2011

As portas das crenças

por Pascal Dibie

Resumo

Convém sempre pensar duas vezes antes de atravessar uma porta, pois o que está “dentro” e o que está “fora” atraem da mesma maneira que repelem. Eis por que a “entrada” vale tanto quanto a “saída”, motivo pelo qual jamais se desconfia o bastante de uma porta. Isso explica também por que o ato de atravessá-la está sempre associado a ritos de passagem e crenças específicas, dependendo das culturas. Pouco se pensa nisso como uma aventura que, no contexto de passagem, pode ser também um meio de se engajar e de mudar. A oferta de fuga está em toda parte. O espaço entre o aberto e o fechado, o dia e a noite implica que se empurre sempre uma porta com seus riscos e perigos, já que, além de limitar o espaço, mas ela também o é. Daí ela dar forma ao tempo e muitas vezes o celebrar, em sua física função de batente. Jamais se pode espantar por encontrar em torno da porta toda uma aparelhagem de proteção ligada às precauções inerentes a encontros humanos. “As cadeiras que protegem a soleira, as fotos que contornam a portaria são deuses lares decaídos, e a violência que elas devem debelar toca o coração como sinos”, escreve Walter Benjamin no livro das Passagens. Georg Simmel acrescenta que “nela o limite toca o ilimitado, não através da geometria morta de uma divisória, mas através da possibilidade oferecida de uma troca durável. A porta é feita de tal maneira que, através dela, a vida se espraia para fora dos limites do ser-para-si isolado até o ilimitado de todas as orientações”.

A soleira é investida de uma força esotérica muitas vezes reforçada por uma potência telúrica que provém de seu papel de passagem entre o exterior (o profano) e o interior (o sagrado). Pôr-se à soleira é muitas vezes ficar sob a proteção do dono da casa, enquanto atravessá-la exige certa pureza do corpo e de intenção simbolizada, por exemplo, na obrigação de se descalçar para entrar em uma mesquita ou em uma casa japonesa. A soleira é a fronteira do sagrado, que já participa da transcendência do centro. Cabe mesmo verificar que em todas as sociedades e culturas existem ritos de passagem incríveis quando se recusa a acreditar na crença dos outros. Lembrar-se de “passagens de porta” nessa ou naquela família, nesse ou naquele lugar, nesse ou naquele país – eis momentos inesquecíveis como travessias de fronteiras. Porta consagrada aos lugares santos, “mezuza” contra os maus espíritos sobre o portal direito das casas judias, emblema do peixe ou da mão do fatma entre os muçulmanos, objetos brilhantes nas casas de campo da Provença, vassouras ritualísticas na Rússia, germes de trigo, chicanas na China etc. Tudo isso requer um olhar tanto filosófico (simbólico) quanto etnológico (material).


Eu gostaria de considerar aqui a crença como algo que é diretamente ligado ao nosso cotidiano, ou seja, como algo que seria ligado ao passado, algo que temos a impressão de conhecer por disse me disse e que observamos ainda em parte e de maneira mais ou menos automática. A crença, obviamente, tem a ver com a memória e também com a necessidade de memória. Maurice Halbwachs[1] lembra que a memória coletiva trabalha quase apenas num quadro espacial perfeitamente definido. O espaço sendo uma realidade que dura e que o homem pratica, escolhi me concentrar nos limiares, nas passagens e mais particularmente nas portas — essas barreiras físicas que o homem ergueu entre o dentro e o fora e que empurramos ou puxamos várias centenas de vezes por dia.

Por sua vez, toda crença, ou quase, se inscreve numa espécie de quadro que, longe de ser imutável, forma quadros mais ou menos estáveis aos quais nossa imaginação se apega. Não existe nenhum grupo humano que não tenha uma relação com um lugar ou uma fronteira e que não desenvolva crenças específicas em relação a esses lugares; assim sendo, os exemplos de crenças que vou desenvolver mais adiante devem ser entendidos como heranças ou ressurgências de passados coletivos, habitus ancestrais aos quais mal prestamos atenção no cotidiano.

Se eu tomar um idioma, ou melhor, o vocabulário, que ao seu jeito é um objeto, a data de surgimento das palavras sobre o assunto escolhido é vinculada num primeiro momento à sua aceitação social (criar e construir um hábito) e, num segundo momento, ao seu reconhecimento acadêmico e à sua entrada no dicionário, sem omitir a ideologia que as envolve. Uma ideologia pode muito rapidamente se transformar em “crença”.

A ideia do “aberto” e do “fechado”, por exemplo — entendam abertura e fechamento —, vai bem além da minha história de porta. Abrir significa nos primeiros textos “fazer com que o que estava fechado deixe de sê-lo”, e depois “deslocar o que impede o livre acesso”. Este termo surge em francês em 1080, ao mesmo tempo que “porta”. Ao passo que “chave” (1180) — que significava “o que barra”, “fechamento” (1180) e “fechar” (1190), aparece apenas um século mais tarde. Será que podemos deduzir disso que a hospitalidade foi durante muito tempo mais importante do que se fechar sobre si? Em todo caso, isso tem a ver com o surgimento do “privatus” e com as transformações do modo de vida no Ocidente. A abertura e o fechamento são termos que ouvimos hoje com frequência em politica, depois de tê-los ouvido a respeito das religiões: fala-se em religião aberta, fechada etc. A porta pela qual podem nos convidar a entrar, que podemos bater etc. é importante na nossa visão do mundo. A simples evocação de seu nome resulta em mecanismos inconscientes de percepção e de criação que dão a impressão estranha de que, além de ser universais, eles são ao mesmo tempo sem limites e servem para limitar. Quem, na nossa cultura cristã, não ouviu a evocação da famosa “porta estreita” da Bíblia? A metáfora de Jesus ao pregar nas cidades e nos vilarejos a caminho de Jerusalém é de fato bem ancorada no imaginário coletivo cristão. “Procurai entrar pela porta estreita”, respondeu Jesus a um ouvinte dubitativo, “porque, digo-vos, muitos procurarão entrar e não o conseguirão. Quando o pai de família tiver entrado e fechado a porta, e vós, de fora, começardes a bater à porta, dizendo: Senhor, Senhor, abre-nos, ele responderá: Digo-vos que não sei de onde sois”. […] “Ali haverá choro e ranger de dentes.” Esta porta misticamente reforçada que se fecha sobre os incrédulos também servirá de peneira, de acordo com as palavras pronunciadas logo em seguida e como em conclusão do aviso lançado por jesus: “Há últimos que serão os primeiros, e há primeiros que serão os últimos (São Lucas, XIII, 22-30)”[2].

