1999

Armas e armadilhas

por John Manuel Monteiro

Resumo

No Brasil, tornou-se comum retratar as sociedades indígenas como populações em extinção, fadadas, cedo ou tarde, ao desaparecimento. De modo geral, para dar conta da situação atual, fala-se dos índios de hoje como meros sobreviventes.  Não há como negar que as sociedades nativas de fato sofreram cinco séculos de depredação e espoliação mas reduzir essa experiência à simples caracterização das sociedades indígenas como vítimas das iniquidades dos brancos é cometer mais uma injustiça.

Felizmente, a história desses povos vem sendo recuperada e repensada por um movimento indígena emergente, através de pesquisas e debates acadêmicos. Lideranças políticas e professores indígenas colocam em sua agenda a tarefa de apropriar-se do seu passado como parte indispensável do processo de revitalização étnica, na defesa dos direitos territoriais e, sobretudo, na reivindicação do direito de ser diferente.

Entretanto, o maior desafio que o historiador dos índios enfrenta é a necessidade de desconstruir as imagens e os pressupostos que se tornaram lugar-comum nas representações do passado brasileiro. Um dos aspectos mais importantes e problemáticos do recente processo de “revitalização” étnica reside na reapropriação, pelas lideranças do movimento, de uma cultura e uma história “autênticas”.

No Brasil, o estigma da aculturação, fruto de longa data do viés assimilacionista da política indigenista e do indigenismo brasileiro, apresenta um desafio especial para as lideranças e organizações. Assim, adereços ornamentais e práticas rituais, há muito abandonados por índios “caboclos” ou “camponeses”, passaram a reintegrar o repertório cultural dessas sociedades, muitas vezes para fundamentar estratégias de ação em situações de confronto ou de reivindicação.

Para as lideranças e os professores indígenas, a história também se localiza prioritariamente no espaço interétnico porque proporciona uma fonte de informações sobre o processo de subordinação e sobre os direitos legais capazes de sustentar reivindicações concretas no presente e estratégias políticas para o futuro, proporcionando, assim, uma nova arma na articulação de uma nova espécie de resistência. Mas essa concepção de história é bastante problemática. Se, como não podia deixar de ser, ela é etnocêntrica, pois focaliza o passado através da experiência do grupo e de sua luta para se manter coeso como povo, a história indígena tem que lançar mão de categorias analíticas, de imagens e representações que são produtos do mundo dos brancos. Nesse sentido, o uso da história está imbricado num discurso que é voltado para fora, porém com implicações importantes como meio de reforçar a identidade interna.

O quinto centenário da viagem de Colombo, em 1992, apresentou uma oportunidade para a articulação, ainda que confusa e pouco elaborada, de uma reflexão das lideranças e dos professores indígenas sobre os usos da história. Reconstruir a história para construir o futuro é algo que está, sem dúvida, na agenda de uma parte expressiva do movimento indígena atual. Porém, é uma tarefa que exige uma reconfiguração radical das noções ainda prevalecentes na história que se ensina hoje.


Escrevendo no início dos anos 80, o intelectual indígena boliviano Ramiro Reynaga Wankar afirmou: “Os brancos, ao porem um obstáculo no nosso caminho para o passado, bloqueiam o nosso caminho para o futuro” (apud Rappaport, 1990, p. 1). Assim, negado o acesso a uma história, essa liderança nativa apontava para a dificuldade de se articular um projeto prospectivo para seu povo. No Brasil, até poucos anos atrás, a questão se punha de outra maneira, praticamente invertida. Às sociedades indígenas se negava um futuro: uma longa sucessão de leis, de políticas governamentais e de correntes do pensamento social tratava os povos nativos como populações em extinção, fadadas, cedo ou tarde, ao desaparecimento. Ao cabo destes primeiros quinhentos anos, no entanto, apesar de perdas irrecuperáveis e transformações marcantes, diversas populações portadoras de uma herança cultural, genética e moral que atravessou séculos de riscos e incertezas estão aí a reclamar os seus direitos históricos e a sua alteridade política.

