1990

As amantes proustianas

por Leda Tenório

Resumo

A duração, o tempo que passa e está sempre fugindo, mobiliza em Proust o desejo de escrever, e é no embate da arte e da morte, no tormento dos acréscimos, que ele escreve os seis volumes de Em busca do tempo perdido. Desafio que se manifesta em frases que transbordam e se alongam numa inquietude absoluta. Mas o caudaloso do estilo também convive com o clássico, em frases como: “O amor é o espaço e o tempo tornados sensíveis ao coração”, ou: “A gente não ama ninguém quando ama.” E é justamente ao falar do amor que o escritor nos fala como por máximas. Mas estas são sempre provisórias ou parciais. Se ele convoca ou declama os clássicos, os conteúdos que importam são os involuntários e afetivos. Gerard Lebrun diz que o desejo proustiano vem carregado de stress, de uma doença do outro, como no amor do personagem Swann por Odette. Desejo marcado por “intermitências do coração”, repetições, incapaz de “se compreender”, e em cujo cerne está a decepção. Odette é por excelência a mulher errada. Nela, Swann via o que não era e não vê o que é. Os temas do equívoco, do ciúme, da intriga contra si mesmo aparecem em todas as relações amorosas do romance. A máquina do imaginário está sempre em busca de outra coisa, fugidia. O outro desejado não é o que se quer ser, mas o que se quer ter. Mas do outro só se pode ter pedaços, e o próprio Narrador proustiano se revela como uma série de “eus” possíveis e incompletos. Assim a escrita do romance é o fechamento de uma experiência que não se fecha.

 


Eu vou começar, um pouco longe do nosso tema, por um desejo proustiano que não é o amoroso, mas que, como ele, talvez mais que ele, revolve o romance do tempo perdido, constituindo-se na sua maior preocupação: o desejo de escrever. Mais especificamente, o desejo de escrever um “romance” justamente. A grande obra proustiana, vocês sabem, é antes de tudo um projeto de livro.

Vou me permitir, nesta pequena volta, ler todo um trecho de Proust. Uma reflexão do personagem Bergotte sobre seus livros, que é, em espelho, uma interrogação do próprio Narrador proustiano acerca do seu difícil métier de escritor. Interrogação dramática, diga-se, uma vez que se exprime no momento exato da morte de Bergotte.

[Bergotte] morreu nas circunstâncias seguintes. Por causa de uma crise de uremia sem maior gravidade lhe haviam prescrito o repouso. Lendo, porém, num crítico, que na Vista de Delft de Vermeer (emprestada pelo museu de Haia para uma exposição holandesa), quadro que ele apreciava muitíssimo e julgava conhecer em todos os pormenores, havia um panozinho[1] de muro amarelo (de que não se lembrava) tão bem pintado que era como uma preciosa obra de arte chinesa, de uma beleza completa em si mesma, Bergotte comeu umas batatas, saiu de casa e entrou na exposição. Logo nos primeiros degraus que teve de subir sentiu umas tonteiras. Passou em frente de alguns quadros e teve a impressão da secura e da inutilidade de uma arte tão factícia, e que não valia as correntes de ar e de sol de um palazzo de Veneza, ou de uma simples casa à beira-mar. Enfim chegou diante do Vermeer, de que se lembrava como sendo mais luminoso, mais diferente de tudo o que conhecia, mas onde, graças ao artigo do crítico, reparou pela primeira vez numas figurinhas vestidas de azul, na tonalidade cor-de-rosa da areia e finalmente na preciosa matéria do pequenino pano de muro amarelo. As tonteiras aumentavam, não tirava os olhos, como faz o menino com a borboleta amarela que quer pegar, do precioso panozinho de muro.

“Assim é que eu deveria ter escrito”, dizia consigo. “Meus últimos livros são demasiado secos, teria sido preciso passar várias camadas de tinta, tornar a minha frase preciosa em si mesma, como este panozinho de muro”.  Não lhe passava, porém, despercebida a gravidade das tonteiras. Em celestial balança lhe aparecia, num prato a sua própria vida, no outro o panozinho de muro tão bem pintado de amarelo. Sentia Bergotte que imprudentemente arriscara o primeiro pelo segundo. “Não gostaria nada”, disse consigo, “de vir a ser para os jornais da tarde a nota sensacional desta exposição.”

Repetia para si mesmo: “Panozinho de muro amarelo com alpendre suspenso, panozinho de muro amarelo”. Nisso deixou-se cair subitamente, num canapé circular; subitamente também, cessou de pensar que estava em jogo a sua vida e, recobrando o otimismo, disse consigo: “É uma simples indigestão causada por aquelas batatas mal cozinhas, não há de ser nada”. Nova crise prostrou-o, ele rolou do canapé ao chão, acorreram todos os visitantes e guardas. Estava morto.[2]

É para melhor expulsar essa “secura” de Bergotte — tornando a sua matéria “preciosa” em si, pelo acréscimo de “camadas”, na busca ao pormenor, ao “panozinho”,  à mais pequena parte, ao que escapa ao olhar, ao que somente se concebe como projeto para toda uma vida, e daí a coincidência nada fortuita entre a revelação de uma arte e a circunstância da morte, coincidência assinalada uma vez mais no romance do tempo perdido pelo fecho, que liga a possibilidade de um livro por vir ao término da aventura do Narrador —, é para lutar contra a secura, dizíamos, que a fatura proustiana é a obsessiva. O desejo de escrever, em outras palavras, busca realizar-se em Proust no tormento do acréscimo.

Proust, como ninguém desconhece, escreve frases inacabáveis, atravessadas por intersecções, por comparações, por oposições, por retomadas, por enumerações, em suma: por um princípio de autoverificação, de auto-alimentação permanente.

Eu poderia lembrar ainda, além de Bergotte, toda uma série de mestres-artistas personagens do romance — pintores, músicos, estetas, homens de letras: Elstir, Vinteuil, Ruskin, o empertigadíssimo diplomata Norpois — cuja excelência é asseverada para melhor ser descartada no fim. De forma que é sem modelos, sem mestres, sem paternidade artística que o Narrador de Em busca do tempo perdido está finalmente sozinho no seu desafio de escrever.

Desafio que se inscreve na frase que transborda, que se alonga assim numa inquietude absoluta. Há na dispersão infinita de cada frase proustiana a dúvida de Bergotte morrendo: “é assim que eu deveria ter escrito”.