Acho que todo mundo conhece narrativas romanescas evocando a passagem fortuita por uma porta, passagem que teve consequências tão decisivas que o destino mudou. “A porta, é todo um cosmo do Entreaberto”, escrevia Bachelard em A poética do espaço[3]De fato, a porta é esta repentina fronteira que se oferece oportunamente, que convida para uma passagem livre que não é nada senão entrada no desconhecido. Cada um sabe que é sempre preciso olhar duas vezes antes de passar por uma porta: elas escapam ao controle e devemos desconfiar delas, visto o grande número de portas armadilhas que se abrem e se fecham sozinhas. De um lado da porta, colocamos o não real e o subjetivo: talvez seja o “dentro”; do outro lado, imaginamos que o real existe: é o “fora”, a menos que seja o contrário… Com efeito, “Entrada” equivale a “Saída”, dependendo do lugar onde estamos e a nossa percepção. A porta é uma questão de comunicação e de alteridade, já que abre para alhures, é impossível não imaginar que ela também abre para o outro. Penso no Emmanuel Lévinas, nas suas páginas sobre o homem e sua moradia, sobre o círculo fechado do mundo ambiente e sobre a dolorosa ruptura imposta por Outrem a cada universo, até então bem estanque e enclausurado.

Eu gostaria de citar um trecho do livro de Vincent Delecroix, que fez sucesso há pouco tempo com uma obra chamada Na porta:

“Maldito seja aquele que se encontra do lado de fora do seu próprio cômodo, ele não terá mais nem lar nem lei”, como diz Aristóteles, ele será como uma fera selvagem, menos que um homem isolado no meio de todas essas feras domadas, elas próprias menos que homens, girando em círculos, trancafiadas no seu redutozinho decorado com televisão e guarda-roupas. Maldito seja aquele que vir pedir ajuda ou apenas falar com elas.[4]

Georg Simmel, em termos mais sociológicos, vem reforçar essa ideia:

Ao criar uma espécie de junta entre o espaço e o homem e tudo o que está fora dele, a porta abole a separação entre o interior e o exterior.

Como ela também pode ser aberta, seu fechamento dá a impressão de uma obstrução de todo este espaço além bem mais forte que a de uma simples parede inarticulada. Esta permanece muda, quando a porta fala […] A porta se torna então a imagem do ponto fronteira onde o homem permanentemente está ou pode estar […] Nela, o limite beira a ausência de limites. Não pela geometria morta de uma parede estritamente isolante, mas pela possibilidade oferecida de uma troca duradoura. As propriedades da porta permitem que a vida se derrame fora dos limites do ser-para-si isolado em todas as orientações ilimitadamente […] Porque o homem é esse ser de ligação que sempre precisa separar e que não pode juntar sem ter separado, temos primeiro que conceber na nossa mente como uma separação a existência indiferente de duas margens para poder juntá-las por uma ponte. E o homem é ao mesmo tempo o ser fronteira e aquele que não possui fronteiras […] Do mesmo modo que a limitação informe adquire uma aparência, nosso estado limitado faz sentido e encontra sua dignidade no que a mobilidade da porta materializa, isto é: na possibilidade de quebrar esta limitação a todo instante para conquistar a liberdade[5].

Fica impossível não pensar na imagem do homem de O processo de Kafka[6], que fica a vida toda sentado às portas da Lei e morre sem ter ousado contradizer o vigia que o impedia de entrar; ou então nos reis do poeta Francis Ponge[7], que não conhecem a felicidade que é de tocar e de empurrar portas.

Na sua obra sobre as Passagens de Paris, Walter Benjamin mostra também, apenas descrevendo as portas, o quanto elas ainda são sacralizadas, muito secretamente. Ele observa muito justamente “o quanto empobrecemos em termos de experiências de limiares”, embora constate que o “sortilégio dos limiares” continua bem vivo:

Na entrada do ringue de patinação, do bar, da quadra de tênis, dos lugares de excursão: penates. A galinha dos ovos de ouro feita de pralina, o autômato que estampam nossos nomes, os caça-níqueis, as máquinas que preveem o futuro e, sobretudo, as balanças pessoais — o oráculo délfico de hoje — são os guardiões do limiar […] O mesmo sortilégio também reina, embora de maneira mais secreta, dentro dos apartamentos burgueses. As cadeiras de cada lado da soleira, as fotos em volta dos montantes da porta são os deuses Lares destituídos, e a violência que devem apaziguar ainda nos atinge bem no coração com as campainhas. Tente, de fato, resistir, não ceder, quando você estiver sozinho num apartamento, a uma campainha insistente: você vai ver que é tão difícil quanto um exorcismo[8].

Em Mal-estar na civilização, Freud observava que “na vida psíquica, nada do que uma vez se constituiu pode afundar: tudo permanece conservado de uma forma ou de outra e pode, em circunstâncias apropriadas, por exemplo, com uma regressão voltando longe o suficiente, ser chamado a ressurgir”[9]. Ele até propunha a “hipótese fantasiosa de que a cidade (Roma) não seria um lugar habitado por homens e sim um ser psíquico com um passado tanto longo quanto rico, onde, portanto, nada do que nasceu desapareceu até hoje e onde subsistem ao lado da primeira fase evolutiva todas as fases anteriores”[10] . A Roma mencionada por Freud é a roma quadrata, a Roma das origens fundada por Rômulo, com a lembrança do templum e do recinto em relação com o mundus, o fosso da fundação. O solo da cidade possui um valor místico dentro do próprio sulco traçado por Rômulo; o sulcus tinha como objetivo criar um recinto sagrado e protetor da pureza em volta da nova comunidade, proteção que se materializará com a construção de muralhas na sua borda exterior. Plutarco relata uma versão da cavação do sulco que nos remete diretamente à crença que nos ocupa aqui. Ele escreve:

O fundador, tendo colocado no seu arado uma relha de bronze, ata um boi e uma vaca e os conduz cavando um sulco profundo na linha circular traçada. Os homens que o seguem são encarregados de recolocar do lado de dentro os torrões que o arado levanta e de não deixar nenhum deles do lado de fora. É uma linha que marca o contorno das muralhas, ela tem o nome de pomerium, palavra que significa “atrás ou depois da muralha”. No lugar onde querem intercalar uma porta, tiram a relha, levantam o arado e deixam um intervalo[11].

