As imagens e o outro
Resumo
Apropriação e distanciamento, conservação e destruição. Tais implicações, aparentemente contraditórias, estão na origem da fotografia. A fotografia como meio de preservar aquilo que vai desaparecer. Fotografar uma pessoa ou alguma coisa é transformá-la num objeto, esvaziando-a de vida. Neste sentido, a fotografia, assim como os monumentos, indica uma presença. Porém, a cidade está perdendo os seus referentes e a fotografia também está perdendo sua capacidade de marcar, de registrar. Os monumentos são um dos signos mais evidentes de reconhecimento de um lugar: estabelecem datas, acontecimentos e personagens que fizeram a história do país, são testemunhos de sua passagem e pertinência a um lugar.
Walker Evans, o fotógrafo da identidade americana, e Lee Friedlander fizeram inúmeros retratos sobre monumentos. O resultado, porém, é radicalmente oposto. As estátuas retratadas por Friedlander, cercadas por tapumes comerciais não são marcos. Pertencem a um espaço sem hierarquia nem ordem. A proliferação dos signos os priva de qualquer significado.
O lema dos documentaristas, “Leave things as they are”, revela toda sua perversão: as próprias coisas deixaram de ser o que eram para tornarem-se monumentos à lembrança do que foram. Até Evans, nesta época, já no fim de sua vida, passou a fotografar e mesmo colecionar obsessivamente letreiros, anúncios, posters e todo tipo de signos. Toda imagem — de um acontecimento que nos seja importante ou de um ente querido — é necessariamente o retrato de algo que passou. No instante mesmo que é tirado, já virou passado.
A paisagem americana é silenciosa mas é preciso introduzir linguagem onde tudo é silêncio. Wim Wenders fez, em 1983, uma série de fotos do Oeste americano, quando percorreu a região à procura de locações para o filme Paris, Texas. Em todas as fotos, destaca-se a presença de sinais e cartazes na paisagem desértica, como que para afirmar a presença das coisas nesse cenário.
Na hiper-realidade tudo o que é visível se converteu em clichê, repetido à exaustão numa cultura que tem a tendência de negar a existência daquilo que não se exibe. Só é aquilo que é imagem. Aquilo que é soterrado pela avalanche de clichês que inunda a paisagem do mundo moderno escapa, por definição, à ordem do visível. Logo, o dilema da fotografia na era dos clichés é mostrar algo que não se consegue mostrar, que não se deixa reproduzir em série.
Em sua série “Homens nas cidades”, as figuras de Robert Longo, flutuam no vazio. A cidade desapareceu, não é visível, mas sente-se sua presença na opressão e asfixia manifestada por esses homens e mulheres sem rosto nem lugar, esvaziados de sua interioridade e história.
As primeiras fotografias de Cindy Sherman também são narrativas e despertam, antes de mais nada, a indagação: o que está acontecendo com esta mulher? Seus retratos produzem uma ficção do eu. Na primeira série, denominada “Film stills”, ela aparece em situações construídas como se fossem cenas de filmes, fotos típicas de divulgação. Nas da fase seguinte, tiradas contra um fundo projetado (back-projection), ela virtualmente transita em fotogramas. Em vez de remeter a uma personalidade primeira, interna, elas a apresentam como um constructo imaginário. É um personagem.
Nas fotos, uma insuperável tensão entre biografia e enredo, lugar e cenário, realidade e imagem. Em seus trabalhos de maturidade, a partir de 1981 não existe mais a ficção. Vemos a presença da figura retratada. Passou-se de uma personagem a uma pessoa com densidade e solidez, humanidade. A partir de então, seus trabalhos chegam o mais perto possível do que seria “A verdadeira Cindy”. Devaneio, acabrunhamento e nostalgia, condições tradicionalmente femininas. É no terreno vago entre a imagerie e a realidade, que parece ser possível capturar o que hoje é tão difícil retratar: uma pessoa determinada, chamada Cindy Sherman, dotada de interioridade e um rosto, de existência sensível e temporal. Aqui uma mulher não está apenas posando, mas está ali. Ela é.
A fotografia contemporânea parecer querer demonstrar a presença do ser, a imagem do outro.
A fotografia — por definição, uma forma de representação, recordação de uma falta, fetiche — poderia ao contrário servir para postular a existência e o desejo do outro? Será que a imagem — normalmente tida como o lugar em que se instaura a diferença entre essência e aparência, o objeto e seu duplo, o próximo e o distante — poderia ser uma forma de evocar a presença das coisas?
