2009

Aquilo de que o humano é instrumento descartável: sensações teóricas

por Eugênio Bucci

Resumo

Para Richard Dawkins, em River out of Eden – a Darwinian view of life, publicado em 1995, toda forma de vida sobre a terra é um artimanha dos genes para, saídos de um lugar, no princípio, atingirem um outro, no porvir. Os genes, ele propõe, seriam as informações que carregamos sem saber exatamente, ou mesmo vagamente, para onde.

Se cedermos às analogias óbvias, observaremos que, assim como Darwin legitimou o liberalismo como um dado da natureza – os competidores em Guerra, a vitória do mais apto, a mutação etc. -, a imagem sugerida por Dawkins parece consagrar o capital generalizado e totalizante, que faz do sujeito o instrumento de um projeto cuja origem, cujo fim e cujo sentido fogem-lhe. O humano é produto e meio de transporte de outro significante que o instaura: não Deus, mas os genes – essa informação andante. Estamos no curso de uma imensa explosão de informação – a informação contida nos genes. Resta identificar o destinatário. Essa explosão avoluma-se e expande-se em uma lógica de reações em cadeias, uma espécie de cogumelo atômico.

Estaria o discurso em torno dos genes refundando a metafísica ou, ao menos, estabelecendo uma outra metafísica, a metafísica genética? Há elementos que apontam nessa direção. O comportamento humano, ultimamente, já não se explica mais pela divina providência nem pela força de determinação do meio; não tem a ver com o espírito e nem com a material (corpo, hormônios, pele): a conduta das pessoas agora se quer escrutinar pelo cromossomo. A infidelidade conjugal seria uma determinação dos genes, afirmam alguns cientistas sem pestanejar e também sem se dar conta de que, se dizem a verdade, dizem-na a partir de uma mentira sobre a própria condição, pois o homem já não se pode pôr como aquele que manipula ou interpreta a informação, sendo por ela manipulado: na palma da mão cujas linhas foram traçadas pelo genoma, está escrito o seu destino. O destino de todo indivíduo.

Eis que, junto a esses estudos produzidos pela metafísica genética – cuja base material é o código -, desenvolvem-se as linhas de pesquisas que procuram intervir no cromossomo. Surgem a terapia genetica, o diagnóstico genético, a engenharia genética, a biotecnologia. O sujeito procura rebelar-se e reescrever os códigos.

A paixão humana pela certeza e pela segurança é brutal. Para curar tal paixão é necessário tolerar a indeterminação, a brutalidade que fazemos com o tempo. O valor do tempo não se conta em dinheiro. O tempo é parceiro da incerteza e da indeterminação.

“Já se foi o tempo em que o tempo não contava”, escreveu Paul Valéry. Seremos delicados quando fizermos a passagem do “tempo é dinheiro” para o “tempo que não conta” de Valéry. Entre um e outro, a depressão que se expande no mundo industrial contemporâneo insere uma outra forma de temporalidade: o tempo que não passa.


Começo por um artigo que escrevi há 11 anos.[1] Saiu na coluna “Tempo de TV”, que mantive por dois anos na revista Veja, na edição do dia 13 de agosto de 1997. Chamo atenção para o trecho final, em grifo:

O bicho virtual é você

Todo mundo tem (ou conhece alguém que tem) um tamagochi. O animal de estimação eletrônico virou mania. Habitante de um miniaparelho, misto de chaveiro e computador, o bicho é na verdade um ser inexistente. Só o que se tem dele são sinais de fome, sono, carência afetiva. Apertando botõezinhos é possível saciar-lhe as necessidades e os desejos. Na tela minúscula, surge então um sorriso, indicando que o mascote está feliz. O dono, sempre uma criança (de qualquer idade), sente-se grandioso provedor de carinhos e cuidados. Pensa que cuida do bicho – mas é o bicho quem cuida dele (e de suas ansiedades).

O novo brinquedo é a síntese da nossa era, que é mediada e ordenada pelas telas luminosas. Não apenas a microtela do bichinho, mas as telas do computador, do painel eletrônico do automóvel, das linhas verdes de monitoramento cardíaco. Tudo se organiza como um complexo indivisível, um Tamagochi planetário. O caixa eletrônico avisa que a conta está no vermelho; é preciso um depósito para que ela fique contente. A televisão não para de insistir: é Dia dos Pais, ai de quem se esquecer do presente. A tela do telefone celular dá conta de que a pilha está fraca. No monitor do micro, pisca a mensagem não lida.

Do outro lado das telas que comandam o dia a dia de qualquer um, outros, milhões de uns quaisquer. Um parente, um burocrata, um chefe, um amigo, um cliente, um desconhecido… a(s) namorada(s). Todos virtualizados. Além das contas a pagar e dos recados inúteis, também as demandas emocionais navegam pela teia eletrônica. E a isto se reduz o relacionamento humano: a uma troca de estímulos, digitalizados, e resposta, idem.

Então a tela é somente isso, um suporte vazio para a comunicação digitalizada? A resposta é não: a tela não é tão neutra assim. Há uma lógica à parte dentro dela. Mais ou menos como havia uma ordem invertida no espelho que foi atravessado pela Alice de Lewis Carroll no século XIX. O espelho não era neutro: virava uma “brilhante névoa prateada” e mostrava muito mais do que reflexos. Um século depois, em filmes, como Tron (de 1982), A rosa púrpura do Cairo (1985) ou O último grande herói (1993), os personagens cruzam a tela para viver realidades simultâneas – e mais perigosas que o sonho de Alice. Hoje, quem ousasse transpor uma das telas do Tamagochi globalitário, talvez caísse numa paisagem ainda mais, assustadora: um sistema frio, em expansão vertiginosa, para o qual as multidões “reais” são uma contingência periférica e não muito relevante. Como insetos em volta da lâmpada. Para esse sistema, virtual é o homem.