Catão descreveu a mesma coisa, acrescentando que “os fundadores de uma cidade atavam um touro à direita e uma vaca do lado interior”. A representação da parelha pode simbolizar a oposição entre o mundo selvagem de fora (lado correspondendo ao touro) e o lado interior, dedicado à fertilidade e antes de tudo à fecundidade, representado pela vaca. É interessante voltar ao pomerium, que era móvel, como acabamos sabendo, em função da disposição ou, melhor dizendo, da progressão das marcas que delimitavam o espaço interior da cidade, urbs, do exterior, o imperium. pomerium representava então uma tripla fronteira: política, religiosa e paisagística.

O folclorista Arnold Van Gennep, na sua obra Os ritos de passagem, fala da passagem material e da fronteira como uma linha ideal entre marcas e postes. “A marca natural pode vir a ser um rochedo, uma árvore, um rio ou um lago sagrado; é proibido passá-la e ir além sob pena de sanções naturais[12].”

Os objetos colocados ali ou designados são geralmente acompanhados por ritos de consagração específicos. Trata-se de um espaço determinado do solo de que um grupo se apropriou a tal ponto que penetrar neste espaço reservado sendo estrangeiro é cometer um sacrilégio, é violar o tabu da passagem. Isso explica por que nunca ninguém passa por uma simples marca ou por um pórtico sem uma leve apreensão. Pode-se, por exemplo, fechar um caminho com um feixe, de trigo ou de flores, um pedaço de madeira cruzada, uma estaca, um pórtico, uma estátua grosseira ou até muito elaborada. Resume-se, enfim, a inventar “guardiões do limiar”. Guardiões que no Egito ou na Babilônia tomaram a forma de dragões alados, de esfinges, de leões, até atingirem proporções monumentais. Esses “guardiões do limiar” se tornaram tão grandes e tão impressionantes que logo não tiveram mais nenhuma relação com a passagem vigiada à qual estavam dedicados. A porta ou o limiar que defendiam foram colocados para o segundo plano, e as orações e os sacrifícios acabaram se endereçando a estes novos deuses, terríveis e exclusivos. O rito de passagem original e material se perdeu para se tornar um rito de passagem espiritual. “Não é mais o ato de passar que faz a passagem”, nota Van Gennep, “é uma potência que garante esta passagem imaterialmente.” Van Gennep salientou a ideia de “reversão da noção de sagrado”: ele mostrou que os dois territórios apropriados são sagrados para quem está na área, qualquer que seja o lado onde ele se encontra. Desse modo, qualquer um que passe de um lado para outro está numa situação mágico-religiosa: ele flutua entre dois mundos, ele entra literalmente na “margem” do mundo. A cada “entrada” num lugar como a cada “saída”, o risco de passar dos limites é tomado tanto fisicamente quanto magicamente: escapa-se de uma proteção buscada para entrar numa área perigosa, suspeita, que vai fazer com que mudemos de estatuto, colocando-nos em perigo no tempo, enquanto a passagem durar.

Ontem como hoje, todo mundo reconhece que as cercanias das cidades são muitas vezes perigosas. São de fato bordas do espaço urbano que contribuem para a definição de um território mal fixado com marcadores, eles próprios mal definidos. Os acessos urbanos, sejam eles atraentes ou repulsivos, fazem frequentemente parte do retrato da cidade e são os signos distintivos dela, até impor crenças em parte capazes de condicionar a vida desta cidade. As portas, além de facilitar a circulação, desempenham justamente um papel importante na personalização de uma cidade. Durante muito tempo, como no mundo romano, a entrada da cidade era situada na continuação e na imediata proximidade das últimas moradas. Essas construções funerárias anunciavam e bordavam a entrada futura. Elas enquadravam os vivos na sua marcha para a única vida vivível: a da cidade! Uma vida terrestre organizada e não selvagem, como a fora do pomerium. Com a presença dos mortos, havia um traço da significação simbólica da passagem e também a vontade de inscrever indissoluvelmente os monumentos na silhueta urbana, o que permitia ao mesmo tempo elevar o prestígio arquitetônico da cidade, mas sobretudo impregnar sua memória no olhar e na mente dos “entrando” e dos “saindo”.

A vida popular muitas vezes esconde tradições e crenças desaparecidas. Sabemos, graças ao trabalho de antropólogos, que as regras ingênuas da magia são “o caule-mãe sobre a qual vieram se enxertar os frutos dourados da lei”, para citar a bela fórmula de James Frazer. Para o autor de O ramo de ouro[13]a magia foi a primeira abordagem científica e a religião, “o esforço do homem para conciliar as graças das potências superiores”. Lucien Levy Bruhr[14] mostrou, por sua vez, que os vínculos místicos anteriores respondem de antemão às perguntas que a experiência nos coloca.

Na nossa história de porta e de “passagem”, os atos mágicos, nas condições em que eram exercidos, pareceram durante muito tempo normais. Precisamos saber que nenhuma sociedade humana conhecida vive sem ritos. Assim sendo, é preciso ver nos ritos coletivos um meio de exaltar a solidariedade social e de manter unido o grupo. Os numerosos ritos de aproximação, de defesa ou de passagem europeus e extraeuropeus que vou apresentar mais adiante não datam de ontem. Muitos caíram em desuso, mas, ao apresentá-los, eu gostaria de mostrar e de fazer com que entendam que sua “compilação”, mesmo se ela às vezes parecer beirar o absurdo, é indispensável para a eficiência do ritual.

Para retomar a mítica fundação de Roma, bem pouca gente se lembra que os pontífices primeiro tiveram como tarefa a manutenção da ponte colocada sobre o Tibre e em particular das religiones, estes nós de palha que seguravam as vigas. O caráter simbólico destes nós que juntam é óbvio, porém é interessante saber que hoje ainda, em quase toda a Europa, estas “religiões” (religere, juntar), que se tornaram simplesmente decorativas, como as pessoas acham, continuam presentes: amarrar algumas palhinhas em nós ou trançadas em cima da verga da porta à guisa de proteção ou de expressão de boas-vindas se faz, de fato, em referência àquela época.

