2014

As formas do silêncio

por Newton Bignotto

Resumo

Na tradição ocidental, o silêncio foi muitas vezes tomado como uma forma plena da palavra. Experiências vividas por escritores, músicos, pensadores e místicos algumas vezes os conduziram a preferir o silêncio ao burburinho dos signos como uma maneira de desvendar a natureza das descobertas que queriam comunicar. Por isso, o ato de silenciar, longe de ser uma negação da palavra, representou para pensadores como Nicolau de Cusa e Wittgenstein uma tentativa de explorar as fronteiras da linguagem; um desejo de ir além do conhecido e de suas expressões tradicionais. Nessa lógica, silêncio e palavra são faces de uma mesma moeda, são gestos que querem significar algo e estão mutuamente implicados, pois como afirma Merleau-Ponty em seu ensaio “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”: “Há, pois, uma opacidade da linguagem: que nunca cessa para dar lugar a um sentido puro, ela só é limitada pela linguagem e o sentido aparece nela envelopado nas palavras”. Essa dialética entre o dito e o ocultado, no entanto, não deve induzir a pensar que o homem só se mostra por inteiro quando silencia. Como adverte o pensador francês: “A significação sem signo, a coisa mesma, esse máximo de clareza, seria o apagamento de toda clareza, e o que podemos ter de clareza não está no começo da linguagem, como uma idade de ouro, mas ao final de seu esforço”. Se silêncio e linguagem fazem sentido juntos, é preciso estar atento aos acontecimentos históricos que os dissociam, fazendo do silêncio uma punição e da palavra a expressão do terror.

É nessa chave que podemos compreender uma parte importante da história contemporânea, eivada de violências e destruições, que distanciaram os homens de sua busca pelo sentido, para instalá-los no que Arendt chamou de vazio de pensamento.

No curso do século 20, muitos homens e mulheres foram conduzidos à morte nos campos de extermínio sem que tivessem direito à palavra. Banidos do mundo pela lógica da pura força, também foram expulsos do território da memória, que permite à linguagem inscrever-se no tempo da duração. E a isso, que, aliás, não se restringe ao passado, deve-se perguntar assim: o que ocorre com a palavra quando o silêncio deixa de ser seu par dialético, para se transformar no signo da morte? Nesse limite da condição humana, ainda seria possível falar de significado do silêncio? Ainda é possível esperar que a palavra reinstaure o movimento de criação do humano, quando tudo parece perdido? Para abordar esses temas, é preciso que se reflita sobre um conjunto de escritos descobertos sob a terra nos terrenos dos campos de concentração e extermínio de Auschwitz e de Birkenau, entre 1945 e 1980. De autoria de prisioneiros, que serviam em unidades especiais encarregadas das tarefas mais difíceis, eles constituem testemunhos últimos de um grupo de homens que, não tendo sobrevivido ao massacre, lançaram por meio da palavra um grito para além de seu tempo na esperança de que pudessem se manter no mundo do homens, mesmo quando o silêncio da morte os teria condenado ao esquecimento. Esses escritos levam a pensar que, assim como a palavra é sempre uma abertura para o outro, as formas do silêncio também o são. É preciso, pois, dedicar-se a escritos como os de Zalmen Gradowski e de Lejb Langfus. O primeiro escondeu um manuscrito perto do crematório de Birkenau, no qual relata acontecimentos anteriores à sua entrada no campo de concentração, como os massacres efetuados no leste europeu pelas tropas nazistas, assim como suas primeiras impressões do inferno de Auschwitz. Membro ativo da resistência no campo, ele dedicou seu escrito à sua família exterminada desde sua chegada e assim adverte a quem poderia encontrar suas páginas tingidas por forte emoção: “Aquele que encontrar esse documento saiba que está de posse de um importante material histórico”. Já Langfus foi transferido do gueto de Maków para Auschwitz em 1942. Seus escritos foram encontrados depois da guerra em estado de decomposição; mesmo assim, dão a entender o esforço de manter a palavra viva, quando o silêncio da morte ronda a existência daqueles que no curso do processo de deportação tomam contato com uma realidade que parece impossível de ser narrada.


Em No coração das trevas, Conrad narra a viagem de Charles Marlow ao interior do que foi o Congo Belga à procura de um chefe de posto, Kurtz, que estava doente e devia ser resgatado, pois se tratava do mais eficiente funcionário de uma companhia de comércio de marfim. Cheio de simbolismo, o livro nos leva a pensar sobre a fronteira entre o silêncio e a fala que se situa nas regiões mais áridas da condição humana. Essa estranha viagem ao coração de um continente devastado pelos efeitos da experiência colonial europeia é também um mergulho nas regiões mais escondidas da psique humana. No curso de uma narrativa clara e ao mesmo tempo povoada de mistérios, Conrad nos coloca diante de uma questão crucial: como narrar o indizível? Essa pergunta pode parecer retórica quando dirigida às experiências corriqueiras da existência, mas torna-se crucial quando as referências do cotidiano se esvaem para dar lugar a um mundo sem balizas, no qual a palavra e sua ausência parecem se confundir.

A existência desse território impreciso e ao mesmo tempo essencial se delineia no romance quando o barco conduzido pelo narrador se aproxima do lugar onde habita Kurtz. Impossibilitado de continuar, envolto em uma névoa que impede o comandante de ver as margens, os tripulantes são surpreendidos por gritos cujo sentido lhes escapa. As brumas parecem remeter a um lugar e a um tempo inidentificáveis, que expõem um medo primordial que não parece possuir um objeto preciso, mas que se espalha por todos os poros da existência.

Não sei, diz Marlow, como os outros foram tocados. Para mim foi como se a própria bruma tivesse gritado, tão inesperada e aparentemente sem direção surgiu um clamor lúgubre e tumultuado. Culminou com uma explosão precipitada de gritos quase intoleravelmente excessivos, que pararam bruscamente, deixando-nos petrificados em posições ridículas, na escuta obstinada de um silêncio quase tão terrível e excessivo[1].

