2009

As quatro concepções do homem

por Francis Wolff

Resumo

Das questões filosóficas, a da natureza humana é a mais importante, porque todas as outras dependem dela. Sua verdadeira dimensão é dada pela passagem da ideia de criatura divina à de animal social, distinga-se ele pelo uso de utensílios ou linguagens. Tanto que é de tal definição que decorrem as maneiras de ver a vida, a morte, a técnica, a moral, a política…

Convém, pois, extrair os princípios teóricos e as consequências práticas das várias respostas dadas a tal questão, que foram, fundamentalmente, quatro.

A primeira delas busca definir o homem por sua essência fixa e eterna. Ela domina os pensamentos antigo e medieval. Apoia-se sobre o gênero do ser que é o homem – um vivente –, diferenciando-o dos outros da seguinte forma: além dos animais e aquém dos deuses, o homem é político, racional ou dotado de linguagem etc. Essa concepção fundamenta-se numa hierarquia do cosmos. Mas quem é homem e quem não é? Toda definição essencialista do homem não traz nela mesma a origem da discriminação entre o ser plenamente humano e o não humano? Eis a questão prática que se põe a esse tipo de resposta.

Na era clássica, ela foi, por sua vacuidade, criticada por Descartes, para quem a única referência seria a consciência reflexiva. Eu penso, eu sou. E o que sou? Uma substância pensante. Nada mais? Corpo, alma, a união deles, mas, antes, o que distingue o homem é o pensamento em oposição à natureza. Mais: para além desse ser que diz e pensa eu, existe um Deus, infinito em sua matéria inerte, da qual, aliás, pode-se ser senhor através da ciência (ou física matemática) e da técnica. Existe limite para essa potência de conhecimento e de ação humanas sobre a natureza?

As concepções mais modernas, as dos séculos XX e XXI, podem ser entendidas como duas possíveis respostas ao cartesianismo clássico ou ao essencialismo antigo.

O século XX viu o apogeu das ciências humanas, nas quais o homem cessou de ser tomado como o sujeito absoluto e último, senhor de si e da natureza, para tornar-se objeto possível de diversos conhecimentos positivos, tais como a história, sociologia, psicanálise, etnologia, economia etc. E o que há de comum a todos esses “homens”? É o fato de acreditar no Homem, transparente, tal como aparece. Ora, se isso é verdadeiro, se o homem é apenas o ser determinado ou mistificado pelas ciências humanas, disso decorrem novos problemas, a começar pelas palavras. Ainda fariam sentido “liberdade”, “responsabilidade”, “moral”, “bem” e “mal”?

O século XXI institui-se, parece, através de uma crítica cerrada a tudo o que havia, no último século, constituído a idade de ouro das ciências humanas em contraste com as ciências duras. De um lado, há o que é humano, isto é, cultura, linguagem articulada, regra, tudo o que é, enfim, histórica e socialmente recebido, enquanto, de outro, o que é natural e biológico. O paradigma “cognitivista”, atualmente dominante, repousa sobre uma nova ciência que se quer também capaz de definir o homem. Não se trata mais da cosmologia, como na Antiguidade, ou da mecânica, como no século XVII, ou das ciências humanas, como no último século, mas da biologia. O pensamento confunde-se com o cérebro, e o homem reduz-se a seu patrimônio genético. Eis o fim da “especificidade humana” e sua sociedade, linguagem, história etc. Não há mais deuses nem homens propriamente ditos, pois neste tudo é animal, e todo animal é um vivente mais ou menos adaptado ao seu meio. E para isso há, claro, um preço. Se não há mais humanidade definível, sobre o que se fundam os valores, políticos ou morais? A divindade? A animalidade?

Disso surgem quatro maneiras incompatíveis de definir o homem. Como uma essência entre outras essências, como sujeito pensante, como objeto que – apesar de reconhecível – se ignora, como animal. Esses quatro modelos não são apenas históricos. De certa maneira, estão vivos. E cada qual com sua legitimidade científica. Também seu limite. Pensar o homem hoje é medir os riscos práticos de cada uma dessas concepções.


Segundo Kant, as três perguntas fundamentais que o homem pode se fazer são as seguintes: “O que devo fazer?” é a questão prática (ou moral); “O que posso saber?” é a pergunta teórica (ou especulativa); “O que posso esperar?” é a pergunta metafísica e religiosa. Há, porém, ainda segundo Kant, uma pergunta mais importante ainda, a pergunta das perguntas, que é a chave para todas as outras: “O que é o homem?”

Pois da resposta dada a essa pergunta vão depender todas as respostas que se pode dar a todas as outras perguntas. Imagine, por exemplo, todas as consequências da definição do homem enquanto “criatura”. Se o homem é essencialmente e nada mais que uma criatura de Deus, então isso clareia o sentido da existência humana, assim como as três outras perguntas; sei que posso esperar pela imortalidade e pela salvação (ou danação), sei o que posso saber (tudo o que foi revelado por Deus aos homens) e, sobretudo, sei o que devo fazer e não fazer: tudo o que é ditado ou proibido por Deus ou por determinado livro em que suas vontades estão inscritas, desde a maneira de cozinhar a carne ou a escolha do cônjuge até o tratamento a ser dado às mulheres, aos ladrões e aos heréticos.

Poderíamos tomar outros exemplos: o homem somos “nós” em oposição a “eles”, “nós, os arianos”, os únicos homens verdadeiros, os outros sendo meros sub-homens; ou então “nós, os ocidentais”, já que os outros não têm uma civilização universal; ou ainda “nós, as pessoas da minha tribo”, visto que em muitos idiomas só existe uma palavra para designar sua própria etnia e a humanidade em geral. (E se os homens somos nós, então esses bípedes vivos proferindo sons bizarros devem ser animais nocivos ou talvez divindades maravilhosas.) Diga­me, portanto, como você define o homem e lhe direi o que você acredita poder esperar, poder saber e ter que fazer.