Com certeza, a crescente visibilidade dos índios nos últimos anos tem deixado a sociedade brasileira um tanto perplexa. Aprende-se, desde pequeno, que os índios são coisa do passado, não propriamente da história, mas antes de uma distante e nebulosa pré-história. Os manuais escolares e mesmo a historiografia profissional tendem a liquidar rapidamente com as populações indígenas, dando-lhes um certo destaque — como não podia deixar de dar — apenas nos anos iniciais da colonização. Apesar de reaparecerem pontualmente em alguns episódios, por exemplo, como valentes auxiliares dos luso-brasileiros na guerra contra os holandeses, ou como vítimas dos excessos dos bandeirantes, ou, ainda, como os protegidos do magnânimo Rondon no início deste século, as populações indígenas de fato – contrapostas ao índio imaginado – são povos invisíveis em grande parte da história que se ensina convencionalmente. De modo geral, para dar conta da situação atual, fala-se dos índios de hoje como meros remanescentes, sobreviventes, resquícios que continuam agarrados ao pouco que lhes resta após cinco séculos de depredação e espoliação.

Não há como negar que as sociedades nativas de fato sofreram reveses monumentais diante do impacto fulminante do encontro – na verdade, encontrão – com a expansão europeia. No entanto, reduzir essa experiência à simples caracterização das sociedades indígenas como vítimas das iniquidades dos brancos é cometer mais uma injustiça, que se soma a tantas outras. Há boas razões políticas para a insistência nessa imagem: afinal, é assim que os movimentos indígenas contemporâneos e os movimentos de apoio aos direitos dos índios têm construído o quadro dramático que busca sensibilizar o público diante das reivindicações de reparações pelos séculos de injustiça, expropriação e violência. Porém, essa perspectiva oculta os múltiplos processos históricos de questionamento, negação e reelaboração de identidades indígenas que informavam e direcionavam as maneiras pelas quais diferentes segmentos sociais nativos se posicionavam diante da nova ordem que começou a se instaurar com a chegada dos primeiros navegantes portugueses, há quinhentos anos.

Essas experiências, vivências e estratégias indígenas vêm sendo esmiuçadas por um crescente número de estudiosos, buscando aliar uma certa sensibilidade antropológica às informações inéditas que emergem, em fragmentos dispersos, dos arquivos que guardam e escondem os mistérios do passado. Este é um lado importante daquilo que podemos chamar de nova história indígena, porque há um outro lado, não menos importante, que é a investigação das diferentes perspectivas nativas sobre o passado, muitas vezes codificadas em registros orais que se distanciam do modo usual de se pensar a história (ver, por exemplo, Hill, 1988, e Gallois, 1993). Deve-se ressaltar, ainda, que se trata de uma “nova” história indígena, porque esse tema não é nada novo na historiografia do país: desde os tempos coloniais, os cronistas e outros escritores se indagaram a respeito dela, e, no século XIX, a temática indígena foi crucial na elaboração de uma mitografia fundacional do país, que se desdobrou em sucessivas ondas da historiografia e do pensamento social brasileiro (Monteiro, 1996).

Dentro desse contexto, o problema da resistência indígena ganha um certo destaque. No entanto, à medida que os antropólogos e os historiadores vão descobrindo e esmiuçando um elenco cada vez mais extenso de atos de protesto, contestação, reivindicação e mesmo de rebelião, esse tema se apresenta como um verdadeiro desafio, sobretudo porque esbarra numa série de noções problemáticas que dificultam o dimensionamento dessa questão.

HISTORIADORES DOS ÍNDIOS

Um primeiro conjunto de problemas ligados à história e à resistência dos índios diz respeito à tarefa, própria dos historiadores, de identificar, documentar e interpretar os eventos, processos e percepções que marcaram as experiências das populações indígenas no passado. Tarefa nada fácil, diga-se de passagem, tratando-se da história do Brasil. A documentação escrita e iconográfica, quando comparada a outros países do continente americano, mostra-se pobre e cheia de lacunas. Ainda assim, existe no país uma vastíssima quantidade de documentos relevantes que, até o momento, aguardam, empoeirados, a atenção de algum estudioso (Monteiro, 1994). Isso sem falar, é claro, dos enormes acervos, também subaproveitados, em outros países.

