser humano, a de poder criar livremente, não é permitido. O homem, então, volta-se para o plano individual, não podendo agir… imagina, muitas vezes se embaraça em seus próprios labirintos.

(José Luiz Ligiero Coelho, para o espetáculo As loucuras do Dr. Qorpo Santo, Teatro Mágico, Rio, anos 70)

I

O que me proponho com este texto, em hora de balanço, é dar uns poucos passos no sentido de uma contribuição à remontagem de alguns aspectos de certas propostas determinantes da trajetória do teatro, no Brasil, durante os anos 70. Polemizar questões dessa trajetória passada, tentando assim trazer subsídios a uma melhor articulação política da criação dramática e cênica dos próximos anos, nos termos de uma alteração de seu caráter de classe.

No teatro, a década foi mesmo uma empreitada de definições. O dia-a-dia opressivo muitas vezes entravou o processo cultural, enfumaçando ainda mais suas tensões estruturais, confundindo e até mesmo aplacando muitas das propostas emergentes por uma arte insubmissa à ideologia dominante. Mas neste processo de dificuldades, por outro lado, também desmoronaram alguns mitos da questão teatral, clarificando-se de certo modo alguns interesses em jogo. Por isso uma empreitada de definições.

Um balanço mais imediato dos últimos dez anos nos remete à conclusão de que agora o Estado, com suas características de classe definidas, conforme o modelo que o regime militar implanta, é o mediador hegemônico da produção teatral, com um programa de ação organizado sob perspectivas de considerável operacionalidade, para o que conta com o apoio dos empresários de espetáculos.

Mas ver os anos 70 não será possível se nos desligarmos de toda uma série de polêmicas e propostas culturais que emergiram no bojo das lutas populares da década anterior, meses antes da instauração do Ato-5. E no teatro esse fator de análise é determinante e fundamental para toda uma compreensão mais real do processo. É por esses conturbados dias dos 60 que começam a se demarcar as diversas propostas que irão refletir-se no palco nos anos seguintes, em meio a controvertidos caminhos, avanços e recuos, quase como num jogo de cabras-cegas.

Determinemos então os marcos básicos do início da travessia. Os momentos decisivos da arrancada. De um lado, o delineamento das ambições do regime para com o processo cultural. De outro, algumas ideias por um teatro combativo, insatisfeito com suas condições de existência e expressando toda uma ansiedade por superar os impasses advindos com a debacle de 64. Ideias que se polarizam em três propostas: as de Oduvaldo Vianna Filho, Augusto Boal e José Celso Martinez Correa. As demais propostas emergentes aliam-se de um modo ou de outro a essas três linhagens que se prenunciam. E é delas, como marcos ou momentos decisivos, que se deve enxergar a continuidade da luta pela organização dos artistas, nos 70, consideradas as suas limitações, suas estreitezas teóricas e sobretudo considerada força das pretensões do projeto cultural do regime, já em andamento.

São três propostas que emergem por volta de 1967/8, se debatendo nas suas transitoriedades e com suas variantes, até nossos dias. Um teatro que pretenda romper com a dominação de classe, criando no seu interior um pólo de consciência revolucionária, há que considerar essas propostas como experiências fundamentais de sua história (ou pré-história) e de suas lutas, para delas aproveitar seus acertos e recusar suas fragilidades frente à violência das ideologias de dominação.

Tratemos uma por uma dessas propostas, a partir da descrição de alguns de seus sentidos, sem querer esgotá-los.

II

Começamos por Oduvaldo Vianna Filho. Seu ideário se concentra fundamentalmente no ensaio Um Pouco de Pessedismo Não Faz Mal a Ninguém, texto publicado em caderno especial da revista Civilização Brasileira, no mês de julho de 1968. Trata-se de uma proposta herdeira das experiências de organização teatral e compreensão política para a cultura que tiveram seus momentos altos nos primeiros anos dos 60. Para o pensamento de Vianinha converge toda uma “consciência de um destino comum” muito própria de certas ideologias do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb). Sonhos que em última instância servem ao mascaramento das relações de classe, em nossa sociedade, se não a um ideário utópico por uma sociedade de classes sem luta de classes.

Vejamos, porém, o modo como se desenvolve a pretensão política de mobilização do mundo teatral na exposição de Vianinha, sob as controvérsias tanto de seu lugar de classe, como de seus compromissos sem dúvida sinceros com o desenvolvimento das artes cênica e dramática, no Brasil. Antes há que se esclarecer que, no processo, esta proposta se perde das mãos de Oduvaldo, cujas reflexões irão até mesmo superá-la. É o que se pode constatar no avanço de seu pensamento teórico e de sua dramaturgia, muitas vezes nos indicando verdadeiras autocríticas do miolo de suas ambições para a direção da luta cultural, em 1968. Outros, porém, hão de retomar essa sua imagem para com ela fundamentar certos modelos de intervenção na vida teatral.

Sem dúvida, Vianinha (cuja morte, em 1974, é um desastre para a história do teatro, no Brasil) foi um artista em progresso da maior importância. A mais significativa personalidade intelectual de seu grupo. Quem mais avançou dentre aqueles que com ele se alinhavam. Seu compromisso com a linguagem dramática é crescente e pouco a pouco vai se radicalizando. E do utilitarismo imediato e direto da arte pela política, transmuta-se — infelizmente sua morte interrompe esse processo em emergência — numa busca por toda uma sobredeterminação do signo dramático frente às ideologias que tentam naturalizá-lo em favor do imaginário burguês.

Não é à toa que Rasga coração tende a pulverizar o tempo e o espaço dramáticos, numa direção de negação da concepção aristotélica do drama. Não é em vão que Oduvaldo, de seus contemporâneos com ele afinados, é o único a considerar e reconhecer pouco a pouco cada vez mais — conforme nos indicam suas últimas entrevistas — a validade de certas experiências de vanguarda na busca por uma afirmação não naturalista da escritura cênica. E toda essa direção controvertida e contraditória de seu pensamento em progresso, material riquíssimo de estudo para a história do teatro, no Brasil, hora nenhuma se desliga (malgrado os equívocos de sua concepção política) de uma busca de maior esclarecimento das condições concretas do processo cultural, em nossa sociedade, chegando mesmo a se aproximar de uma perspectiva de classe para a situação da cultura, numa visível ruptura com as lições do Iseb.

É preciso conhecer melhor a complexidade da trajetória de todo o ideário em processo desse homem de teatro, com o que temos, sem dúvida, muito a aprender, a partir de uma leitura materialista de seus momentos mais significativos. Leitura que saiba reconhecer e denunciar a recuperação e a utilização do nome de Oduvaldo, de sua obra e de seu papel por aqueles que conspiram e trabalham em favor da consolidação de um teatro burguês no processo cultural.

Mas vejamos o que, em 1968, tem a propor Oduvaldo Vianna Filho para o desenvolvimento da história do teatro nos anos seguintes. Oduvaldo pretende uma unidade dos que lidam com o teatro no país. Unidade ainda marcada mais por sua formação política do que por sua compreensão do fenômeno artístico e cultural, pois que politicamente sua coloração está no momento bastante definida, enquanto o artista está ainda por se definir: a direção de suas grandes obras é um fenômeno que começa a aflorar por essa época.

Sua proposta de unidade parte da consideração de que há um ponto em comum entre todos aqueles que lidam com a cena: “A insatisfação geral com as condições de nosso teatro”. Considera absurda “a noção de luta entre um teatro de esquerda, um teatro esteticista e um teatro comercial, no Brasil de hoje, com o homem de teatro esmagado, quase impotente e revoltado”. Para ele só há um combate a se levar adiante e contra “a política cultural do governo”. E frisa: “Não somente a deste governo, que só fez pisar no acelerador”.

Sua reflexão considera a impossibilidade de industrialização do teatro por parte dos homens de teatro, unidos numa linha de produção artesanal de bens simbólicos, universo onde não se distinguem as relações de exploração, onde há toda uma situação que reverte o patrão de hoje a empregado de amanhã e vice-versa, compondo-se daí um mundo comunitário distinto do contexto social mais amplo, o que dá a essa classe teatral — imagina — uma possibilidade de unidade em pontos comuns contra a ação governamental.

O teatro… é uma mercadoria industrializável, sim, submetida, porém, na política cultural do governo a um processo de extinção.

O resultado de sua análise das aparências é tomado como resultado de uma análise das contradições concretas do real. Ver o governo como um centro só empenhado na extinção do teatro é não entender a direção das ambições estatais com relação ao desenvolvimento da produção de espetáculo. Talvez o governo de então quisesse, por enquanto, desarticular um tanto o teatro existente, contudo para impor seu projeto cultural melhor delineado. O certo é que o teatro existente, conforme as peculiaridades de seu modelo de teatro comercial, na época, carecia de condições para resistir às novas direções do processo de desenvolvimento capitalista que se impunha à sociedade. E uma oposição definida às pretensões governamentais não passava — hoje nos é fácil afirmar, mas uma análise concreta das condições do teatro, na época, também o afirmaria — por uma preservação inglória do mundo teatral existente. Passava sim e já por toda =a criação de polos de organização independente dos trabalhadores do palco, na defesa de seus interesses como artistas. Um trabalho nesse sentido teria auferido de imediato conquistas menores, avançando muito lentamente, mas seria um trabalho embrionário de grande significado.

Para Oduvaldo, porém, “a contradição principal é a do teatro como um todo, contra a política cultural dos governos nos países subdesenvolvidos”.