Alguns críticos, sublinhando essa particularidade incontestável do estilo proustiano, chegaram a propor que as orações proustianas se vertiam mimetizando, mimando a respiração difícil do escritor, um asmático crônico como todos também sabem. Segundo esses críticos — aliás, discípulos tardios do grande Sainte-Beuve, o introdutor do método psicologista, contra quem Proust vai escrever a sua última obra menor antes do romance final, o Contra Sainte-Beuve —, as orações proustianas acompanhariam, na sua extensão, o drama de respirar.

Outros críticos notaram, no mesmo sentido, que o estilo proustiano se determinava pela posição de escrita, tinha a ver com o fato de o escritor trabalhar deitado — o que ele fez realmente nos últimos dez anos de vida, e o que não o impedia de sair muitas vezes para o Ritz parisiense — contaminando assim o texto com a lentidão da doença.

Tudo isso é certo e, mais que certo, talvez, sutil. No entanto, basta sairmos dessa esfera das verdades proustianas “recebidas” para encontrar na massa escrita do romance uma modalidade que é o oposto da lentidão, que é o desmentido interno dessa propensão a estender-se.

Na verdade, surpreendentemente, existe em Proust, convivendo com as orações caudalosas, no limite do fôlego, um estilo ágil, enxuto, curto. Outros estudiosos, atentos a essa outra faceta, menos exposta, tiveram a paciência de repertoriar essas ocorrências mais sintéticas, aliás, por vezes ultra-sintéticas, e chegaram a associá-las a certa vertente século XVII de Proust, a certo modus operandi classicista do escritor. (O classicismo francês, como vocês sabem, é entre outros pontos, e em paralelo às profusões barrocas, uma escola de perfeita concisão.)

Deste outro ponto de vista, as coisas se passariam como se, de repente, o homem que estava revolucionando o gênero romance na entrada do século XX, o homem que estava deslocando a prosa francesa até a modernidade que o automóvel, o cinema, a fotografia e os apartamentos burgueses já haviam num outro plano introduzido, fosse possuído por um gênio moralista, por um demônio maximalista e então ele se põe a escrever como um La Rochefoucauld.

Há alguns anos, alguém coletou, colhendo aqui e ali nas 4 mil páginas desse monumento que é Em busca do tempo perdido, uma farta amostra dessas formas breves proustianas, ou desse Proust sintético. Eu cito algumas delas, a partir de um interessante repertório publicado num dos Boletins da sociedade de amigos de Marcel Proust.

Proust escreve coisas como: “A gente não ama ninguém quando ama”, reflexão à beira do absurdo do Narrador, às voltas com o seu inferno mental amoroso. Ou coisas como esta, para continuarmos no mesmo inferno: “O ciúme não é mais do que uma infinita necessidade de tirania aplicada às coisas do amor”. Ou como esta outra: “O amor é o espaço e o tempo tornados sensíveis ao coração”.[3]

Ora, essas formas sentenciosas — essas verdadeiras pérolas proustianas — não registram só uma inversão estilística. Por coincidência — e é por isso mesmo que elas estão nos interessando — é justamente quando está falando do amor que o escritor investe o modo econômico, e nos fala como por máximas.

Eu vou dizer isso em outras palavras: é quando o amor proustiano entra em cena, e busca ser captado, eclipsando por um momento, numa volta do caleidoscópio, as alentadas incursões do romance em torno da recordação, da memória, da vaidade, do mundanismo, das impressionantes reviravoltas sociais da França sob a Terceira República, das questões estéticas — e na esfera destas últimas da possibilidade de se escrever um romance —, é quando passa destes universos para o universo do amor que o Narrador, mudando de fatura, confisca-se, faz-se o outro de si mesmo.

O que já nos permite suspeitar algo do desejo em Proust — senão talvez no desejo em si. É nas águas turvas do amor — essas que no mito amoroso grego se estremecem com as lágrimas de Narciso, a um só tempo sujeito e objeto de sua própria contemplação, a um só tempo sequioso por fusão e suicidário — que o um, a unidade explode em sombra, em reflexo, se dubla, se parte, se esfola.

Explosão, sim, porque seria impossível pensarmos que, como os moralistas do passado, o autor de Em busca do tempo perdido possa concordar, possa coincidir por um momento sequer com suas próprias sentenças. Para tanto, seria preciso que ele supusesse — o que ele certamente não supõe, o que a sinuosidade extrema da psicologia proustiana não permite afiançar — uma “natureza humana” . Fundo universalizante preso ao qual operasse assim uma espécie de forja dos caracteres.

Mais prudente seria pensarmos que Proust não está verificando nada ao afinar assim a sua escrita, levando-a, via redução, a uma ponta aguda. E isso não só porque as conclusões proustianas são sempre provisórias, e altamente revogáveis, mas sobretudo porque é o próprio escritor quem nos adverte sobre a precariedade de toda bela formulação, da fragilidade dos ditos, ao tomar nota, em seu, projeto de romance, de que “boa parte do que dizemos não é senão uma recitação”.[4] Habitué dos salões parisienses, dos verdadeiramente chiques aos simplesmente esnobes, ele está, aliás, em boa posição para sabê-lo. Na mesma direção, estudando, numa obra importante, o estilo de Proust, Leo Spitzer afirma: “Toda a arte de pintar os homens consiste em Proust na citação”.[5]

De forma que, ao inscrever no romance o que poderia parecer o sentido último do amor, o que o escritor faz é, isso sim, convocar os clássicos que aprendeu, declamá-los, numa lição de maestria mais que de sabedoria. Pois os conteúdos que importam, assim como os da memória, são os involuntários, os afetivos, aqueles em que esbarramos como por milagre, e quase sem querer. O que o escritor faz é interpor a essa aventura linguageira que é antes de tudo o romance do tempo perdido, romance em que se revezam posições de enunciação, o “eu” biográfico, o narrativo, o ficcional, a voz de um outro. Ou — se vocês me permitem essa radicalização — a voz do Outro.

O desejo proustiano, lembrou o professor Gérard Lebrun em sua palestra, é por excelência aquele que vem carregado de stress. Há uma medicalização do amor moderno, uma passagem ao patológico que é sobretudo proustiana, apontava o mesmo Lebrun numa outra conferência, num antigo ciclo da Funarte, Os sentidos da paixão.