Mas a descoberta de novos documentos ainda esbarra na resistência dos historiadores à temática indígena. Para os índios, ditou o visconde de Porto Seguro, autor de uma das mais importantes obras historiográficas no país, “não há história, há apenas etnografia” (Varnhagen, 1980). Pouco mudou, com respeito a essa questão, desde o tempo do visconde – que escreveu nos anos de 1850 – até os dias de hoje. De fato, o interesse pela história dos índios se choca com posturas historiográficas arraigadas desde longa data, que desqualificam os índios enquanto atores históricos legítimos ou, quando muito, os deslocam para um passado remoto. É sempre complicado para um professor de história explicar a persistência de grupos indígenas no Brasil de hoje, quando a historiografia os obliterou nos tempos coloniais: daí vem a ideia nociva e preconceituosa de que os índios são hoje apenas os pobres remanescentes daqueles que tiveram um lugar, embora incômodo, na história do país.

Portanto, o maior desafio que o historiador dos índios enfrenta não é a simples tarefa de preencher um vazio na historiografia mas, antes, a necessidade de desconstruir as imagens e os pressupostos que se tornaram lugar-comum nas representações do passado brasileiro. Há, desde longe, um binômio clássico que opõe um tipo de índio resistente a um outro tipo de índio colaborador. Quando, na primeira metade do século XVIII, Sebastião da Rocha Pitta escreveu em sua História da América portuguesa que foi necessário ganhar a palmos aquilo que havia sido doado em léguas, tamanha era a resistência dos índios bárbaros no Nordeste, ele se reportava à imagem da muralha indígena, aquela massa informe de selvagens que se opunham tenazmente a qualquer avanço da colonização europeia (Pitta [1730], 1980). O lado inverso dessa imagem encontramos no amável e hospitaleiro Tupi, que não apenas concedia mulheres aos colonizadores para o crescimento populacional da América portuguesa, como também fornecia um suporte militar para a destruição dos inimigos internos e externos dos portugueses (ver, por exemplo, Caldeira, 1997). Radicalmente opostas e complementares, essas imagens lembram a configuração paralela da história da escravidão no país, oscilando entre Zumbi e Pai João, na provocativa abordagem de Eduardo Silva (1989). Recentemente, uma historiadora do Amazonas parodiou com bom humor essa construção, opondo Ajuricabas – referência ao líder dos índios Manao que virou símbolo máximo da resistência regional no Amazonas – a Canicurus, os execrados traidores e colaboradores dos colonizadores portugueses no rio Negro (Sampaio, 1998).

Com certeza, a resistência muitas vezes é explicada como “reação” a forças externas, cujo conteúdo programático é limitado pela rigidez das “estruturas” nativas. A cultura indígena é a “rocha” – para usar a bela imagem introduzida pelo historiador norte-americano Richard White, em seu livro The middle ground – que é dilapidada e transfigurada pelo avanço do mar dos europeus, porém não transformada em sua essência, que é dura, imóvel, resistente (White, 1991). Em sua resistência a mudanças impostas por fatores externos, os atores nativos tendem, nessa perspectiva, a manifestar um comportamento no mais das vezes previsível, limitado que é pela visão de mundo paroquial e conservadora frequentemente atribuída às sociedades tradicionais (Stern, 1987).

Outro problema, de certo modo ligado à noção da rigidez estrutural, diz respeito ao enfoque no sujeito coletivo como móvel da resistência. É a ideia de que os índios – ou, genericamente, o índio – são naturalmente resistentes, não no sentido biológico e epidemiológico, no qual são frágeis, mas no sentido da rebeldia e da oposição obstinada. Essa perspectiva possui um elemento bastante nocivo na medida em que esvazia qualquer discussão sobre a política de atores nativos, a qual, como sabemos, nem sempre acontece no sentido da defesa dos interesses coletivos “tradicionais”. O antropólogo William Fisher, por exemplo, ao estudar a militância das lideranças kayapó-xikrin, coloca em causa o “ambientalismo” dessas lideranças. Conclui que, muito embora “as relações sociais kayapó envolvam certas relações com o meio ambiente”, o “ambientalismo” que vem orientando parte significativa de sua militância política em anos recentes tem mais a ver com os espaços de negociação e conflito proporcionados pela conjuntura política do que com alguma defesa da natureza que fosse intrínseca à “cultura indígena” (Fisher, 1994, p. 229). Ou seja, frequentemente se atribui aos índios certos valores supostamente intrínsecos que, na verdade, são apreendidos e instrumentalizados pelas lideranças com a finalidade de abrir espaços de diálogo com interlocutores externos.