Fotografar, porém, é, num certo sentido, se apropriar. Nessa medida, a fotografia nos aproxima do nosso objeto. É como estabelecer com o mundo uma relação de saber; logo, de poder. Mas isso garantiria o acesso ao outro, nos abriria as portas à intimidade com as coisas, nos transportaria para dentro das paisagens — todos aqueles movimentos que estão na origem do desejo?
A tomada de cena, diz Susan Sontag no seu ensaio sobre a fotografia, tem algo de perverso. Se o fotógrafo chega frequentemente a experimentar uma excitação sexual quando se encontra atrás da objetiva, esse sentimento não poderia ser mais inadequado. De fato, a utilização de um aparelho fotográfico não é um meio próprio de obter um encontro amoroso. Há, diz ela, fatalmente uma distância entre o fotógrafo e seu objeto.
Essas duas implicações — conservar e destruir — estão na própria origem da fotografia. Por outro lado, a prática de representar o mundo em duplicatas se afirma numa época de vertiginosas mutações, em que uma infinidade de objetos e de formas de vida social estavam sendo destruídas. Ela surgiu então como um meio de preservar a imagem daquilo que está em vias de desaparecer. Não é por acaso que a frase “É preciso correr se ainda se quer ver as coisas” seja tão retomada nos últimos tempos.
Por outro lado, há uma espécie de agressividade no ato de retratar: fotografar uma pessoa é vê-la como ela própria não se vê jamais. Implica transformá-la num objeto que se pode simbolicamente possuir. Para se assegurar de alguma coisa, ou mesmo para preservá-la, acaba-se esvaziando-a de toda vida. É por isso que a câmera tem sido tomada como uma representação sublimada de uma arma de fogo. Em inglês, to shoot significa tanto “clicar”, “filmar”, quanto “atirar”.
Neste universo de coisas em desaparição, os indivíduos procuram desesperadamente deixar suas marcas. Pois a cidade moderna, antes desta catástrofe, era como um interior. Os homens se sentiam em casa nela. Em todo lugar, deixavam suas impressões digitais. Os objetos traziam os sinais daqueles que os possuíam. Ali era fácil identificar.
Neste sentido, a fotografia se aparenta aos monumentos. Ambos são indícios de que alguma coisa aconteceu no lugar, de que alguém esteve ali. Indícios de uma presença. Mas está cada vez mais difícil. Na medida em que a cidade está perdendo os seus referentes, a fotografia também está perdendo sua capacidade de marcar, de registrar.
As estátuas são um dos signos mais evidentes de reconhecimento de um lugar. Marcos que estabelecem datas, acontecimentos e personagens que fizeram a história do país, são também balizas que estabelecem o traçado de uma cidade. Localizam tanto espacial quanto historicamente. São monumentos que os homens erguem como testemunhos de sua passagem e pertinência a um lugar. As pessoas se reconhecem nelas.
Walker Evans, o fotógrafo da identidade americana, fez inúmeros retratos sobre monumentos. Lee Friedlander refaria, nos anos 70, essa mesma trajetória, fotografando uma série de estátuas pelo país. O resultado, porém, é radicalmente oposto. As estátuas que retrata, cercadas por tapumes comerciais e apequenadas pelos imensos outdoors luminosos que cobrem prédios em volta, são tudo menos um marco. Tragadas por essa avalanche de signos, elas ficaram virtualmente invisíveis. Um espaço sem hierarquia nem ordem, saturado, achatado, onde o fundo se confunde com o primeiro plano e a paisagem se fragmenta em milhares de pedaços. Sujeira visual que provoca uma total obstrução da legibilidade. A proliferação dos signos os priva de qualquer significado.
Para Walter Benjamin, tudo aquilo que foi construído como novo subsiste apenas como monumento ao futuro do passado, a expectativas e sonhos jamais realizados. É o destino de todas as coisas na contemporaneidade: resgatadas do rápido e inexorável processo que converte tudo em ruínas, as coisas e passagens só sobrevivem petrificadas. Ao fazer um livro só de estátuas, Friedlander ilustra, ironicamente, o destino da paisagem que Evans tentava preservar. O lema dos documentaristas, “Leave things as they are”, revela toda sua perversão: as próprias coisas deixaram de ser o que eram para tornarem-se monumentos à lembrança do que foram. Até Evans, nesta época, já no fim de sua vida, passou a fotografar e mesmo colecionar obsessivamente letreiros, anúncios, posters e todo tipo de signos.