Esse stress ligado ao desejar — arquitetado por Lebrun sobre as bases de uma reviravolta semântica que, a partir dos estoicos, faz do prazer um movimento não somente não-natural, mas contrário à natureza, afeto primeiro à esfera da Ética, mais tarde à da Medicina, fazendo-nos passar da virtude ao vício, e do vício ao sintoma mórbido — esse mal-estar, dizíamos, avulta de fato em Proust como um estar doente do outro. Há um agente externo, algo de incontrolado, que vem desencadear o desejo. Não nos dirigimos conscientemente para o desejado, somos empurrados obscuramente para ele. É esse o amor proustiano.

O objeto desejado assume assim os aspectos de um outro perseguidor, persecutório, vale dizer, um outro interior, interiorizado: a outra face de um eu partido em dois, “clivado”, se quisermos apelar para aquilo que o mesmo Lebrun chamou aqui, não sem humor, a “confeitaria vienense” , referindo-se assim ao campo da psicanálise. Um outro perto demais do mesmo, porque resultado do seu próprio descontrole, para ser outra coisa que não uma perturbação da alma.

Eu vou passar, sem mais tardar, ao desejo amoroso proustiano. No amor do personagem Swann por Odette, que vamos encontrar em No caminho de Swann,[6] o Narrador proustiano faz intervir, no ponto mais alto do desejo, o corte, o desencontro mais insidioso:

Quando dava com os olhos no retrato de Odette sobre a mesa, ou quando ia vê-la, [Swann] tinha dificuldade em identificar a figura de carne ou de cartão com a dolorosa e constante perturbação que o habitava. Dizia-se quase com espanto: “É ela!”. Como se de súbito nos mostrassem exteriozada ante os olhos uma de nossas doenças e não a achássemos semelhante ao que sofremos (…) E aquela doença que era o amor de Swann de tal modo se multiplicara, estava tão estreitamente ligada a todos os hábitos de Swann, a todos os seus atos, a seu pensamento, a sua saúde, a seu sono, a sua vida, até ao que ele desejava após a morte, era de tal sorte um só todo com ele, que não lho poderiam arrancar sem o destruir quase por completo: como se diz em cirurgia, o seu amor não era mais operável.

Caído dessa forma nas malhas de um objeto, tudo o que falta ao sujeito amoroso proustiano — tudo o que falta ao Narrador proustiano, que vai repetir em amores essa personagem proto-histórica que é Swann — é precisamente aquilo que a razão maximalista mais secreta, aquilo de que ela mais se vale: de um saber. Saber universal, fundador, anterior. Ora, não há esse saber em Proust. A inteligência proustiana não funda, não antecede, mas é fundada, antecedida pela sensibilidade. “A cada dia eu prezo menos a inteligência”, eis o princípio que abre Contra Sainte-Beuve, para ir desenvolver-se no romance do tempo perdido.

Não-“operável” deve então ser lido nesse trecho de Proust, em que o vocabulário médico, aliás, prolifera, como não-“pensável”, não-“compreensível” , no sentido primeiro, espacial do termo: não-abarcável.

Ao dar a doença amorosa de Swann por não-“operável” o Narrador proustiano, ao contrário do que possa parecer, não está aludindo a uma patologia irremissível. Se fosse assim, o amor de Swann por Odette estaria simplesmente condenado à duração, o que, em matéria de amor, não seria um mau negócio.

A duração, no entanto, é o que há de mais problemático em Proust. Vocês certamente não ignoram que ela é o problema proustiano por excelência. E o tempo proustiano, embora persiga a duração, é sobretudo um tempo que passa, que se perde, aliás, que em larga medida se perde na ociosidade dos salões; às suas leis todo o romance está inapelavelmente submetido, o Narrador proustiano luta, no fundo, contra o relógio.

Ora, dentro desse tempo que tudo sepulta, os amantes proustianos desamam, para voltar mais adiante a experimentar os mesmos tormentos com outros “objetos”. De modo que, se há no romance algo de durável, essa coisa é a propensão maníaca à repetição, e não o sentimento. Não-“operável” é também e sobretudo a asma proustiana, crônica, maníaca. Uma doença que cede e volta, por “intermitência”, irresoluvelmente. Nas “intermitências do coração” de que tanto nos fala o Narrador, o desejo também cessa para recrudescer, repete-se, dubla-se, sem nunca se resolver — sem nunca se “compreender”.

Assim, diante de uma Odette perfeitamente imaginária que, como um tumor maligno, cresceu dentro dele à revelia, Swann deixa de “operar”. De saber, de saber-se, pois é justamente a operação inteligente, neste que é um homem de espírito, um cultor das artes, um crítico, a que primeiro cessa. O romance nos diz, confirmando, que, face à evidência de certas mazelas próprias à sua vida com Odette — por exemplo, a circunstância embaraçosa e dolorosa de ter de pagá-la para estar com ela — Swann já não domina suas faculdades, que refluem num “ataque de preguiça de espírito”, e tão bruscamente, eu cito Proust, “como, mais tarde, depois de instalada a luz elétrica por toda parte, se poderia cortar a eletricidade numa casa”.[7]

Ao nos falar do amor, o moralista proustiano, frasista sem estofo, é assim aquele que menos sabe. O que não deveria surpreender os conhecedores de Proust, informados que estão sobre a falta total de conhecimentos, inclusive literários, que grassa no romance, só entrevisto como possível em seus momentos finais. Do amor, como de tudo o mais em Proust, não há lições a tirar. Essa é, negativa, a única lição. O tempo que passa, afora conduzir o esquecimento, sepultar até mesmo o inesquecível, isto é, a infância, está longe de ser bom conselheiro. As intermitências do coração não preparam nenhum terreno. A experiência acumulada atraiçoa, e o que se afirma, em todos os planos, ligada à possibilidade única da surpresa, que está no cerne da inteligência proustiana, é a decepção.

Inconcluso, irresumível — não-“totalizante”, dirá Deleuze num ensaio famoso, intitulado “Proust e os signos” —, o fôlego proustiano só assim pode compreender, no sentido de circunscrever, todo o vaivém das coisas, inclusive as do amor.[8]

No limite de suas vertiginosas análises do movimento do desejo — e os que leram Proust sabem o quanto o escritor vai ao limite desses movimentos, talvez os mais intrincados que a literatura jamais nos mostrou — resulta impossível arrematar. Vale então o arremate falso, o recitativo, que evoca o gênio clássico em plena crise de saídas. Crise que o Narrador proustiano vai pôr literalmente na boca de Swann, quando o faz dizer, chorando e rindo por causa de Odette: “eu estou ficando um nevropata!”.[9]

A veia maximalista é, portanto, apenas uma voz. Uma voz que vem falar em contraponto, como a do tentador bíblico, esse primeiro demônio interior que nos é proposto, nosso primeiro episódio de loucura, por ordem de entrada em cena, e se é certo que o louco é o que ouve as suas vozes interiores.