Relendo o trecho final do velho artigo, que destaquei, dá-me a impressão de que ele antecipava em parte o argumento do filme americano Matrix, dirigido pelos irmãos Andy e Larry Wachowski, que seria lançado dois anos depois, em 1999. Não que eu tenha sido inovador ou especialmente original naquele texto. A hipótese que aventei, ali, já era, em 1997, uma possibilidade virtualmente posta ao alcance da imaginação média. Matrix, por sinal, é declaradamente inspirado em ideias que já eram correntes, como as do filósofo francês Jean Baudrillard (1929-2007): propõe que aquilo a que chamamos realidade nada mais é – ou nada mais será, já que o filme se passa por volta do ano 2200 – que um truque de ilusionismo criado por um poder central, que controla todo o sistema de simulações.[2] No filme, a ilusão é construída a partir de softwares que conectam o cérebro de cada cidadão à rede de computadores, regida não por gente, mas por máquinas. O mundo, então, vira um cenário administrado. Por trás do cenário, escondem-se os bastidores do poder e da tecnologia, ou, mais precisamente, do poder da tecnologia, que se desgarrou da humanidade para controlá-la e para melhor extrair sua energia. Isso mesmo: no futuro desenhado por Matrix, as máquinas viverão da energia que extraem dos corpos humanos.

A ação em Matrix só se desenvolve porque, como em todos os filmes, nem tudo está perdido. Uns poucos, pouquíssimos humanos ainda não estão plugados na rede, ou melhor, a rede ainda não foi plugada neles. Os personagens principais, que escaparam da manobra das máquinas, agem para destruir a ordem. Em sua rebelião, transpõem as telas do Tamagochi globalitário para cair do outro lado, exatamente como escrevi na coluna de 1997. Eles caem numa paisagem assustadora, o avesso do mundo que aparentemente nos cerca, sobre o qual não passamos de figurantes, verdadeiros bichos virtuais.

Essa imagem, a do avesso do mundo, invoco para iniciar um percurso especulativo acerca da minha sensação de que talvez o humano tenha se tornado, menos que um bicho virtual, um instrumento descartável diante de processos que evoluíram a partir dele e que o ultrapassarão. Sobreviverão a ele. Há um sabor de ficção científica pessimista nessa sensação, é evidente. Ocorre que, acima disso, há, na ficção científica, ao menos em Matrix, um prolongamento de hipóteses que eu mesmo já havia registrado, a partir da observação crítica das relações entre o sujeito, supostamente o consumidor do espetáculo, e a rede de máquinas que fabrica as realidades virtuais. Assim, ainda que faça menção, de passagem, à ficção científica de Matrix, em que o mocinho luta kung fu e dá tiros de revólver, esta conferência explora não o universo da ficção, mas a potencialidade contida em alguns conceitos teóricos – levando-os, é verdade, e talvez de modo temerário, para além de seus próprios limites. Por isso, o que se segue é uma especulação de alto risco, que não se acomoda em marcos teóricos mais convencionais, mas não toma como base os cenários propostos pela ficção científica. Rigorosamente, aliás, a ficção só entrou aqui para ilustrar uma hipótese que fora antecipada naquela coluna publicada na revista Veja. Fora isso, o que vai ser exposto aqui se baseia em debates teóricos, ainda que de modo pouco acadêmico. É um itinerário que lida com incertezas, um caminho de alto risco, como já foi dito, mas não havia outra maneira de enfrentar o tema das mutações, tal como ele nos foi proposto para este seminário.

A sensação de que o humano se dilui na condição de um bicho virtual, um coadjuvante imerso num processo que lhe é superior, é, portanto, o nosso ponto de partida. O sujeito humano já não é portador da centralidade que costumava atribuir a si mesmo. Ele se dilui e, ao mesmo tempo, vai se dando conta, aos tropeços, da própria diluição.

Diluição é um fenômeno por meio do qual um elemento se mistura a um ambiente líquido mais amplo, descaracterizando-se relativamente. Sendo essa uma imagem líquida, sirvo-me, ao tratar da diluição do humano, de uma metáfora também líquida. Falarei aqui de alguns rios, ou, mais exatamente, de três rios. Em cada um deles, verificaremos os descaminhos da diluição. O primeiro é o rio da evolução das espécies, no qual o indivíduo e mesmo a espécie, antes retratados como protagonistas de seu próprio aperfeiçoamento, perdem lugar para os genes. Hoje, como veremos, os organismos vivos não são mais vistos como os condutores do processo evolutivo – eles são apenas estratagemas dos cromossomos. Esses, sim, é que determinam a marcha da vida através do tempo. O segundo rio é o da linguagem, que, a exemplo do primeiro, o dos genes, vai se desenhando e fluindo através dos falantes, quase que a despeito deles. Outra vez, o indivíduo perde, pouco a pouco, a sua condição de autor do próprio destino, de arquiteto da cultura em que vive.

Por fim, ao fundo, ou no subterrâneo dos dois primeiros rios, identificaremos sinais de um terceiro: é o rio do capital. Em todos os três, o humano se dá conta de que é mais objeto que sujeito – um objeto à mercê de fluxos nos quais se move, sem, no entanto, governá-los. A tal ponto que nos autorizará a qualificá-lo como descartável, ou, ao menos, potencialmente descartável. Essa potencialidade ganha mais força e mais urgência quando a ela se acrescenta ava­ riável das mutações.

Evolução involutiva

Comecemos pela ideia de evolução das espécies, teoria que, como se sabe, já nasceu como uma má notícia para as veleidades dos humanos que se acreditavam um artefato que brotou diretamente das mãos de Deus, um handmade celestial. A teoria de Charles Darwin também desencantou os que se viam no topo da pirâmide da vida no universo: na escala evolutiva, nada poderia haver de superior à forma humana.

