2002

As medidas da liberdade

por Gerd Bornheim

Resumo

A liberdade se faz sempre a partir de um obstáculo sem o qual não se pode conceber seu surgimento. Ela não é um dado primário na constituição humana, não parte de um eu puro. Tampouco é única. Ela é sempre plural e histórica. Os gregos antigos não se preocuparam muito em defini-la, a não ser como o contrário da escravidão. Prerrogativa dos deuses ou de Deus, a questão religiosa da liberdade se resumia ao enfrentamento do livre-arbítrio com a predestinação divina. Descartes se distancia com prudência dessa predestinação ao afirmar que o Cogito nos faz senhores de nossas ações. Para os modernos, não há liberdade sem individualismo. Depois de Hegel, porém, essa liberdade enfrenta determinismos em vários níveis: biológico (a opacidade do corpo e seus desejos), psicológico (neuroses e sublimações desvendadas pela Psicanálise) e sociológico (necessidades impostas pelo jogo das convenções do capitalismo). Schiller disse certa vez que o homem “só é inteiramente homem quando joga”. E foi à noção do trabalho como jogo, embora desvirtuado e alienado, que Marx recorreu para pensar uma criatividade que dê espaço à invenção da liberdade (ele chegou a dizer que todo operário deveria ser um artista). A liberdade só adquire sua razão de ser através dos embates com a necessidade. Portanto, ela seria o objeto de uma conquista no interior de um jogo de contradições. Em tudo nos defrontamos com fatalidades, mas também com a possibilidade de uma superação. O jogo dialético é que define a práxis humana.


RASGOS TOPORÂMICOS DO TEMA

As discussões sobre a liberdade assentam necessariamente e em princípio na negação de suas próprias bases possibilitadoras. Quero dizer que o único pressuposto histórico viável para que se possa instaurar a inteireza do entendimento da questão está na ausência de liberdade. Mas isso não no sentido preconizado por um Fichte que, sem estar totalmente desprovido de razão, jogava com a oposição entre o livre e o não-livre, no sentido de que a liberdade se faz a partir do elemento não-livre, da presença de um obstáculo sem o qual nem se poderia conceber o surgimento da liberdade. A tese de Fichte, entretanto, se move dentro do âmbito de uma teoria geral do exercício da liberdade, válida para todos os tempos e todos os lugares, enraizada que está na existência de um eu puro. Nosso ponto de partida é bem outro, claro que a educação para a liberdade deve pressupor a frequentação de elementos não livres vistos como o solo em que medra o desenvolvimento da liberdade. Mas entendemos que a tese nada tem a ver com um suposto eu puro, pois ela se mostra essencialmente e antes de tudo em seu caráter histórico: não existe algo como uma liberdade constitutiva da natureza humana considerada em si mesma. Para nós, longe disso, a liberdade revela-se histórica de ponta a ponta, e já no sentido de que o homem em suas origens nada ostenta que poderia insinuar a presença da liberdade. Um eu puro — mas o que poderia ser isso? Não existe esse eu à espera de sua eclosão a ser provocada por coisas que lhe seriam totalmente estranhas, determinadas por uma exterioridade cega. Portanto, já nesse ponto de partida histórico, parece evidente que as origens situam-se em três níveis principais: um, de ordem propriamente biológica, a confundir-se em suas primícias com os enredos da evolução das espécies, já o segundo, aferra-se aos contextos sociais, e a liberdade passa a ser o objetivo de uma longa e laboriosa conquista. Certamente cabe asseverar que aquele elemento biológico integra-se a seu modo nos processos de sociabilização política do homem. E é por aí que deve surgir também, em terceiro lugar, a lenta especificação das concordâncias psicológicas. Por tais caminhos, nem há liberdade, mas liberdades que se vão fazendo, não existe a história de uma liberdade única, e sim a grande diversidade, as histórias das liberdades, sempre no plural. Voltaremos ao tema.

Por enquanto baste acentuar que a liberdade, nada oferecendo de semelhante a algum dado primário desde sempre presente na constituição humana, mostra antes o vasto panorama dos percalços históricos, através dos quais a liberdade deve ser tomada, e isso muito tardiamente, como um elemento novo a intrometer-se na tessitura da realidade humana. A liberdade foi antes de tudo isto: o objeto de uma surda epopu, e a complexidade do tema já se desvela neste particular: é que a conquista da liberdade só com muita delonga viu-se, proposta como um projeto preciso e consciente a ser viabilizado. Tal projeto quase nunca existiu, e a liberdade foi tateando os seus próprios andares como que a despeito de si mesma, posto que tudo se fazia viciado pelas elementaridades do não-byre; os obstáculos eram praticamente avassaladores e atropelavam o próprio surto do ato livre — este nada era, ou quase, e nunca existiu um eu puro à espera de um desimpedimento. Veja-se como exemplo — mas um exemplo que serve apenas, exatamente por causa de sua clareza, para evidenciar as contrafações que desvirtuavam a força de nossa temática — a experiência grega, está claro que inventando ,a experiência ainda que escassa e elitista da democracia, os antigos gregos já se entregavam a um certo exercício da liberdade. Observe-se, entretanto, que as coisas se passavam no entremeio de cenários em tudo reveladores: de um lado a determinação grega da liberdade se fazia precipuamente de modo negativo: o importante era não ser escravo, estava em não reduzir-se, por consequência das guerras, à humilhação do trabalho escravo, e fugir por todos os meios do fantasma da escravidão, sem dúvida, nessa escassa liberdade, tudo já eram avanços, a fazer palpitar as discussões políticas em praça pública. Mas, e em segundo lugar, causa até estranheza o quase total descaso dos inventores da filosofia justamente pelo tema da liberdade: os filósofos nem sequer se ocuparam do assunto, e isso vem confirmado pela reduzida exceção de algumas poucas linhas dedicadas à liberdade por Aristóteles — parece mesmo, e assim era, que a liberdade nem estava a merecer maiores encômios.