O que será esse teatro como um todo? A proposta assume a concepção de um teatro brasileiro, de um teatro nacional sem contradições internas, redondo e sem arestas, evoluindo e se afirmando aos trancos e barrancos, heroicamente. Teatro brasileiro que é preciso construir — em meio à insatisfação geral — com o que se tem, somando-se todas as suas forças contra os governos empenhados em diluir sua função crítica (?) e em destruir a própria existência do mercado de trabalho.

Não se entra no mérito de classe desse teatro brasileiro e na verdade assim se enfumaçam as tensões estruturais geradas na montagem do capitalismo, em nossa sociedade, conforme elas se refletem no interior da produção teatral.

O ideário de Oduvaldo desse modo liga-se, arqueologicamente, ao projeto romântico expresso por Gonçalves de Magalhães, mais ou menos nos anos 30/40 do século passado, ocasião em que o pai do romantismo brasileiro escreveu Antonio José, o judeu/O poeta e a Inquisição e formulou seus conceitos teóricos para a construção de um teatro nacional. Não há assim por parte da proposta de Oduvaldo a menor ruptura com o modo com que a dominação de classe compõe a existência da vida teatral, no Brasil. Muito pelo contrário há, no seu ideário, até uma certa coloração nostálgica desse modo de existência da vida teatral, considerando-se que já chegava a hora de seu esgotamento histórico, pois que a direção do processo de desenvolvimento capitalista da sociedade brasileira estava por exigir um outro teatro como seu aparelho ideológico de dominação.

Mas o que será manter unido esse teatro como um todo? Ou seja, qual o sentido da mobilização que se propõe? É lógico que há um sentido político mais amplo na proposta, sentido que se sobrepõe aos interesses concretos de uma organização independente dos trabalhadores do teatro atolados nos mitos de uma existência particularizada frente ao contexto global da existência social.

Não pretendo, contudo, aqui, abordar a significação e o significado desse atrelamento da prática e da luta do mundo teatral em tal projeto político mais global. Quero entrar no mérito da proposta apenas do ponto de vista da organização independente dos artistas, no seu sentido histórico.

Manter unido esse teatro como um todo parece ser manter o mercado de trabalho como tal, sem polemizar e atritar as suas contradições internas[1]. Se possível, empenhar o teatro brasileiro em favor do fortalecimento desse mercado de trabalho. Mas que mercado de trabalho é esse, se há, como Oduvaldo mesmo constata, “uma insatisfação com as condições atuais de nosso teatro”? Aliás, vale notar que essa insatisfação é tão redonda e sem diferenças como o conceito de nosso teatro. Nosso, de quem?

Há três anos, ou mais, Fernando Torres luta por formar uma associação de empresários, sem resultado. Oswaldo Loureiro, praticamente só, se desfez num sindicato que corre atrás dos sindicalizados.

Da afirmação de Oduvaldo se conclui que já existe uma tendência em favor da organização dos empresários teatrais. O que significa que esses empresários — ainda que refratários, por enquanto — já tendem, um mínimo que seja, a uma tomada de consciência de suas funções e papéis sociais. Tanto a ponto de alguém entre eles propor a organização coletiva de seus esforços e interesses patronais. Constata-se também a dificuldade de organização sindical dos trabalhadores de teatro. Mas responsabiliza-se, no contexto do raciocínio de Oduvaldo, a categoria profissional por essa dificuldade. Imputa-se a dificuldade a seu baixo nível de consciência de luta. Não se questiona o programa de lutas (?) mobilizatórias desse sindicato. A justeza ou não de suas propostas organizativas. São questões — tanto para uma análise concreta das perspectivas patronais como das perspectivas dos trabalhadores do palco — que a reflexão de Vianinha deixa de lado para embrenhar-se e comprometer-se com as dificuldades da organização dos patrões e dos empregados como problemas do destino comum. Não polemiza e embaça as contradições reais das estruturas de poder no interior da produção teatral.

A falência ou o colapso do projeto populista, em 1964, os desastres das propostas políticas do regime anterior não servem de lição à elaboração da análise de Oduvaldo. Seu equívoco será o bastante para que sua proposta, ao longo da definição dos anos, sirva às manipulações em favor justamente da consolidação do Estado como mediador de todo um processo cultural voltado ao empresamento capitalista acelerado do espetáculo[2].As aspirações de unidade dos homens de teatro, por parte de Vianinha, são amplas, generosas, tanto quanto ingênuas. A sua apreensão do real carece de uma análise concreta da realidade. Toma o real por sua aparência, com a leitura ideológica que faz das condições de existência da produção teatral no país. As questões que coloca como possíveis impasses para o bom sucesso de seu projeto, ele as responde de modo não substantivo, pois é as adjetivando que as enfumaça.

A noção de luta entre um teatro de esquerda, um teatro esteticista e um teatro comercial, no Brasil de hoje, com o homem de teatro esmagado, quase impotente e revoltado é absurda (…) Ninguém aqui está formulando posição contrária à experimentação. O que não podemos é tomar a posição de fazer do teatro brasileiro um imenso laboratório desligado de suas condições comerciais, de seus atrativos para o público. Como se fosse melhor não existir o que já existe, para então começar do começo.

Não se discute o caráter de classe do público a quem atende esse teatro. E, na verdade, procura-se é fortalecer esse teatro, por seus aspectos comerciais. O mito de um teatro abstrato sobrepõe-se ao teatro existente para justificá-lo e consolidá-lo sem que se entre no mérito de suas contradições:

O teatro brasileiro.., é um teatro profissional que cumpre profissionalmente a indescritível tarefa de montar de 80 a 100 espetáculos por ano, no Rio e em São Paulo, sem auxílio praticamente nenhum… Na verdade, cada vez que um pano de boca se abre neste país, cada vez que um refletor se acende, soam trombetas no céu — trata-se de uma vitória da cultura, qualquer que seja o espetáculo.

O conceito de cultura perde qualquer perspectiva histórica. A atividade teatral se heroiciza. E vacila-se no combate aos governos, tornando esse combate apenas um marco moral da proposta, pois que se sente na situação da ausência de auxílios[3] uma certa reivindicação latente de maior apoio ao teatro (ou melhor, aos empresários) por parte desses mesmos governos, contra quem esse teatro de patrões e empregados — com patrões e empregados todos no mesmo barco — deve se levantar: estranho paradoxo que faz da proposta de Oduvaldo um prato para os produtores de espetáculos[4].

A noção burguesa de classe teatral se sobrepõe por todo o raciocínio de Um Pouco de Pessedismo Não Faz Mal a Ninguém, marco que há de iluminar uma das direções programáticas de luta, no interior das transformações da vida teatral. Marco frágil, se tomado por marco de resistência às investidas do ideário cultural das classes dominantes, na expressão do regime vigente.

As ambiguidades da proposta de Oduvaldo são tantas, suas vacilações frente aos problemas da realidade concreta dos interesses em jogo tão significativas, que em dado momento do processo de desenvolvimento da história do teatro, na década de 70, algumas de suas ideologias, nas distorções que se permitiram, são recuperadas para a consolidação de todo um projeto oficial para o teatro. Nesses termos, a proposta se descaracteriza até de seus fundamentos morais, o combate a uma possível mediação ou controle do teatro pelo Estado. Necessário se faz destacar na proposta essa preocupação ética de Vianinha em dar combate aos programas culturais do regime. Isto para considerarmos os seus propósitos, sem confundi-los com o que veio depois[5]:

Na verdade, a contradição principal é a do teatro como um todo, contra a política de cultura dos governos nos países subdesenvolvidos.

A linhagem da proposta de Oduvaldo, por sua falta de consistência, pouca base concreta de fundamentação, ingenuidade de argumentos, serve, desfigurada de sua inspiração ética, a quem ele se propusera enfrentar com o teatro como um todo.

É claro que se reconhece em Oduvaldo Vianna Filho um homem de teatro que procurou com imenso esforço e muita dignidade colocar todo o seu imaginário idealista em favor do palco e do drama. Tragicamente ele não está entre nós, mas a leitura crítica da continuidade de seu pensamento e de sua dramaturgia — vale repetir — hoje nos permite entrever toda uma série de contradições suas posteriores, com essa sua formulação de 1968. Se foi superficial na análise da realidade, da condição de existência e da situação do teatro, em Um Pouco de Pessedismo Não Faz Mal a Ninguém, não há maior autocrítica de sua parte com relação a isto do que ter, numa de suas últimas entrevistas, insistido na proposição brechtiana que então parecia estar tomando por lema: “Aprofunde, aprofunde o mais que puder, pois só assim poderá descobrir a verdade”.

III

As ideias e formulações de Augusto Boal partem de pressupostos diversos das aspirações de Vianinha. Considera a crise do mercado de trabalho, mas não reivindica uma unidade do teatro como um todo. Nem mesmo está preocupado com qualquer proposta que venha resolver as dificuldades dos produtores em geral. Vê o teatro existente vivendo “seus momentos agônicos. E

a presente morte não vem para certas tendências ou para certas correntes: é morte total, genérica”.

Seu ponto de vista se faz ouvir por um artigo intitulado Elogio Fúnebre do Teatro Brasileiro, também publicado no mesmo caderno especial da revista Civilização Brasileira, de julho de 1968.