Obviamente, não se trata de analisar toda e qualquer concepção possível do homem, apenas de conservar quatro delas pela sua importância teórica na história das ciências e pela sua dimensão prática, moral ou política. Vamos tentar evidenciar o que cada uma dessas definições – seja ela antiga, moderna ou contemporânea – permite saber e o que ela pode influenciar no que deveríamos fazer (pois, como veremos, não há muito o que esperar). Gostaríamos de mostrar que não há conhecimento científico possível sem uma certa definição do homem; mas que qualquer concepção sobre o homem traz certas consequências práticas e até alguns riscos éticos.

A concepção antiga

Nada é mais importante para os antigos que a definição do homem. Aristóteles é ao mesmo tempo aquele que elaborou uma das teorias mais completas da definição em geral e aquele que nos transmitiu a definição do homem mais influente de toda a história do pensamento. Como definir? A lógica nos dá a resposta. Para determinar a essência de uma coisa, é preciso situá-la primeiro no seu gênero, ou seja, na classe à qual ela pertence, aquela cujos integrantes compartilham as mesmas determinações essenciais. O que é então o homem? Resposta: um ser vivo, zôon, palavra geralmente traduzida por “animal”, mas que evoca de maneira mais abrangente aquele que tem vida, zôe. De fato, todos os homens são vivos, ao contrário das montanhas ou das estátuas, e, logo depois de morto, um homem não é mais um homem propriamente dito; antes um cadáver, um corpo, matéria inerte.

O homem é um zôon: resposta certa, é verdade, porém incompleta. Ela nos fornece as condições necessárias, mas não suficientes, para ser um homem. Pois todos os homens são seres vivos, mas todos os seres vivos não são homens. É preciso, portanto, responder a uma segunda pergunta, que faz com que a primeira se encolha sobre si mesma. A pergunta original era: “O que é o homem?” A segunda interroga a resposta “É um ser vivo”: “Em que consiste ser um homem para um ser vivo?”, ou seja, “O que significa viver como um homem?” Precisamos então achar o que representa para o homem ser o que ele é. Evidentemente, vamos precisar explicitar os traços que distinguem o homem de todos os outros seres vivos, o que chamaremos de “diferença específica”. Teremos assim uma definição completa, constituída, do “gênero” e da “diferença”, o conjunto formando o enunciado da essência completa (ou “quididade”) do homem.

Eis a teoria. Ela é clara e perfeita, logicamente falando, embora seja incerta e mais difícil de aplicar. Na verdade, Aristóteles conhece muitas das propriedades do homem: por exemplo, é o animal que possui o maior cérebro em relação ao tamanho do seu corpo, ele tem suturas no crânio logo ao nascer, é capaz de rir, etc. Caracterizar o homem é por conseguinte uma tarefa bastante fácil; enunciar sua essência é muito mais difícil, pois é preciso encontrar não apenas uma característica própria do homem, mas também esse núcleo essencial, universal e necessário que permita explicar as outras propriedades do homem: é nessas condições que a definição poderá ser científica.

A essa questão da verdadeira diferença específica do homem teríamos muita dificuldade de encontrar uma resposta nítida nos textos de Aristóteles. Mas o que se guardou – ao longo dos dois milênios em que seu pensamento serviu de referência científica – está claro, embora não unívoco. Sempre foi dito que Aristóteles definiu o homem como “animal político” ou como “animal racional”. Contudo, Aristóteles não fala exatamente em animal, antes em zôon, em ser vivo. A nuança é importante, porque, se não podemos afirmar que os deuses são “animais” no sentido próprio, podemos afirmar – e os gregos foram os primeiros a fazê-lo – que os deuses são vivos. São imortais, porém vivos. De maneira que há para os antigos em geral e para Aristóteles em particular três tipos de zôa, de seres vivos, três espécies de “faunas” que convivem no universo, cada uma no seu lugar: há os animais, os homens e os deuses. A diferença desses últimos é nítida: os deuses são seres vivos imortais, enquanto os animais e os homens são seres vivos mortais. Mas o que diferencia os homens dos animais? A pólis ou a razão? É aí que a tradição hesita.

Na verdade, Aristóteles não dispõe de uma palavra para designar o que chamamos de “razão”. Ele usa logos, que significa tanto linguagem (capacidade de se comunicar) quanto razão (capacidade de raciocinar). Ora, o que faz para ele a especificidade da linguagem humana é o fato de que não se trata de um simples meio de veicular informações ou de expressar emoções, mas uma capacidade de formular enunciados com “estrutura predicativa”, isto é: com afirmações ou negações, proposições que permitem dialogar, opor-se um ao outro sobre a mesma coisa etc. É o logos entendido assim que distingue a “voz”, presente em outros animais, da fala humana.

Todavia, a diferença específica do homem não seria antes a vida política? No sentido pleno do termo: o homem não é apenas um animal social – Aristóteles sabe muito bem que existem outros animais sociais (as abelhas, as formigas, as vespas, os grous etc.) que não conseguem viver isoladamente sem o socorro da coletividade. Viver politicamente é mais do que isso: significa coexistir não para “sobreviver”, como esses animais, por razões úteis (não morrer de fome ou ser aniquilado por outras espécies), mas para “viver bem”, isto é: para ser feliz, a essência do homem estando realizada perfeitamente somente por e dentro da comunidade dos seus semelhantes. E essa é uma característica propriamente humana.

De qualquer maneira, o homem pertence ao gênero “animal” e se diferencia dos outros animais por uma propriedade essencial. Isso encerra a questão do método. A lógica aristotélica é uma lógica de inclusão de classes. Para poder pensar, é preciso categorizar as coisas, situá-las dentro de classes com todas as que compartilham a mesma identidade natural e poder incluir essas classes em outras mais extensivas e assim por diante até as últimas “categorias”. É a esse princípio que obedecem sua zoologia e sua classificação sistemática dos animais, entre os quais os homens, classificação cujas bases permanecerão firmes até Buffon, no século XVIII.