Continuo com mais uma simplificação, mas a atingir agora regiões em tudo essenciais. Pois trata-se nada menos do que de indicar a autonomia fundamental que perpassa toda a evolução de nossa temática. E é que, e isso já a partir dos primórdios do Neolítico, a liberdade sempre foi interpretada pelo radicalmente outro que não ela mesma em seu estatuto humano. Tudo se dava como se a liberdade, dela excluídos os afazeres e os ideários humanos, se constituísse em prerrogativa exclusiva do próprio Deus, propriamente livre seria Deus, seriam os deuses. Sem dúvida Deus, pela liberdade ancestral de ter criado a realidade toda inteira, a determinar por aí todos os modos de ser do mundo criado. Ou então, por essa outra intromissão dos deuses, a condenar a certo fatalismo a inércia essencial dos fazeres humanos. Logo se vê: o grande tema nem está, em todo o passado, na liberdade, e sim naquilo que já bem cedo se denominou predestinação divina.[1]

Esta a grande presença ao longo dos tempos avoengos, e isso, a delinear-se já a partir do próprio invento das religiões. Entende-se, assim, que a predestinação concentra em si de modo singular as preocupações do pensamento religioso, em especial do cristão. Realmente, nas épocas em que vigia a chamada filosofia cristã, as discussões sobre o livre-arbítrio se faziam até extensas e sabiam fomentar as mais diversas doutrinas. Mas, a rigor, para a liberdade pouco restava nessas elocubrações, apenas franjas, em nada prejudiciais à prepotência divina, o grande tema, nesse passado, nunca era e nem poderia ter sido a liberdade, visto que tudo se concentrava nas sapiências e premonições daquela predestinação. E no caso, para que bem se perceba a densidade do problema, nada melhor do que ligá-lo às malhas da radicalidade. Pois de fato, posto que Deus seja o todo-poderoso, aquele que tudo pode e tudo sabe, a determinar toda a realidade desde o início dos tempos, se tudo se verifica nos acertamentos entre o ato criador originário e o juízo final, tudo neste vasto interregno inscrever-se-ia iniludivelmente nos desígnios do próprio absoluto. Quaisquer nuanças ou a simples condescendência só fariam enfraquecer a potência absoluta e esmaecer as diatribes. O furor polêmico desse monge sempre medieval que foi Lutero apresenta uma coerência insofismável: se Deus existe já não resta espaço para a liberdade, e tudo se restringiria em tentar ludibriar, com a força inócua das aparências, o servo arbítrio.

O que causa espanto nem está nos milênios de vigência da tese teológica, e sim na rapidez com que os modernos dela souberam desvencilhar-se. Era de esperar, entretanto, que na tese teológica da predestinação continuasse a oferecer, aqui e ali, e de modo sempre mais escasso, os indícios que apenas preconizavam o seu desaparecimento. Mas ainda para Hegel, o último grande metafísico ocidental, só Deus é realmente livre, e de uma liberdade a entrelaçar-se agora com o próprio processo histórico — e o que poderia então restar para esta grande criação da modernidade que é a autonomia livre do indivíduo? Seja como for, é esse novo grande anão, autônomo e soberano, que desbarata o colosso teológico. A tese acaba invertendo-se com uma impiedade sem rastros: se o homem alcança enfim o seu estatuto de cidadão livre, já não poderia sobrar espaço algum nem mesmo para a própria existência de Deus.

DESCARTES E OS DELINEAMENTOS PRELIMINARES

As coisas começam a tornar-se claras já a partir de Descartes, ainda que nem sempre em nome das namorações cartesianas com a transparência dos raciocínios. Descartes afirma com clareza a existência da predestinação divina. Mas tudo acontece agora de modo singularmente curioso. Pense-se, já de início, nesse pano de fundo que oferece a densidade histórica do tema a pintar contradições insolúveis, ou então veja-se, no particular, a formação jesuítica de nosso filósofo, pois aí problemas podem ser vislumbrados até com obviedade: até que ponto o dístico pedagógico em tudo exemplar dos jesuítas — Deus te vê — faz-se compatível com a escolha de Descartes de morar em Amsterdã, o principal centro de permissivi-dade da época? Ou ainda: observe-se o fato em muito extraordinário do processo inquisitorial contra Galileu que vinha ocorrendo (a condenação e a abjuração do cientista deu-se em 22 de junho de 1633); afinal, além do entusiasmo cartesiano pela nuova scienza, deve-se ponderar também esse outro mérito do italiano, desta vez ético, de considerar, em face da estupidez institucional, a obrigatoriedade da mentira como expressão de virtude.

Quero com as asserções feitas apenas salientar que há motivos a mostrar ao menos um certo desconforto de Descartes relativamente ao tema predestinação — tema que certamente oferece consideráveis dimensões no âmbito da argumentação mais pormenorizadamente filosófica, numa prolixidade que não nos poderia interessar aqui. Mas lembro apenas dois tópicos em tudo instrutivos para a elucidação dessa problemática no contexto da filosofia cartesiana.