Fala da morte do Teatro Brasileiro. O que há de vir, Boal desenvolve na continuidade de suas reflexões. Constata uma divisão no seio do elenco nacional:

Os elencos nacionais, independentemente das qualidades de seus espetáculos, dividem-se em clássicos e revolucionários. São clássicos não os que montam obras clássicas, mas os que procuram desenvolver e cristalizar um mesmo estilo através de seus vários espetáculos. Nesse sentido, o senhor Oscar Ornstein[6] seria um produtor clássico, já que seus espetáculos procuram aperfeiçoar sempre a novela radiofônica em termos vagamente teatrais.

No caso, revolucionário seria o Arena de São Paulo, pois “o seu desenvolvimento é feito por etapas que não se cristalizam nunca e que se sucedem no tempo, coordenada e necessariamente. A coordenação é artística e a necessidade, social”. Para Boal, mesmo o CPC da UNE foi clássico, pois se manteve nos limites de um estilo.

Essa compartimentação da prática teatral é arbitrária e subjetiva na sua arbitrariedade. Não tem o menor fundamento. Como é arbitrária a previsão do teatro que há de se seguir a esse teatro agônico:

O único caminho que parece agora aberto é o da elitização do teatro. E este deve ser recusado, sob pena de transformarem-se os artistas em bobos da corte burguesa, ao invés de encontrarem no povo a sua inspiração e o seu destino.

De um lado, o teatro de elite emergente. De outro, o teatro popular. Descarta-se a possibilidade de uma organização livre e independente e a politização do nível de consciência dos artistas trabalhadores desse suposto teatro de elite. E a opção por uma organização da vida cultural em favor do povo (?) é de fundo moral e postura heróica:

O beco não parece ter saída. A quem interessa que o teatro seja popular? Descontando-se o povo e alguns artistas renitentes, parece que a ninguém de mando e poder. Vindo o que vier, neste momento de morte clínica do teatro, muitos são os responsáveis: devemos todos analisar nossas ações e omissões. Que cada um diga o que fez, a que veio e por que ficou. E que cada um tenha a coragem de, não sabendo por que permanece, retirar-se.

Se os pressupostos da análise de Augusto Boal são acima de tudo éticos, há na continuidade de sua proposição um movimento crítico bem mais dinâmico do que nas pretensões de Vianinha. Boal quer organizar e estruturar um sistema de produção dramática e cênica mais ágil, com elencos fixos, cenários simples, de maneira que as trupes possam cobrar menos pelo preço do ingresso e mesmo deslocar-se com mais facilidade com os seus trabalhos. Pensando assim, elabora uma estrutura precisa de dramaturgia e espetáculos. É o método Coringa.

No Coringa, pretende-se propor um sistema permanente de fazer teatro (estrutura de texto e estrutura de elenco) que inclua no seu bojo todos os instrumentos de todos os estilos ou gêneros. Cada cena deve ser resolvida esteticamente segundo os problemas que ela isoladamente apresenta.

O método tem objetivos estéticos, econômicos e políticos. Os estéticos se demarcam, em última instância, por um contraponto de certas concepções épicas com certas concepções dramáticas. Um convívio contraditório que se resolve acentuando o poder do palco frente à plateia. A pedagogia do Coringa — que é um teatro de propaganda — assim estrangula os seus propósitos libertários. Verticaliza a relação do artista com o público, o que se acirra com a exaltação temática nessa festividade de estilos.

O diálogo entre as partes — palco e plateia — não se impulsiona dialeticamente, num sentido de mútua alimentação crítica. Assim, a ideia de povo, nesse processo, será sempre a ideia que desse povo faz esse artista pequeno-burguês que se quer itinerante com sua mercadoria[7]. O modelo do Coringa pede mesmo é um suposto espectador mais ou menos nas condições de classe, de saber e principalmente de empolgação do elenco. Espectador que viva a experiência como um cúmplice bem comportado dos propósitos da montagem.

A leitura do real, no Coringa, é analógica, vendo a história como uma espécie de depósito de lições moralizantes e heroicas para o futuro. A cosmogonia do modelo não apreende as massas como sujeito das transformações históricas. No seu entendimento da mobilidade histórica sempre alguém há de interpor sua mediação entre essa história e as massas. Na vida, quando muito um herói, um mito. No palco, o artista, que, na sua dinâmica aparente, assim se expressa e se comunica. O que se quer é um outro modo de se ver o mito e o herói, confirmados como tal. Um novo modo de ser do artista como tal, na expressão de seu poder, de sua teologia renovada.

Na época, com o texto Heróis e Coringas (revista Teoria & Prática, n° 2), Anatol Rosenfeld questionou o método:

É evidente que toda comunicação teatral deve tomar em conta o público específico a que se dirige. Mas não há nenhum público que, indo a um teatro dedicado à interpretação da realidade nacional, mereça menos que arte e menos que a verdade. O herói místico, sem dúvida, facilita a comunicação estética e dá força plástica à expressão teatral. Todavia será que a sua imagem festiva contribui para a interpretação da nossa realidade, ao nível da consciência atual?

Por seus objetivos econômicos, o Coringa enfrenta a crise do mercado com elencos fixos e maior mobilidade de suas montagens. Politicamente, pretende aumentar a viabilidade de uma popularização do teatro, além de levar às plateias uma informação crítica sem ambiguidades, num sistema que impeça interpretações subjetivas do que se mostra em cena: “Cada texto é o que declara ser”. Ainda que as interpretações do real pelo Coringa sejam bastante discutíveis.

Demarcando as contradições da história por heróis e mitos, na verdade o Coringa acaba se expressando por dilemas morais. Mas, apesar de todas essas controvérsias, o certo é que Augusto Boal buscava uma saída para a organização de um teatro mais comprometido com os setores populares.

As raízes de suas reflexões, estando calcadas numa procura por novos estilos de

representação e num processo de pesquisa constante por novos métodos de expressão do palco, nos apontam que via o Coringa mais como uma experiência conjuntural. Seria um modelo

apenas mobilizador de grupos e elencos para o que chamava teatro popular. Modelo que evitava nesses grupos o estrelismo individual, coletivizando de certo modo o processo interno de produção de texto e de criação do espetáculo e, por conseguinte, a relação entre os artistas. Afastava também esses artistas do palcão, na promoção de um outro processo de apreensão e entendimento da vida teatral.

Não trata mesmo de uma solução para o teatro como um todo. Nem de uma organização dos trabalhadores artistas que lhes permitisse o desenvolvimento de uma consciência profissional e política capaz de enfrentar com maior resistência as condições adversas do modelo capitalista selvagem que se impunha à sociedade.

Num certo sentido, porém, por suas particularidades e facilidades estruturais, a proposta do Coringa, posteriormente, há de se refletir como contribuição significativa à criação e à organização de muitos grupos de teatro não-empresarial pelo interior do país. Grupos que com o Coringa começaram a escrever suas peças, a montar seus espetáculos. O mesmo ocorreu com outros tantos grupos de teatro estudantil. Contribuição embrionária para a emergência de um outro teatro em construção, responsável por toda uma atividade de resistência cultural, na década.

Já nos fins de 1968, insatisfeito com alguns impasses do Coringa, Boal joga-se em propostas mais ágeis ainda, no campo do agit-prop[8], com a 1ª Feira Paulista de Opinião, outra tentativa de articulação dos artistas renitentes, a partir de um confronto de suas produções e de uma polemização de suas diferenças. A promulgação do Ato-5 faz fracassar o projeto, deixando o Arena numa relativa crise interna.

Daí se chega à proposta de Teatro-Jornal, um trabalho preocupado em passar algumas técnicas e habilidades cênicas às camadas populares, no sentido de assim elas se familiarizarem mais com a arte da representação, para as. suas formas de resistência e comunicação política.

O grupo que trabalha com Boal chega praticamente a abandonar o circuito do mercado, voltando-se a uma atividade não-empresarial. Está se tentando como se pode, a todo o custo, manter o teatro mais próximo das classes populares.

Augusto Boal é preso em 1971. Da prisão, vai para o exílio. Ainda que não tenha conseguido mobilizar, no meio teatral, os artistas renitentes com suas ideias, estas vão servir à mobilidade de um Teatro Independente que, naqueles anos de dura repressão, se desenvolveu fora do circuito, e hoje, em meio a tantas contradições, se esforça para se articular de modo mais coeso, como uma das possíveis alternativas críticas à política cultural do regime.

Trabalhando no exterior, Boal aprofunda algumas técnicas de agit-prop, no que alcança surpreendentes resultados, avançando em sua compreensão de um teatro transitório que contribua a seu modo para alterar o caráter de classe do processo cultural:

Fazer o teatro explodir dentro de um ritual diferente do ritual teatral. Quando você faz o teatro dentro do teatro, se o espectador está lá apenas como espectador, ele é um ser passivo com o qual se faz o espetáculo. O espetáculo se faz afim de impor a ele uma visão de mundo que é acabada e na qual ele não pode interferir. As vezes ocorre que essa visão é correta, mas de qualquer maneira trata-se de uma visão imposta, da qual o espectador não participa. Minha tentativa é a de libertar o espectador de sua condição de passividade, para que ele possa usar o teatro e através dele conseguir outras liberdades. (Augusto Boal, 1976)

IV

A proposta de José Celso Martinez Correa por uma transformação intensa na história do espetáculo, no Brasil, é uma recusa radical das ideologias presentes no interior de todo um teatro progressista ainda comprometido com as ilusões do modelo político de antes do golpe militar de 64. Denuncia a coloração populista desse teatro. Por outro lado, não se satisfaz com a perspectiva de uma prática teatral que se volte apenas para o agit-prop. Quer ir além disso, polemizando o papel do artista criador, a autonomia do código cênico frente às ideologias de dominação, discutindo o sentido de um teatro revolucionário e suas relações com o público. Nos passos de um ideário emergente por volta de 1968, há toda uma coloração ainda voluntarista e carente de um programa cultural melhor explicitado em suas táticas. Seu raciocínio vai assim um tanto a reboque de certa intuição política e artística para a revolta. Isto de modo algum desmerece o processo das iniciativas e as contribuições de José Celso à história do teatro, no Brasil. Um teatro localizado no coração da classe média radical e de quem é cúmplice — seu público privilegiado — só há de expressar desse modo a partida de seu nível de consciência mais avançado, nas suas contrariedades com determinadas condições de produção e de existência do fenômeno cultural. E se o marco da grande virada de José Celso tem essa coloração, por outro lado expressa também toda uma angústia por rupturas com tais limitações, na direção de uma mudança de seu caráter de classe.