Hoje ainda, no Irã, no primeiro dia de cada mês, pedem a alguém que tem “o pé leve”, isto é, quem é sortudo, para afixar num poste ou na verga da porta um ramo de árvore com folhas perenes, à imagem do destino que se deseja para a família. Igualmente, na quarta-feira que antecede o Ano-Novo, insistem em alguns cantões para que seja também alguém com sorte que pise primeiro no chão da casa, inaugurando assim sob os melhores auspícios o ano que começa e a felicidade do lar[15]. Na Argélia, no primeiro dia do verão muçulmano, as pessoas de Agouri Oufourou traçam em volta de sua porta um retângulo de alcatrão e de esterco fresco para impedir que as crianças adoeçam[16].

Ao visitar amigos judeus, cada um já reparou a mezuzá, aquela caixinha de vidro, de madeira ou de metal afixada em diagonal no umbral da porta, do lado de fora, à direita, no sentido da entrada e — para ser preciso como um etnólogo — a uma altura equivalente ao terço da porta, da verga para baixo. A mezuzá, que em hebraico significa “dormente de porta”, está aí para lembrar os postes das antigas casas de Israel e as portas das cidades. Ela é sempre afixada após uma oração de bênção. Segundo a tradição judaica, ela lembra o signo feito com sangue de cordeiro e que fora traçado nas paredes das casas de Israel para evitar a vingança de Deus na noite do cordeiro pascal. Ela significa hoje a devoção do povo judeu diante do Todo Poderoso e sua presença obrigatória faz de cada um “Guardião das portas de Israel”. Cada mezuzá contém o shemá, este trecho da Bíblia proclamando as inscrições dos deveres e da promessa para os judeus. Shemá que diz: “a duração de seus dias e dos dias de seus filhos no solo que o Eterno jurou dar aos seus pais igualará a duração do céu acima da terra”. É assim que todo judeu testemunha de sua reverência perante Deus ao passar pela porta tocando a mezuzá com a ponta dos dedos, que ele leva em seguida aos lábio[17].

Igualmente, existe hoje ainda no Japão um rito específico ligado à soleira, o de espalhar sal todo dia de manhã na soleira da porta. Dizem até que depois da saída de uma pessoa detestável espalham sal dentro da própria casa para purificá-la[18].

A soleira, palavra que segundo Furetière vem de solum, lar, é um lugar que sempre foi muito temido, muito respeitado e muito “carregado” pelo homem. No seu dicionário do século XVII, Furetière relata que “é crime capital e imperdoável na Tartária pisar na soleira da porta ao adentrar qualquer lugar”. Neste plano, as coisas pouco mudaram, fora o castigo no final. No entanto, esbarrar na soleira de uma iurta compromete ainda hoje a harmonia do lar. Caso ocorra, é preciso pedir desculpas, sair da iurta e voltar a entrar sem tocar na soleira[19].

Num livro de medicina popular datando também do século XVII e encontrado em Weiterswiller, na Alsácia (A), podemos ler:

Ao construir uma nova casa, você escreve sobre três papéis diferentes: Deus, o Pai; Deus, o Filho; e Deus, o Espírito, a Santa e Divina Trindade. O sol e a lua têm sua forma acima da água e do país. Para que nenhum fogo ou nenhuma chama se declarem nesta casa, fabrique três caixas de latão e coloque dentro os três papéis. Enterre as caixas em três cantos: debaixo da soleira ou da pedra, para que não apodreçam. Preconiza-se também enterrar um pote debaixo da soleira, com diversos objetos, entre os quais a camisa de uma virgem, a fim de proteger a casa contra o fogo[20].

No meio rural no sul do Marrocos até os anos 1960, os abortos espontâneos levavam a práticas peculiares: um feto abortado antes dos cinco meses tinha que ser enterrado debaixo da soleira da casa. Ele supostamente a protegia com sua baraka, sua sorte. Durante este período, a mulher não podia dar aos vizinhos nem sal nem fogo nem levedura e o espaço doméstico se fechava sobre si mesmo. Proibiam até qualquer entrada ou saída de objetos e pessoas pela porta da casa[21].

Para continuarmos no Norte da África, o rito das portas em Blida, na Argélia, exigia que no sétimo dia após o nascimento, depois de ter lavado o lactente, a parteira o tomasse nos braços. Depositavam então no peito do recém-nascido embrulhado um espelho redondo que sustentava o fuso do tear familiar. Por cima colocava-se um sachê cheio de índigo, de uma pitada de sal, e outros objetos de uso mágico. A parteira, que ainda estava segurando o neném, se aproximava então da porta do quarto, balançando-o sete vezes acima da mdjiria ou duto para dejetos. Ela fazia a mesma coisa a cada porta, particularmente na porta do toalete, que muitas vezes ficava no vestíbulo, para que os maus cheiros espantassem os intrusos. Finalmente, na porta da rua, de dentro da casa. Chamavam este sétimo dia de “dia da saída da criança”. Esta cerimônia corresponde ao momento em que o neném vai deixar o quarto materno. Ela tem como objetivo apresentá-lo aos djins da casa, sobretudo aos que presidem às aberturas e saídas[22].

Na Alsácia (A[23]), quando uma criança nascia, era preciso desatar todos os nós da casa e, sobretudo, não esquecer de verificar que todas as fechaduras da portas internas estivessem abertas. Era particularmente necessário desconfiar dos espíritos malignos que sempre podiam penetrar na casa pela chaminé, pelas janelas ou pela porta. Assim, traçavam signos mágicos nas vergas. Em Drudenfuss (A), ou a parteira ou o pai de família desenhava um pentagrama (estrela de cinco pontas) na porta de entrada, na coifa da lareira e no parapeito da janela. Todas as portas exteriores da casa — ao contrário das outras portas do lar — deviam estar firmemente trancadas e as janelas, fechadas.

Essas fechaduras serão mais eficazes ainda para parar os espíritos se o marceneiro que as fabricou não tiver se esquecido de confeccionar com as sobras de madeira uma “cruz de Cristo”.

Para reforçar a defesa, o ferro sendo um objeto de horror para todos os espíritos malignos, planta-se uma faca na porta de entrada ou coloca-se em cima ou dentro da cama da futura parturiente facas cruzadas ou outros instrumentos cortantes. Podemos observar que o costume na Europa toda de afixar um ferro de cavalo acima da verga das portas vai exatamente no mesmo sentido.