O primeiro refere-se ao reconhecimento da predestinação. Sobre o tema, afirma sem titubeios o nosso filósofo: “Nós sabemos com certeza que Deus preordenou todas as coisas”. Duvidar disso seria simplesmente um crime (o de Galileu?). E explica: o divino “poder é tão grande que cometeríamos um crime só de pensar que poderíamos jamais ser capazes de fazer o que quer que seja que não fosse por ele ordenado antecipadamente […]”.[2] Entretanto, a contrapartida a esse caloroso reconhecimento do poder divino não se faz esperar: e é que, diz nosso pensador logo a seguir, poderíamos “nos embaraçar em dificuldades muito grandes se empreendêssemos concertar a liberdade de nossa vontade com os seus ordenamentos, e se tentássemos compreender, isto é, abarcar e como que limitar com nosso entendimento toda a extensão de nosso livre-arbítrio e a ordem da Providência eterna”.[3] Vê-se logo onde está a prudência cartesiana: a “prova bem clara” da preordenação divina de todas as coisas está longe de poder tolher os embaraços com as grandes dificuldades que teríamos de enfrentar se perseguíssemos a elucidação da dita predestinação divina, e o que o nosso filósofo termina incentivando está num certo cultivo da distância em relação a esse magno problema: dúvidas não podem ser admitidas, mas nada pode ser dito sobre a momentosa questão. E por que não perguntar: nisso tudo, terá sido o nosso filósofo realmente sincero? Afinal, o que Galileu fez foi questionar a predestinação divina já em relação às andanças dos astros. Desfaleceria aí a soberania das idus claras?

Mas seja como for, há um segundo tópico na doutrina que se afigura até mesmo arrasador. Pois há, até de fácil constatação, essa outra imensa verdade: é que “percebemos em nós urna liberdade tão grande”,[4] que ela resistiria mesmo se “aquele que nos criou empenhasse seu poder a nos enganar de todos os modos”. De fato, a liberdade é uma evidência maior — ou passou a sê-lo a partir do início dos tempos modernos —, tão certa que “nada há que conheçamos mais claramente”.[5] Nós somos sem dúvida, e de modo tão total, “os senhores de nossas ações”, que cabe até ir avançando que “a principal perfeição do homem está em dispor de um livre-arbítrio[6]. Realmente, para Descartes, esse senhor maior que é o livre-arbítrio avantaja-se com um poder a dispor até mesmo sobre o teor do fundamento: a afirmação e a constituição do cogito obedecem em tudo a essa vontade soberana que nos faz os senhores de nossas ações. Parece mesmo que, no fundo, e tudo bem pensado, nosso filósofo deixa perceber que é a própria predestinação divina que se vê como que afastada, que nem é por aí que se mexem os interesses do pensamento cartesiano, e ele já nenhuma parceria poderia oferecer com o teologismo medieval e luterano.

O afastamento da tese da predeterminação realça, portanto, o tema maior da instauração da liberdade, e tudo passa a girar em torno da autonomia do indivíduo — criador inconteste de seus próprios atos. Por aí, a predestinação divina, não obstante os encômios de um Malebranche, de um Leibniz, ou os do já referido Hegel, passa a sofrer uma espécie de marginalização, o assunto torna-se motivo de certo esquecimento, como que a esvair-se progressivamente, por causa talvez de um processo secular de saturação. Digamos, pois, que a grande medida da liberdade, já por ser negação dela mesma, o Absoluto de toda a tradição, chega a obliterar-se, e tudo parece então concentrar-se na soberania — palavra que merece a referência do filósofo — individualista da nova liberdade — nova em tudo: ela conquista pela primeira vez o seu estatuto próprio, porquanto, como ainda hoje se vê, sem individualismo nem há liberdade; e ela constrói a nova filosofia, os parâmetros de base da nova ciência, sem ela sequer se endentem as revoluções políticas e o advento da cidadania, e as metamorfoses anunciam-se em todos os setores. De certo modo, cabe até mesmo asseverar que a grande ética de nosso tempo continua caudatária — coisa inimaginável sem Descartes — da grande inovação política de Kant e de seu conceito de autonomia; tanto, que muito do que se vê em nossos dias não consegue ir além de notas de pé de página da Crítica da razão prática.

OS NOVOS DESBRAVAMENTOS DA LIBERDADE

Em verdade, após a morte de Hegel, o nosso assunto viria a conhecer novas tematizações, todas centradas em torno das medidas possíveis de liberdade. O que desaparece de fato, finados os teologismos, concentra-se na morte da medida absoluta do ato livre. Mas logo a seguir é ainda a questão das medidas, agora no plural, que começa a traçar carreiras por novas paisagens. E esse plural permite adiantar que a inteireza da problemática da liberdade, como que a inventar inusitados pressupostos, move-se nos interstícios de uma antinomia fundamental, rasgada por aporias tão incipientes quanto urgentes. Pois, por um lado, depara-se-nos a temática cartesiana da liberdade individual e absoluta a querer-se até desprovida de medidas, sinônimo que seria de independência e autonomia. Em nossos dias, de resto, prossegue ostentando pela vigência tal entendimento da ação livre, a forjar-se a si mesma como dona de seu próprio destino, ainda que seja nos termos dos desavisos da adolescência ou então nos descometimentos do que voltou a ser chamado, por exemplo, de capitalismo selvagem e de suas imperiosidades em níveis até globais. Por tudo isso: não apenas pelas muitas formas de egoísmo no plano moral, mas por algo de mais forte, como uma espécie de egotismo (a expressão, se bem lembro, vem de Santayana) ontológico. Acontece que, por outro lado e ao mesmo tempo, brotam novas temáticas, e isso nas constantes crises geradas pelas distorções sociais e da própria invenção das bases modernas do trabalho, ou ainda pelas ousadias mesmo que cotidianas das invencionices de toda uma nova literatura, a do moderno romance, a fundamentar a própria possibilidade do advento da psicanálise.