Em que pese a má notícia de que foi portador, o naturalista inglês, ao descrever a natureza como uma arena em que prevalece a luta pela sobrevivência, reservou ainda um papel nada desprezível para os seres que lutam pela vida. Tanto na selva como na civilização. Ele forneceu inspiração poderosa aos entusiastas do mercado como emanação da natureza – e da natureza humana. Sua teoria pode ser lida, o que já foi apontado por muitos, como uma aplicação do ideário liberal à saga das plantas e dos animais. Por meio da ideia de que competir é um valor vital, Darwin consagrou, indiretamente, a ação humana em busca da sobrevivência (ou da riqueza) como um vetor natural, instintivo, vital. Em Darwin, o indivíduo, ainda que não seja mais o centro de tudo, é decisivo para garantir a permanência de sua espécie. De sua conduta ainda depende o porvir.

Nos Escritos, Jacques Lacan faz um providencial registro: “O sucesso de Darwin parece dever-se a ele haver projetado as predações da sociedade vitoriana e a euforia econômica que sancionou a devastação social que ela inaugurou em escala planetária, e havê-las justificado pela imagem de um laissez-faire dos devoradores mais fortes em sua competição

por sua presa natural.”[3]

Sabemos que Lacan não tem predileção por frases claras. Sempre obscuro, ele tem um estilo todo próprio, ou impróprio, que prefere repelir o que não prime pela refração do sentido. Temos aqui, no entanto, uma exceção: uma das raras passagens claríssimas que o psicanalista francês nos deixou. Também aos olhos de Lacan, como pudemos ler, sem dificuldade, Darwin encontra na biologia as regras ditas “naturais” do mercado. A isso poderíamos chamar ideologia, a ideologia que anima a ciência, mas isso agora não importa. Importa mais o ambiente em que a má notícia dada por Darwin pôde ser também recebida como boa notícia: ele forneceu a metáfora da glória das espécies para que se visse como natural a glória de uma classe. Ao descrever a saga dos indivíduos mais fortes, os que vencem os mais fracos, ou dos mais aptos destruindo os menos aptos, elogiou os empreendedores, os soldados e os governantes que impõem a derrota aos seus rivais.

É sintomático o modo como resulta, daí, o papel do indivíduo (o espécime), que contém em seu corpo o futuro do coletivo (a espécie): o espécime de Darwin é análogo ao empresário de Adam Smith. Ambos, perseguindo instintivamente sua sobrevivência, conduzem a sociedade ou a natureza ao seu aprimoramento natural: ao progresso ou à evolução.[4] Em sintonia com o comportamento dos negociantes, Darwin reforça uma concepção de indivíduo capaz de agir na natureza ou na sociedade, capaz de modificar o próprio futuro e o futuro da espécie ou da classe. O seu laissez-faire na natureza reverbera a “livre” iniciativa. A ambos, o animal (cuja arma é o instinto) e o humano (cuja arma seria supostamente a consciência, mas que também leva em conta o instinto que fareja o lucro), caberia enfim o papel de formatar o amanhã.

Em suma, quando anunciou sua teoria, Darwin preservou a iniciativa do indivíduo. Seja ele bicho ou gente, seja o tentilhão ou o empresário, cada organismo vivo, embora esvaziado de importância, ainda faz diferença – ele faz História. E, com ou sem traumas, o modo darwinista de ver o mundo foi assimilado e incorporado ao conjunto daquilo que tomamos por verdades – ou ao nosso conjunto de crenças.

Sabemos que, sobretudo a partir do século XIXpassamos a acreditar que o sujeito histórico obedece a algum tipo de condicionamento, do Espírito (em Hegel) ou da matéria (em Marx). Não há como escapar aos condicionamentos, mas esse sujeito pode, por meio da consciência, administrá-los, e, administrando-os, conseguiria agir sobre o curso da História. Nessa perspectiva, e especificamente nessa perspectiva, não haveria contradição entre darwinismo e humanismo: em ambos, ainda resta alguma esperança no sujeito (por instinto ou consciência).

Quanto ao humanismo, há um dado que merece ser lembrado. O século de Charles Darwin (1809-1882) é também o século que viu a difusão da consciência dos direitos humanos, proclamados de modo mais explícito ao final do século XVIII, no calor da Revolução Francesa. Prosperaram aí os valores da fraternidade e da igualdade, mas, que fique bem claro, prosperou também a convicção de que sem a liberdade econômica, que supõe egoísmo e a ambição, a sociedade não avançará. Portanto, o que alguns passaram a chamar de “darwinismo social” é, desde logo, contrabalançado pela vigência de direitos fundamentais, que redundariam mais tarde também nos direitos sociais.

Isso significa que a lei do mais apto (não necessariamente o mais forte, o mais ágil, o mais inteligente, etc.), que explicaria a evolução dos bichos na floresta e dos milionários na sociedade, precisa receber limitações quando se trata de regular a convivência e a competição entre seres racionais. Os homens, por isso, teriam direitos “naturais”, que, na natureza, os bichos não têm. Os direitos do homem, anota o mesmo Lacan, estão “ideologicamente baseados na abstração do seu [do homem] ser natural”.[5] Eles reforçam a pretensão de que a humanidade “evolui” como os bichos darwinistas, mas com um sinal trocado. O humano evolui do estado selvagem para o estado civilizado, graças à produção de riqueza e à observância dos direitos fundamentais. Assim como o capitalismo se entende como um estágio “natural”, e mais avançado, na evolução social, a consciência dos direitos que o limitam, direitos “naturais”, faria parte do mesmo movimento evolutivo. Tanto as práticas de mercado como os direitos humanos reivindicam para si o adjetivo “naturais”, mas por motivações inversamente espelhadas. Para o mercado, o comércio e a acumulação seriam traços da natureza humana. Para a perspectiva dos direitos, as garantias fundamentais existem para proteger as pessoas da natureza selvagem do mercado. Para os direitos humanos, portanto, o direito natural é um antídoto contra aquela noção de natureza que subjaz ao espírito capitalista a natureza humana seria, enfim, diferente da natureza dos bichos. De toda forma, ambos, mercado e direitos humanos, articulam-se como se fossem um projeto racional, premeditado e relativamente planejado: a democracia.