Se é nesse espaço intermediário que se articula a “resistência” dos índios, um outro problema que vem à baila reside na insistência em tratar as sociedades indígenas como sempre exteriores e radicalmente opostas à sociedade colonial e, posteriormente, nacional. Existe uma certa singularidade nas representações que predominam no Brasil para definir a indianidade; aliás, não apenas nas representações, como também na própria legislação, chegando a seu ponto culminante – ou talvez o seu ponto mais baixo – na elaboração do Estatuto do Índio, de 1973. De todo modo, pode-se sublinhar um certo modelo de contato que tem criado imagens problemáticas que oscilam do mais puro índio isolado ao mais descaracterizado índio assimilado. Também de forma atípica no quadro mais geral das Américas, há um distanciamento apressado entre o mestiço e suas origens indígenas. Essa singularidade certamente tem suas raízes nos projetos coloniais dos séculos XVII e XVIII, porém também tem muito a ver com a construção de uma história nacional depois da Independência, na qual a mestiçagem sempre ocupou um lugar de destaque.

Essa perspectiva tem duas grandes desvantagens. Por um lado, tende a reafirmar que a resistência só é possível na medida em que a sociedade mantenha uma certa integridade em oposição a um outro bloco monolítico, que é a sociedade do colonizador. Por outro, contribui para a invisibilidade de largos setores da população colonial, que, embora de origem indígena, não correspondem aos critérios de indianidade convencionalmente aceitos. Na Amazônia, por exemplo, as tropas de resgate e outras expedições de apresamento e de descimento que constantemente penetraram os rios e igarapés ao longo dos séculos XVII e XVIII tiveram um impacto enorme sobre a configuração dos povos amazônicos, provocando inclusive um fenômeno muito pouco estudado, que é da etnogênese (Schwartz, 1996). De fato, um dos maiores problemas da história dos índios é a perspectiva que pressupõe um caminho de via única para as populações que sofreram as consequências do contato: a história deste ou daquele povo, em termos tanto demográficos como culturais, se resume à crônica de sua extinção, quando, na verdade, a construção ou recriação das identidades nativas e da solidariedade social muitas vezes se dá precisamente em função das mudanças provocadas pelo contato (ver, a respeito, Sider, 1994).

Para se repensar a resistência dos índios, faz-se necessária uma reinterpretação abrangente dos processos históricos que envolviam essas populações. Mais do que isso, é preciso também reavaliar como os diferentes atores nativos criaram e construíram um espaço político pautado na rearticulação de identidades, contemplando evidentemente não apenas as formas pré-coloniais de viver e de proceder, como também e especialmente a sua inserção – ou não – nas estruturas envolventes que passaram a cercear cada vez mais as suas margens de manobra. Assim, tanto as sociedades que se mantinham avessas ao contato, por assim dizer, como as que foram mais intensamente envolvidas nos esquemas coloniais tiveram que adotar novas formas de resistência, muitas vezes lançando mão de estratégias, retóricas e materiais buscados entre os europeus. Por exemplo, não é por acaso que os Guaikuru e os Payaguá se apresentavam como os mais formidáveis adversários da expansão portuguesa nos séculos XVII e XVIII; tanto uma como outra sociedade desenvolveram a sua resistência a partir de adaptações e inovações tiradas dos brancos: cavalos, no caso dos Guaikuru, ferro, no caso dos Payaguá. Tanto um grupo como outro também construíram a sua identidade pós-contato a partir das relações com os europeus, não só manipulando imagens de bravura e ferocidade, como também explorando para sua vantagem as relações ambíguas que existiram na área de fronteira entre a América portuguesa e a espanhola (Vangelista, 1991). Outro exemplo interessante dessas relações de integração e recusa é o dos Mura, que, segundo o jesuíta João Daniel, tinham aceito o aldeamento por parte dos jesuítas mas, quando descobriram que isso apenas os deixava expostos à escravização, fugiram e recusaram novos contatos, desenvolvendo um ódio visceral contra os brancos (Sweet, 1992). São abundantes os exemplos desse tipo de mito de envolvimento prévio com os brancos, que serve para explicar a opção da oposição, inclusive militar.