Estamos acostumados em nossas vidas cotidianas a separar a palavra do silêncio. Ficamos quietos quando nos parece necessário, ou quando somos impedidos de nos comunicar, mas é na palavra que encontramos nosso lugar no mundo. Essa oposição parece se alimentar da identificação da morte com o silêncio e talvez seja por isso que falamos tanto em nossos dias (mesmo sem dizer grandes coisas), como se o ruído de nossas palavras pudesse ludibriar o tempo e fazer parar a marcha inevitável para o fim. Nessa lógica, a dialética entre a prosa e o silêncio parece sempre se concluir com a afirmação da supremacia do dito, pois apenas nele reconhecemos sentido e podemos compreender o silêncio. No próprio esforço para deixar algo para as gerações vindouras, ecoa um desejo de imortalidade, que em nossos dias se resume cada vez mais ao desejo de preservar o patrimônio ou os traços mais salientes de nossos egos inflados pela superficialidade de uma sociedade que faz do consumo a fonte de criação da identidade pessoal.

O que Conrad nos ajuda a compreender é que palavra e silêncio só fazem sentido juntos. Os gritos são tão irreconhecíveis quanto seu desaparecimento. No romance, quando eles se tornam o sinal de um ataque das populações ribeirinhas à expedição intrusa, sua ausência também adquire outro significado, acompanhando um movimento de compreensão que desvela novos horizontes do possível. Enquanto o barco esteve parado, o mundo ficou em suspenso à espera de um sentido, que parecia não poder ser retirado de nenhuma realidade anterior. “O resto do mundo não estava em lugar algum – diz Marlow -, tanto quanto nossos olhos e orelhas estivessem concernidos. Partiu, desapareceu, varrido sem deixar um murmúrio ou uma sombra”[2].

Essa parada nas brumas nos ajuda a formular nossa questão sobre o silêncio e a prosa do mundo de um ponto de vista mais radical do que aquele sugerido pela análise das situações corriqueiras do cotidiano. De fato, na tradição ocidental o silêncio foi muitas vezes tido como uma forma plena da palavra. Experiências vividas por escritores, músicos, pensadores e místicos algumas vezes os conduziram a preferir o silêncio ao burburinho dos signos como uma maneira de desvendar a natureza das descobertas que queriam comunicar. Por isso, o ato de silenciar, longe de ser uma negação da palavra, representou para alguns pensadores uma tentativa de explorar as fronteiras da linguagem; um desejo de ir além do conhecido e de suas expressões tradicionais. Nessa lógica, silêncio e palavra são faces de uma mesma moeda, são gestos que querem significar algo e estão mutuamente implicados, pois, como afirma Merleau-Ponty em seu ensaio “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”: “Há, pois, uma opacidade da linguagem: que nunca cessa para dar lugar a um sentido puro, ela só é limitada pela linguagem e o sentido aparece nela envelopado nas palavras”[3]. Essa dialética entre o dito e o ocultado, no entanto, não deve nos conduzir a pensar que o homem só se mostra por inteiro quando silencia. Como adverte o pensador francês: “A significação sem nenhum signo, a coisa mesma, esse máximo de clareza, seria o apagamento de toda clareza, e o que podemos ter de clareza não está no começo da linguagem, como uma idade de ouro, mas ao final de seu esforço”[4].

Nesse sentido, pensar a dialética entre silêncio e palavra nas fronteiras de um mundo envolto em brumas não é uma maneira de desqualificar a pesquisa de seu significado nos momentos mais simples da vida cotidiana, ou nos lugares mais elevados das artes. Aceitas as ponderações de Merleau-Ponty como ponto de partida, podemos dizer que, da mesma forma que a palavra só tem sentido ao final de um processo, o silêncio só nos interpela quando é incorporado à vida e não quando serve de metáfora para a morte. Nesse movimento, somos levados a reconhecer que, assim como não podemos falar da palavra no singular, não podemos tomar o silêncio como algo simples e único. No lugar do silêncio como absoluto negativo, preferimos falar das formas do silêncio de sua multiplicidade, que acompanha a variedade da palavra e da expressão.

Essa multiplicação de sentidos, no entanto, nos obriga a uma escolha para não cairmos na armadilha de um relativismo tosco que, negando sentido aos problemas postos pelas situações extremas da vida, pelo risco que comportam de nos conduzir ao terreno ambíguo da metafísica, prefere se refugiar no senso comum, na certeza de que nele estamos em terreno sólido, mesmo se no mais das vezes só estejamos autorizados a dizer banalidades sobre as formas do existente. Ora, a importância do problema do silêncio e da palavra é que ele diz respeito tanto às situações mais comuns da existência quanto a seus extremos. Neste texto vamos nos ocupar apenas de casos-limite na esperança de que com isso estejamos mais próximos de abordar de forma fecunda a questão das mutações, que afetam e modificam nosso tempo e que têm sido o eixo das reflexões comandadas por Adauto Novaes.

Na fronteira evanescente da existência, podemos falar de pelo menos duas formas extremas do silêncio: a do êxtase e a do horror. Em ambos os casos interessa-nos fugir da palavra organizada pela gramática do senso comum, para explorar os desvãos de um tempo que se nega a entregarmos o sentido de suas transformações.

Nessa busca nos confins da palavra, a primeira forma de silêncio que nos interessa é aquela dos místicos e dos filósofos, mas também a da literatura. Trata-se de um silêncio que se segue ao êxtase e que se nega a livrar seu significado para os que permanecem no conforto do burburinho cotidiano das opiniões. Para ajudar a pensá-la, vamos recorrer a um texto de Jorge Luis Borges de seu livro El Aleph. O texto se chama “A escritura do Deus”[5] e começa pela identificação do narrador Tzinacán, “mago da pirâmide de Qaholom”, e do lugar onde se encontra: uma prisão feita de pedra, na qual existe um jaguar na cela ao lado[6]. Encarcerado há muitos anos, ele definha no calabouço, amparado por suas lembranças e por sua magia. Dentre suas recordações, a mais importante dizia respeito aos desígnios de seu deus. “Prevendo que no final dos tempos ocorreriam muitos infortúnios e ruínas, ele escreveu no primeiro dia da criação uma sentença mágica capaz de conjurar todos esse males”[7]. O problema, diz o mago, é que “ninguém sabe onde ele a escreveu, nem com quais caracteres, mas consta que ela subsiste, secreta, e que será lida por um eleito”[8]. Mesmo preso, o mago sabe que pode se empenhar em encontrar essa fórmula, pois ela nada tem a ver com a linguagem comum. Ao mesmo tempo isso lhe dá vertigem, pois ela pode estar escondida em qualquer lugar da Terra.