Para mais precauções, as pessoas afastam os gatos (nos quais os bruxos às vezes se fantasiam), pregam as portinholas para gatos e colocam duas vassouras viradas no quarto da futura mãe, enfeitadas de três grãos de sal. Todo mundo sabe, desde o sucesso planetário de Harry Potter — que, aliás, abre as portas dizendo “Alohomora!” —, que a vassoura virada significa o aniquilamento da potência dos bruxos. Quanto ao sal, símbolo do divino, vocês terão entendido que os três grãos representam a Santíssima Trindade.

Podemos acrescentar alguns ingredientes a esta alta proteção, como em Humpach (A), onde a avó esmagava uma cebola com seu tamanco diante das portas da mulher que acabava de dar à luz e do recém-nascido, se este estivesse dormindo em outro quarto. A cebola, símbolo de vida, é desde sempre um meio muito eficaz de afastar os espíritos que temem as plantas com forte odor e talvez mais ainda chorar…

Em Sundhoffen (A), a luta antidemônios era ainda mais demonstrativa: protegiam-se deles à noite batendo em intervalos regulares e afixando nas portas vassouras de giesta viradas. Escreviam também no quarto do recém-nascido: “Afastem-se, espíritos infernais, vocês não têm nada o que fazer aqui. Esta criança pertence ao reino de Jesus, então, deixem-na dormir em paz”.

As coisas se complicavam um pouco quando uma mãe morria no parto. Nos atos de um processo por bruxaria em Emsisheim (A) datando de 1593[24], mencionam que a mulher falecida no parto voltava toda noite durante quatro semanas para amamentar seu neném. Citavam então o costume de colocar sapatos no caixão da pobre defunta. Uma lenda de Ingersheim (A) conta que se esqueceram de colocar sapatos nos pés de uma mulher morta no parto. Ela voltou logo na primeira noite ao domicílio e bateu na porta, dizendo: Por que é que não colocaram sapatos para mim? Tenho que andar sobre cardos, espinhos e até pedras pontiagudas para vir aqui!”. Seu marido teve, então, que colocar um par de sapatos diante da porta, que ela logo apanhou. E o espírito voltou assim durante seis semanas para amamentar seu neném. Um provérbio alsaciano decorrente desta história diz: “Quando uma mulher falece no parto, ela vai diretamente para o céu com sapatos e meias”.

Em Nachgeburt, na Alemanha, a parteira tinha depois do parto que enterrar a placenta, este “paletó de damasco que o homem veste ainda nu”, num lugar onde não podiam chegar nem os raios do sol nem o luar, longe de gatos ou cachorros, para evitar qualquer desgraça! Era sobretudo necessário se assegurar de que a placenta fosse enterrada na zona de proteção da casa, para que os maus espíritos não pudessem atacá-la e depois prejudicar a mãe. Para este propósito havia a adega, debaixo da escada, ou mais comumente a soleira da casa.

Na China, no terceiro dia depois do nascimento de uma criança, afixava-se na porta do quarto um signo indicando a proibição de entrar. Consistia num rolo com pelos de cachorro e de gato para impedir os animais da vizinhança de fazer barulho ou de espantar o neném, com carvão para torná-lo espirituoso e inteligente, e com seiva de uma determinada planta para torná-lo feliz e rico. Afixavam também uma cueca do pai e um papel com caracteres mandando todas as influências desfavoráveis entrar na cueca em vez de entrarem na criança. Este rito ocorria todo ano ou a cada dois anos, dependendo das famílias, até a cerimônia de “saída da infância”, aos 16 anos.

Em caso de doença grave, executavam a “passagem pela porta” uma ou duas vezes por mês. De manhã, mandavam buscar os sacerdotes taoístas. Construíam um altar no quarto sobrepondo várias mesas onde colocavam pratos com comidas, oferendas, candelabros, deuses etc., enfim, um altar que iam “carregar” para que fosse eficaz… No cair da noite, construía-se uma porta no centro do quarto. Ela era feita de bambus recobertos de papel vermelho e branco, media 2,13 m de altura por 61 ou 91 cm de largura. Um dos sacerdotes tomava uma campainha ou um saibro ornamentado com sinetas, outro um corno, e eles recitavam encantações. Tratava-se de afastar as influências perniciosas que pudessem rondar a criança. Toda a família estava presente. O sacerdote, soprando no seu corno, passava debaixo da porta virtual, seguido do pai de família e das crianças. O sacerdote que dirigia a procissão brandia um saibro ou um chicote e fingia bater em algo invisível. Depois, transportava-se sucessivamente a porta para os quatro cantos do quarto e a procissão prosseguia do mesmo modo até recolocarem a porta no centro do quarto. À noite, no fim do ritual, demoliam a porta e queimavam os fragmentos no pátio da casa ou na rua. A cada execução desta cerimônia, confeccionava-se uma pequena estatueta de madeira que representava a criança. Essa estatueta era conservada no quarto ao lado da representação da “mãe”, que também defendia a criança, até os 16 anos. Se a criança morresse antes, a estatueta era enterrada com ela; se ela estivesse muito doente, faziam passar a estatueta debaixo da porta ritual.

Os ritos de transferência que fazem “passar por baixo ou atravessar” são muito difundidos. É preciso ver aqui a porta como um pórtico que permite a passagem de um mundo perigoso para um mundo favorável ou neutro; mundo cuja porta é a entrada pela qual se passa sete vezes, que é deslocada para cada canto, que é passada quase como um aspirador de demônios e que, no fim do dia, transforma o quarto em um meio limpo, santificado e tornado perfeitamente sadio para que as crianças nele possam viver sem risco[25].

A porta vai voltar a desempenhar um papel peculiar nas cerimônias de passagem dos adultos, notadamente na ocasião dos pedidos de entrada na família que chamamos de “noivado”, mas que começam pelo “pedido em casamento”, proposta esperada e lógica, porém sempre considerada como brutal pela família que a recebe e vai se desfazer de sua filha, ou seja, subtrair um membro de sua família. Estes ritos de separação são ritos mais ou menos violentos. Eles se traduzem muitas vezes por recusas verbais de acolher batalhas simuladas, raptos ou marcações específicas.