De fato, desde os primeiros encontros, no século XVI, o processo de envolvimento com a sociedade colonial ou nacional sempre recolocou, para as sociedades indígenas, a questão de sua organização política. A emergência de novas lideranças apresentou novos desafios, à medida que se tornava cada vez mais difícil dissociar os processos decisórios internos das articulações externas. A bibliografia histórica e etno-histórica apresenta inúmeros exemplos das tensões, estratégias e soluções decorrentes das disputas entre formas de autoridade. A nomeação de capitães índios, por exemplo, remonta ao primeiro século da colonização, estabelecendo uma categoria que se revestia de poder sem precedentes pré-coloniais. No Nordeste, os capitães-mores dos aldeamentos, desde o período colonial, eram, em geral, índios “tendo sob suas ordens um efetivo de homens armados – que em muitos casos se elevava a mais de uma centena de índios que, além de arcos e flechas, dispunham de armas de fogo […]” (Dantas et alii, 1992, p. 449). Mesmo no século XIX, companhias militares integradas e muitas vezes chefiadas por índios lutaram ao lado de facções políticas regionais nas repetidas revoltas que marcaram a primeira metade do século. É interessante observar que o engajamento de participantes indígenas nessas “brigas de brancos”, na frase do historiador pernambucano Marcus Carvalho, não apenas servia os interesses dos aliados brancos como também podia fornecer uma base para a negociação de interesses propriamente indígenas, inclusive direitos territoriais (Carvalho, 1997; Dantas et alii, 1992, pp. 449-50).

Estratégias semelhantes, tanto no passado remoto como na atualidade imediata, mostram como os recursos de reivindicação, protesto e revolta – categorias geralmente enfeixadas sob a rubrica da “resistência” – alternam com outras opções políticas, frequentemente denominadas “colaboração” ou “acomodação”. Cabe aos estudiosos da história dos índios romper com as abordagens que enxergam na resistência apenas a reação anônima, coletiva e estruturalmente limitada. Novas leituras do espaço intermediário poderão revelar os sinuosos caminhos por onde passou – e passa – a resistência.

ÍNDIOS HISTORIADORES

Um segundo conjunto de problemas surge a partir da apropriação da história como elemento estruturador de um discurso propriamente indígena, em que a questão da resistência é nodal. De fato, um dos aspectos mais importantes e problemáticos do recente processo de “revitalização” étnica reside na reapropriação, pelas lideranças do movimento, de uma cultura e uma história “autênticas”. Em seu interessante estudo sobre a etnopolítica na Amazônia colombiana, Jean Jackson demonstra que a afirmação de uma “cultura tradicional” constitui um passo necessário para que os índios possam se posicionar no campo da política interétnica. A reapropriação dessa cultura tradicional, no entanto, muitas vezes tem como ponto de partida justamente a noção de indianidade produzida pela própria situação interétnica e pela história do contato (Jackson, 1995). No Brasil, o estigma da aculturação, fruto de longa data do viés assimilacionista da política indigenista e do indigenismo brasileiro, apresenta um desafio especial para as lideranças e organizações. Assim, adereços ornamentais e práticas rituais, há muito abandonados por índios “caboclos” ou “camponeses”, passaram a reintegrar o repertório cultural dessas sociedades, muitas vezes para fundamentar estratégias de ação, em situações de confronto ou de reivindicação.