A agonia animal do sujeito

As ideias darwinistas sofreram e sofrem perseguições de fanatismos anticientíficos que não admitem a hipótese de o homem não ter sido confeccionado pelo criador supremo em seu ateliê particular. O que temos aí é um combate melancólico, pelo que traz de obscurantismo, além de ocioso. Os detratores de Darwin talvez não se tenham dado conta, mas travam uma guerra anacrônica, defasada, pois o fantasma contra o qual se batem, o fantasma de que o homem não passaria de um resultado aleatório da evolução de outras espécies, devidamente animais, é ele mesmo um fantasma ultrapassado. No lugar do velho fantasma, surgiu outro, ainda mais desalentador – ao menos para os obscurantistas. Hoje, os evolucionistas reservam um lugar ainda menor para a ação dos indivíduos, que perderam para os genes a condição de protagonistas – sim, eles mesmos, os genes que cada um de nós carrega no corpo, são os personagens centrais da saga. Aos olhos dos evolucionistas, o bicho-homem, além de ser uma espécie como qualquer outra, é um bicho ao sabor dos genes.

Em 1995, um dos mais notáveis representantes da teoria evolucionista, o britânico Richard Dawkins, publicou um livro revelador, River Out of Eden – A Darwinian View of Life, em que retira quase que completamente a centralidade dos indivíduos na luta pela sobrevivência. Para o autor, o indivíduo não é mais que um engenho dos genes para se transportar, a si próprios, na direção do futuro. Aliás, não são apenas os espécimes de animais e plantas que são vistos como manobras dos genes: até mesmo as espécies inteiras, as vastas e duradouras espécies, que se compõem de sucessivas gerações de seres semelhantes entre si, constituem artimanhas dos desígnios genéticos.

Segundo Dawkins, não são as espécies, mas os genes que alcançarão a parada final a que leva o imenso rio que transporta a vida através dos tempos. E não todos os genes – só alguns chegarão lá. A luta que se trava, portanto, é entre os genes que aí estão, em todos os organismos vivos. São eles que têm o mapa da jornada; eles é que fazem o caminho. Os organismos vivos são apenas as formas pelas quais eles agem. As espécies lhes servem de ferramentas para atravessar os milênios em direção a algum lugar no futuro. As formas que nos caracterizam, as cores dos olhos de quem nos mira e, mais ainda, o modo de mirar-nos, tudo seria maquinação dos cromossomos em sua viagem rumo a um destino que desconhecemos. Como diriam os funcionalistas da comunicação, os genes são a mensagem; os organismos, animais ou vegetais, são o meio; o passado seria o emissor e o futuro, o receptor.

Esse é “o rio que saiu do Éden” e que dá nome ao livro de Richard Dawkins: um rio de genes.

Um rio de nascente bíblica

Passemos à Bíblia, Gênesis 2,10: “Um rio saía de Éden para regar o jardim, e de lá se dividia em quatro braços.” Agora, Dawkins: “O rio do meu título é um rio de DNA, e ele corre pelo tempo, não pelo espaço. É um rio de informação, não um rio de ossos e tecidos: um rio de instruções abstratas, para a construção de corpos, e não dos corpos construídos.”[6]

Agora os indivíduos e as espécies funcionam como transportadores de genes. A competição se dá entre braços que se bifurcaram no rio de DNA. Esses braços são os códigos genéticos, códigos abstratos, compostos de informação pura.

Se cedermos às analogias óbvias, e cederemos, vamos notar que, assim como a teoria de Darwin serve como metáfora do liberalismo, tendo a vitória do indivíduo como corolário, Dawkins parece emular um capitalismo generalizado e totalizante, que reduz o sujeito a instrumento de um projeto cuja origem, cujo fim e cujo sentido fogem a esse mesmo sujeito. (Outra vez, a ideologia fala – ou faz falar.) Já não se sustentam as alegações de que o capitalismo é um projeto racional, passível de governança serena. A crise que abalou o mundo financeiro em 2008 está aí como indício – mais um – a favor do que digo. Algo de mais violento, mais profundo e mais pesado que governos e pactos de convivência toma de assalto o curso dos acontecimentos, numa sucessão de crises, mais do que cíclicas, sísmicas. Esse algo de mais violento, mais profundo, mais pesado e mais ingovernável é a alma do capital, o sujeito que sujeita os demais.

Nesse mundo, alguém que fizesse as velhas três perguntas – “Quem sou? De onde vim? Para onde vou?” – seria apenas um ingênuo. Um antigo. Hoje, a primeira das três interrogações teria que assumir a seguinte forma: “O que é essa sequência de replicações genéticas na qual eu entro como um reles corpo construído?” Ou, se falássemos de economia, a pergunta teria de ser: “Que processo econômico é esse que eu, humano, julguei ter inventado e que agora me subjuga e me soterra? “A segunda pergunta seria: “De onde vem esse rio de DNA?” E a terceira: “Para onde ele vai?” Nesse rio, o sujeito se movimenta, é fato, mas se move mais ou menos como grão de poeira no ar – e se dá conta disso. Ele agora teria de se perguntar: “Quem é isso que não sou eu, mas conforma o que sou? De onde vem isso? Para onde vai isso?”

O sujeito percebe, ou ao menos intui, em algum nível, que a coisa toda não é com ele, ou seja, o sujeito se reconhece mais e mais como um objeto da genética. Assim como, pouco a pouco, ele se move como objeto do capital, num grau mais profundo do que aquele até então assimilado.