Para ficarmos na Europa, pertinho de Paris, em Hurepoix (H[26])[27], em Antony, quando uma moça acabava de ficar noiva, os jovens iam de noite pendurar um ramo de pinho ornamentado de favores na porta da recém-noiva. Este “maio” era para mostrar que o coração da jovem moradora daquela casa estava comprometido.

Na Hungria como na Romênia, o costume em meio rural ainda é de plantar diante da porta da jovem cortejada uma “árvore de maio”, decorada com fitas e véus na ocasião do 1° de maio[28].

Na Lapônia, para um pedido em casamento, o homem vai para a kota dos pais da moça. Amarram seu herk— sua carruagem de renas — na bétula mais próxima. Ele entra na kota e depois de saudar os pais senta na soleira interna da kota, como é usual para os estrangeiros. Nos antigos costumes, os representantes do pretendente tomavam de fato os lugares de honra na tenda, isto é: perto dos pais da moça. Isso explica as precisões feitas por Anta nas suas Memórias de um lapão: “Então Kakik em pessoa foi buscar uma pele de rena toda branca que ele depositou no chão entre ele e sua mulher, e ele convidou Anta para se sentar nela”. Os jovens noivos só podiam intervir nos debates que diziam respeito a eles se fossem interrogados e se mantivessem perto da porta, o que é a posição mais modesta. Convinha que o futuro noivo demonstrasse modéstia. Era o papel apenas do seu representante vangloriá-lo junto aos seus futuros sogros na ocasião do pedido em casamento[29].

Na região francesa da Touraine (T[30]), antes do casamento, acompanhado dos jovens participantes das bodas, o noivo ia buscar sua futura esposa na casa do pai dela. Ele tinha que bater três vezes na porta e cantar: “O Mestre, dê-me su’ filha…”. Evidentemente, havia simulacro de recusa e às vezes até uma demorada espera diante da porta. Finalmente, abria-se a porta e a noiva aparecia, de saia e blusa brancas, diante do seu “futuro”[31].

Na China (Yunnan), quando o futuro genro vai buscar sua noiva no futuro sogro, este o recebe, porém o faz atravessar a casa inteira: as salas, o pavilhão dos livros, o pavilhão dos toaletes etc. A cada porta anunciam em voz alta o rito que o genro tem que cumprir. Chamam este rito de “prosternação nas portas”. Dizem que é porque o sogro vai deixar que vejam sua filha que ele dá importância às portas e que ele impõe provações ao genro[32].

Nos ritos de agregação, a dimensão material desses ritos é sempre importante: corda que amarra, anel, bracelete, coroa etc., todos estes objetos tendo uma ação coercitiva. É verdade que ao mesmo tempo que você vai se “cortar” do passado, de sua família e abandonar sua vida de jovem, você entra numa nova vida. No dia do casamento, a simbólica da porta vai ser reificada.

Em Ligneul-en-Thuringe (T), a noiva a caminho da igreja para a bênção tinha tradicionalmente que executar “o passo em falso da noiva”. Antes de entrar na igreja, ela tinha que esbarrar de propósito numa pedra da praça e repetir mentalmente “Como as outras… Como as outras…”. Quando se tratava do casamento de uma filha de Maria, uma delegação de moças aguardava a futura noiva na porta da igreja para benzê-la com água-benta. Uma de suas amigas segurava a bandeira e as quatro outras, as fitas atadas a esta. Em Antony (H), perto de Paris, quando o noivo não era da região, barravam o caminho que o cortejo seguia ao sair da igreja com uma fita que um dos noivos tinha que cortar, entregando-a aos jovens que a estenderam.[33]

Reencontramos frequentemente este costume da barreira simbólica, como nos Bashkirs: no dia do casamento, quando todos os convidados estão reunidos numa sala, o marido deve, antes de entrar nela, quebrar com o pé um fio vermelho que duas mulheres seguram na porta, barrando a passagem. Se ele não vir o fio e tropeçar ao passar pela porta, todo mundo caçoa dele. E é mau sinal.[34]

Em Bullion (H), colocavam uma vassoura atravessada na porta da casa dos recém-casados. Ao entrar na sua casa, a noiva tinha que guardar a vassoura no seu lugar. Se ela não o fizesse, seria o sinal de que ela iria ser uma péssima dona de casa.

Em La Celle-les-Bordes (H), era um par de pinças, uma vassoura e uma pá para carvão que eram colocados na soleira da porta dos casados. Ao entrar em casa, a noiva tinha que arrumar tudo.

Em Cernay-la-Ville (H), na volta da igreja, os novos esposos encontravam diante de sua porta, além de uma vassoura e de uma pinça, um pano sujo e uma pá. Se cabia à noiva guardar os objetos, era o marido que tinha que guardar a pá. Em Vert-le-Grand (H), colocavam uma cadeira atrás da porta com um guardanapo sujo. Se a noiva se sentasse nele, diziam que ela ia ser uma péssima dona de casa.

Para a noite de núpcias, em muitas regiões da França e até hoje, o novo casal precisa se esconder num local supostamente secreto. No dia seguinte, os convidados festeiros e desavergonhados reencontram os recém-casados e gritam: “Abra su’porta, abra, Senhora noiva, temo a ‘fricassée’”: a “bolée de rôti”, sopa de vinho doce incrementada com biscoitos. Quando os recém-casados não respondem, derrubam a porta e, como vingança, reviram a cama com seus ocupantes, que eles obrigam a beber deste pinico, cujo fundo muitas vezes é decorado com um olho, um cenário e cujo conteúdo não parece de muito bom gosto.

Em Corbeuse (H), a mesma algazarra existia, podendo chegar à quebra das janelas e à retirada da porta, caso os esposos não abrissem.

Em Savigny (H) e em Vitry-sur-Seine, as núpcias duravam três dias. No último dia, o padrinho ia de manhã ao vilarejo e tocava com certo vigor na porta dos convidados para exigir comida (aves, vinho etc.) para garantir a última refeição das núpcias…[35]

Para a última passagem, a morte, vamos ter ritos mais complexos, mais elaborados e, por este motivo, mais respeitados. É a gravidade da situação e a complexidade dos ritos que explica sua permanência até um período bem recente. Hoje, a exclusão da morte nas nossas sociedades materialistas e abastecidas fazem que os ritos como as crenças se desmanchem irremediavelmente e com incrível rapidez. Eles são substituídos com dificuldade por outros ritos que tentamos inventar, embora não saibamos que sentido têm, pois não temos muita certeza de seu efeito nem de sua utilidade.