Nesse universo de inclusão de classes, tudo é harmonia, pelo menos em princípio, pois a própria natureza comete às vezes o erro de engendrar seres híbridos e até monstros. Mas na teoria todos os seres possuem uma essêncía, a da espécie à qual pertencem, e essa essência é concebida como a combinação de alguns conceitos universais imutáveis.

A lógica, no entanto, não explica tudo, especialmente no caso do homem ou até dos animais. Definir o homem significa, com efeito, determinar o lugar e a função de um certo tipo de ser vivo no universo. E esse cosmo não é apenas um conjunto de lugares, uma série horizontal e sistemática de classes imbricadas umas nas outras, mas uma relação de ordem, uma série vertical e hierarquizada de seres colocados uns embaixo dos outros, do mais elevado ao mais baixo: os deuses, seres vivos imortais, estão encabeçando essa escala. Na terra, é o homem que ocupa essa posição, porque ele dispõe de todas as faculdades possíveis de um ser vivo mortal, subordinadas umas às outras. Todos os seres vivos possuem assim a faculdade de se reproduzir, apenas os animais no sentido próprio possuem a percepção; a maioria deles é dotada da capacidade de se mover e de desejar; alguns possuem, além disso, uma faculdade intelectual: a memória; outros têm a capacidade de aprender e dispõem, portanto, de um conhecimento empírico; e afinal, lá em cima, há aqueles que, como os homens, têm acesso ao conhecimento racional.

Consequentemente, a concepção do homem como “animal racional” (ou talvez como “animal político”) obedece às exigências gerais de todas as ciências da natureza. O homem possui uma essência, fixa, determinada, necessária, porque ele tem um lugar e um só na natureza. Sua essência se encontra na encruzilhada das exigências horizontais da lógica (inclusão natural das classes uma na outra) e das exigências verticais da cosmologia (hierarquia natural das funções no universo).

A concepção clássica

Essa definição do homem como “animal racional” e essa concepção essencialista e hierárquica do universo sobreviveram até a época clássica, apesar de várias revoluções na história das ideias, sobretudo a do cristianismo. Essa corrente soube entretanto se adaptar a essa definição, reinterpretando-a nos termos do dogma da encarnação.

Foi a física moderna, aquela que conhecemos desde Galileu e Descartes, aquela que formula em vez de definições dos seres naturais leis matemáticas, da natureza, que contribuiu para inverter essa concepção do homem.

Sabemos como a definição aristotélica do homem foi criticada por Descartes, que a considerava vazia e vã. Em primeiro lugar por causa do método usado na definição. “O que é que eu acreditava ser até agora?”, ele se pergunta na Segunda meditação. “Sem dificuldade, eu achei que eu fosse um homem. Mas o que é um homem? Devo eu dizer que é um animal razoável? Claro que não: pois seria necessário buscar depois o que é ‘animal’ e o que é ‘razoável’ e cairíamos assim insensivelmente com uma só pergunta numa infinidade de outras, mais difíceis e mais embaraçosas.” Em outras palavras, o método que consiste em me definir como um homem, em encontrar depois o gênero do homem e sua diferença específica, assim como ensinava Aristóteles, não me acrescentaria nada e levaria na melhor das hipóteses a uma regressão infinita. Será que não existe um método de análise mais instrutivo do que aquele que consiste em colocar os seres dentro de classes e essas dentro de outras classes? Esse método será a análise metafísica, numa nova acepção do termo.

Descartes também vai instituir uma relação de necessidade entre uma definição do homem e as ciências da natureza. Mas não é a mesma. Sabemos que, querendo fundamentar todo o conhecimento científico em algo “firme e seguro”, ele o baseia na certeza de sua própria existência. Pois o fato de existir é indubitável para cada um de nós, desde que tenhamos consciência disso. “Penso, logo existo.” À primeira pergunta “O que existe indubitavelmente?” a resposta é clara: eu próprio. Logo surge uma segunda após a da existência, a pergunta da essência: “O que é essa coisa que existe indubitavelmente?” E não mais – como em Aristóteles – “O que é o homem, em geral?” (definição que poderia valer para mim mesmo, já que sou um homem), mas, ao contrário, “O que sou eu, em particular?” (definição que também poderia valer para qualquer homem, já que todo homem pode dessa maneira tomar consciência de si mesmo). A resposta de Descartes é “Eu sou uma coisa que pensa”, e este homem, eu, é definido antes de tudo pelo pensamento, coisa pensante: “Acho aqui que o pensamento é um atributo que me pertence: é a única coisa que não pode se desprender de mim. […] Precisamente falando, eu sou então apenas uma coisa que pensa, ou seja, um espírito, um entendimento ou uma razão, que são termos cujo significado eu até então desconhecia.”

Vamos medir o abismo que separa a “coisa que pensa” de Descartes do “animal racional” de Aristóteles. Lembramos que a racionalidade (ou a linguagem) é para Aristóteles quando o homem toma consciência de seu modo de vida, de sua animalidade. Acontece que a racionalidade não é para Descartes uma característica específica do animal ou do ser vivo que sou, porque o pensamento se opõe traço por traço à animalidade, isto é, ao corpo. Sou um ser pensante (e logo também racional) visto que não sou animal, e os animais não são pensantes porque são animais. Continuo sendo uma coisa pensante e sempre o serei, quaisquer que sejam as modificações do meu corpo vivo e mesmo que eu não possua um corpo vivo, o que talvez venha a ser o caso se eu deixar de ser vivo: se eu morrer. Os animais ou até os outros seres vivos não humanos não são pensantes, eles não pertencem ao mesmo gênero ontológico que o homem, eles não surgem da mesma substância. O homem é pensamento, ou seja, consciência: esse é o próprio do homem.