Friedlander apenas registra, como um passante desatencioso, aquelas figuras sem rosto, perdidas em meio aos sinais de trânsito e fios elétricos. Ressaltando a indiferenciação provocada pela excessiva informação no mundo contemporâneo. Difícil crer que alguém tomaria essas referências para se localizar. O indivíduo moderno, sem raízes nem história, não poderia mesmo reconhecer seus monumentos. Os fotógrafos documentaristas atribuíam-se a missão de resgatar, pelo registro, as coisas em desaparição. As imagens de Friedlander vêm constatar que já é tarde demais. Não há redenção possível.
Este é o dilema da fotografia. Toda imagem — de um acontecimento que nos seja importante ou de um ente querido — é necessariamente o retrato de algo que passou. No instante mesmo que é tirado, já virou passado. Daí o caráter nostálgico que, como ressalta Roland Barthes, recobre a fotografia. Não é fácil se acercar das coisas. Pois fotografar é um modo de estabelecer um lugar como seu. Cada imagem é uma referência num mapa que o explorador vai aos poucos traçando, um componente a mais no seu quadro imaginário. As escadarias, os postes de luz, os letreiros… o forasteiro descobre padrões entre as coisas mais comuns, a que ninguém presta atenção. Ele transfigura o conhecido e banal em único, delineia um rosto onde antes era pura confusão e vazio. A fotografia, então, é parte do trabalho de reconhecimento de uma cidade. Nessa medida, ela é aparentada à leitura: decifra seus signos, identifica e mapeia seus pontos. Pois a condição de estrangeiro não é, por si só, garantia de um olhar capaz de cartografar. Benjamin descreve como o recém-chegado não consegue ler a cidade, como suas próprias projeções se confundem indissoluvelmente com a paisagem. Até sugere que, nas grandes metrópoles, se projetem “filmes de orientação” para estrangeiros.
Antes que eu tenha descoberto a verdadeira paisagem de Moscou, que eu tenha visto seu verdadeiro rio, que eu tenha descoberto suas verdadeiras colinas, cada calçada era para mim um rio caudaloso, cada número nas fachadas um sinal trigonométrico e cada uma de suas praças gigantes um lago. Pelo simples fato de que a cada passo revolvemos um solo nominado. E quando um destes nomes nos atinge, a imaginação logo constrói todo um quarteirão em torno dele. Isto ainda ficará por muito tempo incrustado na realidade, resistente como uma muralha de vidro. A cidade possui, neste primeiro instante, centenas de barreiras fronteiriças. Mas um dia o portal ou a igreja que eram a fronteira de uma região aparecem de repente no centro. A cidade então se transforma, para o neófito, num labirinto. Um ângulo reúne ruas que ele situara longe uma da outra. De quantas armadilhas topográficas ele ainda vai ser vítima? A cidade se defende dele, se transveste, foge, intriga, o seduz para fazê-lo percorrer seus círculos até o esgotamento. Mas ao final, os mapas ganham: à noite, na cama, a imaginação brinca com prédios de verdade, com parques de verdade, com ruas de verdade.[1]
Daí o apelo aos signos para identificar a paisagem. Desde os anos 30 nossos horizontes passaram a ser recobertos por setas, letreiros e fachadas decoradas. Para Robert Venturi, autor de Learning from Las Vegas, a principal característica da paisagem urbana americana é o simbolismo. No mundo do movimento, as construções são feitas para ser vistas por quem passa na estrada, em alta velocidade. Arquitetura aqui é comunicação. À beira das autopistas erguem-se motéis e postos de gasolina identificáveis, de longe, através de formas já conhecidas. Uma lanchonete que parece um castelo de conto de fadas, um cinema que sugere um palácio chinês, uma casa de subúrbio que lembra uma mansarda em estilo Tudor… A arquitetura retoma a iconografia popular: as construções são apenas fachadas decoradas, com galpões atrás. Semelhantes a outdoors. Cada vez menores, ao aumentar a velocidade nas estradas, escondidas atrás dos estacionamentos, enquanto aumenta o tamanho e a altura dos letreiros luminosos. Na cidade contemporânea, tudo é signo.