Seria a essência platônica uma figuração cromossômica?

Prossigamos com a especulação em torno da agonia do sujeito a partir do discurso de Dawkins. Dessa vez, porém, permitamo-nos ir além daquilo que ele mesmo diz e, agora sim, correr o grande risco. Tentemos ler criticamente o que ele escreve. Da mesma forma que é possível situar historicamente o discurso de Charles Darwin como expressão metaforizada de um patamar de desenvolvimento das relações de produção, não seria possível buscar os mesmos reflexos – involuntários, talvez – no discurso de Dawkins?

Como sabemos, para Platão haveria, por trás de cada corpo e de cada coisa que vemos no mundo, um plano superior, ou mais essencial, constituído pelas formas ou pelas ideias puras. Em relação a esse plano, a realidade seria um revestimento – ou um arremedo de expressão, instável e insatisfatório. As ideias puras atravessariam, imutáveis, a realidade que podemos detectar com os nossos sentidos. Por definição, uma realidade sempre imperfeita. A leitura de River Out of Eden nos faz lembrar algo de Platão: os cromossomos poderiam ser vistos como os portadores da forma ou da ideia pura; os corpos vivos, seus revestimentos e carregadores. Não que Dawkins diga isso. Ele não diz. Quem diz isso é a ideologia do que ele diz. A associação entre essa vertente mais recente do evolucionismo e alguns elementos platonismo, talvez tão esdrúxula quanto um ornitorrinco, insurge­se com vigor.

O furor de explicar tudo com base na genética parece reeditar, com novas tintas, algumas noções antigas, como se dessem ensejo a uma refundação de modelos mentais do platonismo que redundariam na metafísica. Somos, atualmente, uma sociedade que acredita que os genes são as ideias puras contidas em organismos que sofrivelmente os refletem. Vivemos tempos de uma metafísica, quem diria?, genética. Sim, uma esdrúxula metafísica, mas é o que é.

É um furor e tanto, reconheçamos. O comportamento humano, ultimamente, já não se explica mais pela divina providência nem pelos ditames do meio; não tem a ver com o espírito e nem com a matéria (corpo, hormônios, pele, luta de classes ou o que quer que seja): a conduta das pessoas agora se quer escrutinar pela genética. Até mesmo a infidelidade conjugal, dizem alguns, e o dizem seriamente, poderia ser explicada por sentenças cromossômicas.[7]

Essa nova febre do discurso da ciência poderia “evoluir” em mais racismo ou em mais preconceito social, com as corporações vigiando as doenças e as fraquezas potenciais de seus empregados ou dos cidadãos para, em seguida, segregá-los.[8] Talvez estejamos perto disso. O mais intrigante, contudo, do ponto de vista do pensamento, é a pergunta incômoda que se insurge. Se os genes têm mesmo o poder que a eles vem sendo atribuído ultimamente, é o caso de indagar: essa possibilidade de os humanos interferirem sobre heranças genéticas seria uma ação voluntária ou seria, ela também, uma determinação dos genes para fazer com que os humanos ajam sobre os códigos de modo a apressar a sequência de mutações programadas? Deixemos, por ora, a pergunta em suspenso.

Com efeito, nesse ambiente de intenso fetichismo da genética, surgem paradoxos um tanto quanto anedóticos, que contêm, em si mesmos, a negação das pretensões do discurso científico mais assoberbado. Se até mesmo a infidelidade conjugal decorreria dos genes, será que não seria lícito afirmar que a mania de explicar a infidelidade conjugal a partir dos cromossomos é, também, uma afecção geneticamente programada?

O núcleo dessa nova “metafísica” são as “informações abstratas” de que nos fala Dawkins, embora ele não enverede pelo fetichismo da genética. Ele diz, apenas, que a vida no planeta Terra pode ser explicada como uma “explosão de informação”, isto é, uma incessante e crescente multiplicação de códigos genéticos numa escalada exponencial.[9] Dentro dessa imensa explosão, o humano, ora o humano é um fantoche na mão do gene – ao que eu venho tentando acrescentar: assim como o é na mão do capital. Eu diria mais: o humano é descrito como um joguete na mão do gene exatamente porque é um joguete para o capital. Nessas circunstâncias, poderia o humano agir sobre o gene assim como por vezes pretende agir sobre o capital? À primeira vista, a resposta poderia ser: sim, há algo que o humano pode fazer. No mínimo, há algo que ele parece tentar fazer.

Volto então à pergunta que deixei em suspenso anteriormente.

Eis que, junto a esses estudos da genética – cuja base material é o código -, desenvolvem-se as linhas de pesquisas que procuram intervir no cromossomo, cuja inspiração não pode ser imputada a Richard Dawkins. Surgem o diagnóstico genético, a terapia genética, a engenharia genética. O que vemos na cena contemporânea, contudo, são movimentos pelos quais o sujeito parece se rebelar contra as fatalidades cromossômicas e procura interferir nos códigos abstratos que ordenaram que ele fosse o que é. E é justamente isso que faz reacender a dúvida “metafísica”: não estaria também isso já decidido no plano superior dos genes? Quero dizer, se alguns cientistas não hesitam em atribuir às determinações genéticas tanta responsabilidade sobre o nosso destino, não se poderia dizer que eles mesmos, os cientistas, com seu discurso de manipulação genética, nada mais fazem do que realizar aquilo que a determinação genética já estabeleceu que eles realizassem na fase evolutiva em que nos encontramos? Não será o Projeto Genoma, por exemplo, uma artimanha da genética para conseguir mais velocidade e mais purificação na sua própria técnica de reprodução? Será que a ação humana para conhecer e depurar os genes não é, em si mesma, uma nova tática já programada pelos genes, agora se valendo espertamente dos cérebros dos cientistas? Será, enfim, que a interferência humana sobre o DNA não teria sido ditada pelos próprios cromossomos? O cientista genético, então, é o novo pai da evolução ou apenas um fantoche que já estava previsto e programado?