Em que isso funda as ciências da natureza? Precisamente no fato de que se o homem é pensante, se a natureza no homem é de pensar, de pensar sem parar, de pensar assim que ele existe e de existir assim que ele pensa, a natureza fora do homem não é de pensar, aliás, é de não pensar nem um pouco: existe consciência no homem, mas apenas nele. O homem é capaz de conhecer todo o resto da natureza porque ele não tem a mesma natureza que o resto da natureza. O homem é capaz de pensar, logo, de conhecer; a natureza não é pensante e é por isso que ela é conhecível. Há duas substâncias: a substância pensante (res cogitam) ou, se preferir, sua alma, à qual todo homem pode fundamentalmente se identificar; e a substância estendida (res extensa), ou seja, seu corpo, de que é constituído tudo o que vemos ou tocamos.

Obtemos essas duas substâncias por subtração: o pensamento é o que sobra quando eu suprimo tudo o que é corporal, dentro ou fora de mim; o corpo é o que sobra quando suprimo tudo o que é pensamento, ou seja, consciência. A alma é uma substância completa sem o corpo, e isso é fundamental no plano metafísico, mas o corpo é uma substância completa sem a alma, e isso é fundamental no plano da física. O pensamento é inteiramente interior, sem exterioridade, enquanto o corpo é inteiramente externo, sem interioridade. A natureza só é corpo, isto é, uma mesma e única matéria homogênea no espaço; ela só obedece às leis universais da conservação e da transmissão do movimento, leis expressáveis matematicamente como relações entre tamanhos: não há nada a mais na natureza a não ser esses corpos sem mistério; não há almas, qualidades ocultas, não há cores nem cheiros, nada de obscuro ou de confuso, nenhum ser vivo, nenhuma alma hierarquizada, somente uma corporeidade móvel, como uma imensa máquina regulada por engrenagens que transmitem em diversas direções e pouco a pouco movimentos que representam toda a variedade aparente das espécies chamadas de vivas.

Pois a vida não é a propriedade de certos seres, dos animais e dos homens, ou até dos deuses, mas uma particularidade de algumas mecânicas corporais. Um corpo vivo é como um relógio ou um órgão de igreja, ou ainda como um autômato hidráulico: a fisiologia é somente uma mecânica e a própria mecânica é somente uma geometria. Os animais não pensam, mas isso não significa que eles não tenham acesso ao raciocínio. Significa mais radicalmente que eles não possuem nenhuma forma de consciência, de percepção ou de sensibilidade e que nada os diferencia fundamentalmente de qualquer autômato. Contudo, o homem não é para Descartes um puro espírito racional, mas a união muito estreita entre uma alma e um corpo, de maneira que este pensamento ou seja, a consciência, que é de fato própria ao homem – não é sempre essa racionalidade clara e distinta a que ele pode se elevar quando aplica um método, mas ele é também sentimento (isto é: percepção) e paixão (isto é: emoção) por causa de sua relação substancial com um corpo específico. Apesar disso, ainda podemos nos conceber como sendo unicamente uma coisa pensante, o que comprova que a alma pode existir sem o corpo.

Logo, podemos ver como essa definição do homem pela consciência é correlacionada a um projeto científico de conhecimento da natureza. A natureza pode ser um objeto conhecível pelo homem porque ela é apenas corpo sem nada de misterioso: é simplesmente uma figura geométrica mensurável animada por um movimento calculável; e o homem pode ser um sujeito cognoscitivo, porque ele é só pensamento, que, aliás, não tem nada de misterioso: é uma simples consciência de si e das coisas. Na visão cartesiana do mundo, a definição do homem pelo pensamento permite libertar a natureza de tudo o que não se concebe matematicamente e, portanto, fundamentar toda a física moderna.

Seria obviamente abusivo inferir disso que essas ciências – a física matemática ou até a mecânica clássica – precisaram de uma definição do homem desse tipo. Possivelmente, elas teriam conseguido dispensar por completo a filosofia. Todavia, é notável que o projeto cartesiano de fundamentação da mecânica clássica em bases epistemológicas e metafísicas sólidas tenha feito desse apoio seu ponto de Arquimedes.

Eis então duas definições da natureza do homem, a de Aristóteles e a de Descartes. De um lado, em Aristóteles, por um método de análise lógica, pode-se definir o homem classificando-o no seu lugar, horizontal e vertical, entre as outras substâncias: as que são naturais, as que são vivas, as que são animais e, finalmente, as que, por serem políticas, usam a linguagem racionalmente. O olhar sobre o homem é objetivo: é aquele do naturalista observando seu objeto de fora, como se observa a natureza em geral. É enquanto físico (“naturalista”) que se define o homem.

Do outro lado, em Descartes, por um método de análise metafísica, não se procura uma definição do homem, mas sua especificidade – a consciência – por meio de uma reflexão sobre sua própria atitude de sujeito cognoscitivo e não através da observação do homem e da comparação entre espécies naturais. A característica própria do homem – o pensamento – permite que ele seja sujeito das ciências naturais e exclui que ele possa ser objeto delas. Eis então uma segunda definição do homem, que também teve muitos herdeiros, sobretudo entre os filósofos e até o século XX: o homem é pura consciência, é a única consciência, o homem é sujeito, é o derradeiro sujeito, o homem é sujeito pensante, cognoscitivo, ativo; todo o resto é objeto – de conhecimento, de ação, de produção.

Em ambos os casos, a definição do homem permite fundar as ciências da natureza. A física é possível, para os antigos e principalmente para Aristóteles, porque nada é vão na natureza; tudo tem uma função, uma finalidade; tudo tem um lugar determinável e um só. A física é possível para os modernos e principalmente para Descartes, porque tudo o que está fora de nós, os homens, é um corpo sem qualidade, apenas mensurável e quantificável, submetido à universalidade das leis da natureza e apenas à causa motriz que permite saber por que o que acontece (queda de um corpo, arco-íris, movimento de um pêndulo etc.) ocorre necessariamente, mas também permite prevê-lo com toda certeza, portanto, de produzi-lo e reproduzi-lo. A definição do homem pelo pensamento é correlacionada a uma revolução para a ciência moderna: a natureza pode ser pensada pela matemática, as ciências da natureza se confundem com a geometria, ciência universal. Essa mesma definição também constitui um passo decisivo para a técnica moderna: pois se a natureza – e consequentemente o que é vivo, e até o corpo humano – é submetida apenas à causa motriz, basta conhecer a causa e a lei matemática que a conectam ao efeito para poder reproduzir sem fim esse efeito: é o que permite na idade clássica fabricar autômatos cada vez mais aperfeiçoados, e mais tarde descobrir remédios cada vez mais eficazes, ou ainda ir à Lua.