Porque a paisagem americana é virgem. A falta de raízes mais profundas, a dificuldade de deixar rastros quando se está sempre em movimento e a própria resistência dos espaços extensos demais a guardar qualquer marca fazem com que ela sempre careça de familiaridade. São lugares sem rosto, sem nome. Neles os indivíduos vivem em permanente confronto com o desconhecido, com algo que não podem relacionar com sua experiência, que não representa nada. Joseph Brodsky percebeu essa falta de significado original:
Uma vez, W. H. Auden escreveu um ensaio sobre a noção de paisagem na poesia americana, em contraste com a poesia inglesa. Ele dizia que, na Inglaterra, quando um poeta fala da natureza, o que ele tem em mente é a paisagem ao redor de sua casa. Ao sair, ele entra na noite, na natureza, e se aproxima da árvore sob a qual, presumivelmente, vários reis decretaram suas leis, se reuniram em conselho, e volta para dentro com a sensação de que nada mudou. Na América, diz Auden, o poeta, para sair de sua casa, se aproxima da árvore e a encara em toda a sua originalidade primitiva. Num certo sentido nada aconteceu àquela árvore. Ele a vê pela primeira vez, ao mesmo tempo que a árvore vê um ser humano pela primeira vez. Assim sendo é uma confrontação de iguais. E uma árvore pode inspirar terror. Na Europa, a árvore não inspira terror às pessoas. Não importa por quanto tempo se olhe para ela. Porque há sempre a possibilidade de um jogo de alusões. Aqui, alusões não são possíveis. É só você e a árvore.[2]
A paisagem americana é silenciosa. O deserto é um vazio de signos. Daí esta sistemática necessidade de nomear, de assinalar. Setas, cartazes e anúncios luminosos estão lá para dizer o que as coisas são, para indicar onde elas estão. Viajar na América, diz Czeslaw Milosz, é nomear as coisas pela primeira vez. O forasteiro é aquele que vai identificando esses lugares sem perfil. Como os viajantes nos filmes de Wim Wenders, sempre preocupados em descrever o que estão vendo. Na América, a natureza existe como signos. É preciso fazer a paisagem falar, introduzir linguagem onde tudo é silêncio. Wim Wenders fez, em 1983, uma série de fotos do Oeste americano, quando passou vários meses percorrendo a região, à procura de locações para seu filme Paris, Texas. Ela constituiria sua primeira exposição fotográfica, intitulada — a partir do filme de Douglas Sirk, Written in the wind [Escritos ao vento] — “Written in the West“. Em todas as fotos, destaca-se a presença de sinais e cartazes na paisagem desértica, como que para afirmar a presença das coisas nesse cenário de absoluta precariedade. Tudo aqui, das pequenas construções à beira da estrada até as grandes cidades, é recente. Suas silhuetas em geral só se delinearam à nossa visão nos últimos decênios. E, no entanto, somos levados a imaginar que tudo isso ainda tão novo vai um dia desaparecer, deixando apenas o grande vazio do Oeste. O que poderia, então, tentar assegurar a permanência das coisas? Essa é a mais sistemática e consistente retomada da questão do signo no horizonte contemporâneo. A seguir, a apresentação de Wenders à exposição:
O Oeste americano é sempre o lugar mítico cuja magia permanece inexplicável. Penetra-se nele e se é enfeitiçado por sua luminosidade, por suas cores, pela infinitude de seu espaço e por seu horizonte. Compreende-se então que esta paisagem foi concebida e conquistada por sonhos, e apenas por sonhos. Tudo o que os homens construíram e instalaram ali parece estranhamente transitório, quase fugitivo. A história da civilização aqui não tem muito mais de cem anos e, no entanto, não se pode evitar de ter permanentemente a impressão de que ela já pertence aos vestígios do passado e que a natureza logo apagará todas as suas marcas para outra vez só deixar lugar para o sonho.
O elemento que aqui se defende de forma mais persistente parece ainda ser a escritura. Uma multiplicidade de signos despontam em todo canto: painéis publicitários, néons, placas, grafites e sinais de todo tipo. Nos Estados Unidos, muito mais que na Europa, a escritura, a aparência das letras, tornou-se uma verdadeira arte. Em nenhum outro lugar existe tamanha variedade tipográfica. Algo me atrai e fascina nestas paisagens em que se destacam “escritos” e que me parecem revelar um pouco do mito e do sonho do Oeste.