É assim que o fetichismo em torno da nova metafísica da genética traz em si mesmo as perguntas que desautorizam o discurso científico. Outra vez, ficamos sem saída. Pobre sujeito, esse.

Como verificamos, assim como o darwinismo original refletia, talvez sem o saber, a dinâmica das predações, para usar a palavra de Lacan, da concorrência selvagem, da dominação e da exploração de uns pelos outros, o novo darwinismo do rio que sai do Éden parece nos conduzir a este outro paralelo: a ordem de informações que nos precede e que nos sucederá parece servir de espelho para uma ordem econômica que se montou por nosso intermédio e que também dá sinais de que pretende nos suceder.

É terrível pensar assim. Muitos haverão de argumentar, que existe muita razoabilidade em imaginar que a vida no planeta possa sobreviver à espécie humana, mas não há o menor sentido num raciocínio que leva o humano para fora de si mesmo, quero dizer, que imagina uma obra humana, o capital, sobrevivendo para além do humano. Indagarão que, se o humano é a origem, o meio o e fim do capital, como se poderia conceber o capital para além do humano? Pior ainda: como pode o pensamento, que aqui não se confunde com o discurso religioso, pretender especular sobre o que restará de humano para além da humanidade? Não obstante, vou prosseguir com isso.

Já se avizinham as mutações violentíssimas provocadas pelo que temos ingenuamente chamado de ação humana. Voluntária e involuntária. As revoluções tecnológicas se sucedem – e a próxima grande revoluçao tecnológica será a combinação da tecnologia com a genética, gerando novos bichos parcialmente assemelhados a nós, mas que de nós se distanciarão velozmente, a ponto de, no futuro, já não guardarem mais condição de se acasalarem, para fins reprodutivos, com um de nós. A ficção científica já tratou disso, mas o que descrevo aqui vai um pouco além – e é mais grave. Os seres do futuro, que nos sucederão, operarão complexos sistemas sociais – que nasceram conosco, mas que, tornados mais e mais insondáveis, haverão de nos suceder também. A nova revolução tecnológica será o câncer domesticado.

É bom pensarmos sobre isso. O capital já deu provas suficientes de que não é meramente um recurso, uma ferramenta, um meio a serviço do homem. Em lugar de ferramenta para que o sujeito atinja finalidades benignas ou malignas (como faria crer o melodrama de esquerda a que insiste em se reduzir o que nos restava de marxismo), é preciso relembrar aqui que o capital, antes de qualquer outra definição, instaura-se como finalidade em si mesma, necessitando, contudo, dos sujeitos (tornados objetos) para se reproduzir.

A nossa questão, hoje, é mais entender por que o capital ainda não sabe prescindir do humano e menos afirmar que o humano não pode viver sem o capital.

Explosão de informação. O que é isso?

Retomemos a ideia de que o que caracteriza a vida sobre o nosso planeta é uma explosão de informação. Fixemo-nos sobre esta palavra: informação.

Em River Out of Eden – A Darwinian View of Life, o que temos é isto: a vida é uma explosão de informação. No princípio não era o verbo. Ora, que coisa: no princípio era a informação.

Como já há de ter ficado suficientemente claro, eu não discuto o evolucionismo e sua pertinência, por certo. O livro de Dawkins é tomado por mim não como verdade científica – condição que não me cabe discutir -, mas como sintoma. No fundo, a teoria da evolução não me interessa. Interessa-me, isso sim, o que ela espelha. Se nos encontramos no curso de uma imensa explosão de informação – a informação contida nos genes -, resta-nos identificar o destinatário. Ou, pelo menos, resta-nos indagar, ainda que no escuro, sobre o destinatário. Essa explosão se avoluma e se expande segundo a lógica das reações em cadeia, numa espécie de cogumelo atômico. Por isso é que insisto: será que a camada mais luminosa dessa explosão – e a mais nova – não se chama capital?

Se a próxima revolução tecnológica será o cruzamento entre homem e máquina, num processo fabril organizado a partir da lógica das relações de produção tal como estão postas, o que vem pela frente talvez sejam capitalistas cibernéticos e trabalhadores cyborgs, processadores de informações que nem eles mesmos compreendam direito.

Assim, onde estará o ponto em que a trajetória dos genes encontrará sua linha de chegada? E o que acontecerá aí? Para que destinatário todo esse rio de informação fará sentido?

E quanto ao capital? O que dizer dele segundo a perspectiva de que talvez algo dele sobreviva à forma atual da espécie humana? Não seria o capital uma “forma de vida” puramente informacional, ou pelo menos parte constitutiva de outra possível forma de vida que nos seria superior? Se este seminário sobre as mutações nos desafia a pôr o pensamento em risco, não vejo um risco maior e mais terrível do que esta interrogação. Será o humano capaz de divisar, ao menos divisar, uma forma de vida à qual ele sirva e que lhe é superior?

Em torno da linguagem como um rio

O livro de Richard Dawkins é também, de modo não declarado, uma eloquente metáfora de um fenômeno do qual só nos demos conta em meados do século XX: o da divisão do sujeito. O seu rio de informações abstratas, que se vai dividindo na diacronia, multiplicando-se em muitas correntes sincrônicas, cada qual transportando determinado código, faz lembrar a evolução das línguas desde a nascente, cuja origem primeira é, por definição, ignorada.

É aí, no rio da linguagem, que flui no simbólico o lugar em que o sujeito se constitui e ganha nome. Mas, constituído na linguagem, esse sujeito não existe mais em si mesmo. Descobriu-se dividido para sempre. Desde sempre. Portanto, também quando raciocinamos a partir desse rio, o da linguagem, as notícias para a grandiosidade do homem não são lá muito boas.