O homem das “ciências humanas”

O homem não está na natureza, ele está fora dela para poder conhecê-la e dominá-la. Toda a física moderna, pelo menos até meados do século XX, nasceu desse gesto. O homem não é um objeto científico, ele é o sujeito da ciência. No entanto, e de certa maneira em decorrência dessa revolução científica da idade clássica, o homem também vai poder se tornar objeto científico. Como o mostra M. Foucault em As palavras e as coisas, “antes do fim do século XVIIIhomem não existia”, no sentido de que ele ainda não tinha adquirido o estatuto de uma entidade conhecível cientificamente, embora várias disciplinas já tivessem estabelecido como objetivo o estudo dos fatos propriamente humanos, por exemplo, a “riqueza” ou a “gramática”. Todavia, logo na virada do século XVIII para o XIX, o estatuto epistemológico do homem muda. O homem deixa de ser o sujeito soberano do saber da idade clássica, ele chega a essa “posição ambígua de objeto de um saber e de sujeito cognoscitivo”.

Já no século XIX, de fato, e ao longo de todo o século XX, vão ser desenvolvidas novas ciências que tomam o homem como objeto e que vão, por conseguinte, redefini-lo de uma maneira completamente diferente. Essas ciências não estudam o homem em geral, mas o que nele há de propriamente humano: as instituições ou as relações sociais para a sociologia, a cultura para a etnologia ou a antropologia cultural, o destino dos povos para a história, as funções intelectuais para a psicologia, o inconsciente para a psicanálise, a linguagem articulada para a linguística etc. É verdade que num certo sentido todos esses objetos já tinham sido estudados, sob outras formas ou sob outros nomes, pela reflexão clássica. O que muda com as “ciências humanas” é a imagem global do homem, e ela leva na sua mutação todos os objetos esparsos que giravam em torno dele. Pois as novas ciências, inovadoras no século XIX e triunfantes no século XX, se baseiam todas, apesar de estarem dispersas, em dois pressupostos comuns sobre o homem: seu anticartesianismo e seu antinaturalismo. Contra Descartes, o homem não é sujeito. E, longe de ser um ser natural como os outros, o homem conquista sua própria natureza contra a própria natureza.

A ideia de ciência humana implica, com efeito, que o homem não é sujeito, nem sujeito cognoscitivo (ele não sabe o que é, e cabe então à ciência dizê-lo) nem sujeito de ação (pouco importa o que ele pensa, ele não domina suas próprias ações, e a ciência mostra isso). O homem não sabe o que ele é. Seria trivial afirmar que isso significa apenas que ele desconhece o que é: desde a Antiguidade, a história lhe lembra um passado esquecido, a gramática lhe mostra feições despercebidas de sua própria língua. Mas, para as novas ciências humanas, há muito mais: o homem não está somente na ignorância de seu ser, mas também está na ilusão sobre esse ser. Além de o homem não ter acesso a si mesmo espontaneamente, o que está ao seu alcance é necessariamente enganador. Todas as ciências preenchem as ignorâncias da consciência, mas as ciências humanas fazem mais: elas denunciam as mistificações sofridas pela consciência. A história tem que mostrar de agora em diante como o homem se tornou na verdade o que ele acredita ser desde sempre; a sociologia tem que mostrar que seu ser verdadeiro não é aquele que ele percebe, mas que depende do parentesco, do grupo social, da classe, das relações sociais; a psicanálise deve revelar quais os desejos inconscientes que estão no centro da vida psíquica etc.

Tomemos alguns exemplos. Durkheim, fundador da sociologia, enuncia que a primeira Regra do método sociológico consiste em estudar os fatos sociais como coisas; (e não como estados da consciência humana) porque são externos ao indivíduo e devem ser explicados “pelas modificações do meio social interno e não pelos estados da consciência individual”. F. de Saussure, um dos fundadores da linguística, dá-lhe como objeto a língua, realidade cujo sistema e cuja evolução escapam à consciência e à vontade dos indivíduos como à das comunidades. Outros linguistas da mesma linhagem, como Benveniste, se aventuraram mesmo assim no terreno do discurso tal como é proferido pelo indivíduo; mas é para insistir no fato de que o pensamento humano é sem querer modelado, pré-formado pelas estruturas linguísticas, já que “pensar significa manusear os signos da língua”.

Qualquer homem acredita que pode dizer o que pensa, mas na verdade é o contrário: ele só pode pensar o que consegue dizer e porque uma determinada língua lhe permite que o diga. É uma verdadeira inversão do cartesianismo: não é porque penso que consigo dizer o que penso; é porque posso dizer “eu” que consigo dizer, e inclusive acreditar, que sou uma coisa pensante. Freud é obviamente a encarnação por excelência dessa nova concepção do homem. Ele não para de colocar sua obra na linhagem de todos esses cientistas que abalaram o egocentrismo humano: Copérnico mostrou que a Terra onde o homem reside não é o centro do mundo; Darwin mostrou que ele é apenas mais uma espécie entre outras na ordem natural. A psicanálise inflige um terceiro golpe à megalomania humana, mostrando “ao ego que ele nem manda na própria casa e que ele tem que se contentar com informações raras e fragmentadas sobre o que está acontecendo fora de sua consciência na sua vida psíquica”.

Nem consciência transparente sobre si mesmo, nem autor soberano de seus próprios atos, o homem se transforma de agora em diante em sujeito. As ciências humanas enunciam – e às vezes denunciam – as mistificações dessa consciência que acredita ser sujeito. Mas é porque se engana achando que é sujeito que o homem pode ser objeto, visto que é a distância entre o que ele é e o que acha que é que constitui o próprio objeto das ciências humanas.