No texto de Borges, o silêncio da prisão não impede o narrador de buscar nas coisas existentes o segredo dos tempos. Meditando sobre elas, ele chega a se desesperar de encontrar o segredo do deus, pois, um deus

[…] só pode dizer uma palavra que contém a plenitude. Nenhuma voz articulada por ele pode ser inferior ao universo ou menos que a soma do tempo. As palavras pobres dos homens, “todo”, “mundo”, “universo”, são sombras, simulacros dessa palavra que equivale a uma linguagem e tudo o que ela pode conter[9].

Tentando desvendar na pele do jaguar os sinais deixados pelo deus, Tzinacán chega às portas da loucura, até que um dia

ocorreu o que não posso esquecer nem comunicar. Ocorreu a união com a divindade, com o universo (não sei se essas palavras diferem). O êxtase não repete seus símbolos. Há os que viram Deus em um reflexo, outro o percebeu em uma espada ou nos círculos de uma rosa. Eu vi uma Roda muito alta, que não estava nem diante de meus olhos, nem nas minhas costas, nem a meu lado, mas em todos os lugares ao mesmo tempo[10].

A plenitude do êxtase é ao mesmo tempo a descoberta da linguagem do absoluto. Pronunciar a fórmula mágica teria conduzido o mago ao cume do poder e ao governo de todas as coisas. A linguagem do deus anularia o silêncio e romperia as fronteiras do humano, pois, “quem entreviu o universo, quem entreviu os ardentes desígnios do universo não pode mais pensar em um homem, em suas felicidades triviais ou em suas desventuras, mesmo se esse homem for ele mesmo”[11]. Mas o mago sabe que não pronunciará jamais as catorze palavras. Nas fronteiras do êxtase, ficar em silêncio é uma maneira de recuperar a própria humanidade. Diante do absoluto, negar-se a falar não é uma forma de arrogância e nem de humildade. O silêncio recupera o místico para sua condição de ser finito, reinstaurando a dialética entre o dito e o não dito. Nesse território inefável, ele é o sinal do humano e de seus limites.

Em pleno século XV, Nicolau de Cusa, um herdeiro da rica tradição mística medieval alemã, partiu à procura dos sinais inscritos na pele do jaguar armado com a filosofia e a matemática. Em seu livro A douta ignorância[12], ele abandona, no entanto, as imagens e metáforas presentes nas obras de seu predecessor, mestre Eckhart, para se servir dos símbolos matemáticos, que segundo a tradição platônica são capazes de nos conduzir para o terreno da verdade. Assim como o mago de Borges, Nicolau de Cusa não estava preocupado em decifrar o significado das coisas terrenas, mas aproximar-se do infinito, que aos olhos dos homens parece a forma mesma de Deus. Quanto mais ele avança em sua busca, mais a linguagem cotidiana parece inadequada. Nessa procura pela verdade, Nicolau de Cusa se interroga sobre as diferenças existentes entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno. No nível da percepção imediata do mundo, parece-nos que não podemos nos enganar e que, com bons instrumentos, sempre saberemos dizer qual objeto é maior do que o outro. Quando se trata de comparar grandezas muito distintas, o senso comum parece dizer-nos que nada é mais fácil, pois os sentidos não podem se enganar.

Essa maneira de ver as coisas pode ser útil em nosso dia a dia, mas será que continua a valer quando aumentamos indefinidamente as quantidades, ou quando as reduzimos? Máximo absoluto e mínimo absoluto diferem realmente? O pensador renascentista insiste, na esteira da tradição platônica, que a matemática é uma ferramenta importante na busca das verdades eternas[13]. Ao mesmo tempo, ele vê que uma das tarefas mais importantes da filosofia é a de descobrir os limites de todas as formas de linguagem, para evitar que os sentidos nos enganem. Assim é preciso, na busca pelo significado das coisas, levar em conta que “a verdade não é suscetível de mais ou de menos, ela é de uma natureza indivisível, e tudo o que não é o verdadeiro é incapaz de medi-la com precisão”[14].

O processo de conhecimento do mundo e de seus segredos esbarra, portanto, em limites inultrapassáveis. Quanto mais deixamos para trás nossas percepções corriqueiras, mais claro fica que as distinções que nos guiam são limitadas e dizem respeito apenas a uma pequena parte da existência. “O máximo simples e absoluto”, diz Nicolau de Cusa, “que é o que pode existir de maior, porque ele é muito grande para ser apreendido por nós, pois que ele é a verdade infinita. Ela é atingida por nós sem que possamos realmente apreendê-la”[15]. Nesse processo de busca da verdade os contornos da realidade vão se dissolvendo. Máximo e mínimo coincidem, as figuras matemáticas se fundem, a unidade coincide com o máximo. “Ora”, conclui o filósofo, “isso ultrapassa toda nossa inteligência, pois ela não pode, em princípio, combinar os contraditórios pela via da razão, pois caminhamos entre os objetos que a natureza manifesta, e nossa inteligência, tropeçando, pois está longe dessa força infinita, não pode ligar os contrários separados por um infinito”[16].

Podemos pensar que a consequência desse raciocínio é que no fim de toda investigação da razão está o silêncio. Ora, não podemos falar sobre coisas infinitas e, por isso, não podemos conhecer os segredos do universo em sua integralidade. “De fato, o homem cujo zelo é o mais ardente não pode chegar à mais alta perfeição de sabedoria se não for muito douto na ignorância que lhe é própria. Ele será tanto mais douto quando mais souber que é ignorante”[17]. A palavra fracassa em sua busca do infinito, mas nem por isso desaparece. Na fronteira inultrapassável do êxtase, silêncio e palavra se fundem. Para os que apenas contemplam a viagem dos místicos, o silêncio é a própria palavra da eternidade e do infinito. Nessa região, continuamos a falar e silenciar; a dialética entre a palavra e o silêncio continua a operar, mas é pelo silêncio que se afirma a humanidade do homem. Reconhecer o lugar do finito, afirmar como fez Nicolau de Cusa que toda sabedoria é uma forma douta da ignorância, é permanecer nos limites do humano, que, como mostra o mago de Borges, é sempre feito de procura e de pena.

O outro extremo da dialética entre palavra e silêncio é o horror. No livro de Conrad, Marlow acompanha Kurtz em sua viagem de volta até o momento de sua morte. Presente na cabine do barco nos últimos instantes do chefe de posto, ele relata o que viu:

Eu vi nessa figura de marfim uma expressão de um orgulho sombrio, de poder sem piedade, de terror abjeto, de desespero intenso e sem remissão. Revivia ele sua vida em todos os detalhes do desejo, da tentação, do abandono durante esse momento supremo de conhecimento absoluto? Ele deu um grito murmurado em direção a uma imagem, uma visão. Ele emitiu duas vezes um grito que era um sopro. “O horror! O horror!”[18].