Um destes ritos-espetáculos modernos é, por exemplo, na Alemanha, o uso de um foguete cheio das cinzas do defunto que, uma vez disparado, as dispersará e fará com que recaiam como chuva sobre os que assistem à cerimônia[36].

Muitos de nós, na França, devem ter assistido a esta absoluta não cerimônia que é a dispersão das cinzas no “jardim da lembrança, organizado até hoje nos cemitérios dos vilarejos menores (Chichery, 2010).

Com a morte vêm os ritos de separação, o momento em que a porta do mundo dos vivos se fecha para tentar — como acreditamos durante muito tempo — escapar ao espírito dos defuntos.

Desde a Idade Média até o século XVII na França, existia o costume de cobrir com lençóis a casa do defunto. As antecâmaras eram cobertas de preto e os outros cômodos, de cinza; todos os espelhos e os quadros eram velados. Esta cobertura do apartamento perdurava às vezes até um ano para o quarto de dormir do morto; os espelhos ficavam cobertos durante seis meses. Depois, pararam de cobrir a casa toda, apenas a porta do morto e o alpendre do prédio eram cobertos e enquadrados por um lençol preto, costume que se manteve até nas cidades. Lembro muito bem dele em Paris até os anos 1960[37].

A morte é um fenômeno sensível e é anunciada por mil presságios, se formos atentos. Desse modo, as portas são grandes anunciadoras de presságios:

Na região de Metz[38], interpretavam o fato de a porta de um cemitério se abrir numa sexta-feira como o prenúncio certo de um falecimento nas seis semanas seguintes. Na Alsácia, era preciso evitar que as portas da igreja ficassem abertas numa sexta-feira ou num sábado, ou ocorreria com certeza um falecimento nas semanas seguintes.

Em Ittenheim (A), os espíritos dos defuntos também conseguiam agir nas portas. Contam a história de uma mulher doente e internada. Haviam reparado que uma porta de sua casa não fechava bem há anos. Deram-se de repente conta de que ela fechava de novo. Soube-se que naquele mesmo dia a mulher morrera no hospital. Ninguém ficou surpreso no vilarejo: o fechamento repentino da porta correspondia à vinda do espírito desta mulher para sua casa natal.

Em Petersbach (A), ainda hoje tomam cuidado para que o caixão saia com a cabeça na frente e não com os pés — como é o costume — para que a alma possa voar da casa. Quando alguém falecia na Touraine, colocavam na porta das granjas e dos campos da família ramos de buxo. Quando ia embora o caixão com seu morto, fechavam as janelas e as portas e todos os orifícios da casa para manter a alma do morto e seguiam para o vilarejo. Lá, colocavam o caixão numa “pedra de espera” diante da porta da igreja[39].

A viagem para o outro mundo e a entrada comportam uma série de passagens cujo detalhe está na relação com a distância e a topografia deste mundo.

No Egito, o Livro das portas descrevia o ritual osiriano da chegada do falecido no Hades. Era uma espécie de imenso templo dividido numa série de quartos separados por portas. Cada sala ou compartimento era separado por uma porta que era preciso abrir ritualmente. Desconhecemos o nome das três primeiras portas e da última, porém, a partir da quarta sabemos que elas se chamavam “A que esconde corredores”, “O pilar dos deuses”, “A guarnecida de espadas”, “O portão de Osíris”, “Aquela que permanece imóvel”, “A guardiã da inundação”, “A grande dos seres, a parteira das formas’,’ e, finalmente, “A que contém os deuses do Hades”.

A essas aberturas das portas correspondiam no ritual um culto cotidiano: no primeiro dia, quebravam a amarra; no segundo dia, tiravam a terra selada; no terceiro, abriam os cadeados. Depois vinham operações em volta do deus pela água, pelo incenso, pela maquiagem etc. Todos esses ritos impediam o falecido de morrer ao torná-lo vivo pelas passagens de portas que o levavam de uma estada para outra e para o deus pela mumificação[40].

Os ritos de separação podem ser mais “brutais”, como no Norte do Togo, entre os Batammariba. Vão na casa do falecido; com um gesto brusco um sacerdote joga no chão o telhado virado para oeste, direção tomada pelos mortos, e o virado para leste, de onde voltam os mortos para formar um nascimento. De um golpe de machado, ele decepa um dos três cornos de barro do rosto instalado acima da porta, que ornava a casa: o da esquerda, que contém a força macho de uma takyenta (residência). Ele tira a esteira de hastes de milho miúdo que fechava a entrada da casa, tira as tigelas que recobriam os altares de fora, o que descobre os sopros dos ancestrais que estavam protegidos. Ele declara então: “De agora em diante, ninguém mais sentará na pedra plana à esquerda da soleira para guardar a entrada de sua takyenta: a morte de um homem é a morte de uma casa”[41].

Em outras latitudes, nos lapões já citados, há atrás da lareira da tenda, marcado por um círculo de pedra, do lado oposto à entrada, o lugar sagrado onde colocavam o tambor mágico e as armas do caçador. Este lugar era tabu para as mulheres. Era por lá, com todo um ritual, que levavam os mortos para fora e traziam os ursos abatidos para dentro. Numerosas crenças fazem com que seja proibido cuspir ali e até passar por cima desse lugar oposto à porta e que só podia servir para as entradas ou saídas excepcionais[42].

A enumeração das prescrições, das proibições e dos tabus poderia ser tão comprida quanto o número de culturas. Lembro rapidamente que ainda identificavam 12 mil etnias nos anos 1970, ou seja, 12 mil culturas, isto é: 12 mil maneiras imaginárias de passar por uma porta. Quarenta anos mais tarde, no último censo, contamos apenas sete mil. Equivale a dizer, como Walter Benjamin, que de fato empobrecemos mesmo em matéria de “experiências de limiares”. A globalização e as mutações extraordinárias que estamos vivenciando não vão nos enriquecer por este lado. O desaparecimento quase geral dos “ritos de passagem” coloca as sociedades fora de si mesmas a tal ponto que as referências no tempo e no espaço se apagam com as crenças que as enquadravam. Nossa nova incompetência para administrar o tempo e nossas mobilidades quase ilimitadas pelo planeta nos levam em direção a uma globalização que impacta nossas próprias vidas. Isso faz com que entremos numa hiper-racionalidade da qual somos, ao mesmo tempo, os cantadores e as cobaias. Com ela, como dizia Jacques Rancière, nasce uma nova crença: “o pensamento da emancipação” de tudo; “pensamento” que é “solidário desta ideia de uma racionalidade sem fronteiras nem hierarquias”[43].