Esse homem das ciências humanas possui outra característica, dessa vez mais antiaristotélica que anticartesiana. Ele se define em oposição ao resto da natureza. Ele não é apenas um animal diferente dos outros, ele é um animal desnaturado. Tudo o que lhe é característico é determinável por negação ao que é característico da natureza. A natureza se caracteriza pelas leis universais, a cultura se caracteriza por regras infinitamente variáveis segundo os grupos humanos, de maneira que nenhuma delas é universal. Eis o que funda a antropologia cultural: o animal se nutre do que encontra, o homem cozinha seus alimentos e se impõe várias restrições e proibições em relação aos alimentos; o animal se reproduz com parceiros sexuais erráticos, o homem se impõe regras de casamento exogâmicas e se proíbe vários atos, como o incesto etc.

Ao instinto natural dos animais se opõem as instituições sociais, eis o que a sociologia analisa. Em oposição à evolução espontânea das espécies naturais, o destino propriamente humano dos povos, eis o que a história estuda, pois o homem é todo histórico, tudo nele é herdado.

Em oposição à comunicação animal, na qual qualquer sinal se refere a uma e única situação externa, o sinal humano é arbitrário: ele varia segundo os idiomas e se define em relação a todos os outros sinais da língua etc. Em oposição à necessidade animal, biológica, como a fome, a sede ou o cio, que se esgotam na possessão de seu objeto e na sua satisfação, há o desejo propriamente humano, indefinido, insaciado, recalcado, sublimado, que volta sob formas deslocadas, condensadas, simbólicas: eis o objeto da psicanálise.

É assim que as ciências humanas, sobretudo as ciências sociais, não raro precisam, para defender sua própria existência, insurgir-se contra a “ilusão naturalista” que consiste em recorrer a uma explicação de tipo biológico ou mais geralmente extrassocial para explicar fenômenos sociais: apelo à hereditariedade ou à genética (explicações biológicas), mas também ao ambiente natural (explicação ecologista), às faculdades humanas gerais (explicação cognitivista). Nesse embate, as ciências sociais se apoiam no fato inegável de que o procedimento comum de justificação moral de certas práticas, normas, proibições (por exemplo, a sexualidade monogâmica heterossexual, a opressão das mulheres, a desigualdade social etc.) consiste em alegar que, sendo essas práticas “naturais”, sua transgressão ou contestação seria “anormal” e consequentemente inadmissível. Daí a vontade simétrica, por parte das ciências sociais, de mostrar que as instituições nada devem à natureza, e que de modo mais geral nenhuma norma humana é natural. Mais concretamente, para poder modificar ou abolir determinada concepção considerada moralmente inaceitável ou politicamente injusta, as correntes mais militantes das ciências sociais acreditam que devem mostrar que essa concepção é socialmente “construída”.

Mas, mesmo que essa posição seja inversa ideologicamente em relação à·anterior, ela é baseada na mesma confusão, a do “sofisma naturalista”: acreditar que o natural, em qualquer sentido do termo (genético, universal, nato, espontâneo, não escolhido etc.), é por isso mesmo legitimado; confundir o descritivo com o normativo, o ser com o dever-ser. Podem defender, moralmente ou politicamente, qualquer norma ou instituição porque ela é natural – ou justamente porque ela não o é! A natureza não é em si uma fonte de legitimidade – nem de desvalorização, aliás.

Que o “egoísmo” seja “natural” ou não, em qualquer sentido da palavra, não é um motivo para não combatê-lo pela educação; o fato de que o infanticídio seja natural (visto que é frequente na maioria das espécies de primatas próximas a nós, como nos chimpanzés ou nos gorilas, por parte dos machos dominantes ou até, às vezes, das fêmeas) não o legitima. Inversamente, que a homossexualidade seja “natural” ou não (em que sentido: universal? Nata?) não é um motivo para combater as segregações homofóbicas. Seria preciso combatê-las por razões meramente morais e políticas, por exemplo, pelo direito à orientação sexual, pela luta contra as diferentes formas de segregação, etc.

Mais profundamente, o antinaturalismo no qual se fundamentam as ciências humanas tem raízes tão profundas e constitutivas quanto seu anticartesianismo. Elas precisaram encontrar um modo de existência para seu objeto, o homem, que lhes permitisse diferenciar seu próprio tipo de científicidade: o homem se engana necessariamente sobre quem ele é, o que ele faz, e cabe a elas mostrá-lo. Além disso, elas precisaram encontrar um modo de existência para si mesmas que as diferenciasse do outro modo de cientificidade existente, o das ciências naturais. O homem que elas estudam, no seu psiquismo, na sua língua, na sua vida social, na sua cultura, só podia ser antinatural. Ele tinha que ser antissujeito para se tornar objeto científico e antinatureza para se tornar objeto das ciências humanas.

Eis então uma terceira definição do homem, a das ciências humanas: o homem é esse ser que não pode se dar conta do que ele é, nem dominar o que ele faz, e cuja natureza própria consiste em se opor à natureza fora dele. Essa definição responde, portanto, às duas perguntas anteriores, à de Aristóteles e à de Descartes. Contudo, e como elas, ela é correlacionada a uma exigência científica, marcando o nascimento de um novo grupo de ciências e justificando-as: não a lógica e a cosmologia nem as ciências físicas matemáticas, mas dessa vez as ciências humanas. Todavia, como o paradigma cartesiano se opusera ao paradigma aristotélico e triunfara na época clássica na ordem das ciências naturais, um novo paradigma talvez esteja triunfando hoje sobre aquele das ciências humanas, na ordem do conhecimento do homem. O que nos levaria a uma quarta definição do homem.

O homem, ser natural entre outros

Vimos como, para Foucault, um novo objeto científico se constitui a partir do fim do século XVIII: o homem. Quando ele escreve As palavras e as coisas, no início dos anos 1960, as ciências humanas (sobretudo a etnologia, a linguística e a psicanálise) vivem sua época de ouro em torno do paradigma estruturalista e do conceito do simbólico.