Diante de uma experiência que parecia ter chegado aos limites do humano, restou o espanto e o silêncio. Da mesma forma que parece difícil narrar o êxtase, a compreensão da dor extrema parece escapar ao reino das palavras. Kurtz sintetiza o que viu em apenas uma palavra e morre, como se essa simples evocação fosse a herança incompreensível de sua viagem pelos confins da existência.

No curso do século XX muitas experiências parecem poder se resumir à exclamação de Kurtz. De massacres e horrores da guerra muitas vezes resta apenas o silêncio perplexo dos que afrontaram o coração das trevas. Para os que foram vítimas, a vontade de testemunhar muitas vezes esbarra na dificuldade para se encontrar as palavras corretas, capazes de dar a conhecer ao mundo o que só poucos puderam ver. A esse respeito, os relatos dos que viveram nos campos de concentração, que povoaram a cena mundial ao longo de décadas em vários cantos do planeta, talvez sejam os documentos mais eloquentes, mas nem por isso deixam de apresentar dificuldades para os que os leem e analisam.

Logo depois da Segunda Guerra Mundial muitos testemunhos vieram à luz, guiados pelo desejo de revelar o que parecia escapar da compreensão que todos tinham da tragédia que se abatera sobre o mundo. Em seu livro Se isso é um homem, Primo Levi relata um sonho que tivera e que ocorria com frequência com outros prisioneiros do campo de concentração no qual estava preso. Ele sonha com sua casa, sua irmã e a presença de amigos. Nesse ambiente acolhedor, ele fala do que vivera, mas, para sua grande surpresa, “Eles ficam inteiramente indiferentes: falam confusamente de outra coisa entre eles, como se eu não estivesse lá. Minha irmã me olha, se levanta e se vai sem uma palavra”[19]. Como mostra Alain Parrou, depois do interesse inicial suscitado pelo retorno dos deportados, o público pareceu cansado, como se a realidade dos campos pudesse ser comparada àquela dos fenômenos naturais, que chamam a nossa atenção no momento em que ocorrem, mas que rapidamente desaparecem da nossa memória. Isso o leva a dizer: “Naturalização do fenômeno concentracionário: trata-se de despolitizar o fenômeno dos campos, de inscrevê-lo em uma ordem da realidade que torna toda consideração de ordem política impossível ou ilegítima. Fazendo do campo uma monstruosidade natural, criamos os meios para não pensar essa realidade”[20]. Como afirmou o editorialista de Les Temps Modernes, em 1949: “Mesmo se existe ainda alguma coisa para dizer, gostaríamos que se calassem. A guerra acabou. Temos o direito de gozar da paz sem que ninguém venha nos atrapalhar”[21].

Tudo se passa como se o silêncio fosse a linguagem natural do horror. Também em O coração das trevas, quando interrogado pela prometida de Kurtz sobre quais tinham sido as últimas palavras de seu amante, Marlow hesita diante do desejo de gritar que era impossível que ela não escutasse a palavra fatal, para finalmente dizer que suas palavras finais haviam sido o nome da amada[22]. Com isso ele restitui Kurtz para o mundo de sua vida anterior, integrando-o em uma linguagem humanamente reconfortante e compreensível. O que devemos nos perguntar é se nesse caso o silêncio é uma forma do humano, ou se opera apenas a redução da existência ao terreno do banal e corriqueiro, deixando de fora o que escapa do senso comum como se com isso pudéssemos livrar os homens dos extremos

de sua condição. Ao identificar o êxtase e o horror por meio do silêncio, não deixamos de fora a percepção de uma vasta e profunda realidade do humano a que o personagem de Kurtz quis sintetizar com uma única palavra? O místico fala por meio de seu silêncio. Ocorre o mesmo com os que contemplaram o horror?

Vamos abordar essa questão recorrendo aos relatos mais difíceis oriundos do universo concentracionário. Trata-se dos escritos deixados pelos membros dos “Comandos Especiais”, os Sonderkommandos de Auschwitz-Birkenau. Esses “Comandos Especiais” eram compostos de prisioneiros cuja tarefa principal era retirar os corpos dos mortos nas câmaras de gás para levá-los ao forno crematório ou para as valas[23]. Escolhidos no momento de chegada ao campo, eram separados dos outros prisioneiros e eliminados ao final de um período, para que não pudessem testemunhar. Poucos sobreviveram a esses comandos, mas os que viram seus membros os descrevem como verdadeiros monstros. Lucie Adelsberger, sobrevivente do campo de Birkenau, afirma: “Eles não tinham figura humana. Eram rostos destruídos, loucos”[24]. Da mesma forma, Primo Levi, em um relatório escrito para o Exército russo logo depois de sua liberação de Auschwitz, refere-se aos membros dos Sonderkommandos da seguinte maneira: “O funcionamento das câmaras de gás e do anexo do crematório era garantido por um Comando Especial, que trabalhava dia e noite em duas equipes. Os membros desse Comando viviam separados, rigorosamente separados, sem nenhum contato com os outros prisioneiros e com o mundo exterior. De suas roupas emanava um odor nauseabundo. Eles estavam sempre sujos, com um aspecto selvagem, parecidos com bestas ferozes. Eram escolhidos entre os piores criminosos condenados por delitos de sangue”[25].

Diante do que acabamos de expor é natural imaginar que o silêncio seria a única atitude a tomar diante de uma situação que não encontra paralelo na vida ordinária de cada um de nós. Hannah Arendt refere-se aos membros dos Sonderkommandos como “pessoas que cometeram atos criminosos”, para evitar a morte imediata[26]. Dos poucos que sobreviveram, de fato um número muito reduzido aceitou falar depois da guerra, conscientes do fato de que haviam presenciado atos e ajudado em tarefas que estão além da compreensão humana. Em alguma medida, a palavra desses homens parece até mesmo indecente diante do fato de que não apenas testemunharam a morte de milhares de seres humanos, mas de alguma forma fizeram parte da enorme cadeia da morte que se instalou em Auschwitz. Dos poucos que restaram pouco sabemos, pois quase todos emudeceram depois da terrível experiência. E, no entanto, uns poucos falaram[27], e, dentre os que morreram nos campos, vários quiseram deixar testemunhos como a lembrar-nos a natureza humana dos seres infectos que apavoravam até mesmo os que estavam acostumados à violência dos campos de concentração e de extermínio. É sobre esses escritos que gostaríamos de nos debruçar.