Dessa derrisão vêm nos dar testemunho os duplos proustianos. Nós vamos daqui por diante tentar entrar nessa engenharia, já verificada na letra do texto, por um motivo. É que seria impossível abordarmos as amantes proustianas, e através delas o desejo em Proust, sem passar pela fixação, já no primeiro volume de Em busca do tempo perdido, de certas marcas indeléveis deixadas no jovem Narrador pela transmissão da história do desejo de Swann por Odette.

Odette, a mulher que, como ninguém mais ignora, sobretudo depois do filme do alemão Volker Schloendorf, não era o seu “tipo”. Odette, que é por excelência a mulher errada. A nos mostrar, porque desejo há, que a errada é a certa, numa troca inquietante. A nos mostrar, do mesmo golpe, que o desejo pode não ser outra coisa senão um grande equívoco. Equívoco que tem a vocação de se repetir no romance, com Gilberte, com a duquesa de Guermantes, com Albertine, cujos nomes, o anagrama um do outro, parecem feitos para se confundir, e, aliás, confundem-se no momento oportuno.

Há uma máquina de duplos em Proust. O amor de Swann por Odette fixa a estrutura “neurótica” dos amores do Narrador. Nós falávamos em nervos agora há pouco. O neurótico, é bom lembrar, é exatamente aquele que repete, e a cura psicanalítica, que não existia à época de Proust, é a escuta, mediante a transferência amorosa, dessa repetição.

No romance do tempo perdido, o amor do Narrador por Gilberte, nascido à sombra dos jardins dos Campos Elíseos, perfigura o cerco angustioso à duquesa de Guermantes, nas ruas próximas ao seu Hotel de Saint Germain, agitação que se renova com Albertine na praia normanda de Balbec, depois em Paris, num frenesi cujos agudos alcançam as notas mais tocantes daquela pequena frase da sonata de Vinteuil, o “hino nacional” desses amores, música, como está dito no romance, que nem Swann nem o Narrador podem mais ouvir sem se sentir morrer.

Mais facilmente verificável na experiência amorosa, ali onde, colidindo consigo mesmo, o Narrador do romance pode tornar-se subitamente seco, os duplos proustianos estão em toda parte. Assim, se o Pai proustiano tem o hábito compulsivo de consultar o barômetro, o filho aprendiz de escritor nos segreda que, assombrado por esse pai, e querendo escrever um romance sobre o Tempo, acabou se transformando ele próprio num “barômetro vivo”.[10]

Esse movimento projetivo não tem fim. A doença nervosa da tia-avó Léonie irrompe no sobrinho escritor, que se sabe habitado por ela, ao ponto de, exatamente como ela, acabar fechado num quarto, a tecer ficções, quer dizer, no seu caso, a tentar um romance, fixado nos bastidores dos aristocratas assim como a tia nas intrigas da empregada Françoise, perpetradas nos cômodos por trás da cozinha.[11]

No entanto, o jogo de reflexos mais inquietante nessa construção “em espelhos” que é o romance de Proust parece ser aquele que se joga entre Swann e o Narrador. Judeus ambos, principescos os dois, misturando aristocracia e semitismo, propensos ambos à doença nervosa, às artes, a um recolhimento em casa que nos dois casos vai ser contrariado pela tendência ao mundanismo, por tudo isso, Swann é um “duplo” do nosso Narrador.

Swann talvez pudesse ser visto, sob esse aspecto, como aquela sombra, aquele irmão noturno de que nos fala o poema de Musset, La nuit de décembre, que vem citado em epígrafe no Don Juan e o duplo, de Otto Rank.[12]

Traduzidos por mim, os versos do poema que nos interessam aqui dizem o seguinte: “No meu caminho veio sentar-se/ Um infeliz de negro vestido/Igual a mim como um irmão”.

Mas cabe neste caso uma ressalva, e ela tem consequências sobre o que se seguirá. Se o duplo romântico, o duplo fantástico, os analisados por Otto Rank em autores como Hoffman, Stevenson e Heine, mas também em Edgar Poe e Dostoievski, é sempre um reflexo “em exterioridade”, as coisas não poderiam ser senão diversas num moderno como Proust.

Se nos clássicos a imagem do sujeito, projetada para fora, adquire vida própria — há um conto de Andersen, chamado justamente A sombra, em que, descolada do sujeito, uma sombra chega ao requinte de tratar o seu próprio mestre como sombra —, a modernidade literária, que se inaugura miticamente com o “eu é um outro” de Rimbaud (Lettres du voyant), tende a instalar seus duplos no interior da própria subjetividade.

Não há exteriorização do assombramento, forma de conjuração, poderíamos pensar, do mal de ser dois, mas, pelo contrário, entronização da clivagem. Analisando essa questão, René Girard nota, justamente, que, quanto mais de perto, mais de dentro, o outro interfere, mais moderna é a situação romanesca.

Exemplo: madame Bovary que, envenenada por certas leituras, não deseja Rodolphe, mas, bem menos palpável, bem mais constructo imaginário, um nobre que a faça feliz — um príncipe encantado.

Outro exemplo: dom Quixote, cujo verdadeiro duplo não é o escudeiro balofo, mas o Amadis de Gaule, o cavaleiro que Quixote queria ser — aquele que ele está fadado a repetir ridiculamente.

É nessa mediação interna entre o sujeito e o objeto do desejo que está a verdade profunda do “moderno”, nota Girard. O desejo é aqui triangular, na verdade. Ele é atravessado por um terceiro que se interpõe entre “eu” e “tu”. Bovary deseja através das heroínas românticas com que se intoxicou. E todo o grotesco do desejo quixotesco vem da distância entre o mediador, o Amadis, e o cavaleiro da Triste Figura.[13]

O que essas obras mostram — e nisto elas são “modernas” — é que o desejo está longe de se inscrever na natureza mesma das coisas, longe de ser a expressão de uma subjetividade serena, longe de se mover em direção a um objeto numa relação não-problemática entre dois.

Ora, é bem esse o desejo proustiano, e por isso fizemos mais essa volta. Em Proust, como em Dom Quixote, triunfa a sugestão. Nasce dela não só o amor, mas o esnobismo. O esnobe, como se sabe, é um imitador. Vale dizer que ele vive sob o efeito quase mágico de um Outro, cujas prerrogativas pretende. Quanto aos amantes proustianos, estão estreitamente subordinados aos ciúmes, quer dizer, à presença sempre suposta de um rival.