Sabemos, no entanto, com que palavras – e elas na época causaram um pequeno escândalo – acaba. As palavras e as coisas: “O homem é uma invenção e a arqueologia de seu pensamento mostra bem sua origem recente e talvez seu fim próximo.” Foucault sem dúvida tinha razão: essa “morte do homem” que ele predisse vem acontecendo desde a virada do século. Um novo paradigma está se impondo em detrimento das ciências humanas triunfantes no século XX. Uma nova imagem do homem torna cada vez mais obsoleto o homem das ciências humanas e com ele a onipotência do “simbólico”, do inconsciente representativo, da cultura em oposição à natureza ou do “social” em oposição ao biológico; ela não nasce de fora das ciências humanas, mas se deve ao prodigioso desenvolvimento das ciências dos seres vivos e de suas várias dependências: neurociências (apoiadas nas imagens cerebrais digitais e nas novas técnicas da biologia molecular, que permitem observar o cérebro em ação), biologia da evolução, primatologia, etologia, paleoantropologia, assim como disciplinas mais “polêmicas”, tais como a sociobiologia, a psicologia evolucionista etc.

No caso das ciências cognitivas, podemos tranquilamente falar num novo “paradigma” que está substituindo aquele das ciências humanas de meados do século passado. Como as últimas, as primeiras se revelam capazes de reunir um conjunto muito vasto de disciplinas, ainda mais vasto do que o paradigma estruturalista do século passado: trata-se da linguística, da psicologia, da antropologia, mas também das neurociências, da informática e da lógica, entre outras. As ciências cognitivas determinam programas de pesquisa científica ambiciosos (a psicologia evolucionista ou a biossemântica, por exemplo) e geram teorias filosóficas locais ou globais (filosofia do espírito) que pegam carona com elas.

Em comum, elas têm uma orientação metodológica (naturalista), um mesmo pressuposto metafísico (o monismo materialista), uma mesma ideia do homem (uma espécie biológica) e um mesmo tipo de objeto: é o pensamento, seja ele humano, animal ou artificial, ou, mais genericamente, todo o sistema de aquisição, de conservação ou de uso dos conhecimentos (percepção, memória, raciocínio, cálculo), cujo modelo continua sendo o cérebro humano. As controvérsias que as opõem às ciências humanas em torno dessa nova imagem do homem – como em todos os casos de concorrência entre paradigmas científicos – acrescentam aos embates epistemológicos e às disputas metodológicas debates ideológicos e políticos, chegando até a imputações recíprocas, condenações e anátemas. A fim de caracterizar em uma palavra esse conceito do homem que surgiu na virada do século XXI, podemos dizer: é um ser natural como todos os outros, é um animal, nem mais, nem menos.

Porém, não se trata em nenhum momento de um retorno a uma posição aristotélica. Em primeiro lugar, Aristóteles é um naturalista fixista que pensa que todas as espécies – definidas como conjuntos de indivíduos essencialmente idênticos e suscetíveis de se reproduzir entre si – são definidas uma vez por todas, sem poder evoluir, mutar, se transformar umas nas outras, surgir, se extinguir, etc. É porque é fixista que ele consegue dar uma definição das espécies e sobretudo do homem, por combinação de conceitos universais: o homem tem para si uma essência eterna e necessária.

O naturalismo contemporâneo é evolucionista. Lembramos que o gênero chamado Homo teria aparecido há dois milhões de anos segundo as estimativas, mas que o Homo sapiens moderno só apareceu há algumas dezenas de milhares de anos; e hoje sabemos que ele conviveu durante vários milhares de anos com outras espécies humanas, entre elas os neandertais, desaparecidos há cerca de vinte mil anos, talvez exterminados pelos nossos ancestrais, quando eles eram na época pelo menos tão “humanos” quanto eles: os neandertais andavam eretos numa bipedia perfeita (ao contrário de nossos primos hominídeos, os chimpanzés e os bonobos, que têm uma bipedia apenas ocasional), eles tinham uma capacidade craniana superior a 1.500 centímetros cúbicos, um crânio arredondado e uma face achatada, assim como uma vida cultural e social, ferramentas de pedra talhada aperfeiçoadas e diversificadas (bifaces, raspadores), o domínio do fogo e provavelmente preocupações metafísicas, visto que praticavam ritos funerários.

No novo paradigma cognitivista, portanto, o estudo do homem não é separado de uma perspectiva comparativista (confronta-se a vida social ou cultural dos humanos com a das espécies próximas ou desaparecidas) nem de uma perspectiva evolucionista (pergunta-se como e por que determinada capacidade humana surgiu). Um programa recente de pesquisa, a “psicologia evolucionista” (variante cognitivista da sociobiologia) parte, por exemplo, do fato de que a maior parte da evolução humana ocorreu em circunstâncias que não mais existem hoje e de que o nosso tipo de cérebro apareceu como fruto da seleção natural durante o Pleistoceno para explicar por que certos comportamentos e estados internos que nos caracterizam hoje não são mais adaptados ao nosso ambiente contemporâneo. De fato, o prazer de comer açúcar e gorduras nasceu da escassez desses recursos energéticos no ambiente pré-histórico. Ocorre que esses alimentos hoje são de fácil acesso e que esse gosto natural por açúcar e gorduras pode ter consequências deletérias (antiadaptativas) no ambiente atual (obesidade, diabetes). O homem é um animal como os outros, e isso implica que ele não possui essência fixa.

A segunda grande diferença com o naturalismo antigo é a seguinte: ela se deduz da diferença anterior. A humanidade não pode mais ser definida como uma espécie no sentido clássico, pela combinação lógica de traços constantes e universais que todos os membros possuem de maneira idêntica e que lhes são próprios. É uma população no sentido em que ela é estudada pela genética de Mendel, ou seja, um conjunto de indivíduos que mostram uma alta probabilidade de cruzar entre si, porém entre os quais não há nem permanência nem identidade. No máximo uma semelhança global inseparável de diferenças individuais indefinidas e graduais, seja no conjunto considerado num dado momento ou entre duas gerações. O homem é um animal como os outros, o que implica então que ele não possui nenhuma essência universal e necessária.