Por esses e tantos caminhos passam a perfilar-se novos cenários a questionar justamente os possíveis referenciais da liberdade. A antinomia referida reside neste ponto preciso: se por um lado, como foi dito, topamos a vigência por assim dizer insofismável da aceitação de uma liberdade total, por outro lado passa a atulhar-nos todo um vasto e diversificado panorama a propósito de seus condicionamentos. A ocupar os espaços da teologia, nasce agora um farto repertório de novas medidas a assentar a liberdade e sua constituição em novos alicerces. Assim, a prática reiterada da liberdade absoluta passa a tropeçar na inventariação de medidas outras, como que a embargar as suas disposições por assim dizer inatas. O vigor da antinomia se vê aqui: a liberdade que se que total termina por contrapor-se a medidas que parecem cerceá-la em múltiplos níveis. Trata-se, insisto, de uma antinomia, quero dizer, de uma contradição que parece não encontrar amparos superadores em suas próprias tramas, ela habita como que as entranhas da vivência hodierna da liberdade — o homem de nosso tempo está, em sua livre prática, instalado nessa antinomia.

O estudo das novas dimensões da liberdade já soube construir bibliotecas. Desde a segunda metade do século XIX a análise de nossa temática vem acumulando resultados extremamente diversos, gerando desde teses que se dedicam à defesa de formas de determinismo a negar pura e simplesmente a liberdade, até a exploração das mais diversas modalidades de condicionamento da ação livre. E tudo não passa dos empenhos em torno desse questionamento maior que está na construção das medidas da liberdade. Para aclarar o tema, baste-nos aqui aventar um resumido índice das novas investigações que parecem caracterizar os seus tópicos mais essenciais.

São três as medidas da liberdade que passam a impor-se à consideração com maior pertinência: a biológica, a psicológica e a sociológica. Proponho a seguir alguns considerandos sobre esses três tópicos. São três, e isso já denota a extensibilidade do problema, e eles constituem as dimensões essenciais da própria tessitura da realidade humana. E nem se pretende aqui descartar outras dimensões dessa problemática, a configurar, por exemplo, horizontes mais amplos e mesmo dispensáveis, a ponto até de alcançarem níveis de ordem ontológica. Mas nos permeios de base há os três elementos constituintes referidos. O que então se veri-flea está num progressivo deslocamento do lugar das medidas da liberdade, a medida absoluta como que se espraia e se vai descaracterizando. E se o absoluto se vê marginalizado e mesmo esquecido, nota-se logo que o seu lugar passa a ser ocupado, primeiro, pela medida auto-referente da autonomia da liberdade em si mesma, por sua inovadora convicção de auto-suficiência. Mas é justamente em função dessa nova autonomia da liberdade que se erguem aos poucos as discussões de medidas outras, que levam a reiventar o próprio conceito de liberdade. Passemos a considerá-las.

O CONDICIONAMENTO BIOLÓGICO

Apenas indico aqui a importância dessa imensidão um tanto opaca que constitui o condicionamento biológico do homem. Trata-se dessa brutalidade do corpo, dessa insistência num rosto definitivo ainda que em parte construtível, desse corpo e de seus jeitos em tudo pertinentes, das distrações do olhar, dos encontros que nem se querem, dessas fatalidades que escamoteiam vontades aparentes — enfim, trata-se da verdade maior a assegurar que o homem é corpo de ponta a ponta, definitivamente uma res extensa. E de reconhecer nessa extensão da pele que tudo recobre a lei maior do prazer, a percorrer todos os caminhos e descaminhos da própria existencialidade; nessa afeição tão frequente aos desgarros, o corpo é por inteiro desejo, e dessa sua condição tudo parece depender. São coisas muito fortes e que falam por si, como que a motivar um discurso que quase tropeça no impossível. E o impossível já começa por aqui: são forças que chegam a comprazer-se em esvaimentos que nada têm de desumano. O corpo é o corpo — princípio da estabilidade, do conforto, do estabelecimento do homem neste mundo; realmente, é pelo corpo que o homem passa a situar-se no espaço e no tempo, podendo por aí tornar-se essencialmente o ente histórico que diz da competência maior da realidade humana. Observe-se ainda que foi tão-somente no contexto da filosofia contemporânea que surgiu o novidadeiro empenho da construção de uma ontologia do corpo.

O homem tem a cara que é toda sua, tem mãos que agarram e pés que andam — e difícil é desaperceber-se que tais aparelhos vinculam-se de muitas maneiras ao próprio exercício da liberdade. Cabe até afirmar que sem corpo a liberdade estiolaria toda a sua razão de ser, o compromisso que deve ser a vontade do livre-arbítrio sem o corpo perderia as perspectivas de seu situar-se específico. Mas é já na presença de certa opacidade a configurar as manobras do corpo que convém chamar a atenção para uma dessemelhança de interpretações que pode clarear não poucos pontos dessa condição humana tão encravada no corpo. É que compete fazer já nos primeiros passos de abordagem do tema distinções que permeiam muitas teses sobre o assunto. Fico, aqui, na oposição mais elementar. Se existem, de um lado, formas de determinismo que se pretendem absolutas em seus compassos de opacidade — como certa ciência reflexológica, por exemplo —, que negam a liberdade em nome de tramas de natureza puramente biológica, há, de outro lado, posições outras, como a do existencialismo de Sartre; o seu cartesianismo leva-o a inferir que, se não existe Deus, a liberdade se quer absoluta, acrescentando-se a essa tese a afirmação de que todas as formas de condicionamento acobertam disfarces definitivos de determinismo, e os determinismos são sempre fonte de “má-fé” a mascarar os resquícios mortais de um Deus impossível e contraditório — e isso precisamente em nome da liberdade.