Para as lideranças e os professores indígenas, a história também se localiza prioritariamente nesse espaço interétnico. Isso porque a história proporciona uma fonte de informações sobre o processo de subordinação e sobre os direitos legais, capazes de sustentar reivindicações concretas no presente e estratégias políticas para o futuro, proporcionando, assim, uma nova arma na articulação de uma nova espécie de resistência. Mas essa concepção de história é bastante problemática. Se, como não podia deixar de ser, ela é etnocêntrica, pois focaliza o passado através da experiência do grupo e de sua luta para se manter coeso como povo, a história indígena dos índios tem que lançar mão de categorias analíticas e de imagens e representações que são produtos do mundo dos brancos. Nesse sentido, o uso da história está imbricado num discurso que é voltado para fora, porém com implicações importantes como meio de reforçar a identidade interna. Para um dos editores do jornal indígena Waguri (boletim informativo da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN), em artigo não assinado sobre “O caminho das organizações indígenas”, é fundamental o novo papel da história: “[O movimento indígena] é, sem dúvida, um processo em curso, marcado pela diversidade [de] conceitos, valores e estratégias. Mas também de esperança e otimismo, na medida em que lideranças e organizações indígenas cada vez estão passando de co-autores para autores da política indígena, construindo uma nova história nos moldes dos princípios das realidades indígenas e derrubando conceitos ultrapassados de apoio, assessoria e tutela” (Wayuri, nº 20, 1993).

Nessa e em outras publicações das organizações, as incursões pela história indígena demonstram a adoção daquilo que Dominique Gallois identificou, entre os Waiãpi, como “fala para os brancos” (Gallois, 1993). O líder Braz França, um dos editores do Wayuri, publicou um interessante artigo sobre “O índio e a civilização do rio Negro”, que, em poucas linhas, transforma o “índio ecológico” do período pré-contato na inocente vítima dos brancos. “Até os anos 1700 no rio Negro, desde Manaus até o rio Cassiquiare na Venezuela, o grupo baré predominava vivendo uma vida feliz, em plena harmonia com a natureza. O seu universo era um paraíso com muita fartura de peixe, caça e frutas em geral. O povo fazia grandes festas, o grupo crescia e era muito respeitado pelos outros grupos e abençoado por ‘Purnaminary’ .” A partir do contato, o que se registra na memória dos índios são dois personagens: o comerciante “Papo Amarelo” com seu calibre 44 e o missionário. No entanto, é a resistência dos índios que ganha destaque, apesar da dominação exercida por esses agentes externos, pois o comerciante “não conseguiu escravizar os índios conforme suas intenções” e o máximo que o missionário “conseguiu foi transformar os índios em eternos pecadores”. A conclusão do artigo reveste-se de um discurso profético-cristão, com a promessa do deus criador Tupana de que “cada um seguirá para um local onde ninguém terá fome, não terá

noite nem dia e tão pouco relógio para marcar o tempo” (Wayuri, nº 26, 1994).

O quinto centenário da viagem de Colombo, em 1992, apresentou uma oportunidade para a articulação, ainda que confusa e pouco elaborada, de uma reflexão das lideranças e dos professores indígenas sobre os usos da história (Grupioni, 1994). Através do Wayuri, os dirigentes da FOIRN aproveitaram o momento para chamar atenção para a importância da história: “A sociedade branca está se preparando para festejar em 1992 a ‘Descoberta’ da América e sua ‘catequização-civilização’. Mas, para nós, índios, aquela data foi o começo da invasão, da destruição, da resistência. Tudo isso já durou quinhentos e ainda continua”. Qualquer semelhança entre essa assertiva e a historiografia missionária que circulava desde o final dos anos 70 não é mera coincidência, diga-se de passagem. Mas o texto vai além da linha oficial do crMr, apropriando para si o papel de participante em vez do de vítima:

Wayuri tem o objetivo de sensibilizar e conscientizar todos nós, índios, sobre a importância e o valor que têm a nossa história, nossa cultura, nossa resistência e nossa organização e apresentar alternativas para a nossa problemática atual […] É para você, irmão índio, ter um conhecimento cada vez mais profundo e descobrir aos poucos a verdadeira história do Brasil e a nossa situação, hoje. É para você não se sentir sozinho, fraco, pessimista, é para você saber que não está no final de uma história, mas bem no meio dela, e ter confiança no futuro de seu povo, lutar por isso. [Wayuri, nº 5, 1990]

É interessante observar que, nesse discurso, há uma preocupação explícita em desconstruir os elementos constitutivos da visão pessimista que marcou o indigenismo branco – oficial e civil – desde o século XIX: a fragmentação do sujeito, a fraqueza da vítima, a falta de perspectivas para o futuro. No quadro atual do movimento indígena no Brasil, a elaboração – ou reelaboração – da história por parte das lideranças e dos professores mostra-se um recurso potencialmente poderoso nas lutas pela afirmação de uma identidade política e pela posse da terra. Trata-se da apreensão, por parte das lideranças nativas, da inovação conceitual apresentada pela Constituição de 1988, ou seja, o abandono de uma perspectiva assimilacionista e sua substituição pelo princípio do direito à diferença.