Com efeito, nossas crenças estão se deslocando: elas vão para a biologia, a medicina, a tecnologia, a comunicação. Há dois anos, aqui mesmo, no ciclo que inaugurava a reflexão sobre as “mutações”, eu falava em noosfera, esta religião da comunicação. Porém, nós, os homens, qualquer que seja nossa civilização futura, e mesmo que formemos em breve apenas uma cultura planetária única, “pós-humana” e relativamente homogênea, acho que, mesmo se por esquisitice, ainda precisaremos inventar e praticar ritos, sejam eles minúsculos e pouco variados. Isso posto, qualquer que seja o rito, ele pede e sempre pedirá precisão. Seus gestos e as palavras que o acompanham requerem minúcia e exatidão, a fim de evitar qualquer variação na operação mágica.

No nosso mundo em movimento incessante e dificilmente controlável, a fixidade e a repetição não vão faltar, porém não faço a mínima ideia do que vamos poder inventar para reificar nossa relação com o universo, se é que vamos continuar acreditando que ele existe… Por enquanto, fico observando; o etnólogo continua tentando descobrir estes resquícios de estabilidade que durante muito tempo constituíram a humanidade e que chamávamos de “ritos”. Ritos eram, assim, documentos etnográficos insubstituíveis para entender a maneira que cada cultura, cada sociedade tinha — e ainda tem um pouco — de ancorar e de complicar sem parar sua relação com o universo. Passar de um estado para outro, mudar de estação, se preparar para “entrar” ou para “sair”, como já expliquei demoradamente, não são atos banais e requerem dos humanos precauções e uma vigilância específica, de que gozamos há muito tempo e de que talvez gozemos por algum tempo ainda. Precisamos acreditar nisso: “o que é raro é bom”, ainda afirma o guloso na bela fábula humana…

Notas

  1. Maurice Halbwachs, La mémoire collective, Paris: PUF, 1950. 
  2. Dominique Sewane, Le souffle du mort: les Batammariba (Togo, Benin), Paris: Plon, 2003. (Col. Terre Humaine). 
  3. Gaston Bachelard, La poétique de l’espace, Paris: PUF, 1957. 
  4. Vincent Delecroix, À la porte, Paris: NRF, 2004. 
  5. Georg Simmel, La tragédie de la culture, Paris: Rivages, 1909. 
  6. Franz Kafka, Le procès, Paris: Gallimard, 1933. 
  7. Francis Ponge, Le parti pris des chases, Paris: NRF, 1942. 
  8. Walter Benjamin, Le livre des passages, Paris: Editions du Cerf, 1986. 
  9. Sigmund Freud, Malaise dans la civilisation, Paris: Points, 2010. 
  10. Idem, ibidem. 
  11. Brice Gruet, La rue à Rome, mirroir de la ville, Paris: PUPS, 2006. 
  12. Arnold van Gennep, Les rites de passage, Paris: Picard, 1981. 
  13. James Georges Frazer, Le rameau d’or, Paris: Laffont, 1981. 
  14. Lucien Levy Bruhl, La mentalité primitive, Paris: Alcan, 5927. 
  15. Christian Bromberger, 1986. 
  16. Mohamed Boughali, La representation de l’espace chez le marocain illettre, Paris: Anthropos, 1974. 87. 
  17. Joseph Erlich, Laflamme du Shabbath, Paris: Plon, 1978. (Col. Terre Humaine) 
  18. Philippe Bonin. 
  19. Isabelle Bianqui. 
  20. Freddy Sarg, Fêtes, coutumes et traditions: en Alsace, du berceau à la tombe, Estrasburgo: Oberlin, 1993. 
  21. Mohamed Boughali, op. cit. 
  22. Arnold von Gennep, op. cit. 
  23. Relativo à região da Alsácia. 
  24. Freddy Sarg, op. cit. 
  25. Cf. Arnold von Gennep, op. cit. 
  26. Relativo à região de Hurepoix. 
  27. Claude Seignolle, op. cit. 
  28. Sike, 1995. 
  29. Andreas Labba, Anta: mémoires d’un Lapon, Paris: Plon, 1989 (col. Terre Humaine), p. 223. 
  30. Relativo à região de Touraine. 
  31. Touraine. 
  32. Arnold von Gennep, op. cit. 
  33. Claude Seignolle. 
  34. Arnold von Gennep, op. cit. 
  35. Claude Seignolle. 
  36. Jean-Gustave Hentz, “Entre anonymat et individuation: les rites funéraires en Allemagne”. In: Marie-Jo Thiel (org.), Les rites autour du mourir, Estrasburgo: PUS, 2008. 
  37. Michel Ragon, L’espace de la mort, Paris: Albin Michel, 1981. 
  38. Dictionnaire Messine. 
  39. Touraine. 
  40. Arnold van Gennep, op. cit. 
  41. Dominique Sewane, op. cit. 
  42. Andreas Labba, op. cit. 
  43. Entrevista com Jacques Rancière, Le Monde, Paris: 2 jul. 2010. Permito-me relatar aqui a conclusão da minha participação do ano passado neste mesmo ciclo sobre as “Mutações”. Conclusões que parecem, se confirmar a cada ano: “Numa época em que no Planeta Terra as liberdades individuais tendem globalmente e aparentemente a se estender; os limites enfraquecem; os corpos se transformam; somos levados a deixar de ser produtores variados para nos tornar compulsoriamente os cooperadores de uma imensa cooperativa de consumidores onde reinam as leis do mercado; nossas práticas sociais outrora autônomas se transformam em simples espetáculos; o relativismo constitui a nova moeda de troca de uma cultura planetária contemporânea; nesta época em plena e profunda mutação, não é surpreendente que se instale por um tempo um ‘pensamento fraco’, até encontrarmos, com fundamentos inteiramente novos, um apoio que garantirá o continuum da razão de ser dos humanos: o pensamento”. 

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