Modelo arcaico, infantil desse desejo sem objeto, pelo menos direto, a paixão de Swann por Odette, de que o Narrador proustiano ouviu falar como de uma vergonha durante toda a sua infância, projeta-se especularmente (especular, vocês sabem, tem a ver com espelho) para À sombra das raparigas em flor, território de Albertine.

Neste segundo volume, o Narrador proustiano, medindo a inconveniência de Odette, e o seu poder de sedução, medindo as muitas Albertine que cabem numa só, medindo sobretudo o irresolúvel do desejo, vai nos dizer: “o amor mais exclusivo por uma pessoa é sempre o amor de outra coisa”.[14] Temos aí, aliás, cunhada em estilo lapidar, uma definição do amor que introduz o tema do duplo interno, ou da triangulação amorosa, instalando entre os amantes “uma outra coisa”.

Mas o que Proust estaria querendo dizer exatamente com isso? Sem dúvida, a melhor maneira de respondermos a essa questão é entrar agora no vivo da história.

O primeiro encontro do casal Swann-Odette acontece num teatro parisiense, onde os dois são apresentados um ao outro por um amigo comum. Pouco mais tarde, Swann estará sofrendo por Odette, estará “doente” dela. Bom motivo para nos perguntarmos então de que maneira ele a vê quando a vê pela primeira vez.

Eu volto a citar Proust:

Ela se afigurara a Swann não por certo sem beleza, mas de um gênero de beleza que lhe era indiferente, que não lhe inspirava nenhum desejo, que até lhe causava uma espécie de repulsão física.[15]

Vocês ouviram bem: “que não lhe inspirava nenhum desejo”. O que é pior é que essa contra-imagem não é só um mal-entendido inicial, não se trata de uma primeira impressão que vai se revelar falsa. Aliás, diga-se de passagem, se as impressões tendem sempre em Proust a ser enganosas, são ainda as primeiras as que mais têm chance de se parecerem com a verdade. Essa primeira impressão é insistente e, se isto existe em Proust, definitiva. Odette não agrada a Swann. Esse aspecto repulsivo do rosto, entre parênteses, já foi alvejado por leituras psicanalíticas, e numa delas Jean-Bellemin-Noel nos propõe, num artigo publicado há alguns anos na revista Poétique,[16] que o rosto assim repudiado, porque repudiado, é o rosto proibido de uma Mãe. A Mãe seria assim o “terceiro incluído” extremo nesse embate de sujeitos, nessa configuração triangular.

Mas vejamos como, depois desse primeiro encontro, que sela uma ligação de atração-repulsão, as coisas se apresentam.

Odette tornou a avistar-se com Swann, depois amiudou as visitas; e sem dúvida, cada visita renovava para ele sua decepção, ele lamentava, enquanto falavam, que a grande beleza que ela na verdade possuía, não fosse do gênero daquelas que o atrairiam espontaneamente.[17]

Até aqui, Swann era um experto — experto com x, um especialista — em mulheres, das patroas nobres ou grão-burguesas às suas camareiras, umas e outras visadas por certa mirada estética, que o mantinham em amores, harmonizado, apaziguado consigo mesmo. É ao escolher Odette que ele deixa de concordar consigo. Proust põe na boca de Swann uma descrição particularmente sádica do rosto da moça encontrada no teatro, descrição eivada de considerações tão agressivas quanto as do próprio Narrador na cama com Albertine, em A prisioneira, onde detecta no rosto da amante “a maldade, a ganância, a velhacaria de uma espiã”, e se pergunta como pôde tê-la recebido em sua casa.[18]

Tinha ela um perfil muito incisivo, uma pele muito frágil, maçãs muito salientes e as feições muito retesadas para que lhe pudessem agradar. Seus olhos eram belos mas tão grandes que deixando-se vencer por sua massa — (eu pediria a vocês que retivessem essa palavra, massa) fatigavam o resto do rosto e davam a impressão de que ela estava cansada ou de mau humor.[19]

É essa, manipulada pelo olhar que esquadrinha, a imagem da mulher desejada. As maçãs muito salientes e as feições muito retesadas, o perfil muito incisivo e a pele muito frágil, nos dão pares de opostos simétricos, em que a energia manipuladora parece afirmar-se particularmente. Parece afirmar-se particularmente porque o que se pode concluir é que, se Odette não agrada, é por tal defeito e pelo seu contrário. O que se tem, na verdade, é o que se põe e o que se tira da “massa”, termo certamente nada inocente aqui neste lugar.

O olhar do amante proustiano trabalha, o que pode significar também que o desejo se elabora — se inventa. No envolvimento de Swann com Odette, há logo mais adiante desta passagem um episódio ilustrativo desse labor, ora contra, ora a favor do objeto, por isso mesmo nunca inteiro, nunca imagem: sempre parcial.

Esse episódio, famoso entre proustianos, consiste basicamente numa falsa analogia. Swann, certa vez, se deixa levar pela impressão de que vê no rosto de Odette, nessa má pintura com que um dia se deparou no teatro, um bom quadro. A obra que está na base dessa comparação — alguns de vocês já sabem — é a Cefora, de Botticelli, tal como aparece num afresco da Capela Sistina.

A analogia é suspeita porque é imprecisa. Já era tempo, monologa Swann, de introduzir Odette nesse mundo mais elevado das criações artísticas que era o seu próprio mundo. Tempo de vê-la resultado do trabalho de um bom pintor. Isso lhe permitiria sentir que não estava perdendo completamente o seu tempo com ela e, além disso, viria quebrar a monotonia da relação, oferecendo a vantagem suplementar de combater o próprio medo por parte de Swann de parecer monótono aos olhos de Odette.

 

Proust escreve:

A expressão obra florentina prestou grande serviço a Swann. Permitiu-lhe, como um título, introduzir a imagem de Odette num mundo de sonhos, a que até então ela não tivera acesso, e onde se impregnou de nobreza. E ao passo que a visão puramente carnal que tivera daquela mulher, renovando-lhe perpetuamente as dúvidas quanto à qualidade do seu rosto, do seu corpo, de toda a sua beleza, enfraquecia o seu amor, aquelas dúvidas foram dissipadas e esse amor assegurado quando teve ele por base os dados de uma estética exata.[20]

Eu sublinho: “a expressão obra florentina prestou grande serviço a Swann”. E mais adiante: “[as] dúvidas foram dissipadas [pelos] dados de uma estética exata”.