A formação política e ideológica de José Celso tem seus compromissos arqueológicos com certas correntes existencialistas. Sartre, basicamente, está presente nos seus modos de engajamento na luta cultural. A ruptura com isso é um processo árduo que nos últimos anos da década de 60 ainda carece de condições para se efetivar. Vendo de hoje o processo, creio que a experiência de luta cultural empreendida por José Celso no exterior, em Portugal e Moçambique, é determinante fundamental de toda uma alteração significativa nesse seu modo de comprometimento com uma intervenção do teatro e das artes na sociedade, esclarecendo mais profundamente o sentido de sua militância de criador.

É claro que não é só a isso que há de se dever a transformação do ideário de José Celso, no decorrer dos anos. A riqueza de sua trajetória de artista combativo está sempre empurrando-o cada vez mais para diante, nas suas inquietações, em meio a erros e acertos, mas nunca se deixando abater pela acomodação. Se foi quem fez os mais significativos espetáculos do circuito, nos anos 60, e quem mais ousou, no seu voluntarismo, na década seguinte, há ainda muito que se esperar de surpreendente por parte desse homem de teatro e de sua revolta contra os mil modos de dominação do imaginário burguês.

Em 1968, para ele “uma época sobretudo de negação”, sua voz, como diretor e personalidade maior do grupo Oficina, é a expressão no teatro que mais profundamente abre o jogo dos erros do passado, por sua acentuada característica de radicalidade:

Hoje, com o fim dos mitos das burguesias progressistas e das alianças mágicas e invisíveis entre operários e burgueses (…), nós não podemos ter um teatro na base dos compensados do TBC, nem da frescura da Commedia Dell’Arte de interpretação, nem do russismo socialista dos dramas piegas do operariado, nem muito menos do juanadarquismo dos shows festivos de protesto.[9]

Reivindica então um teatro que “transmita essa realidade de muito barulho por nada, onde todos os caminhos tentados até agora para superá-la se mostraram inviáveis”. Um teatro voltado a uma opção brasileira (?) que balance a plateia, que a perturbe no seu cotidiano. Este propósito de perturbação do cotidiano da plateia se fragiliza, enquanto proposta radical, com a manutenção do circuito tradicional para os seus espetáculos. Por essa época, ainda não abre mão das salas de espetáculos, da comercialização do palco, conforme o velho modelo de compromissos com a bilheteria. É assim, num primeiro momento, que há de circular a negação radical de José Celso. Sua expressão mais polêmica é Roda viva, musical de Chico Buarque de Holanda, que dirige com um grupo de atores jovens, na sua maioria estreantes. O espetáculo surpreende por suas ousadias no modo de se relacionar com o público.

Para a crítica, trata-se de um teatro agressivo que desrespeita e afasta a presença da plateia, com sua violência. Uma violência que chega a ser considerada mera provocação.

Yan Michalski, no Rio, observa que a “atitude intelectual do encenador de Roda viva é comparável à atitude de uma criança de três anos que faz xixi no meio de um salão cheio de visitas e fica espiando com curiosidade a reação refletida no rosto dos pais e dos convidados”. Em São Paulo, por seu ensaio O Teatro Agressivo e com sua autoridade teórica, Anatol Rosenfeld comenta, falando da montagem, que

fazer da violência o princípio supremo, em vez de apenas elemento num contexto estético válido, afigura-se contraditório e irracional (…) A mera provocação, por si só, é sinal de impotência. É descarga gratuita e, sendo apenas descarga que se comunica ao público, chega a aliviá-lo e confirmá-lo no seu conformismo.

O ideário por uma ação direta do palco, por palavras e gestos que balancem uma suposta passividade do público, José Celso já o expressara com a montagem de O rei da vela (Oswald de Andrade). Roda viva leva adiante e radicaliza essa pretensão. Produz-se no meio teatral a categoria de um teatro agressivo. Segundo seu inspirador, a expressão é invenção da imprensa. Para José Celso, hoje,

Roda viva instaurava uma nova relação com o público. Uma relação de quebrar as máscaras, de quebrar a careta, na violência do nascimento. Fez o público experimentar um estado forte do teatro. Um teatro que era o prolongamento do que se fazia nas ruas, naquele tempo. A força das passeatas, a força de Roda viva.

É claro que o modelo de Roda viva, preso ao circuito comercial de época e apenas expressando um modo mais ousado da relação do espetáculo com o público, não significava uma proposta de organização dos artistas, muito menos do teatro como um todo. O que se está polemizando é a linguagem de cena. Discussão embrionária de toda uma vertente de ricos debates que emergiram nos anos seguintes, no interior da questão teatral.[10]

O circuito comercial, porém, por suas tradições, era refratário e mesmo repudiava essa discussão. Um certo nível de disciplina do artista e da mercadoria teatral é uma exigência da natureza mercantil desse circuito para bem atender a sua freguesia. Roda viva rompe com a naturalidade dessa situação. Daí a análise considerar sua proposta como irracional, essa análise tomar por modelo de razão[11] a racionalidade do mercado. Uma crítica mais consequente à proposição do espetáculo, se justa, como uma negação à sua esquerda, só teria sentido passando por um questionamento profundo das limitações e das condições de possibilidades do palco de empresa de época, com relação à escritura cênica.

Quanto à violência do espetáculo, o que há de se considerar é o seu caráter de classe, determinando-se daí a sua significação política. Tratava-se de uma violência calcada num ideário de radicalidade pequeno-burguesa. E, de certo modo, uma radicalização, nos termos, um tanto gratuita, salvo como exorcização de tantas ansiedades mal resolvidas por aqueles comprometidos com a concepção do espetáculo. Seria justamente esse conjunto de ansiedades que o pensamento crítico de época deveria procurar polemizar e aprofundar, para politizá-lo na direção da construção de um outro teatro alternativo a esse que se negava com a rebeldia de Roda viva. Teatro este limitado para o desenvolvimento histórico da escritura cênica.

Questionar Roda viva por sua violência, a partir de uma consideração metafísica da violência, é tentar conter as ansiedades expressas pelos ímpetos combativos da montagem. E, com essa postura conservadora, não se contribui para a transformação dessas ansiedades em expressões políticas mais consequentes. Aliás, revendo a questão da violência, José Celso, nos dias de hoje, a formula melhor do que na época:

É preciso pensar melhor essa estória da violência. Nada que é novo nasce sem violência. Não há uma violência absoluta, sem partido. Tem a violência fascista, mas tem também a violência revolucionária, a violência popular, que é legítima, porque se põe contra a violência do dia-a-dia (…) Existe uma violência que é uma coisa guerreira, uma coisa que faz nascer o novo. É lógico que uma peça forte como Roda viva, que virava a mesa, que fazia toda uma revolução cultural, que negava o pensamento acadêmico, o pensamento idealista com relação ao teatro, é óbvio que uma peça como Roda viva, surgindo naquele ambiente super-careta, super-intelectual, super-social-democrata, ia acabar mesmo gerando, por um lado, toda uma série de equívocos. Mas também ia balançar, como balançou, muitas coisas. Ora, não vejo, nem via, a violência como uma abstração, ou como um conceito acadêmico (…) Será que a violência não tem o seu caráter de classe? O que nós fazíamos estava voltado para a vida, para o nascimento de uma coisa nova. O nascimento de um outro teatro.

Se hoje há uma consciência mais precisa do papel histórico de Roda viva, conforme a compreensão de seu diretor, na época isto não se dava. É o que se pode concluir com a pesquisa em entrevistas ou mesmo com a leitura do programa do espetáculo, onde a expressão dos propósitos da montagem se revela muito mais como uma consequência de certa intuição política e artística, certas ansiedades, uma revolta ainda sem programa e direção definida. Daí também a fonte dos equívocos gerados com o trabalho. Equívocos que não se devem apenas ao ambiente careta da vida intelectual. Mas também à própria fragilidade de conceituação do que se desejava com a intervenção artística e política da obra. A proposta tem desejos, mas não os sabe organizar teoricamente, melhor caracterizando-os. São desejos até justos por um novo teatro, porém expressos sem base numa análise real e concreta de suas justezas. Mas de qualquer modo, para o imaginário de José Celso, a experiência lhe abre novas perspectivas de melhor apreensão do fenômeno cênico. E é nesse sentido que ele há de avançar, inaugurando, no interior da história da cultura, no Brasil, toda uma série de novas reflexões sobre a criação teatral.