As teses não se poderiam opor de modo mais frontal, e são precisamente tais oposições que levam a estabelecer uma distinção, em tudo elucidatória, entre determinismo e condicionamento. O determinismo seria radicalmente avesso à própria possibilidade de liberdade, tudo aconteceria dentro de um jogo fechado em sua própria imanência, preso a reações específicas, atravancando qualquer fresta que viesse a insinuar o surto de liberdade. Tal tese até parece difícil de ser defendida, mas tudo indica que ela possa contaminar, digamos, as estruturas “inferiores” da constituição corpórea. Isso para não falar da evidência dos casos de patologia, realmente, a patologia não raro representa uma forma de paralisação só compatível com a ausência de qualquer estofo de responsabilidade na conduta propriamente humana. E é exatamente esse nível inferior em que fica restringida a conduta humana que leva a legitimar este outro conceito, o de condicionamento da liberdade dentro dos limites dos imperativos biológicos, o conceito de condicionamento oferece ao menos a hipótese de uma flexibilidade bastante grande, que permite dizer, por exemplo, que tudo é biológico, mas que também, e por isso mesmo, nada é biológico, ou a afirmar, como faz Merleau-Ponty, que a vida sexual se desdobra em dimensões “metafísicas”, ou seja, ela se faz presente na inteireza do próprio sentido da existência humana, transcendendo e condicionando, a um tempo, o plano meramente biológico. Talvez o mais importante esteja em reconhecer que o condicionamento biológico, longe de representar uma forma inferior do comportamento, implica antes o processo de corporificação da liberdade, emprestando-lhe uma dimensão congenitamente humana. Afinal, a liberdade intromete-se nos modos como o homem exerce o seu próprio corpo, e passaram-se os tempos de considerar o corpo como realidade por assim dizer negativa e pecaminosa. De qualquer maneira, parece que já não se pode descartar a idu de que pelo corpo o homem se faz livre, e de que pela liberdade o corpo alcança a sua plenitude humana.

O CONDICIONAMENTO PSICOLÓGICO

E as coisas não se tornam menos complexas se passarmos ao plano da realidade psíquica — talvez tudo se torne agora um pouco mais transparente. Aqui também tudo se passa nos escalares entre determinismo e condicionamento.

A propósito, lembro apenas o notável ensaio de Freud sobre Da Vinci, única tentativa sua de meter-se no âmbito do especificamente biográfico. A longa e bela análise de Freud busca os seus argumentos um pouco por tudo, ao longo da vida e da obra do artista, a começar pela insistência de Da Vinci em abandonar boa parte de suas obras no inacabamento, e especialmente significativo foi sem dúvida o relato sem par feito pelo próprio artista em um de seus escritos de um sonho de infância em que aparece a figura de uma aye; possivelmente, explica Freud, esse sonho não seja da infância, mas tenha sido uma experiência mais tardia e transferida para a infância. Seja como for, o psicanalista pinta um vigoroso quadro a mostrar todas as pendências do artista em relação aos seus primeiros anos e os traumas deles decorrentes. Então tudo parece poder “esclarecer-se pela ação conjunta de constituição e destino, de forças interiores e poderes exteriores”.[7] Mas isso não autoriza, segundo nosso analista, a concluir por um determinismo puro e simples, que autorizasse como que a deduzir daquele quadro a inteireza do indivíduo. E Freud termina por reconhecer: “Devemos aqui reconhecer um certo grau de liberdade, já não solucionável psicanaliticamente”.[8]

Num outro texto de Freud aparece, além do controvertido conceito de sublimação, empregado por vez primeira justamente no ensaio sobre Da Vinci, ainda outra palavra — Locke rheit, que talvez possa ser traduzida por flexibilidade, ou ainda por soltura.[9] Lê-se neste texto, escrito seis anos depois do ensaio sobre Da Vinci, que a arte faz-se em caminho de volta da fantasia para a realidade, ou seja, que o artista conseguiria realizar através de sua fantasia, o que antes ele só conseguira alcançar na sua fantasia. A aderência à própria fantasia configura precisamente o quadro da neurose, mas o que vale para um indivíduo não precisa valer para outros, e esses outros talvez nem sejam necessariamente artistas.

De qualquer forma, há algo como o cultivo de uma certa distância a garantir os espaços possíveis para as andanças de certa liberdade. Ao que tudo indica, existem formas de patologia intrinsecamente alheias a tudo o que possa significar liberdade e responsabilidade, vê-se até que, aqui também, a patologia põe a liberdade em causa. Mas, quase que por definição, a patologia configura o quadro da realidade curável. Tal é de resto a natureza dos tratamentos em geral, e a psicanálise busca, no final, algo como o alargamento dos processos de conscientização e, por consequência, a fertilização também dos terrenos adequados ao exercício da liberdade. Mas, afirmando-se isso, nem se pretende que os condicionamentos vigentes possam evaporar-se numa transparência absoluta: o que importa está antes nessa dialética entre esferas condicionantes e os compromissos de uma liberdade que se quer sempre mais lúcida. E o limite esteja talvez por aí: qui veut faire l’ange fera la bête.

O CONDICIONAMENTO SOCIOLÓGICO

Resta-nos, para concluir, traçar algumas observações sobre os condicionamentos sociais da liberdade, certamente a forma mais ampla, a mais abrangente de condicionamento, já que nela tudo termina de algum jeito por inserir-se. E tomo aqui, como ponto de partida, o conhecido asserto de Marx que afirma, redondamente, que a liberdade está no “reconhecimento da necessidade”. Vista de fora, a afirmação parece nem ir além de simples submissão à mais total dependência. As coisas se complicam, entretanto, quando se percebe que Marx tinha nada menos que a filosofia alemã na cabeça, isto é, liberdade e necessidade eram termos que já vinham fazendo história, eram conceitos que apresentavam uma tessitura em tudo singular. E é isso o que deve ser discutido.