Entre 1945 e 1980 encontrou-se no solo ao lado do que foram os crematórios de Auschwitz-Birkenau uma série de escritos deixados por prisioneiros que, sabendo que seriam mortos, quiseram deixar um testemunho do que viram para a posteridade. Zalmen Gradowski, Zalmen Lewental e Lejb Langfus foram os que deixaram escritos mais consistentes. O primeiro escondeu um manuscrito perto do crematório de Birkenau, no qual relata acontecimentos anteriores à sua entrada no campo de concentração, como os massacres efetuados no Leste Europeu pelas tropas nazistas, assim com suas primeiras impressões do inferno de Auschwitz. Membro ativo da resistência no campo, ele dedicou seu escrito à sua família exterminada já na chegada, e adverte àqueles que poderiam encontrar suas páginas tingidas por forte emoção: “Aquele que encontrar esse documento saiba que está de posse de um importante material histórico”[28]. Langfus foi transferido do gueto de Maków para Auschwitz em 1942. Seus escritos foram encontrados depois da guerra em estado de decomposição, mas eles permitem compreender o esforço de manter a palavra viva, quando o silêncio da morte ronda a existência daqueles que no curso do processo de deportação tomam contato com uma realidade que parece impossível de ser narrada. Quanto a Lewental, que depois de passar pelo campo de trânsito de Malkinia chegou a Auschwitz em dezembro de 1942, seus escritos são fundamentais para compreender a revolta dos Sonderkommandos que eclodiu em 7 de outubro de 1944.

Como não seria possível fazer no espaço de um texto uma análise completa dos escritos deixados pelos membros dos “Comandos Especiais”, vamos nos concentrar nas falas em que aparece com clareza o esforço de cada um deles para não deixar a palavra ser engolida definitivamente pelo silêncio. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que nenhum deles esperava sair com vida de Auschwitz. Sabedores do destino dos que lhes precederam, eles travaram um combate encarniçado para legar à posteridade suas memórias e reflexões sobre o que estavam vivendo. Essa atitude esteve longe de ser única. Como mostra Michel Borwicz, depois da guerra foi possível encontrar um número significativo de escritos de pessoas que, sabendo que iriam morrer, queriam deixar um testemunho para o mundo do que haviam visto e vivido[29]. Esse gesto se repetiu em prisões, nos guetos e mesmo em pequenas cidades arrasadas pelos nazistas. Embora não houvesse necessariamente uma conexão entre as diversas ações de conservação da memória dos eventos terríveis que varreram a Europa, em alguns lugares esse esforço foi coordenado e organizado. Esse foi o caso do Gueto de Varsóvia, no qual o professor Emanuel Ringelblum organizou um verdadeiro arquivo com quase sessenta colaboradores, para preservar a história da destruição de toda uma comunidade[30].

O que torna específico o esforço dos membros dos “Comandos Especiais” é o fato de que eram vítimas que ocupavam um lugar determinado na cadeia de assassinatos e eram vistos com desconfiança pelos outros prisioneiros. Sabedores da proximidade da morte, os membros dos Sonderkommandos sabiam também que ocupavam um lugar especial na história que se desenrolava sob seus olhos. Voltaremos a esse ponto mais tarde. Vamos agora percorrer alguns momentos desses testemunhos especiais.

O texto de Gradowski relata a viagem do gueto de Grodno até Auschwitz e a vida no interior do campo. Escrito em uma linguagem literária, ele se insere voluntariamente na tradição ocidental de visitas guiadas ao inferno. Se Deus não é mencionado ao longo das páginas do manuscrito, a inscrição religiosa do autor fica evidente pelo número de vezes que ele se serve da referência ao diabo. É possível que essa menção tenha apenas um valor metafórico, mas ela ajuda Gradowski a compor o quadro de sua narrativa: “É que havíamos chegado a um mundo demoníaco, onde tudo se faz e se realiza em sentido contrário à razão humana”[31]. Em outro trecho ele afirma: “A vida não tem aqui sua estada. Aqui é a residência da morte. Nosso cérebro é bloqueado, nosso entendimento, paralisado”[32]. É nesse território de desolação que ele procura introduzir a palavra. É para evitar um silêncio eterno que ele tenta fazer permanecer o tempo.

No início do texto de Gradowski, No coração do inferno, ele diz abertamente a seu leitor que espera que seus escritos cheguem até ele, “cidadão livre do mundo”[33]. Seu propósito é expor o horror, que o personagem de Conrad havia apenas entrevisto e se negara a descrever. Mas ele sabe que sua situação extrema altera sua visão das coisas e suas esperanças. “Pois”, diz ele, “eu vivo no inferno da morte e não consigo avaliar corretamente a amplitude da minha perda. Eu estou condenado a morrer. Um morto pode chorar por um morto?”[34] Nesse prefácio curto, ele manifesta ao mesmo tempo desespero e a vontade de que suas palavras sobrevivam, a tal ponto que chega a deixar para a posteridade o endereço de um parente que poderia dizer ao mundo quem ele fora. Ao mesmo tempo, ele se dá conta da condição extrema em que vive e como nela as referências normais da vida desaparecem.

Essa consciência de viver em extremos, que os homens comuns não compreendem, se torna ainda mais aguçada pelo fato de ele demonstrar saber da situação impossível representada pelo pertencimento aos “Comandos Especiais”. Como diz Philippe Mesnard, é preciso se interrogar sobre a temporalidade de uma escrita, mas também sobre sua especialidade, “pois um lugar do qual se escreve não pode ser dissociado do espaço em relação ao qual nos situamos para escrever […]seria preciso se interrogar sobre a espacialidade de um sujeito que habita no lugar mesmo da destruição”[35]. Ao querer traduzir em palavras o que parecia destinado ao silêncio, Gradowski se dá conta de que terá de fazer um esforço gigantesco para não se perder em frases incompreensíveis, ou que estejam muito aquém do que ele gostaria de dizer por pertencerem a outro tempo e a outro espaço. O tom literário que ele escolhe e que pode surpreender o leitor, longe de ser a expressão de uma vaidade inadequada, é parte de uma tentativa de colocar uma distância entre o narrador e o narrado, que torna inteligível um conjunto de palavras construídas em face do horror. Como lembra Mesnard: “Nos confins do horror, o horror é certamente inimaginável, mas ele permanece potencialmente representável”[36]. É isso que buscava Kurtz e não alcançou no romance de Conrad, é isso o que Gradowski almejava ao escrever no coração do inferno.