Será na montagem seguinte do Oficina, após o trabalho com Roda viva, que as proposições de José Celso hão de expressar os pontos mais altos de seu ideário por um outro teatro, naqueles dias de fim de década. Em Galileu Galilei é que se concentram as mais significativas e organizadas contribuições artísticas desse encenador, para o momento.

O teatro no Brasil chega a Bertolt Brecht com toda a sua grandeza revolucionária para a questão do palco. O espetáculo, conforme o concebeu seu diretor, reunia em si todo um conjunto de críticas pertinentes e profundas aos impasses conjunturais da vida intelectual no país. É uma crítica à naturalização da escritura cênica. É uma recusa do racionalismo burguês como método de leitura lógica do real. Uma afirmação do caráter dialético e material da política. Um combate à atitude heroica pequeno-burguesa frente à dominação de classe. Uma polemização de certos matrizes oportunistas da prática política da intelectualidade de oposição. É uma reflexão sobre as relações dessa intelectualidade com as classes oprimidas e exploradas. É sobretudo uma exaltação do materialismo histórico e do materialismo dialético como instrumentos para uma leitura mais concreta das contradições do real. Uma afirmação da semiologia como instrumento de construção do espetáculo. Galileu Galilei, como hoje acentua José Celso, é “o primeiro trabalho do Oficina em que as coisas se amarram para se libertar, com uma força cultural consciente nunca vista, com a gente dizendo tudo do tempo em que vivíamos.”

Mas, por ironia da história[12], o espetáculo estreia no dia da assinatura do Ato-5. Nesta situação, não irá despertar a discussão que merece:

Estreou — diz José Celso — sem as sequências do contato físico com a plateia, as passagens do Carnaval do povo, conforme o nosso projeto (…) De fato não teve a discussão profunda que desfechava. Ninguém podia discutir nada. E muito menos nós, que não íamos levantar a lebre, entregando a peça para o inimigo. Não tinha nem um programa de apresentação que falasse das coisas como a peça exigia. Só em Belo Horizonte é que abrimos o Carnaval do povo, e desse miolo do Carnaval do povo, nessa experimentação, é que começamos a pensar numa coisa parecida com o Gracias, señor. Ou seja, Galileu foi o primeiro passo para Gracias, señor.

Galileu Galilei é um trabalho que irá influenciar toda a trajetória futura de José Celso. Não apenas indica seus primeiros passos rumo ao polêmico Gracias, señor. É com Galileu Galilei que José Celso irá trabalhar em Portugal, por ocasião do ascenso do movimento de massas português, após a Revolução dos Cravos. E hoje, de volta ao Brasil, é com o Ensaio geral do carnaval do povo que ele retoma suas atividades.

O que se ressalta no espetáculo é toda uma discussão entre a razão aristotélica e a razão dialética, como um passo importante na grande discussão, na grande negação do teatro aristotélico, por Brecht. A peça é o maior barato! Brecht não tem nada a ver com toda uma visão de teatro político de catecismo e catequese, de povo ingênuo e fudido, que os clichês dos que clamam por teatro social andam divulgando por aí. Brecht é dialético, mágico. O teatro dele é a própria contradição posta a nu. Um poeta incrível, vivendo toda uma coisa cósmica e lutando, guerreiro, armado com a dialética, dentro disso! (…) E um artista em movimento permanente. Um artista da imaginação e da criação (…) No sentido em que se liga com todo um processo coletivo de luta ao movimento de massas; quando uma sociedade está em luta, aí é que é a hora mesmo de Brecht (…) Arrebenta com quem está mentindo, com quem não quer o movimento, o movimento de massas.

A proposta marca sua posição, ainda que tardiamente, pois que o Ato-5 desarticula as discussões sobre a vida cultural. Tem-se com Galileu Galilei um modelo de teatro desencadeando rupturas com toda a tradição cênica, no Brasil. É um marco avançado de arrancada por essas rupturas em processo histórico.

Com o espetáculo não despertando, por questões da conjuntura política, o nível de discussão que reivindica, esse impasse acelera as contradições de José Celso com o esquema dominante de produção de espetáculos. Acirra suas contradições radicais com o modelo de palco em que apresenta seus trabalhos, remetendo-o a um questionamento, nos termos de seu nível de consciência, desse mesmo palco. Eis o sentido de Na selva das cidades, que estreia em 1969, levantando uma certa polêmica moral sobre a situação em que se encontrava o artista no Brasil. A moral do espetáculo se resume no seguinte: “Vende a tua opinião e você tem tudo, do contrário eu te mato, e você vende na marra”[13].

A força do espetáculo volta-se contra o próprio espaço da representação. O cenário e os elementos de cena são destruídos a cada dia. Da antropofagia de O rei da vela chega-se à autofagia de um Bertolt Brecht expressionista e anárquico. O que se devora é um teatro morto na concepção do Oficina.

Situando as condições de existência da produção cultural por belíssima metáfora, num discurso de muitos sentidos, Na selva das cidades põe em debate toda uma série de considerações muito próprias do momento. Segundo José Celso, “era toda uma nossa discussão final com o teatrão”.

O que nós queríamos era arrebentar com a violência cultural, a violência da indústria cultural, do sistema cultural. Um sistema cultural que estava se implantando com a Editora Abril, com a Globo. Uma política das multinacionais para a cultura, que castrava a criatividade da gente e fazia da cultura uma droga muito mais sofisticada. E a gente estava dizendo, sobretudo, isso, dizendo que isso estava tomando conta do teatro, com o sistema de subvenções do Estado, consolidando uma coisa capitalista no teatro. A gente era hostil a isso e o nosso corpo não suportava isso, todo esse bordel em que a gente estava sendo metido. O grupo sentia isso, falava isso e falava do que estava acontecendo no Brasil (…) Era coisa do momento. E a gente tem, no teatro, que mostrar o momento que a gente vive como ele é.

A beleza de Na selva das cidades, por seu modo radical de expressar toda uma cosmogonia apocalíptica com relação ao teatro, não conseguia enfrentar certa contradição que trazia no bojo de suas proposições: propunha-se a destruição do palco morto, sua devoração. Mas e os trabalhadores desse palco, como ficariam, abraçando o projeto da montagem? Atuando apenas no espaço não-institucional?

O impulso radical de tomada de posição que se expressava por Na selva das cidades, com sua moralidade e revolta, ainda que pudesse servir de opção para o Oficina — e essa opção foi dura de ser assumida pelo próprio Oficina, em meio a rachas e mais rachas até sua dissolução — não poderia jamais ser uma saída que mobilizasse em torno de si os artistas, na busca pela superação de seus impasses.

José Celso parecia não compreender que nessa “coisa capitalista que estava tomando conta do teatro” o sentido da luta exigia — como exige — uma organização mais estreita de seus trabalhadores, na construção de uma política e de aparelhos próprios de reivindicação e combate por seus interesses de profissionais e criadores da cultura. Reivindicação e combate nos mais diversos níveis dos enfrentamentos econômicos, políticos e ideológicos.

Ainda que se deva desenvolver toda uma luta no campo da linguagem teatral, questão fundamental do processo da revolução cultural, com táticas e estratégias definidas por uma mudança do caráter de classe da escritura cênica, por uma perversão do sentido do teatro dominante, enfim, não se pode deixar de lado, como problema menor e desprezível, a questão da organização dos trabalhadores desse teatro. Organização em seus aparelhos de representação e expressão, para que esses trabalhadores, se fortalecendo no processo, consigam elaborar seus programas de luta, conforme suas posições mais avançadas e o desenvolvimento do nível de consciência da categoria, consideradas também suas condições concretas de existência e situação histórica.

Há em Na selva das cidades, na sua concepção do real, ainda que apocalíptica, uma afirmação da verdade carregada de imenso sentimento poético que merece ser recordada aqui, sobretudo para uma maior compreensão dos anos que vieram depois: “O caos acabou, foi o melhor tempo!”

De fato, o caos na ordenação da vida teatral extinguia-se. Os lugares sociais, nessa ordenação, os lugares dos empresários, dos artistas e da burocracia de Estado começavam a se distinguir. Distinção que será a dura luta dos 70, luta ideológica, sem dúvida, no seio da categoria dos atores. Luta que no processo tantas vezes se enfumaça, outras vezes avança, outras ainda retrocede. Luta ainda dos dias de hoje. Mas luta que passa por diversos enfrentamentos, em cada um de seus instantes.

A pura e simples destruição do palcão (ainda que belíssima imagem de força e disposição dos artistas em Na selva das cidades, simbolizando um confronto radical no campo que a burguesia demarca para a prática do teatro) como proposta não é o suficiente para mobilizar os atores, frente a seus impasses, naquele crepúsculo negro da década. A luta cultural, considerada a sua autonomia relativa, não pode, para o seu bom sucesso, desgarrar-se de outros níveis de luta.

No teatro há todo um elenco de profissionais explorados como força de trabalho e meio de produção. Profissionais que precisam estar sempre se organizando e se expressando nos seus mil espaços — sejam institucionais ou não —, levando em conta as suas condições de trabalho, suas necessidades e seus interesses imediatos, tanto quanto a transformação do sentido histórico da arte.

Essa questão hoje parece estar mais clara para José Celso:

É importante a luta do sindicato, a luta no sindicato, mas isso não deve ser motivo pra fazer a gente cair num sindicalismo barato, sindicalismo de pelego, sindicalismo alemão, sindicalismo americano ou nos moldes do nosso, que, atrelado ao Estado, não é mais do que uma defesa do próprio sistema capitalista, defesa da própria sociedade capitalista. Esse sindicalismo pode até dar condições de o explorado ser um pouco menos explorado. E isso não interessa no sentido de uma revolução. A gente tem que ir além. E depois tem o lado da revolução cultural. Nesse aspecto tem momentos em que as contradições são tantas que é preciso estourá-las, fazer com que elas estourem dentro da própria luta da categoria. Isso tudo é uma questão atualíssima, no Brasil, hoje. A questão da organização do trabalho tem que ser repensada e praticada de novas maneiras em todos os níveis.