Essa insistência com que tudo, no mundo das imagens, se revela a nós, é obscena. Nessa sobreexposição, nada mais tem mistério. A proximidade é absoluta, os objetos nos cercam por todos os lados. Um excesso de tal ordem que abole toda presença verdadeira das coisas, reduzidas a uma massa indistinta e avassaladora. Ao contrário, elas estão ali sob a iminência da desaparição, tragadas pelo fluxo do consumo e da descartabilidade. Um vazio que a pletora de imagens característica da contemporaneidade não pode preencher.
Na hiper-realidade tudo o que é visível se converteu em clichê, repetido à exaustão. Tudo o que se mostra é imediatamente banalizado. Essa cultura tende a negar a própria existência daquilo que não se exibe. Só é aquilo que é imagem. Ela compulsivamente preenche o vazio da ausência com outras coisas, substituídas indefinidamente. Repetindo o interminável mecanismo da descartabilidade que ocasionara a primeira perda. No limite, o que a obscenidade não deixa ver é irrepresentável. Aquilo que é soterrado pela avalanche de clichês que inunda a paisagem do mundo moderno escapa, por definição, à ordem do visível. Como mostrar, função básica da imagem, algo que não se consegue mostrar? Esse é o dilema da fotografia na era dos clichês. Aquilo que não se deixa reproduzir em série, copiar, converter em iconografia, só pode ser algo que não se pode mostrar. Ela tem de criar a presença daquilo que é ausente.
As figuras de Robert Longo parecem indivíduos que, arrastados por uma força irresistível, como a tempestade que sopra do paraíso, são apanhados no ar. Estão, literalmente, em estado de suspensão. Não há nada por detrás deles, nada no fundo. Eles flutuam no vazio. A cidade desapareceu. Suas posturas implicam chão, a calçada, uma parede, mas nada disso é visível. No entanto, a série chama-se “Homens nas cidades”. Não se vêem seus enormes prédios, o seu massivo skyline, mas ela é uma presença na opressão e asfixia manifestada por essas criaturas agonicarnente contorcidas.
Essas imagens — delicados desenhos feitos a partir de fotografias — não têm a concretude natural dos retratos tradicionais. Elas existem “em algum ponto entre os filmes e os monumentos”. Esses homens e mulheres, sem feições reconhecíveis ou ambientação, são figuras absolutamente imponderáveis. Sem rosto nem lugar, não têm gravidade. Foram esvaziados de sua interioridade e história, reduzidos a silhuetas, distinguíveis apenas por seus trajes metropolitanos. Despojados de seus traços pessoais a ponto de ficar irreconhecíveis, rostos e lugares sem identidade. Pela sua dramaticidade, no entanto, essa falta de peso indica tudo aquilo que se perdeu: individualidade e raízes, consistência e passado… Tudo ali presentifica, desesperadamente, aquela ausência.
As primeiras fotografias de Cindy Sherman operam no mesmo registro das telas de Robert Longo. Elas também são narrativas. Essas fotos despertam, antes de mais nada, a indagação: o que está acontecendo com esta mulher? Comportam, se não histórias, ao menos estórias.
O cerne da questão: a construção da identidade, através das imagens da mídia. Seus retratos produzem uma ficção do eu. Remetem sempre — seja por causa da textura e do enquadramento, seja devido às posturas e vestimentas dela — a imagens já conhecidas. Na primeira série, denominada “Film stills“, ela aparece em situações construídas como se fossem cenas de filmes, em poses típicas de fotos de divulgação. Nas da fase seguinte, tiradas contra um fundo projetado (back-projection), ela virtualmente transita em fotogramas. Ela se cria apresentando-se à imagem estereótipos femininos. O seu eu é uma projeção dos diversos modelos proporcionados pela cultura de massa, não de impulsos interiores. Em vez de remeter a uma personalidade primeira, interna, elas a apresentam como um constructo imaginário. É um personagem.
Um universo cinético. Porém, todas as fotos, cada uma apresentando mulheres à primeira vista completamente distintas umas das outras, são auto-retratos. Essa ambiguidade é a chave do seu trabalho. É como se, na impossibilidade de comportarem memória, essas fotografias procurassem simulá-las. Resta, todavia, principal razão da sua vitalidade e interesse, uma insuperável tensão: entre biografia e enredo, lugar e cenário, realidade e imagem.