Digamos que as tramas começam com Kant, e mesmo antes, com a oposição cartesiana entre coisa extensa e coisa pensante, entre corpo e alma; oposição essa toda feita de dessemelhanças, a afigurar-se como fonte de conflitos sem possibilidade de vislumbrar-se-lhes qualquer solução. Salvo uma, dependendo dos pendores: os alçares das especulações metafísicas. Se Descartes tem a prudência de deixar a questão em aberto, assim não fazem os seus herdeiros, como mostra a tese do ocasionalismo divino de Malebranche, ou a da harmonia preestabelecida de Leibniz. E é no interior desse panorama, esmaecido por presenças céticas, que se estabelece a teimosia de Kant: se a metafísica se vê enfim marginalizada, como encarar as candentes questões daquela então já clássica oposição? Ainda que os caminhos se façam mais complicados, a oposição kantiana rastreia a antinomia fundamental de Descartes: existe o mundo dos fenômenos sensíveis, vistos depois de Newton mais claramente do que nunca como submetidos ao determinismo do mundo material; e, a contrapor-se a essa ordem, a espontaneidade da ação livre do homem como membro incontestável do mundo numenal, que inventaria a espontaneidade do caráter autônomo da liberdade. A antinomia prefigurada por Descartes continua, assim, imbatível: como conciliar necessidade e espontaneidade? Está claro que o pressuposto metafísico essencial a toda essa problemática está na distinção entre corpo e alma.

Mas o que nos interessa aqui nem está nesses enredos, que, seja em Descartes seja em Kant, parece nem poderem oferecer saída. E no entanto, é em torno de uma possível saída para essa antinomia que se move boa parte do pensamento pós-kantiano. Como se vê em um Fichte. Mas penso aqui, e principalmente, no cometimento em tudo significativo de Schiller. Este kantiano fervoroso fez basear toda a sua estética na possibilidade de uma crítica positiva a Kant. E o poeta o faz, como se sabe, através da exploração do conceito de jogo. Convém, a propósito, não esquecer que o verbo alemão spielen, como também o seu correlato inglês to play, oferece ao menos quatro acepções: quer dizer brincar, mas também jogar (numa acepção ampla), e quer dizer ainda interpretar no contexto dos instrumentos musicais, e, por fim, refere-se à interpretação teatral, do ator em cena. Infere-se logo que o dramaturgo Schiller estava particularmente interessado no spielen na acepção cênica da palavra. Mas é num sentido bem mais extenso que ele afirma em suas Cartas sobre a educação estética do homem, a fim de fundamentar toda a sua visão pedagógica da arte, o seguinte: “0 homem só joga quando for homem na plena significação da palavra, e ele só é inteiramente homem quando joga”, para ser bem entendido, este aparente paradoxo deve ser aplicado “à dupla seriedade do dever e do desti-no”.[10] Assim é que um dom Carlos, por exemplo, vive de ponta a ponta, no belo texto que o exibe, entre o mundo fenomenal e o numenal, entre a necessidade física do destino e a espontaneidade da liberdade que é o cumprimento do dever, e tudo nos limites de um jogo que leva a um escopo pedagógico bem definido, que está no aprendizado da liberdade, ainda que esta, se chega demasiado tarde para o infortunado personagem, deverá valer, pensa o otimismo de Schiller, para a educação geral do público.

Teria a antinomia kantiana sido superada? Do modo como foi colocada, a questão parece nunca ter sido levada muito a sério pelos sucessores mais imediatos de Schiller. Entretanto, o que importa está no fato de o conceito de jogo, devido ao poeta, ter passado, mas isso principalmente no século xx, por um extraordinário processo de ampliação. Em primeiro lugar, por sua estrutura intrínseca. Veja-se, para ficarmos em um exemplo que nos é próximo, o que acontece num jogo de futebol, de um lado uma necessidade rigorosa e restrita: a delimitação física do campo de esportes, e também, e mesmo mais significativamente, as convenções a normatizar todos os acontecimentos em campo. E essas necessidades exatas, cultivadas com um rigor meticuloso, coadunam-se perfeitamente bem com a espontaneidade do jogo, e chegam a desenvolver excelências em criatividade e por que não lembrar aqui as exigências schillerianas levadas até à sua perfeição? E não é mera curiosidade referir aqui o fascínio, em tudo schilleriano, de Brecht pelo esporte, no caso o boxe: a luta entusiasmava o poeta, a ponto de querer ver o seu ritmo trasladado para a cena dramática, mais precisamente: o fato de que, no esporte, o total e compulsivo irracionalismo do público, tão inteiramente entregue a suas reações físicas, ao destino da torcida, virar-se em comportamento totalmente lúcido e racional no caso de qualquer transgressão da norma: a reivindicação da racionalidade, ou o espírito crítico, acasala-se, por aí, com o irracionalismo precedente. De resto, o acerto da análise estende-se para todo e qualquer tipo de jogo, do simples carteado até as complicações do xadrez, passando pela violência do boxe, vale também para todas as modalidades de representação cênica, como vale ainda para a inocência dos brincares das crianças. E os antropólogos do homo ludens irão mesmo mais longe, e estendem as estruturas formais do jogo para as peripécias de um tribunal de justiça, ou para as turbulências de uma assemblu. Por tudo isso, e em muitos sentidos, as coisas começam até a fazer-se políticas, como desejava Brecht.