Desse momento decisivo da arrancada, em 1969, com Na selva das cidades, reconhecendo que o caos tinha acabado, que o velho teatro comercial estava morto[14] — ou agônico, como dizia Boal que um novo e mais estruturado e sofisticado teatro comercial se ensaiava, é que José Celso, com o Oficina, se lança na década, aprofundando os seus pontos de vista, errando e acertando, na sua reação radical a essa capitalização acelerada e selvagem da produção de espetáculos e do processo cultural. Lança-se na década aprofundando seu modo de ver e querer transformar as relações do palco com a plateia, experimentando a construção de um outro teatro, com outro modo de expressão antagônico ao modelo burguês emergente. Ousando nas massas, no campo, nas universidades e mesmo no palcão, com seus trabalhos sempre polêmicos, nunca trabalhos apenas para fazer número nas temporadas. Um processo que devora o próprio grupo, nas controvérsias de seus avanços, da resistência possível e de seus recuos frente às dificuldades. Traçando num tempo de terror uma contribuição que exige toda a atenção por parte dos que se empenham hoje em levar adiante a luta cultural por um novo modo da existência, contrário à dominação burguesa.

Num dado momento, quando as coisas estão mais do que desarticuladas, levanta a bandeira de uma re-volição, um voltar a querer. Mais adiante, quando as esperanças parecem perdidas, repõe o teatro como um Te-Ato:

Não é uma coisa do palco. É uma coisa que mostra o teatro nas relações humanas. Quando você descobre o teatro nas relações humanas, você tira as máscaras. É isso! Te-Ato é uma atuação exatamente no desmascaramento do teatro das relações sociais… Nesse desmascaramento, o Te-Ato provoca uma consciência física da existência. Não uma experiência intelectual, mas sim uma experiência com o corpo[15] que passa por uma ação real.

A tentativa de pôr em discussão, no circuito do teatrão, essa proposta nova de comunicação cênica, com a experiência de Gracias, señor, remete o grupo à sua maior crise econômica, política e sobretudo ideológica, que se agrava com a proibição do espetáculo no meio da sua temporada:

O espetáculo… cada dia era uma coisa, mudava todo dia, ainda que percorrendo uma estrutura muito sólida, uma linha de condução interior fortíssima. Era toda uma tensão. (…) A censura ficava louca, não conseguia computar nada para a proibição da peça, por mais que eles se esforçassem (…) Só proibiram o trabalho usando de toda a violência. Proibiram por proibir. (…) A gente estava numa situação econômica péssima. O espetáculo lotava, mas era tudo a preço muito popular e, depois, muita gente entrava de graça. Nessa época, a gente fez muita loucura. Estava num tal jeito se destruindo, virando a mesa de tudo, que caímos num certo barbarismo. (…) Mas a gente já estava se aprumando e, com o tempo, o Gracias, señor ia entrar numa boa e resolver tudo muito bem. Mas a proibição da censura arrebentou tudo. Acabou com o processo da gente.

É todo um processo em que o Oficina se desinstitucionaliza. Sua negação solitária e voluntária do mercado, se, por um lado, leva o grupo à produção de trabalhos extremamente polêmicos, numa linha viva, ainda que discutível, de busca por uma prática teatral alternativa à violência do sistema de produção de bens simbólicos que se implantava de modo dominante, por outro lado, essa solidão remete seus atores a um impasse de tal monta, num meio cultural desarticulado, que uma nova tentativa de intervenção (nos últimos dias de 1972) nesse mesmo meio, com um espetáculo da dramaturgia clássica — As três irmãs, de Tchecov —, não chega a ter durabilidade.[16]

O Oficina, desgastado e dividido, após a temporada se dissolve, no ano seguinte. José Celso tenta rearticular-se com grupos jovens, num trabalho mais ou menos fechado, recuo forçado pelas circunstâncias. Isto até 1974, quando a polícia — num último golpe — invade o Teatro Oficina, em São Paulo, pondo tudo a perder. José Celso é preso.[17]

O que a polícia queria era mesmo destruir o grupo, acabar com a gente, porque a gente tinha resistido, porque a gente estava dizendo não! Não ao projeto ideológico deles. Eles sabiam muito bem disso. Era o grupo que eles queriam destruir. Destruir a força do grupo!

Em liberdade, José Celso viaja para o exterior. Trabalha em Portugal e Moçambique com teatro e cinema. Retorna ao Brasil quatro anos depois, instalando-se no Teatro Oficina, de onde procura rearticular seu processo de intervenção no movimento artístico, ainda mais identificado com a construção de toda uma linha de ação cultural livre e independente do modelo dominante:

O teatro, pra mudar, tem que sair de seu gueto, para ter uma outra dimensão. E o próprio fato de ele sair de seu gueto, tomando contato com um outro Brasil, com as classes oprimidas, tudo isso há de provocar uma nova transa, mil relações. (…) O nosso trabalho a partir de 1970, no Oficina, começa a sentir e demonstrar toda uma necessidade de sair do gueto teatral, isso quando a gente sai em viagem e começa a fazer trabalho no campo, na periferia (…) Nós tínhamos um certo messianismo, nas viagens de 70, mas, de nossa parte, queríamos devorar esse messianismo, aprender com a própria realidade. Nós ensaiamos isso em 70 e estamos tentando ir nessa direção, hoje. Romper, sair do gueto em que o teatro se vê metido pela burguesia.

Vianinha, Augusto Boal e José Celso expressam por seus pontos de vista e por suas proposições os polos mais significativos em torno dos quais as pessoas envolvidas com o teatro, por seus interesses os mais diversos, hão de se organizar, para os anos 70. São momentos decisivos da arrancada.

Significam propostas que, no processo da década, se desdobraram em algumas variantes. Outras propostas isoladas, na medida da desarticulação da vida cultural, após a promulgação do Ato-5, também se fizeram ouvir, contudo esgotando-se mais facilmente na conjuntura. Será enfrentando essas três perspectivas para a organização da vida teatral que o regime há de impor o seu programa cultural, paulatinamente, até a elaboração do 1º Plano Nacional de Cultura, pelo MEC, momento em que o Estado assume a direção da história do palco, em nossa sociedade. Isto após absorvida uma das propostas em questão, devidamente distorcida, e contidas com prisão, tortura e exílio as lideranças das outras duas, na travessia dos anos.

O que se constata é que nenhuma das três proposições — apesar da grandeza de seus esforços — foi capaz de oferecer resistência mobilizada aos ímpetos da cultura oficial.

Uma avaliação final dos resultados e desdobramentos desses três marcos iniciais para os 70 há que considerar o terror cultural implantado para descaracterizá-los ou massacrá-los. São, porém, marcos tão fortes, o bastante para deixar aos artistas toda uma experiência vivida que não se permitiu aplacar da memória na história do palco, no Brasil. Expressões de ansiedades que apontam, de um modo ou de outro, por seus erros e acertos, para um teatro comprometido com as massas trabalhadoras, no dia-a-dia. Ambição que vai se inscrevendo no pensamento e na obra em progresso de Oduvaldo Vianna Filho, até sua morte irreparável, que se expressa na influência de Augusto Boal com a firmeza de seu desempenho e que se transmite no gesto largo, bonito, combativo e ousado da arte de José Celso Martinez Correa!

É claro que não é apenas com esses marcos que os artistas de teatro entram na década de 80, em meio à luta de muitos deles por um outro teatro. O nível de consciência dos trabalhadores do palco foi capaz de se desenvolver nas suas lutas específicas. Ensaia-se todo um movimento de teatro independente, nas capitais e no interior do país. Trabalho que tende controvertidamente, em meio à fumaça que ainda permanece, a uma maior aproximação e compromisso com o movimento de massas operário e popular, na sua formação. Uma nova geração de atores ocupa seus lugares nos elencos, desprovida de mitos que tanto embaraçam, como cantos de sereias, a consciência dos elencos que trouxeram nas costas o teatro de 60 para cá. Os equívocos de um teatro naturalista demagogo, burguês e hegemônico como teatro progressista, até há bem pouco tempo, como concepção mais justa de apreensão do real pelo código do palco, começam a tombar por terra, na busca que já se empreende por uma transformação da escritura cênica, hoje com maiores fundamentos em conquistas da ciência da linguagem.

Assim, a década que termina não é de má, nem de boa lembrança. Foi uma empreitada de definições, um tempo de terror cultural, sobretudo um tempo de duras lições que permitem agora compreender melhor o significado da mensagem de Bertolt Brecht, em Na selva das cidades: “O caos acabou…” O caos dos sonhos dos anos 50/60. Das alianças de classes. De seus reflexos na organização da vida cultural. A lição está aí!

Nunca, em toda a história de nossa formação social, foram proibidos tantos textos dramáticos e tantos espetáculos de teatro. Por outro lado, nesse universo em que a realidade mais parece loucura, jamais tanto dinheiro dos cofres públicos escorregou para as mãos dos empresários teatrais. Homens de teatro foram presos e torturados. Alguns se exilaram. Outros abandonaram a profissão. Outros, premidos pela violência, abriram mão de suas posições e ambições literárias. Outros fizeram isso por dinheiro, mesmo. Outros ainda, pensando que estavam contribuindo para com o desenvolvimento histórico do drama e da cena, mais contribuíram para o fortalecimento dos que continuam agindo em favor do congelamento dessa história nas mãos das classes possuidoras.