Não é a obra florentina que está em jogo, é a expressão. E não é a estética, são os dados. Uma vez mais, Swann manipula seus dados. Os títulos “obra de arte” e “beleza florentina” são atribuídos em exterioridade, na verdade é só a palavra que é chamada a intervir. Nos seus Fragmentos de um discurso amoroso, Roland Barthes, que era um leitor incansável de Proust, chama a atenção para isto: o amoroso entra em monólogo, fala sozinho, se contenta com palavras.[21] É o que faz Swann aqui, segundo nos afiança o Narrador.

Eu gostaria de propor ainda a vocês dois momentos de Swann e Odette, que poderiam ser perfeitamente dois momentos do Narrador e Albertine, senão do barão de Charlus e um de seus amantes, e assim ao infinito, bem de acordo com a circularidade do romance proustiano que começa, vocês sabem, pelo fim.

Trata-se de duas situações amorosas proustianas típicas porque tematizadoras dos ciúmes, essa mola do desejo em Proust. Vamos a elas. Certa noite, Swann acompanha Odette até sua casa. Desta vez, ele não é convidado a ficar, Odette está indisposta. Swann aceita a situação e de bom grado vai embora. Mas logo que chega em casa a situação se reverte. Ela está com outro. Desatinado, volta à casa dela. Depara-se com a janela de seu quarto iluminada… Eu retomo o texto proustiano, e convido vocês a saborearem o ritmo dessa sofreguidão ciumenta, com sua curva ascendente e uma queda espetacular de Swann na realidade, cujo senso o desejo o faz perder.

[Swann] sofria ao ver aquela luz em cuja atmosfera de ouro se movia, por trás dos postigos, o par invisível e detestado: sofria ao ouvir aquele murmúrio que revelava a presença do homem que chegara após sua partida […]. Prestes a bater nos postigos, sentiu um momento de pejo ao pensar que Odette ia saber que ele tivera suspeitas, que voltara, que se prostrara na rua […]. Mas o desejo de conhecer a verdade era mais forte e pareceu-lhe mais nobre. Ergueu-se na ponta dos pés. Bateu. Não tinham ouvido, bateu de novo, a conversação parou […]. Foi aberta a janela, depois os postigos […]. Diante dele, à janela, achavam-se dois senhores idosos. Swann tinha batido na janela errada.[22]

A cena é de vaudeville. Há todo um teatro de boulevard no romance proustiano. E, como vocês vêem, o ciumento intriga contra si mesmo. Odette estava de fato dormindo. Acostumado a encontrar a janela iluminada quando vinha vê-la, no começo, o amante não tem dúvidas: vê a janela e ela está iluminada.

Mas esse que vê a janela de Odette assim iluminada, banhada “numa atmosfera de ouro” como diz Proust, é um Swann outro. Um Swann pregresso, de quando os amores com ela iam bem — o que de resto, na época, pouco lhe importava. Agora, ela já não o recebe mais como antigamente, e há efetivamente a sombra de um rival: o medíocre marquês de Forcheville.

Com ou sem Forcheville, o que temos aqui então, frente às luzes alucinadas do apartamento de Odette, não por coincidência errado, é um Swann passado, de que o Swann presente está alijado. E ali estão, estacados na porta da rua — rua Laperouse chama-se a rua de Odette, e basta a Swann ouvir esse nome em sociedade para sentir um punhal no coração —, ali estão dois sujeitos a um só tempo: o convocado e o banido.

O nosso segundo momento, verificando a incidência da mesma cisão, vai no sentido contrário, indica uma traição flagrante, e não mais imaginária. Certa tarde, Swann resolve passar pela casa de Odette numa hora em que nunca a visitava. O porteiro lhe diz que ela não está em casa. Swann toca a campainha e efetivamente ninguém abre. Tenta olhar pela vidraça o que se passa ali dentro, espião e policial como todos os amantes proustianos. Não vê nada. Vai embora e, como da outra vez, volta. Toca outra vez a campainha. Odette abre. Ela lhe diz que estava dormindo. Swann é então convidado a entrar e passa algum tempo ali dentro. Na hora de ir embora, Odette o retém vivamente, segurando-o pelo braço. Swann percebe que ela está nervosa: a vivacidade do gesto é como uma confissão de culpa, daquelas que Albertine faz também, sem querer, com um menear de cabeça, um crispar dos lábios. No mesmo instante, confirmando as suspeitas, a porta da entrada bate e um carro dispara na rua. Visivelmente havia alguém na casa, e Odette estava visivelmente tentando esconder esse alguém, desde o começo.[23]

As suposições desta vez se constatam, vale dizer, cessam de ser imaginárias, ficcionais. Ora, Swann, que no exemplo anterior simplesmente via o que não era, passa aqui ao contrário: não vê o que é. O Narrador nos diz que uma grande benevolência o invadiu. A obviedade, a transparência do fato o desrealizam. A energia delirante reflui face à traição real que estanca o desejo de interpretar.

Os ciúmes são uma função que se alimenta de signos, não de provas. A prova: é sobretudo morta que Albertine exaspera o desejo do Narrador de saber a verdade. É sobretudo no passado, quando não há mais provas concretas a tirar, que a traição mais cruel se instala.

E caberia aqui uma observação. Se no romance clássico a descoberta do fato do adultério implica uma inteligência do caso, capaz de modificar substancialmente a ação, como no caso de Madame Bovary, por exemplo, em Proust as provas se empilham, contra e a favor, e não se saberá nunca se, de fato, Odette teve um caso com o barão de Charlus, ou com a execrável senhora Verdurin, se o príncipe de Guermantes se encontrava realmente com o violinista Morel em certo bordel da Normandia, nem sobretudo o que poderia estar fazendo Albertine durante os seus passeios de automóvel pelos arredores de Paris, e apesar de o Narrador fazê-la seguir por terceiros, em cujos relatos nunca se decidia a acreditar.

Mais inquietante, no entanto, é notar que o próprio desejo pode desrealizar-se na aproximação ao objeto. Em outras palavras: que o objeto pode evaporar-se, depois de. longamente cercado, quando, ao cabo de uma perseguição, ele entra finalmente no campo do olhar. Então, vai ser necessário novamente pôr a máquina do imaginário em funcionamento, em busca ainda, em busca sempre, de outra coisa.

Eu passo agora a Albertine, essa Odette do Narrador proustiano. Nós estamos em À sombra das raparigas em flor, mais precisamente na praia de Balbec, e o Narrador está prestes a ser apresentado à bicicletista morena que mal se distingue, no começo, do grupinho de moças (em francês: la petite bande) cujo charme coletivo tanto o perturbou, concentrando-se depois, aos poucos, mas nunca completamente, nunca decididamente, numa delas — a da bicicleta justamente, Albertine.