A partir de 1981 Sherman faria seus primeiros trabalhos de maturidade. Estas fotos não se prestam mais a uma leitura que procure extrair estórias delas. A evidente solidão da mulher não deve dar margem a que se imagine um caso de abandono ou violência. Estas imagens não são narrativas. Nem remetem mais diretamente, pela sua composição e textura, a stills de cinema. O seu sentido não é constituído por uma ficção, mas localiza-se na própria figura retratada, na sua presença. O mecanismo vicário de construção do eu através de uma máscara, largamente explorado nos primeiros trabalhos da artista, dá lugar a uma tentativa de fixação da identidade na experiência individual. O narcisismo que a alimentava antes foi evacuado. Passou-se de uma personagem a uma pessoa com densidade e solidez, humanidade. A partir de então, seus trabalhos chegam o mais perto possível do que seria “A verdadeira Cindy”, tomada pelo conflito típico de nosso tempo de encenar permanentemente um papel e ser quem ela é. O olhar triste e desamparado da mulher possui a unicidade do indivíduo tomado por seus conflitos e estados de alma. Devaneio, acabrunhamento e nostalgia, condições tradicionalmente femininas.
É nessa ambiguidade, neste terreno vago entre a imagerie e a realidade, que parece ser possível capturar o que hoje é tão difícil retratar: uma pessoa determinada, chamada Cindy Sherman, dotada de interioridade e um rosto, de existência sensível e temporal. O resultado é uma transição das formas mais etéreas do artifício para a concretude da realidade vivida. Como se as sucessivas poses tivessem decantado uma individualidade, retirando as camadas de cosméticos e fantasia. A mulher deste retrato não se debate mais entre personalidade e gênero. Seus devaneios são parte das sensações — a melancolia e a angústia — do existir. Aqui uma mulher não está apenas posando, mas está ali. Ela é.
Olhei para aquele rosto, aturdido. As luzes das estações do metrô passaram velozmente; eu nem as notei. O que se pode fazer, se falta à nossa visão o poder de devorar os objetos num êxtase, num instante, sem deixar nada mais que o vazio de uma forma ideal, um signo como um hieróglifo do desenho de um animal ou pássaro? Um nariz levemente arrebitado, uma testa alta com o cabelo penteado para trás, o contorno do queixo e, numa brancura matizada de rosa, dois poços esculpidos, contendo uma lava negra e brilhante. Por que não é absoluto o poder da visão? Absorver aquele rosto mas tê-lo simultaneamente contra o pano de fundo dos ramos primaveris, muros, ondas, com seu choro, sem riso, deslocando-o quinze anos para trás, ou trinta para frente. Ter. Nem mesmo é um desejo. Como uma borboleta, um peixe, o talo de uma planta, só que mais misterioso. E assim me ocorreu que, após tantas tentativas de nomear o mundo, sou capaz apenas de repetir, tangendo uma única corda, a mais alta, a única confissão além da qual nenhum poder alcança: eu sou, ela é. Grite, toque as trombetas, faça com que milhares marchem, salte, rasgue sua roupa, repetindo apenas: é! Ela saltou em Raspail. E eu fiquei com a imensidão das coisas existentes. Uma esponja, sofrendo porque não pode se saturar; um rio, sofrendo porque reflexos de nuvens e árvores não são nuvens e árvores.[3]
Neste texto de Czeslaw Milosz, a mulher — como a passante de Baudelaire — desaparece repentinamente. Mas o poeta agora não permanece com o vazio que deixa aquilo que é efêmero. Ele fica, ao contrário, com sua infinita presença. Não uma iluminação, porém uma súbita visão que lhe descortine, essencialmente, a mulher. Mas apenas uma imagem imperfeita, uma silhueta, incapaz de dar conta daquela que partiu. A tentativa de, reconhecendo a inacessibilidade última das coisas, sugerir sua existência. Pode-a imagem, na sua desesperançada aspiração a retratar as coisas no correr do tempo e na extensão do espaço, evidenciar essa inominável certeza — até hoje reconhecida apenas à poesia — que é a presença do ser? Estaríamos condenados aos simulacros? A fotografia contemporânea vem demonstrar que é possível, efetivamente, neste universo de espectros, evocar o outro.
Notas
- W. Benjamin, “Paisages urbains, Moscou” (1927), in Sens unique, Paris, Les Lettres Nouvelles, 1978, p. 250-1. ↑
- J. Brodsky, entrevista, in America: depoimentos, São Paulo, Companhia das Letras, 1989. ↑
- Ver America: depoimentos. ↑