O terror cultural foi tal que, para referir-se à ação da censura, críticos e jornalistas viram-se obrigados a mirabolantes artifícios de linguagem, para se expressar com um mínimo que fosse de compromisso com toda a verdade. Vale recordar, sempre. Eis alguns exemplos:

O processo de proibição do musical Calabar (Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra) se faz acompanhar do veto à citação do nome da peça nas páginas dos jornais. Numa entrevista, seu diretor, Fernando Peixoto, falando da dura resistência que empreendeu para tentar pôr a montagem em cena, refere-se a seu trabalho e à obra de teatro anatematizada por quase um ano, como a peça inominável. Era assim que se podia falar, para não se deixar ficar mudo. Peça inominável, parece cômico, se não fosse a história vivida!

O crítico Yan Michalski, no Jornal do Brasil, para falar da censura, com o esforço e a coragem comuns a seu feitio, vê-se na contingência de referir-se a ela como “várias circunstâncias de ordem geral que conspiram contra o progresso de nossa literatura dramática.” O máximo que se podia fazer para se recusar o silêncio, no dia-a-dia da vida institucional. E, para citar Calabar, escreve: “Uma superprodução musical sobre um episódio da história do Brasil que levava a chancela de vários nomes conhecidos.”

Muitas das peças premiadas nos concursos de Dramaturgia do Serviço Nacional de Teatro foram proibidas e uma delas, Patética, de João Ribeiro Chaves, por tratar de modo alegórico do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, teve o envelope de sua inscrição no concurso sequestrado pelos órgãos de segurança.

Por outro lado, é a consolidação da capitalização acelerada do teatro de empresa, mediada pelo Estado, inflacionando o custo da produção com subvenções milionárias, inflacionando o preço do ingresso, fechando ainda mais o gueto teatral. Assim esse teatro de empresa firma-se – depois de algumas porretadas até em um ou outro empresário, para disciplinar, também entre eles, o ambiente — com suas montagens, mercadoria variada, repertório ordenado. Espetáculos grandiosos, de arquitetura megalômana, eventos de ocasião para ofuscar ainda mais os olhos, musicais de todo tamanho e de todas as colorações, pornochanchadas, encenadores famosos do exterior, festivais internacionais de teatro, casas de espetáculos sofisticadas: organiza-se o supermercado.

O terror cultural, aterrorizando, não só castrou a liberdade de expressão e de criação, mas também promoveu, fazendo a sua parte na política do morde e assopra, a desmobilização dos trabalhadores do palco na luta contra suas dificuldades, confundindo-os, ao mesmo tempo em que se deposita, nas mãos dos produtores teatrais e da burocracia de Estado, a direção e a hegemonia da vida teatral.

Para um teatro que sequer atende a 2% da população do país, os critérios de subvenção ao produtor capitalista crescem anualmente, em progressão geométrica. Inflacionam-se os aluguéis dos teatros. Seus proprietários começam a interferir na contratação dos elencos, na escolha dos textos e dos diretores.

Hoje, todo o processo de produção teatral encontra-se predominantemente mediado pelo Estado e se a censura, agora, arrefeceu, devido às questões da conjuntura política e mesmo à situação de hegemonia do poder governamental e do empresariado, na direção da vida teatral, enquanto aparelho repressivo, a censura continua aí, intacta, montadinha. No teatro, também a anistia foi restrita.

Nesse panorama contraditório há muitas questões a se enfrentar para que os artistas desenvolvam sua consciência por um outro teatro diverso e antagônico ao teatro dominante. Uma outra e dura travessia. A dos próximos anos, talvez. E nessa travessia há que se considerar como uma exigência a superação da ideologia de um teatro brasileiro muito matreiro que mascara tantas questões e permanece até hoje enfumaçando as realidades desse teatro comercial, pura e simplesmente comercial, voltado a atender seu público, com sua mercadoria variada, conforme o modo de diversão das classes possuidoras. Teatro comercial que se determina pela bilheteria nas transas do mercado.

25 anos depois:

Há mais de uma década não relia o texto Anos 70: momentos decisivos da arrancada, escrito por mim, precisamente, há um quarto de século. Com a republicação pela Aeroplano Editora, tive de voltar a esse artigo, ponderando a respeito de sua valia para os leitores de hoje.

Não desgostei de seu eixo, diretriz e estilo. O sabor da releitura tão somente me confirmou a costumeira satisfação que sempre sinto com quem fui e sou.

Desagrados ocasionais nunca me incompatibilizam comigo. E o texto reencontrado trouxe lembranças firmes, também prazerosas.

Vivi minha juventude por ocasião do pior e mais perverso período da história republicana de nosso país, os anos da ditadura militar. Situação que me incomodou bastante a vida.

A postura do referido artigo reeditado neste livro assegura que soube viver esse tempo áspero conforme a melhor maneira que permitiram os limites de minha modesta existência.

É evidente que o texto tornou-se uma obra de época, pequena peça da história peculiar do pensamento crítico, no interior da história do teatro no Brasil. De lá expressa sua voz.

Consta que o mundo mudou muito deste então, ainda que a vasta história da humanidade seja a mesma história do homem lobo do homem.

O mundo mudou… quer dizer… mudou e não mudou… ora para pior, ora para melhor.

Temos à nossa disposição a mais sofisticada tecnologia em todas as áreas do conhecimento e bilhões de pessoas vivendo em miséria absoluta, excluídas até da mínima vida digna no planeta.

Demoliram o muro de Berlim, que, por sinal, jamais devia ter sido construído. Acabou a União Soviética, que, vale dizer, não era lá tão unida, muito menos soviética.

Outros muros visíveis são levantados (feito o de Ariel Sharon, em torno da Palestina). Muros invisíveis permanecem (que nem os muros que os Estados Unidos da América do Norte impõem em torno de Cuba, Iraque, Irã, Síria, Coreia do Norte etc.).

Verdade é que nesses 25 anos poucas pontes sólidas foram construídas na Terra. Muros são mais frequentes.

Deveras acabou a ditadura militar no Brasil e temos um líder sindicalista de origem operária, migrante nordestino, na Presidência do país. Contudo, se nos indignávamos protestando contra o horror da tortura durante a ditadura militar brasileira, hoje nos horrorizamos e protestamos contra a tortura praticada pelas tropas do país da Estátua da Liberdade nas prisões iraquianas.

Verdade é que o mundo precisa mudar de verdade no rumo de uma outra história para a humanidade.

A favor dessa outra história humana, o texto Anos 70: momentos decisivos da arrancada permanece desde sua modesta história peculiar.

Penso que sim.