Representar esse mundo limítrofe não é, no entanto, tarefa fácil. Um primeiro passo é dado pelo escritor, quando ele diz: “Tenho vontade de viver, o desejo de viver machuca, mas ainda me resta um momento na vida que não me deixa em paz: viver, viver para nos vingar”[37]. Ele não fala jamais em justiça. No mundo em que habita, essa palavra não faz mais sentido para ele e para os que vão morrer. Tudo se passa como se no campo de concentração a passagem do mundo das Fúrias para o mundo de Apolo, que na tragédia grega marcava o surgimento da justiça, não significasse nada. Descrevendo os últimos instantes de um grupo de mulheres que são obrigadas a se desnudar antes de ser mortas, ele diz: “O mundo de ontem, sua moral e seus princípios, elas prestaram a última conta no primeiro passo em direção ao túmulo”[38]. A dificuldade da narrativa não está apenas na monstruosidade das cenas vividas, mas no fato de que as noções que nos orientam na vida comum não servem mais.

Nesse mundo às avessas é também a linguagem da religião invertida que serve de bússola. Num território sem discurso ético possível, a menção ao inferno parece ser uma maneira de conduzir o olhar dos futuros leitores. Por isso, Gradowski, ao narrar a entrada na câmara de gás, afirma: “As portas se abriram. O inferno está escancarado diante das vítimas”. Mais à frente: “Os corpos são colocados sobre uma maca de ferro, abrem-se as portas da geena e a maca é lançada no forno. O fogo do inferno mostra suas línguas como braços abertos e se apropria dos corpos como de um tesouro”[39]. Essas referências à linguagem bíblica não servem, no entanto, para afirmar o sentimento religioso do autor. Não é sem razão que ele não menciona Deus nesses momentos e nem um mundo futuro. Em seu horizonte, Gradowski vê apenas vingança, que segundo ele virá pelas mãos dos russos, que se aproximam a cada dia do campo. “Por enquanto”, diz ele, “vocês podem fazer tudo impunemente, mas um dia virá, um dia da vingança”[40].

Esse discurso inquietante é possível, no entanto, porque na espacialidade restrita dos mecanismos de extermínio existe um intervalo, um mundo imenso no qual o tempo e o espaço se fundem numa mesma indefinição. “Elas passam sem cessar, uma longa marcha de mulheres nuas com o sangue ardente. Diríamos uma eternidade, que a marcha dura uma eternidade”[41]. O testemunho é possível porque existe esse hiato no território do horror, mesmo num mundo sem referência e que foi constituído por meio da destruição de todas as balizas da civilização, e Gradowski aposta que é possível falar mesmo quando toda fala parece irreal. Esse intervalo que vale uma eternidade é o mesmo que sustenta comportamentos que de outra maneira nos pareceriam impossível. Referindo-se ao grupo de mulheres que viu entrar nas câmaras de gás, ele afirma: “O que chama a atenção com relação a tantos outros transportes, é que elas se mostraram em geral muito calmas. A maior parte delas deu provas de coragem e de desprendimento, como se nada as pudesse atingir”[42]. Pouco importa se ele apenas imagina um comportamento, que talvez fosse impossível naquela situação. O que ele pretende é manter vivo o espaço entre a vida e morte como um espaço da palavra. “Se a escritura é o meio de acompanhar os mortos mantendo o luzir de suas vidas”, afirma Mesnard, “ela permite também o pagamento da dívida infinita contraída a cada envio na câmara de gás, recuperando a ideia de uma dignidade no tempo da escritura”[43].

O lugar do qual falam essas vozes, cuja tragédia pessoal parecia condenar a um silêncio absoluto, tem uma especificidade que não pode ser negada e que eles não ignoravam. Gradowski procura num determinado momento dizer que as vítimas compreendiam o dilema no qual eles se debatiam: “Elas não procuravam nos suplicar, elas sabiam e compreendiam que éramos vítimas como elas”[44]. Essa afirmação dificilmente correspondia a um sentimento constante entre as vítimas, mas serve para mostrar que aqueles que queriam testemunhar tinham total consciência da posição paradoxal na qual se encontravam. Langfus em suas memórias narra uma história que teria ocorrido no inverno de 1943. Uma menina de oito anos estava tirando a roupa de seu irmão menor quando um membro do “Comando” tentou ajudá-la. Diante desse fato, ela teria dito: “Vai embora, assassino judeu! Não coloque suas mãos que mergulharam em sangue judeu no meu pequeno e belo irmão!”. Ao mesmo tempo, um menino de oito anos teria dito: “E, no entanto, você é judeu! Como pode levar esses pequenos para serem mortos pelo gás, e tudo isso para permanecer vivo? Será que sua vida no meio de um bando de assassinos é mais querida que a vida de tantas vítimas judias?”[45].

É pouco provável que esses discursos tenham de fato sido proferidos por crianças apavoradas diante de uma situação de grande violência. No restante do texto, Langfus procura descrever os acontecimentos da maneira mais realista possível, deixando para a posteridade um relato detalhado de acontecimentos do campo. O que chama a atenção é que a fala do segundo menino é quase idêntica à fala de Arendt sobre os membros dos Sonderkommandos. Longe de revelar um estado de irreflexão, ela mostra que o autor estava consciente não apenas do que se passava no campo, mas da própria situação na qual se encontrava. Ou seja, Langfus, como Gradowski, se via como vítima, o que de fato ele era, mas sabia que era uma vítima colocada numa posição especial, na qual não era preciso apenas testemunhar, sentimento partilhado por um grande número de prisioneiros, mas de falar de um lugar no qual nem mesmo a esperança de ser ouvido fazia parte da realidade.