Na apresentação do Wayuri, no início do ano do Quinto Centenário colombiano, os líderes da federação apelam novamente para a história que lhes foi roubada: “a FOIRN caminha para o seu quinto ano de luta e pouco a pouco vai se consolidando e buscando alternativas de vida capazes de recuperar o sentido de vida para os povos indígenas desta região que durante mais de cem anos foram obrigados a esquecer a sua história e entregar nas mãos de estranhos o seu destino” (Wayuri, nº 12, 1992).

Agentes de seu próprio destino, faltava-lhes ainda uma agenda política consensual. Gersem Baniwa, um dos principais articuladores da FOIRN e redator do boletim da federação nesse período, procurava, em seus editoriais, apresentar a discussão do movimento indígena numa perspectiva crítica: “A questão que se coloca é se as organizações e os próprios índios que as fazem querem apenas agir no sentido simples de resistência diante da sociedade etnocêntrica e discriminatória ou têm para si um horizonte próprio a ser construído […] O movimento indígena precisa urgentemente rever seus princípios, seus objetivos, e procurar enxergar com nitidez suas perspectivas. De outra forma não será possível pensar em nenhum projeto futuro para os povos indígenas, que não seja sua própria integração e extinção” (Wayuri, nº 26, 1994).

O boletim da FOIRN também abriu espaço para outras manifestações das culturas rio-negrinas, publicando mitos, lendas e mesmo piadas – a maioria de conteúdo étnico – para a diversão de seus leitores. Essas matérias também possuíam uma motivação didática, sempre buscando articular a problemática histórico-cultural à questão política, na qual elementos míticos ou fictícios servem como metáforas para o movimento indígena. Num dos boletins, o líder Maximiliano Menezes contou uma fábula tukano, em que seis marianitos se juntam para derrotar um gavião real. “Diante desta fábula”, concluiu Maximiliano, “podemos analisar que o povo indígena e suas organizações só alcançarão seu objetivo principal, que é a demarcação de terras, das áreas que lhe pertencem, quando estivermos lutando juntos com todas as organizações indígenas contra os políticos governamentais que não aceitam e desrespeitam o artigo 231 da Constituição brasileira. Mas se o povo indígena e suas organizações começarem a se dividir ou desistir da luta, o fracasso vai vir e os poderosos irão conquistar as nossas terras e de tudo que nela existe, como já vêm fazendo há quinhentos anos, invadindo, violentando, dominando e exterminando os nativos deste continente americano.” [Wayuri, nº 10, 1991]

Ainda é bastante incipiente qualquer discussão sobre a história dos índios, geralmente apresentada de forma bastante polêmica nesse contexto. Num artigo veiculado no Boletim da COIAB, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, o autor anônimo buscou mostrar o laço entre o passado e o futuro, assim afirmando o sentido político de uma história cuja lógica e estratégia discursiva vêm essencialmente de um espaço interétnico: “O objetivo dos povos indígenas é claro, no sentido de unificar e intensificar cada vez mais as suas organizações para alcançar uma verdadeira autonomia. Para tal, os povos indígenas devem enfrentar a difícil realidade para um dia poder- escrever a sua própria história preservando a sua cultura e contribuindo com os seus conhecimentos e saber tradicional para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária” (Boletim da COIAB, nº 12, 1992).