Ao se fixar no bando, o Narrador não vê mais sentido em sua permanência na praia senão o de persegui-lo. E, um dia, dá-se o milagre. Perto do ateliê do pintor Elstir, para cujos lados lhe contrariava ir, porque esses lados pareciam justamente distantes da possibilidade do encontro desejado, ele se vê de repente praticamente frente às moças. O pintor, seu amigo, corre para cumprimentá-las. Logo ele vai chamar o nosso Narrador, forçando assim uma passagem vertiginosa da formação fantasmática para outra coisa. Eu cito novamente Proust, captando o solilóquio do seu personagem Narrador:

Desnecessário dizer que a apresentação que se seguiu não me causou prazer algum, nem se me afigurou de qualquer gravidade. Quanto ao prazer, naturalmente só o conheci um pouco mais tarde quando, no hotel, sozinho, me tornei eu mesmo. Com os prazeres, dá-se o mesmo que com as fotografias. O que apanhamos na presença da criatura amada não passa de um negativo: revelamo-lo mais tarde, uma vez em casa, quando encontramos à nossa disposição essa câmara escura interior cuja entrada é proibida enquanto há gente à vista.[24]

Mas, na sequência, mesmo esse prazer retardado, solitário, à distância do objeto, é retirado. Enfocado, o objeto se eclipsa, o Narrador é o primeiro a dizê-lo:

Desde esse primeiro dia, quando ao voltar pude ver a lembrança que comigo trazia, compreendi que passe de mágica fora à perfeição executado, e como havia eu conversado um momento com uma pessoa que, graças à habilidade do prestidigitador, sem nada ter da que eu seguira por tanto tempo à beira-mar, lhe fora substituída.[25]

O objeto do desejo proustiano é fugidio. E note-se que não há romantismo nenhum nessa imaterialidade da mulher amada, uma vez que não há idealização. Se as Albertine e as Odette de carne não se confundem com o desejo que despertam é apenas porque o entretêm diabolicamente, fugindo. A relação é assim no negativo, duplamente: o objeto é um outro, que me escapa ainda. O sequestro do objeto, como lembra Deleuze, é o corolário dessa situação. Albertine furta-se — ao olhar, às garras —, eu vou interceptá-la, fechá-la em minha casa.

Para melhor evaporar-se, não bastasse, o objeto é sexualmente fugaz. Em outras palavras, o sujeito amoroso proustiano consome-se na dúvida de uma traição do outro com o mesmo sexo. Aliás, é precisamente ao enfocar a homossexualidade — a masculina como a feminina — em Sodoma e Gomorra que o Narrador vai nos falar em “seres duplos”.[26]

Há um “ser ou não ser” proustiano que, sob a égide da homossexualidade, converte-se num “ser ou não ser desses”: os da raça maldita, os que amam o mesmo sexo, e nunca o confessam. Querendo homenagear a enorme sensibilidade artística do barão de Charlus, sua notória ligação com o “cenáculo das artes”, o senhor Verdurin esbarra inadvertidamente na ferida: “Logo às primeiras palavras que trocamos, compreendi que o senhor era um desses”, diz Verdurin. E o romance nos diz que, ao ouvir tal menção, o barão, que dava a essa locução um sentido bem diverso, teve como que um sobressalto.[27]

A homossexualidade proustiana — a que mais espicaça os ciúmes — é complexa. Deleuze fala numa “transexualidade”. E com razão: todos os personagens dessa portentosa orquestração que é o romance do tempo perdido são suscetíveis, neste terreno, de incorrer em suspeita. Todos menos o nosso Narrador que, como lembra um outro estudioso importante de Proust, Serge Doubrovski, nunca faz amor em cena e, sintomaticamente, escolheu para si o “sexo dos anjos”.[28]

No volume intitulado A prisioneira, o barão de Charlus revela ao sorbonista Brichot que a estatística da homossexualidade é de três para dez.[29] O desejo proustiano busca, assim, nas Albertine, para além de tudo aquilo que o olhar não dá a ver, nem o sequestro do objeto a ter, o homem na mulher, a mulher no homem, configurando, no limite dessas oscilações, no limiar dessas fronteiras, um sistema de objetos parciais.

O objeto é sempre parcial porque o desejo, tão logo nele esbarra, insatisfeito, logrado, já é desejo de outra coisa. Desejo do desejo então, como na solidão narcísica. É sobre si mesmo que o amoroso está debruçado quando assombrado pelo seu outro. O destino narcísico, diz-se em psicanálise, é subjacente a todas as nossas escolhas objetais.[30] O objeto, neste caso, ocupa e reverencia um lugar falso. É isso o que nos mostra também a fina psicologia proustiana.

O amante de seu reflexo — Narciso — tem duas saídas. Projetar-se inteiramente num outro idealizado, mirar-se nele, num esvaimento, numa delegação dolorosa — e ao mesmo tempo deliciosa de si —, nessa vertigem de identidade de que nos falam os poetas do amor.

Esse outro amável, ideal, é, por delegação narcísica, comparável ao Supremo Bem. Ele é metáfora do sujeito, analógico ao seu ideal, imagem por isso mesmo acabada, inteira. Entre as inúmeras voltas possíveis do caleidoscópio proustiano, nós temos, aliás, um exemplo desse tipo de amor sublime, amor-fusão. Trata-se — narrado em O caminho de Guermantes — do amor do marquês de Saint-Loup por Raquel. A “Raquel-quand-du-seigneur”, como a chamava o Narrador, à época em que a conheceu, bem antes de Saint-Loup, num bordel, “sorrindo cheia de impertinência para os michês que lhe eram propostos”. Saída de um meio social ainda mais turvo que o de Odette, “pas jolie”, incapaz de entender sequer a alusão à ópera de Halévy, razão do seu apelido, e definitivamente indecisa entre a honestidade e a prostituição, Raquel detém, como Odette, as possibilidades todas do torpe.