Muitos anos depois de ter escrito o relatório no qual descreve os membros do “Comandos Especiais” como ‘bestas ferozes”, Primo Levi retoma o tema em seu livro Náufragos e sobreviventes[46]. Seu ponto de partida agora é o fato de que no campo de concentração os prisioneiros são submetidos a “uma regressão levando precisamente a comportamentos primitivos”[47]. Essa destruição das barreiras éticas e de toda dignidade era um dos nervos do nazismo que, longe de santificar suas vítimas, “as degradava, tornando-as semelhantes a ele mesmo”[48]. Nesse universo redesenhado da humanidade, um dos objetivos primeiros era justamente eliminar toda a dignidade dos prisioneiros”[49]. O que chocava, e ainda choca os que procuram compreender o funcionamento dos campos de concentração e de extermínio, é que essa operação de abaixamento do humano se fazia com o concurso de uma camada de prisioneiros “privilegiados” que, sem deixar de pertencer ao corpo das vítimas, tinha acesso a melhores condições de vida sob a condição de que ajudassem na tarefa de administração do universo concentracionário. Levi procura então mergulhar nessa zona indefinida, que escapou da atenção de muitos pensadores: “É uma zona cinza, com contornos mal definidos, que separa e liga ao mesmo tempo o campo dos senhores e o campo dos escravos. Ela possui uma estrutura interna incrivelmente complicada e acolhe nela o que é suficiente para confundir nossa necessidade de julgar”[50].

Primo Levi não tem a menor dúvida de que os membros dessa “zona cinza” de fato colaboraram com a máquina de extermínio. Mas, ao contrário de outros pensadores, que se contentam com a condenação de todos os que se beneficiaram do pertencimento a uma das categorias de “privilegiados”, que trocavam no campo a colaboração com a administração por melhores condições de vida, ele procura situar o problema a partir da especificidade dessa “criação” nazista que foi a “zona cinza”[51].

Assim afirma Levi: “Antes de discutir sucessivamente os diferentes motivos que levaram alguns prisioneiros a colaborar numa medida variável com o vencedor, é preciso afirmar veementemente que diante de casos humanos desse tipo seria imprudente pronunciar de forma precipitada um julgamento moral. É preciso colocar claramente como princípio que a falta mais grave pesa sobre o sistema, sobre a estrutura mesma do Estado totalitário, e que é sempre difícil avaliar o concurso trazido para a falta pelos colaboradores individuais grandes e pequenos (jamais simpáticos, jamais transparentes)”[52].

A questão, portanto, não é a de negar a culpa dos colaboradores, mas em primeiro lugar de pensá-la situada no mundo de horror no qual se desenrolaram as ações. Ora, a existência de um território criado pelos homens que os remete às fronteiras do humano, aos limites de uma natureza que, submetida à prova da sobrevivência, recua para esferas que normalmente desaparecem do mundo transformado pela razão e por suas obras, desafia todas as teorias morais vigentes. É preciso aceitar os limites da filosofia, para poder filosofar sobre condições tão extremas da existência. É nesse lógica que Levi afirma: “Ter concebido e organizado os comandos especiais foi o crime mais demoníaco do nacional-socialismo”[53]. Chama a atenção o fato de que mesmo ele, que se recusa a abordar o problema dos campos a partir de uma linguagem teológica, fale em criação demoníaca, como se apenas ela pudesse nos ajudar a manter a palavra viva, num território que nos parece tão distante do humano.

Gideon Greif, que tem em relação aos membros dos Sonderkommandos uma posição bem mais nuançada que a de Arendt, afirma: “Eles tinham consciência do seu papel trágico. Estavam muito distantes de se fechar na indiferença e no distanciamento”[54]. O testemunho de Zalmen Lewental parece confirmar essa impressão. Tendo participado da resistência do campo ao lado de Gradowski e da preparação da revolta que eclodiu no dia 7 de outubro de 1944, que terminou com a morte de todos os revoltosos e de alguns alemães, ele demonstra clara consciência da situação na qual se encontrava. Primeiramente do lugar especial que ocupavam no campo. Contrariamente ao juízo dos outros prisioneiros, eles se acreditavam ameaçados o tempo todo e, por isso, tinham pressa em começar a rebelião, “se quisessem fazer algo enquanto ainda vivos”[55]. Narrando de maneira detalhada a preparação da revolta e seu insucesso, ele se dá conta da importância do desejo de sobrevivência, mesmo para aqueles que sabem que vão morrer. Depois de descrever os fatos e as ações dos membros dos Sonderkommandos com tintas heroicas, ele se dá conta de que mesmo nesses extremos “eles ainda têm desejo de viver”[56]. Nos limites do humano, o desejo de ficar vivo, “mesmo por uma hora”, é algo irresistível e ocupa um lugar muito mais importante do que o que talvez gostaria Lewental em seu esforço para dar aos membros do “Comando Especial” um rosto humano. Nesse mundo infernal, ficar vivo parece muitas vezes se transformar num absoluto, e talvez por isso mesmo leve a comportamentos que num mundo onde a ética e a razão ainda vigem parecem absurdos.

Diante de uma questão tão complexa, talvez seja mais razoável deixar a condenação moral de lado para adotar uma posição mais prudente, como a que sugeriu Primo Levi quando disse: “Cada indivíduo é um sujeito tão complexo que é vão pretender prever seu comportamento, sobretudo em situações de exceção, quando é impossível prever o próprio comportamento. Eis por que eu peço que a história dos ‘corvos do crematório’ seja meditada com piedade e rigor, mas que o julgamento sobre eles permaneça suspenso”[57].

Lewental e os outros que deixaram escritos escondidos nos terrenos do crematório sabiam que iam morrer. Eles sabiam que ter pertencido aos Sonderkommandos era algo terrível e que os punia com uma morte ainda mais terrível do que aquela dos outros prisioneiros, por ser marcada pela vergonha. Contra esse último ato de violência, eles compreenderam que havia uma forma ainda mais profunda de desumanização, que era condená-los ao silêncio.

Nas fronteiras da barbárie só a palavra humaniza e faz sobreviver. Contrariamente aos místicos diante da experiência do absoluto, diante do horror só resta a palavra. Essa foi a descoberta dos que decidiram testemunhar até o momento de sua morte. Lewental afirma, referindo-se a seus contatos com outros prisioneiros: “Nós lhes dizíamos tudo sobre as menores coisas que aconteciam, sobre fatos que poderiam um dia interessar ao mundo. E todos são interessantes para conhecer o que nos aconteceu, pois, sem nós, ninguém saberia como nem por que se passou o que se passou”[58]. Sabedores do medo que inspiravam nos outros prisioneiros, eles escolheram falar como última ponte para a vida e a dignidade, mesmo sabendo que talvez não fossem compreendidos.