A manifestação mais lembrada dessa divisão vem de Descartes. Considera-se que, no Discurso do método, ao formular seu princípio fundamental, o “penso, logo existo”, Descartes teria explicitado a cisão essencial: o lugar em que o sujeito pensa não é o mesmo lugar em que ele existe. Aliás, se assim fosse, o “logo” não faria sentido. Se “existir” e “pensar” fossem um único movimento, seriam sinônimos. E, se fossem sinônimos, Descartes não teria chegado a lugar nenhum além daquele em que já se encontrava. Teria dito apenas “penso, logo penso”. Ou “existo, logo existo”. O logo, nessas frases, teria sido evidentemente nulo. Uma frase como “penso, logo penso”, fica melhor quando sintetizada num monolítico “penso”. Fica mais econômica.

Ocorre que o “logo” de Descartes claramente não é nulo. O pensador sabe de sua própria existência porque pensa: o existir decorre do pensar, mas, atenção, decorre em outro plano, em outro lugar. Para Descartes, nenhuma verdade terá antecedência sobre o pensamento que declara a existência daquele mesmo que pensa. Ele escreve: “Notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava.” Descartes assinala a divisão: “De sorte que esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, ainda que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é.” Ele estabelece a mão dupla entre o pensar e o existir, mas dá a primazia ao pensar: “Tendo notado que nada há no eu penso, logo existo que me assegure de que digo a verdade, exceto que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir, julguei poder tomar por regra geral que as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras.”[10]

Uma remissão obrigatória, nessa passagem, deve ser feita a Santo Agostinho (354-430), conforme assinalou José Américo Motta Pessanha. Ao afirmar “se eu me engano, eu sou, pois aquele que não é não pode ser enganado”[11] Agostinho, na visão de José Américo, teria antecipado, ao menos em parte (e em 12 séculos!), a máxima de Descartes (1596-1650).
Mais longe ainda, alguém poderia arguir que a divisão entre corpo e alma é tão antiga quanto, pelo menos, a filosofia grega. De fato, Descartes não a inventou. O que ele percebeu, no entanto, foi a divisão entre o pensar e o existir. E, para dar lugar a um e a outro, pôs o primeiro, o pensar, na alma, e deixou o existir no corpo mesmo. Seja como for, a divisão entre corpo e alma não é a divisão essencial a que me refiro. O meu ponto é a divisão do sujeito: um é o sujeito que pensa; outro, distinto, é o sujeito que existe.

Pensar é um ato que só se realiza segundo os signos, é falar em voz baixa, contrariando a expressão dos que falam sob a desculpa de que “pensam em voz alta”. Ao pensar, o sujeito pensa obrigatoriamente por meio da linguagem, valendo-se de signos. Ao pensar, como ao falar, ele está partido ao meio, mas rapidamente se reconstitui – o “logo” o recompõe. Imaginariamente. Fiquemos antes com sua divisão ao meio: ele pensa na linguagem, no rio da linguagem, mas existe fora dela.

“Penso onde não sou, logo sou onde não penso”, disse Lacan numa passagem que se tornou célebre[12]. “Não se trata de saber se eu falo de mim conformemente ao que eu sou, mas se, quando eu falo de mim, sou o mesmo que aquele de quem eu falo.”[13] A divisão, aqui, jamais se resolve: “Eu não sou, lá onde sou o joguete de meu pensamento; eu penso no que sou, lá onde eu não penso pensar.”[14]

Ocorre que o pensamento, como a fala, acontece na intersubjetividade, “ali onde o sujeito nada pode captar senão a própria subjetividade que constitui um Outro como absoluto”.[15] A fala não reside “dentro” do “eu”, ou dentro da “consciência”: ela parte de um sujeito (a quem pertence em origem) em direção a outro sujeito (a quem se destina a pertencer), mas o seu devido lugar é a própria “fundação da intersubjetividade”.[16]

Quando Descartes, no seu recolhimento, pronuncia seu cogito ergo sum, não pensa exatamente consigo mesmo, mas fala de si para si como o “Outro absoluto”. O ergo indica a vinculação lógica entre dois lugares distintos (um em que se pensa e o outro em que se existe) e também uma vinculação entre dois interlocutores: o sujeito que fala e sua outra parte, a que existe. Imaginemos então que as duas se põem reciprocamente como outras de si mesmas, isto é, o pensa dirige-se ao existe como quem se dirige a um outro. É nesses termos que a linguagem, ao dar o lugar e o nome do sujeito, obriga-o a ver a si mesmo como um outro: e é só assim que ele verá os outros como sujeitos.

Retomando Lacan, é impossível, ao falar de si, ser o mesmo que aquele de quem se fala. A linguagem, além de ser o “rio” em que o sujeito se constitui, de cujas inscrições ele se constrói, lugar em que ele se constrói no simbólico, é também o sinal que marca sua divisão.

A imagem desse outro rio, o da linguagem, também é interessante. Da mesma maneira que ao animal, humano ou não, não é dada a alternativa de se servir dos genes segundo sua vontade soberana, também o sujeito não “usa” a linguagem segundo suas premeditações. Os genes é que usam os organismos. Valem-se deles. Os genes “premeditam” os bichos. O humano, então, é constituído pela linguagem. Pode até se apropriar das máquinas da comunicação, num nível ainda assim bastante precário, mas jamais se apropria inteiramente da linguagem. O sujeito só pensa, só fala e só se constitui na linguagem. Jamais fora dela. E, na linguagem, aí vem a má notícia, o sujeito não é senhor de si. Quem fala aí é o inconsciente, esse bicho estranho, também ele ingovernável, que foi anunciado por Freud.