Essa tarefa, de um dia “escrever a própria história”, também foi explicitada por Gersem Baniwa, num relato que descrevia uma viagem, algo paradoxal, a Portugal, onde foram expostas ricas peças da cultura material rio-negrina, que tinham sido extraídas da Amazônia havia mais de duzentos anos, na “viagem filosófica” de Alexandre Rodrigues Ferreira. Para essa liderança indígena, o passado guardava lições para o futuro do movimento: “Essa realidade precisa ser levada como ponto de reflexão em nossa prática de luta e trabalho que pode nos ajudar a reerguer nossos olhos, nossos corações e com união e solidariedade reconstruir nossa história e nosso futuro e, embora visivelmente fracassados, estamos vivos e conscientes de que lutaremos para viver ao longo dos tempos assim como a natureza viverá conosco” (Wayuri, nº 27, 1994).

Reconstruir a história para construir o futuro é algo que está, sem dúvida, na agenda de uma parte expressiva do movimento indígena atual; porém, é uma tarefa que exige uma reconfiguração radical das noções ainda prevalecentes na história que se ensina hoje. Assim, o caminho pela frente ainda é longo, até porque, voltando para a citação no início deste texto, o caminho para o passado também está cheio de obstáculos.

COMENTÁRIO FINAL

No Brasil, é comum retratar as populações indígenas como meros resquícios de um passado cada vez mais remoto, como os pobres remanescentes de uma história contada na forma de uma crônica do desaparecimento e da extinção. Diversos povos sucumbiram ao impacto fulminante do contato e da conquista, é verdade. Mas muitos conseguiram sobreviver ao holocausto, recompondo populações dizimadas, reconstruindo suas identidades, enfim, se ajustando aos novos tempos. Contribuem, hoje, para o rico painel de diversidade cultural que é, sem dúvida alguma, o patrimônio mais precioso deste país.

Felizmente, a história desses povos vem sendo recuperada e repensada, não apenas através das pesquisas e dos debates acadêmicos, como também no interior de um movimento indígena emergente. Como parte indispensável do processo de revitalização étnica, na defesa dos direitos territoriais e, sobretudo, na reivindicação do direito de ser diferente, lideranças políticas e professores indígenas colocam em sua agenda a tarefa de apropriar-se do seu passado. Não basta mais caracterizar o índio histórico simplesmente como vítima que assistiu passivamente à sua destruição ou, numa vertente mais militante, como valente guerreiro que reagiu brava porém irracionalmente à invasão europeia. Importa recuperar o sujeito histórico que agia de acordo com a sua leitura do mundo ao seu redor, leitura esta informada tanto pelos códigos culturais da sua sociedade como pela percepção e interpretação dos eventos que se desenrolavam.

Ainda assim, persiste um abismo entre a produção acadêmica e as percepções indígenas de seu papel na história do Brasil. Parte do problema reside na inexistência de historiadores índios com formação superior, o que afasta o caso brasileiro de outras experiências nas Américas, em que a contribuição de escritores e intelectuais nativos – no passado e na atualidade – para o debate tem sido da mais alta relevância. No Brasil, a poderosa imagem de povos isolados e primitivos, com seu suposto apego ferrenho à natureza e à liberdade, permanece como obstáculo para a conceitualização e a compreensão dos múltiplos processos de transformação étnica que tornam a história do Brasil um desafio permanente para sucessivas gerações de historiadores.

Na contagem regressiva para o Quinto Centenário da viagem de Cabral, que estabeleceu o primeiro contato significativo entre europeus e índios em terras que seriam, mais tarde, brasileiras, os povos indígenas estão em evidência mais do que nunca. Mas esse relevo serve, antes de mais nada, para ressaltar o fato de que ainda sabemos pouco sobre a história desses povos e, pior, que o imaginário brasileiro continua povoado de graves distorções e preconceitos a respeito dessas populações. Devemos aproveitar este ensejo para repensar e corrigir essas percepções, para que o próximo período sejam outros quinhentos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Jorge Caldeira, Viagem pela história do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Marcus J. Carvalho, “O envolvimento dos índios de Pernambuco nas brigas de brancos”. ln: J. Monteiro & F. Nogueira (orgs.), Confronto de culturas. São Paulo/Rio de Janeiro: Edusp/Expressão e Cultura, 1997.

Beatriz Góis Dantas et alii, “Os povos indígenas do Nordeste brasileiro: um esboço histórico”. ln: M. Carneiro da Cunha (org.), História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 431-56.

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