Mas, se essa virtualidade negativa salta à vista da família aristocrática de Saint-Loup — e mais que isso estarrece o próprio Narrador: “eu via tudo quanto a imaginação humana pode pôr atrás de um palminho de cara como o daquela mulher, se foi a imaginação que a conheceu primeiro”, observa ele a propósito do engodo,[31] Robert de Saint-Loup irrompe no romance como o único sujeito amoroso perfeitamente iludido, vale dizer, redondamente enganado. Em outras palavras: plenamente transportado para o seu Outro. Em Raquel, Robert não vê senão o que de melhor quer para si. Ela lhe cabe como uma luva, desposa-lhe as formas: ela é Robert. Identificação plena, amante, benevolente, que leva o Narrador a ponderar: “Ele havia dado mais de um milhão para ter […] aquilo que me fora ofertado por 20 francos”. E a arrematar:

Olhando-a ambos, Robert e eu, não a víamos do mesmo lado do mistério (…). Não era Raquel (…) que me parecia coisa de somenos, era o poder da imaginação humana, a ilusão sobre a qual repousavam as dores do amor que se me afiguravam grandes?[32]

Ponderação que aponta para o sono dos amantes benevolentes. Igualmente hipnótica, a segunda saída, a de Swann, nos parece ser, entretanto, a dominante proustiana. O enamoramento, o desejo é sem ilusões. O arrebatamento amoroso não remunera Narciso, a identificação é de ódio. O outro desejado não é o que se quer ser — Odette é vulgar, infiel, inamistosa e, não bastasse, quando Swann a encontra, já está “passada”.

O outro desejado é o que se quer ter. A relação é agressiva. Por isso, a hipnose amorosa proustiana é, paradoxalmente, vigilante. O olhar desejante se enleva e critica, a um só tempo. O êxtase não é um transporte, a ilusão é “desfascinada”. O olhar que em Odette se pousa nela não se repousa. O desejo está assim fadado a ser aquilo que o Narrador proustiano não cessa de dar por uma “agitação”.

A figura neste segundo caso não é a metáfora, etimologicamente, como vocês sabem, um transportar. Linguisticamente uma condensação de significados, por extensão, a possibilidade de um outro todo ele igual ao mesmo.

A figura é a metonímia, que opera por justaposição de significados —, vela por barco segundo o exemplo clássico. Impossibilidade do todo, alusão à parte, ao parcial. Do outro eu não posso ter senão pedaços, fetiches, a imperfeição.

Aproximação enlouquecida que, por isso mesmo, está sempre se relançando. Albertine, admite o Narrador em A prisioneira, é “superposição de imagens sucessivas”.[33] Assim também, o próprio Narrador, captando-se numa série de “eus” possíveis, incompletos, diversos, é legião. Em A fugitiva está escrito: “nosso eu é edificado pela superposição de estados sucessivos”.[34]

Superposições essas, note-se, que não dão uma boa química, que não logram amalgamar as diferentes estratificações, os diferentes estados de que se formam. O Narrador proustiano se dá pressa em explicar, como para nos dissuadir de qualquer otimismo eventual, que essa formação é eruptiva, que “levantamentos” dela enviam eternamente camadas à superfície.[35]

Eu vou terminar com Proust. Notem quantos estados possíveis, logo quantos sujeitos, logo quantos objetos se encadeiam — ou se desencadeiam — nessa sequência que nos traz de volta às… raparigas em flor, com as quais o Narrador está uma vez mais prestes a se chocar:

A certeza de ser apresentado às moças teve como resultado não só fazer-me fingir indiferença mas senti-la realmente. O prazer de conhecê-las, como agora já era inevitável, comprimiu-se, reduziu-se, pareceu-me muito menor do que o de falar com Saint-Loup, jantar com minha avó e fazer pelos arredores excursões que decerto lamentaria abandonar pelo convívio com umas pessoas que pouco deviam interessar-se pelos monumentos históricos. Além disso, o que diminuía o prazer que eu ia fruir não era só a iminência; senão também a incoerência de sua realização. Umas leis tão precisas como as da hidrostática mantêm a superposição das imagens que formamos numa ordem fixa e que se transforma quando se aproxima o acontecimento. Elstir ia chamar-me. Mas não era da maneira como muitas vezes imaginei na praia ou em meu quarto que eu havia de conhecer as moças. O que ia suceder era outro acontecimento para o qual não estava preparado. Agora não reconhecia nem meu desejo nem seu objeto…[36]

Notas

[1] Mantemos aqui, preciosa, a tradução de Manuel Bandeira e Lourdes de Souza de Alencar. Panozinho verte o francês pan, “parte”.

[2] A prisioneira, São Paulo, Globo, 1988, p. 172.

[3] Bulletins de la société des amis de Marcel Proust et de Combray, , 1960, n. 10.

[4] A prisioneira, p. 99.

[5] Leo Spitzer, “Le style de Marcel Proust”, in Etudes de style, Paris, Gallimard, 1970, p. 439.

[6] No caminho de Swann, V .1:Um amor de Swann, pp. 297-8.

[7] No caminho de Swann, p. 261.

[8] Gilles Deleuze, “Antilogos”, in Proust et les signes , Paris, PUF, 1970.

[9] No caminho de Swann, p. 305.

[10] A prisioneira, p. 71.

[11] Idem, ibidem.

[12] Don Juan et le double, Paris, Petite Bibliothèque Payot, 1973.

[13] René Girard, Mensonge romantique, vérité romanesque, Paris, Grasset, 1971, p. 100.

[14] À sombra das raparigas em flor, p. 325.

[15] No caminho de Swann, p. 194.

[16] Jean Bellemin-Noel, “Psychanalyser le rêve de Swann”, in Revue Poétique, 1971, n. 8.

[17] No caminho de Swann, p. 195.

[18] A prisioneira, p. 72.

[19] No caminho de Swann, p. 194.

[20] Idem, p. 221.

[21] Roland Barthes, “Comment est fait ce texte”, in Fragments dun discours amoureux, Paris, Seuil, 1977.

[22] No caminho de Swann, p. 265.

[23] No caminho de Swann, p. 270 e subsequentes.

[24] À sombra das raparigas em flor, pp. 356-7.

[25] Idem, p. 358.

[26] O caminho de Guermantes , p. 325.

[27] Sodoma e Gomorra, p. 326.

[28] Serge Doubrovski, La place de la madeleine — écriture et phantasme chez Proust, Paris, Mercure de France, 1974, p. 133.

[29] A prisioneira, p. 274.

[30] Julia Kristeva, Histórias de amor, São Paulo, Paz e Terra, 1988, p. 42.

[31] O caminho de Guermantes , p. 142.

[32] Idem, p. 144.

[33] A prisioneira, p. 62.

[34] A fugitiva, p. 118.

[35] Idem, ibidem.

[36] À sombra das raparigas em flor, pp. 342-3. Grifo nosso.

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