A descoberta do inconsciente é comparada por Freud à revelação empreendida pelo darwinismo (e aqui fechamos esse círculo um tanto extenso de comparações e analogias, tecido a partir de sensações teóricas). Darwin demonstrou que o homem não se criou “à imagem de Deus” (Gn, 1-27), mas evoluiu do mundo animal, como a minhoca ou o tatu. Quanto à descoberta do inconsciente, esta deixou nítido que o “eu” não comanda as ações do sujeito. A descoberta do inconsciente esboroa a consciência. O sujeito exprime demandas que mal conhece e que não governa. “O ego, ele não é senhor nem mesmo em sua própria casa”, afirma Freud. Este deve, então, “contentar-se com escassas informações acerca do que acontece inconscientemente em sua mente”.[17] Em outro momento, Freud diagnostica: “Os pensamentos emergem de súbito, sem que se saiba de onde vêm, nem se possa fazer algo para afastá-los. Esses estranhos hóspedes [na casa do ego] parecem até ser mais poderosos do que os pensamentos que estão sob o comando do ego.”[18]

Darwin traumatiza. Freud traumatiza. E há outros traumas vindo aí. Um deles talvez revele que o sujeito não está dividido na linguagem, como temos tentado acreditar até agora, mas banido de seu próprio destino. A própria ideia de sujeito, mesmo essa, a de sujeito dividido, muito provavelmente não sobreviverá. Algo ficará de nós no futuro, mas a isso que ficará talvez não estejamos convidados. Teremos sido descartados.

Notas

  1. O presente texto se beneficia diretamente de um dos capítulos de minha tese de doutorado “Televisão objeto: a crítica e suas questões de método”, defendida na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, em 2002. 
  2. É bom registrar que Baudrillard não assina embaixo dessa adaptação de suas teses. Em uma entrevista a Luís Antônio Giron, da revista Época (edição de 6 de março de 2003), Baudrillard comentou o filme:

    ÉPOCA – Seu raciocínio lembra os dos personagens da trilogia Matrix. O senhor gostou do filme?

    BAUDRILLARD – É uma produção divertida, repleta de efeitos especiais, só que muito metafórica. Os irmãos Wachowski são bons no que fazem. Keanu Reeves também tem me citado em muitas ocasiões, só que não tenho certeza de que ele captou meu pensamento. O fato, porém, é que Matrix faz uma leitura ingênua da relação entre ilusão e realidade. Os diretores se basearam em meu livro Simulacros e simulação, mas não o entenderam. Prefiro filmes como O show de Truman Cidade dos sonhos, cujos realizadores perceberam que a diferença entre uma coisa e outra é menos evidente. Nos dois filmes, minhas ideias estão mais bem aplicadas. Os Wachowski me chamaram para prestar uma assessoria filosófica para Matrix Reloaded Matrix Revolutions, mas não aceitei o convite. Como poderia? Não tenho nada a ver com kung fu. Meu trabalho é discutir ideias em ambientes apropriados para essa atividade. 

  3. LACAN,Jacques.”A agressividade em psicanálise”. ln: ·Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 123. 
  4. Veja-se, por exemplo, da máxima “vícios privados, benefícios públicos”. A expressão vem da obra de Bernard de Mandeville, A fábula das abelhas: ou vícios privados, benefícios públicos, de 1714. Adam Smith deu sentido científico à fábula: “Pela busca de seu próprio interesse, ele [o homem] com frequência promove o da sociedade mais eficazmente do que quando de fato tenciona promovê-lo.” Ver GIANNETTI DA FONSECA, Eduardo. Vícios privados, benefícios públicos? A ética na riqueza das nações. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. nº e 134. 
  5. LACAN, Jacques. “Funções da psicanálise em criminologia”. In: _____ Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 140. 
  6. DAWKINS, Richard. River Out of Eden – A Darwinian View of Life. New York: BasicBooks (uma divisão da Harper Collins Publishers), 1995, p. 4 (grifos nossos). 
  7. WRIGHT, Robert. “Science and Original Sin”. Time, 28 de outubro de 1996: “How many spouses are lured into infidelity, even desertion, by the conviction that they married the ‘wrong’ person the first time around or that this person has ‘changed’? These often delusional rationales are (to put it a bit metaphorically) our genes ‘trying’ to get us to do the kinds of things – infidelity, betrayal – that during evolution helped propel them into the next generation.” 
  8. Ver, por exemplo, MURRAY, Charles e HERRNSTEIN, Richard. The Bell Curve. New York: The Free Press, 1994. Os autores associam inteligência, que seria geneticamente hereditária, e nível socioeconômico. Fica, nisso, a sugestão de que os mais ricos vão constituindo uma elite cognitiva. Desse modo, a lógica dos genes poderia estar associada à lógica da divisão da sociedade em classes. 
  9. DAWKINS, p. 144 e seguintes. 
  10. DESCARTES, R. Discurso do método. São Paulo: Nova Cultural (Círculo do Livro Ltda.), 1996, p. 92-3. 
  11. PESSANHA, José Américo Motta. “Vida e obra”. ln: Santo Agostinho. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, p. 15 (Coleção Os Pensadores). 
  12. LACAN, “A instância da letra no inconsciente”. ln: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 521. 
  13. ______ A instância da letra no inconsciente”. ln: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEditor, 1998, p. 520. 
  14. ______ A instância da letra no inconsciente”. ln: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEditor, 1998, p. 521. 
  15. ______ “O seminário sobre “A carta roubada”‘. ln: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 22. 
  16. ______ “O seminário sobre “A carta roubada”‘. ln: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 22. 
  17. FREUD, S. “Conferência XVIII: Fixação em traumas – o Inconsciente”. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XVI, p. 292. 
  18. “Uma dificuldade no caminho da psicanálise”. ln: Obras psicológicas completes de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XVII, p. 151. 

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