Mas por que essa longa digressão sobre o jogo? Concluo a abordagem social do condicionamento da liberdade tentando discutir um pouco a promessa feita acima: a visão marxista da liberdade. E o que teriam as idus esboçadas a ver com Marx? Tudo e nada. Lembro mais uma vez que nos Manuscritos de 1844, nosso autor fala em liberdade como “reconhecimento da necessidade”. Tudo portanto. E nada também, porquanto o jogo em Marx é em tudo diferente. Mas nem tanto: o seu jogo é o trabalho, e dentro dele — aqui a novidade, ou a diferença a empecer a visão do que seja a natureza do trabalho — a sua diáspora, a dispersão que fez com que o trabalho se perdesse a si próprio. Aliás, ele como que nasceu perdido, humilhado sob o signo do mal, e o que importa agora está em saber desvendar todo o seu sentido oculto ao longo dos tempos. Mas isso, a partir de uma espécie de necessidade bruta, ou cega.

Claro que o trabalho obedece ao jogo em rígidas proporções, submisso que é ao furor das convenções do capitalismo, por exemplo. E dentro desse entrevero todo, segue também a isso: a leis necessárias e eternas, as da produção e do consumo, no perfazimento de um círculo que acaba pretendendo apenas o estabelecimento do homem neste mundo. É evidente, vê-se por aí, que o trabalho se faz preso a constrangimentos de diversa ordem, com rudezas que terminam autorizando, entrementes, a discussão sobre o caráter da necessidade, sobre os modos de manipulá-la. A questão seria: por onde, nisso tudo, entra o jogo? Pois brinquemos um pouco. E propondo como árbitro desse jogo a clarividente figura de Schiller. Nunca passou pela cabeça de Schiller que o trabalho pudesse ser uma forma de jogo. Ou sim? Representar é trabalhar, até o brinquedo espontâneo da criança é realmente trabalho: toda a sua educação, a sobrevivência mesmo, dependem de sua teimosia, de suas insistências e de seu transpirar. Mas como poderia o trabalho, na especificidade das análises marxistas, ser considerado um jogo? Já em Schiller, a antinomia entre necessidade e liberdade se vê transferida para a prática do exercício do jogo. E é precisamente essa prática, essa práxis, que muda de plano em Marx, na crueza de sua acepção do trabalho. Aventemos: transmuta-se no jogo do trabalho, através da necessidade da produção e do consumo.

Marx diz em algum lugar que todo operário deveria ser um artista. Evidentemente, mas nem tanto, a afirmação não pretende que todo trabalhador deva dedicar-se à arte de tocar violino. O que está em causa, parece-me, é bem outra coisa, que nem é muito mais importante: a essencialidade é a mesma, e tudo se concentra no desenvolvimento da criatividade, não somente do trabalhador, mas de toda pessoa inserida em seu contexto social. Marx foi o primeiro pensador a apontar para a criatividade como dimensão essencial da própria condição humana.[11] Pois tudo indica que tal criatividade integra-se, e plenamente, na concepção de jogo que está sendo examinada. Porquanto há toda uma organização de normas fixas, até demasiadamente fixas, nas exigências do capitalismo e mesmo nas normas “naturais” do trabalho. Mas há também essa outra coisa: o trabalhador não deveria obliterar seu ser criativo.

É fácil constatar que no regime vigente de produção não há muito espaço para a criatividade; o que vigora está muito mais na tendência a acentuar as técnicas puramente repetitivas do trabalho. Isso não significa, entretanto, que a criatividade operária deva ser preterida; depõe, antes, contra certa concepção do trabalho vigente em nosso tempo. Aliás, não deve omitir a existência de análises, e isso em diversos níveis, que fazem o levantamento das tentativas de incentivar a criatividade do trabalho dentro da evolução do sistema capitalista. Seja como for, o trabalho não se revela alheio, corno mostra sobejamente o labor artístico, à contraposição que lhe é inerente entre o empenho repetitivo e a germinação da criatividade.

Parece-me estar neste ponto preciso o possível entendimento da afirmação de que a liberdade habita aquele “reconhecimento da necessidade”. Preso à terminologia kantiana, ainda que profundamente transformada, Marx termina asseverando que os labores humanos, todos resultantes das aflições da necessidade, terminam por gerar, como uma outra forma de necessidade em nada desprezível e pertinente à própria condição humana, o senso da criação; pois a práxis humana — não a animal que, como insiste o nosso autor, é apenas repetitiva — exige, justamente em nome de um novo tipo de necessidade, a invenção do elemento criativo: toda ação humana, simplesmente por ser humana, vocaciona-se para a instauração dos desequilíbrios da criatividade, sempre a vasculhar os apetites e, por aí, a esvaziar a necessidade puramente repetitiva, nesse esforço tão genuinamente humano de se fazer histórico. E sublinhe-se que tudo isso decorre das próprias entranhas da práxis, amarradas sem dúvida às rédeas do necessário, mas também, e muito, à gratuidade das descobertas. Tudo isso, a inventariar o próprio sentido da história.