O humano não se esconde nem num silêncio absoluto, nem numa palavra total. O humano se constitui num diálogo permanente entre os dois. É na dialética entre o silêncio e a prosa do mundo que nossa fragilidade, nossa finitude, se mostra. Mas é também nesse espaço em mutação que o mundo dos homens se constrói. Querer parar esse diálogo é o mesmo que tentar fazer do mundo, como dizia Pico della Mirandola em pleno Renascimento, a morada de deuses ou de bestas, mas não de seres em constante criação de sua própria condição. Por isso, nos extremos do êxtase e do horror, resta a busca pela forma adequada de expressão, como fazem os místicos e fizeram os membros dos Sonderkommandos, e a certeza de que, se quisermos permanecer livres, é no intervalo entre o dito e o não dito que está nossa humanidade.

Notas

  1. Joseph Conrad, Au coeur des ténèbres, Paris: Flammarion, 1989, p. 142.
  2. Idem, ibidem, p. 142.
  3. Maurice Merleau-Ponty, Signes, Paris: Gallimard, 1960, p. 53.
  4. Idem, ibidem, p. 103.
  5. Jorge Luis Borges, El Aleph, Buenos Aires: Debolsillo, 2011, pp. 143-50.
  6. Idem, ibidem, p. 145.
  7. Idem, ibidem, p. 146.
  8. Idem, ibidem.
  9. Idem, ibidem, p. 148.
  10. Idem, ibidem, p. 149.
  11. Idem, ibidem, p. 150.
  12. Nicolas de Cusa, De la docte ignorance, Paris: Éditions de la Maisnie, 1979.
  13. Idem, ibidem, p. 57.
  14. Idem, ibidem, p. 41.
  15. Idem, ibidem, p. 42.
  16. Idem, ibidem, p. 44.
  17. Idem, ibidem, p. 38.
  18. Joseph Conrad, op. cit., p. 189.
  19. Primo Levi, Si c’est un homme, Paris: Julliard, 1987, p. 64.
  20. Alain Parrou, Écrire les camps, Paris: Belin, 1995, p. 55.
  21. Les Temps Modernes, n. 42, abril 1949, p. 754, apud Alain Parrou, op. cit., p. 54.
  22. Joseph Conrad, op. cit., p. 201.
  23. Hermann Langbein, Hommes et femmes à Auschwitz, Paris: Éditions Tallandier, 2011, pp. 201-12.
  24. Apud Hermann Langbein, op. cit., p. 203.
  25. Primo Levi, Rapport sur Auschwitz, Paris: Éditions Kimé, 2005, pp. 80-81
  26. Hannah Arendt, Eichmann à Jérusalem, Paris: Gallimard, 1966, p. 106.
  27. É importante a esse respeito o testemunho de um dos raros sobreviventes dos Sonderkommandos: Filip Müller, Trois ans dans une chambre à gaz d’Auschwitz, Paris: Pygmalion, 2001.
  28. Zalmen Gradowski, Des voix sous la cendre. Manuscrits des Sonderkommandos d’Auschwitz-Bierkenau, Paris: Memorial de la Shoah/Cahnann-Lévy, 2005, p. 24.
  29. Michel Borwicz, Écrits des condamnés à mort sous l’occupatiParis: Gallimard, 1996. Em especial ver o cap. IX, pp. 166-84.
  30. Samuel Kassow, Quem escreverá nossa história? Os arquivos secretos do Gueto de Varsóvia, São Paulo: Companhia das Letras, 2009
  31. Zalmen Gradowski, “Notes”, em: Des voix sous la cendre. Manuscrits des Sonderkommandos d’Auschwitz-Bierkenau, Paris: Memorial de la Shoah/ Calmann-Lévy; 2005, p. 91.
  32. Idem, ibidem, p. 86.
  33. Zalmen Gradowsk.i, Au coeur de l’enfer, Paris: Éditions Kimé, 2001, p. 53.
  34. Idem, ibidem, p. 54.
  35. Philippe Mesnard, «Écrire au-dehors de soi”, em: Des vou: sous la cendre. Manuscrits des Sonderkommandos d’Auschwitz- Bierkenau, Paris: Memorial de la Shoah/ Calmann-Lévy, 2005, p. 232.
  36. Idem, ibidem, p. 233.
  37. Zalmen Gradowski, Au coeur de l ‘enfer, op. cit., p. 54.
  38. Idem, ibidem, p. 85.
  39. Idem, ibidem, p. 114.
  40. Idem, ibidem, p. 91.
  41. Idem, ibidem, p. 89.
  42. Idem, ibidem, p. 86.
  43. Philippe Mesnard, op. cit., pp. 241-.42.
  44. Zalmen Gradowski, Au coeur de l’enfer, op. cit., p. 86.
  45. Lejb Landfus, “Dans l’horreur des atrocités”, em: Des voix sous la cendre. Manuscrits des Sonderkommandos d’Auschwitz-Bierkenau, Paris: Memorial de la Shoah/ Calmann-Lévy, 2005, p.107.
  46. Utilizamos aqui a tradução francesa de André Maugé: Primo Levi, Les naufragés et les rescapés. Quarante ans après Auschwitz, Paris: Gallimard, 1989.
  47. Idem, ibidem, p. 39.
  48. Idem, ibidem, p. 40.
  49. Idem, ibidem, p. 41.
  50. Idem, ibidem, p. 42.
  51. Agamben, por exemplo, reconhece a importância das considerações de Levi, mas permanece nas águas de Arendt quando se trata dos Sonderkommandos. Giorgio Agamben, Quel che resta di Auschwitz, Torino: Bollati Boringbieri, 2005, pp. 23-24.
  52. Primo Levi, Les naufragés et les rescapés. Quarante ans apres Auschwitz, op. cit., p. 43.
  53. Idem, ibidem, p. 53.
  54. Gideon Greif, “La tragédie des hommes du Sonderkommando“, em: Des voix sous la cendre. Manuscrits des Sonderkommandos d’Auschwitz-Bierkenau. Paris: Memorial de la Shoah/ Calmann-Lévy; 2005, p. 432.
  55. Zalmen Lewental, “Notes”, op. cit., p. 151
  56. Idem, ibidem, p. 170.
  57. Primo Levi, Les naufragés et les rescapés. Quarante ans après Auschwitz, op. cit., p. 60.
  58. Zalmen Lewental, “Notes”, op. cit., p. 171.

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