/comentário de José Arrabal /

Notas

  1. Por volta de 1973/74, no fervor do Plano de Ação Cultural (PAC-MEC), com os empresários já articulados em associação atuante, esta é uma questão que se retoma do coração das ideologias do Teatro Brasileiro. É quando se fala muito que “é preciso trabalhar e da melhor forma”. Para manter a chama acesa! Curiosa coincidência.
  2. A proposta de Vianinha é retomada — com a descaracterização necessária —, em meados de 1973, pela Associação Carioca de Empresários Teatrais (Acet). Orlando Miranda é presidente da entidade patronal. Em documento enviado ao ministro Jarbas Passarinho, da Educação, a Acet, após fazer um balanço da situação do teatro, “atividade que se inscreve no setor terciário da economia”, reivindica do governo formas de financiamento, e não paternalismo ou assistência. Quer o fortalecimento infra-estrutural do teatro. O objetivo é em última instância uma carteira de crédito e financiamento a juros módicos que permita às companhias teatrais trabalhar independentemente da tutela estatal, desenvolvendo uma infra-estrutura própria de auto-sustentação.
  3. No ano de 1974, Orlando Miranda é nomeado diretor do Serviço Nacional de Teatro. O seu primeiro plano de trabalho diz, dentre outras coisas, que se pretende colocar em um “estabelecimento bancário oficial a importância de até 3 milhões de cruzeiros, para empréstimos a produtos teatrais. Tais empréstimos serão concedidos a juros baixos, prazo de 12 meses para amortização e prazo de carência para o início do resgate”. Estão mantidos, no caso, os propósitos do documento da Acet de se desenvolver o empresamento de espetáculos independentemente da tutela estatal. Por outro lado, o plano do SNT também registra que o Estado “tem como função essencial a de intermediário” do processo cultural. À história coube definir a ambiguidade do plano de ação do Serviço Nacional de Teatro.
  4. À medida que empresários e Estado foram se aproximando e se comprometendo, a luta contra a censura foi se desmobilizando. No documento da Acet, em 1973, a censura é tratada como um problema que traz prejuízos à produção de espetáculos. Despolitiza-se desse modo, desde aí, a questão mais forte de unidade dos artistas contra a política oficial de cultura. Por fim, com o passar dos anos, a censura, com toda a sua violência, acabou virando um problema a se resolver nos gabinetes do poder, na base do jeitinho, do fala com fulano, do procura sicrano. Os artistas que haviam se jogado nas ruas contra a censura, poucos anos antes, numa demonstração de unidade da categoria e de força, também viam aos poucos a questão da liberdade ou não de expressão das artes e da criação artística ser transformada num problema burocrático. É o tempo da política do morde e assopra. Proíbe hoje e dá a subvenção amanhã. Nova tática de desmobilização da categoria. A política dos dois governos num só. Em entrevista publicada a 21 de agosto de 1974, no Jornal do Brasil, Orlando Miranda inaugura essa política, ao situar o problema da censura: “Às vezes é mal compreendida e, quando não é, é problema do ministro da Justiça”.
  5. Mais que nunca, hoje, uma discussão que precisa ser retomada, não nos moldes idealistas de Oduvaldo Vianna Filho, mas de maneira concreta, devassando e esclarecendo as atuais estruturas do poder, no seio da produção teatral, seus meandros, suas contradições reais. Mobilizando-se a luta dos artistas também nesta direção, no processo de superação de alguns mitos que a emperram, neste aspecto.
  6. A noção de elenco nacional é outra noção ideológica que tanto ajuda a enfumaçar a realidade e suas contradições. Perturba, por exemplo, no caso, a reflexão de Boal. O sr. Oscar Orstein, produtor de espetáculos do Teatro Copacabana, como participante do elenco nacional. Ao lado do Arena, do CPC, do Oficina etc. Enfim, uma família! E que interesses comuns!
  7. O que transforma esse artista em mero instrumento ou porta-voz de estereótipos de uma imagem do povo que com o teatro se tende recalcar na mentalidade do público. Aliás, um grande tema para uma pesquisa é a questão da noção de povo, conforme ela se retrata no chamado teatro brasileiro. Por exemplo, muitas peças — e de muito autor de nomeada — demarcam o modo de intervenção política desse povo nos conflitos sociais como uma intervenção sempre moderada, permanentemente a um passo do recuo, ou mesmo sempre sugerindo um recuo, frente a qualquer movimento do opressor. Sem dúvida, esse modo de ver e reproduzir no teatro a intervenção política das camadas populares liga-se à velha ideologia da índole pacífica de nossa gente. Há também a imagem do popular como o homem do jeitinho, da malandragem. Há peças que representam a classe operária por uma empregada doméstica. Isso então é o que mais tem. Uma sacrossanta tolice que sequer enxerga que o proletariado produz bens materiais e a doméstica apenas presta serviços. Isto sem que consideremos as questões ideológicas em jogo, que aprofundam ainda mais as diferenças.
  8. O agit-prop é um tipo de prática teatral muito importante. Não há que se ter preconceito contra o agit-prop. O teatro tem também um papel de agitação e propaganda a cumprir como contribuição ao movimento de massas operário e popular. E se há um agit-prop burro, óbvio, ridículo, há também o agit-prop inteligente, mobilizador das estruturas de pensamento, dialético. É uma técnica que exige muito do artista. Boal pensa o agit-prop com muita perspicácia. Os grupos interessados em agit-prop, no Brasil, devem se voltar ao estudo das descobertas de Boal, na discussão e no enriquecimento de seus métodos, avançando conforme as exigências da realidade e da sensibilidade artística.
  9. in A guinada de José Celso, entrevista a Tite de Lemos publicada em caderno especial da revista Civilização Brasileira, julho de 1968.
  10. O Teatro de Invenção, linha de trabalho cênico surgida no Rio, por inspiração de Paulo Afonso Grizolli, João Rui Medeiros e Amir Haddad, é uma variante que, por exemplo, tem muito a ver com a linhagem de trabalho de José Celso, no sentido da polemização da escritura cênica e de todo um questionamento das relações tradicionais do espetáculo com o público. Surge em 1968, atuando então no Museu de Arte Moderna, com o grupo A Comunidade, conjunto premiadíssimo nos anos de passagem da última década. João Rui e Grizolli, com o tempo, afastam-se do movimento, indo para a burocracia de Estado. Amir leva adiante as propostas, superando algumas de suas ideologias, rompendo enfim com os propósitos iniciais, avançando no terreno das pesquisas. A Comunidade acaba, mas Amir continua seu trabalho, em outros grupos ou em escolas de teatro. Nos anos mais negros da repressão chega a ter problemas sérios com a censura. Monta um trabalho importantíssimo em 1974, Somma ou Os melhores anos de nossas vidas, num balanço de tudo o que fizera até ali. O espetáculo é proibido. Amir, com o grupo, consegue organizar a retirada e se reestruturar, na continuidade de suas experiências. É um trabalho que existe até hoje, cada vez mais forte e mais identificado com modelos avançados de Teatro Dialético, procurando uma linha de atualização das lições de Bertolt Brecht, conforme as exigências do momento histórico do teatro, no Brasil. Atualmente Amir Haddad trabalha com dois grupos de Teatro Independente: o Grupo Tá na Rua e o Grupo de Niterói, este existindo há quatro anos. As propostas de Amir enfrentam formulações teóricas, indo além da intuição artística, o que é pouco comum entre os diretores de teatro, no Brasil. Sua grande preocupação é com o ator, no sentido de um desenvolvimento integral de seu nível de consciência de artista e criador. Tenho impressão de que para a década entrante a linha de trabalho de Amir Haddad é de importância básica.
  11. Nos anos 70, algumas falsas questões tomaram conta do debate, no teatro. Uma dessas falsas questões é a que dizia existir um teatro racional e um teatro irracional. Para os racionalistas, os irracionalistas estavam fora da realidade. Estes, por sua vez, consideravam os racionalistas uns caretas. Em meio à censura e às subvenções, a questão continuava e a briga era eterna, enfumaçando as coisas no teatro. O caso é que nunca se chegou a uma conclusão. E ninguém entrou mesmo no mérito da verdade. A razão tem uma história, sua expressão de classe. E através da história, várias razões, muitas razões. Existe uma racionalidade dominante, que é a racionalidade da opressão. Existe, por exemplo, uma racionalidade dialética e materialista, libertária. Bertolt Brecht, por exemplo, fica com essa. Frente ao discurso da racionalidade burguesa e dominante, a racionalidade de BB é uma piração. Uma coisa irracional. Quem lê bem a obra de Brecht, sem distorcê-la a favor do humanismo clássico ou do pensamento liberal, sabe disso.
  12. Há muitas passagens irônicas na história do teatro, no Brasil. Há coisa mais irônica do que a década começar com uma peça, no Rio de Janeiro, de nome Fala baixo, senão eu grito? O repertório da temporada de 1964, no Rio, registra o9 seguintes títulos: O hóspede inesperado, O inoportuno, Eles mandaram brasa, Depois da queda. Isso para não falar de Caiu primeiro de abril, que já não é coincidência, nem ironia. Foi de propósito mesmo. Mas Galileu Galilei estrear no dia da assinatura do Ato-5 não é só uma ironia, é uma polarização radical e extremada do momento histórico do processo cultural no país.
  13. Essa fala de Na selva das cidades sintetiza o desafio que há de enfrentar o Oficina, nos anos 70.
  14. A questão da morte do teatro é bem definida por José Celso, no programa de Gracias, or: “0 teatro que se faz hoje no Brasil está preso a uma estrutura obsoleta e a partir das mudanças sociais ocorridas qualquer tentativa de renovação profunda dentro de seus quadros exige o abandono definitivo das antigas vinculações. No processo de transformação, o teatro, antecipando a morte de outras formas de comunicação, de estruturas e instituições sociais, perdeu sua contemporaneidade. Foi mesmo o primeiro a morrer.”
  15. Outra falsa questão dos anos 70 é a luta empreendida pela volta da palavra ao centro das preocupações teatrais. Seus combatentes diziam que o uso da expressão corporal havia arrancado a palavra do palco, alienando o palco, tirando o palco da realidade ou a realidade do palco, sei lá! Esse bate-boca com o que se gastou muita palavra dizia-se comprometido com um teatro social, politizado, contra o teatro alienado. Enquanto isso, a bilheteria faturava, as subvenções vinham, a censura agia, etc. e tal. Até que apareceu um espetáculo de Teatro Independente, vindo de São Luís do Maranhão, Tempo de espera, em que por toda a representação não se dizia uma palavra, mas expressava uma força de polemização das contradições sociais tal, que os palavristas não tiveram mais o que dizer. A polêmica perdeu seu sentido. O teatro comercial continuou com muita palavra como sempre. E com a bilheteria no centro de suas preocupações, como sempre. Para os palavristas vale registrar o que diz Louis Althusser, que notoriamente não pode ser chamado de um alienado: “Pouco importa que as coisas sejam ditas (elas são ditas em Brecht sob a forma de apólogos ou de songs) ou não: não são as palavras que, em última análise, efetuam a crítica, mas sim as relações e não relações internas de forças entre os elementos da estrutura de uma peça”. O livro em que ele escreve isto se chama Pour Marx; o artigo, Notas Sobre um Teatro Materialista.
  16. As três irmãs representa uma belíssima soma de esforços de pessoas das mais diversas gerações, para soerguer a tradição do Oficina. Uma prova de solidariedade muito forte. Além de todo o grupo novo, dos que do Oficina já se haviam afastado voltaram para trabalhar na montagem, se bem me lembro, Maria Fernanda e Fernando Peixoto. Parece que, em São Paulo, atuou Othon Bastos. Mas a história do Oficina já não se permitia mais aquele retorno sonhado. O espetáculo era muito bonito! Zé Celso com toda a sua força.
  17. O ano de 1974 é uma tragédia para a história do teatro, no Brasil. Morte de Vianinha, invasão do Oficina, prisão de José Celso, proibição de Somma e de Calabar.

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