Entende-se, por esses caminhos, que o trabalho se coadune com o conceito de jogo, próximo da acepção de Schiller e a superar a antinomia kantiana. Pelas necessidades que compõem o mundo da práxis, estabelece-se como que uma distância a incentivar a criatividade, e é precisamente a partir desses lugares que se abrem os espaços para a própria invenção da liberdade. Compreende-se, então, que a liberdade não consista em ser per-tença de uma suposta natureza humana, espécie de acessório a ornamentar como um possível uma essência inamovível. Ao contrário disso, a liberdade se faz objeto de uma conquista, e a realidade social do homem aprende, através de um itinerário desoladoramente lento, a construir todo o sentido que possa ostentar a liberdade, e isso através do que deva ser o trabalho — trabalho que leve à edificação da autonomia do indivíduo, a alicerçar o empenho em tudo moderno da instituição da cidadania. Necessidade e liberdade não se contrapõem à maneira de dois conceitos que se repilam, sem chegar a se constituírem propriamente numa contradição dialética. Pois são experiências que se constroem no interior da contradição: um dos termos só é pelo outro, a necessidade humana se estiolaria na repetição animal, ou em formas de alienação, sem a liberdade, e esta adquire a sua razão de ser através dos embates com a necessidade. Desse modo esclarece-se melhor a própria noção de práxis. E a inteireza do jogo.

OBSERVAÇÕES COMPLEMENTARES

A liberdade não é coisa de peça única. Ela oferece, como se viu, diversas medidas, com pesos variáveis em cada experiência. E justamente nisso residem os matizes de seus compromissos e a sua própria possibilidade. Mas trata-se sempre de um processo dialético, sempre a decorrer da iniciativa e da inventividade humanas, sempre situadas e mesmo sitiadas. Esse processo dialético nem tem fim, e dele dependem essas instâncias infindáveis que são os modos como, politicamente, se vai configurando a história. A contradição entre liberdade e necessidade vê-se estabelecida sem dúvida naquilo que Marx chama de “ciclo eterno”, inerente à própria condição humana e que soube gerar em nosso tempo, pela Revolução Industrial, a férrea e indispensável contraposição entre produção e consumo.

Mas em nossos novos tempos, nos tempos que se foram perfilando ao longo dos séculos mais recentes, desdobrou-se uma nova contradição, em nada alheia à contradição anteriormente indicada. E é que o homem dos novos tempos vive nas imbricações de uma nova situação que lhe é essencial, estabelecida na contraposição de duas concepções da liberdade, e isso de modo surpreendentemente novo. Pois, de um lado, o homem moderno vive a liberdade como forma de experiência absoluta: ele se faz em ser autônomo, independente, e a liberdade lhe pertence como um bem maior. Não é por acaso que a liberdade se arvora na primazia definitiva do livre-arbítrio cartesiano, ou na responsabilidade da autonomia kantiana, até alcançar, por exemplo, a de defesa impenitente da liberdade absoluta em Sartre. E no entanto, de outro lado, o homem, ainda que habitado pelas ânsias dessa liberdade total a transgredir todos os limites, admite também, nas mais simples experiências da cotidianidade contemporânea, o reconhecimento das fronteiras condicionantes da liberdade, simplesmente porque esse homem frequenta o médico, as perquirições psicanalíticas, e aflige-se com os avassaladores conflitos do mundo social e político.

O grande desafio instala-se exatamente num ponto a desnudar uma antinomia essencialística: de um lado, temos a vivência e a satisfação de uma liberdade absoluta a derrubar todas as formas de predestinação, mas, de outro, tropeçamos no confronto com condicionantes, nas medidas diversas que assolam a liberdade a defrontar-se até mesmo com fatalidades. A liberdade sem dúvida existe, nunca existiu de um modo tão fortemente robusto como hoje, produto que é de longas vicissitudes históricas. Contudo, ela medra nessa antinomia essencial entre o individualismo, sem o qual nem haveria liberdade, e as contrapartes sociais, providas de necessidades que acabam se revelando a própria razão de ser da liberdade. Falo em antinomia porque ela se mostra em tudo tão percuciente que nem se consegue perceber qualquer possibilidade dialética que a pudesse superar. Os homens, hoje, são essa contradição antinômica, a ponto de eles perceberem o peso das tarefas que os aguardam. Sonhe-se, pois, na espera, com um novo Schiller.

[1] Já santo Agostinho, no século V, resumindo as anteriores discussões sobre o tema, definia a predestinação como “[…]praescientia scilicet et praeparatio benificiorum Dei, quibus certissime liberantur, quicumque liberantús. Ceteri autem ubi nisi in massa perditionis iusto divino iudicio relinquuntur […]”. Traduzindo: a predestinação divina, “logo se vê, é a preciência e a preparação dos benefícios de Deus, pelos quais certissimamente se salva tudo o que se salva. Os que não se salvam, são abandonados por justo juízo de Deus na massa de perdição […]”. O aparente otimismo de Agostinho não poderia contornar, tantos séculos mais tarde, a coerência e a radicalidade da tese de Lutero.

[2] Les principes de la philosophie. Paris: Gallimard, 1952, p. 588. Julgamos suficiente limitar-nos aqui às citações extraídas deste ensaio.

[3] Idem, pp. 588-9.

[4] Idem, p. 588.

[5] Idem, p. 588.

[6] Idem, p. 587.

[7] Freud, Sigmund, “Eine Kindheitserinnerung des Leonardo Da Vinci”, em Bildende Kunstund Literatur, Studienausgabe. Frankfurt: S. Fischer, 1969, vol. X, p. 156.

[8] Idem, p. 157.

[9] Freud, Sigmund, Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse und Neue Folge, Studienausgabe, Frankfurt: S. Fischer, 1975, vol. I, p. 366.

[10] Schiller, Friedrich, “Ueber die aesthetische Erziehung des Menschen in cinder Reihe von Briefen”, em Philosophiesche Schriften, Liepzig: Inselverlag, s/d., p. 421.

[11] Sobre o assunto, veja-se de nossa autoria o ensaio “A invenção do novo”, em Tempo e história, Companhia das Letras.

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