Isso não quer dizer, no entanto, que não existam traços propriamente humanos. Com efeito, qualquer espécie se diferencia das outras por meio de propriedades específicas. Existem, por exemplo, muitas espécies chamadas de “eussociais”, isto é: organizadas em castas com uma rainha – única fêmea reprodutora -, um pequeno harém de reprodutores machos e uma imensa população de soldados e de operários estéreis. Mas todas as espécies eussociais, as formigas ou os cupins, por exemplo, são insetos, com exceção dos ratos-toupeiras-pelados do chifre da África. Podemos dizer então que elas se singularizam, dentro dos mamíferos, pelo seu modo de vida eussocial, e dentro das outras espécies pelo seu estatuto de mamíferos. Todavia, não é porque uma espécie possui traços específicos que ela é menos natural do que outra, e não há nenhum motivo para afirmar que as características consideradas próprias do homem – e que às vezes o são, outras vezes não – se definem em oposição a suas características naturais.

Tomemos alguns exemplos das novas abordagens dessas propriedades supostamente humanas. A mente? Sabemos hoje com certeza, contra Descartes, que o homem não é o único ser consciente. Também sabemos que quase nenhuma das faculdades do espírito humano não pode ser presente em outros cérebros. Tomando como hipótese condutora a ideia segundo a qual os fenômenos mentais só constituem uma classe específica de fenômenos naturais, as ciências cognitivas recusam a ideia de uma dualidade irredutível entre o físico e o mental. Outro traço supostamente típico do humano: a racionalidade. Mesmo que se encontre uma definição indiscutível dessa faculdade, ela provavelmente não constitui uma “diferença específica” da humanidade: o cérebro dos chimpanzés parece não somente capaz de performances intelectuais comparáveis às dos homens, como os computadores podem efetuar tarefas puramente intelectuais bem superiores a qualquer cérebro humano.

Pode-se objetar que foi justamente o homem quem foi capaz, com seu cérebro de hoje, de conceber e realizar o computador – o que é totalmente correto. Será que isso comprova, no entanto, capacidades intelectuais superiores àquelas que foram necessárias aos neandertais para fabricar ferramentas de pedra talhada na época musteriense, há 30 mil anos? Provavelmente não, se lembrarmos que as capacidades cognitivas e, consequentemente, a inteligência dos homens parecem estar estáveis há pelo menos 50 mil anos (época da última mutação genética do cérebro).

Quais são então as diferenças entre os primatas superiores e nós? E como explicar o computador? O computador se explica por uma característica muito peculiar da cultura: seu caráter acumulador. Mas a cultura, considerada nesse sentido, não se opõe em nada à natureza. É um modo de transmissão peculiar dos conhecimentos e das práticas da espécie, que não é biológico e que já é presente, sob uma forma não cumulativa, em algumas espécies de primatas. Pensem na maneira como os macacos do Japão se mostraram capazes de transmitir de uma geração para outra a técnica de lavagem das batatas-doces, descoberta pela fêmea Imo em 1950: alguns anos mais tarde, quase todos os membros do grupo eram capazes de lavar seus alimentos.

Apenas os que tinham mais de dez anos na ocasião da descoberta nunca aprenderam, provavelmente porque não olhavam muito para os mais jovens. Depois, a tradição foi transmitida de mãe para filhotes: esses aprendem seguindo sua mãe na água e pegando os pedaços que ela deixa cair. A diferença entre a cultura animal e a humana parece antes de grau que de natureza, e essa própria diferença (isto é: o crescimento exponencial da cultura humana) deve poder se explicar pelas leis da evolução biológica. Quanto aos modos de difusão de um traço cultural dentro de uma determinada população, é possível analisá-los usando os próprios modelos da difusão genética, assim como várias teorias concorrentes tentam mostrar atualmente.

Sobra talvez uma faculdade propriamente humana, a linguagem. Mas é preciso analisar sua especificidade com precisão. Muitas espécies animais, como os macacos-verdes, dispõem de sistemas de comunicação complexos, que, contudo, não passam de códigos de sinais mais ou menos aperfeiçoados. A cada mensagem, um único sinal: um determinado grito para avisar da presença de uma serpente; outro para avisar da presença de um guepardo; outro ainda para avisar da presença de uma ave de rapina. O que é específico à linguagem humana é sua capacidade ilimitada: apenas algumas dezenas de sons podem ser combinados entre si para formar alguns milhares de palavras, as quais podem por sua vez ser combinadas entre si seguindo as regras da sintaxe para formar uma infinidade de frases; até que uma criança seja capaz de entender o tempo inteiro frases que ela nunca ouviu ou de produzir frases novas, o que não tem mais nada a ver com um código de sinais. Essa propriedade singular da linguagem foi de fato descoberta pela linguística do século XX.

Porém, quando analisadas pela linguística cognitivista, as questões que a linguagem coloca não são as mesmas do que sob o paradigma estruturalista. Por exemplo: como uma mesma sintaxe universal, naturalmente implantada na mente humana, permite a criação de um número indefinido de idiomas? Quais são os traços invariáveis desses idiomas? Ou ainda: por que não foi mais vantajoso do ponto de vista adaptativo fixar no genoma o idioma em si em vez de uma faculdade de aquisição dos idiomas?

Então, existem realmente duas imagens opostas do homem, que correspondem a dois paradigmas científicos: de um lado, o homem é um não sujeito antinatural; do outro, ele é um animal como os outros, provavelmente com particularidades singulares, todas elas tão naturais quanto a de todas as demais espécies.

Vão perguntar: por que opor essas duas ideias do homem? Será que é impossível dizer simplesmente que o homem é um ser ao mesmo tempo natural e não natural; que uma parte dele é hereditária, dependendo de fatores biológicos, logo, inatos; e que outra parte é herdada, dependendo de fatores culturais, logo, adquiridos? Sim, dizer isso é fácil. Mas o problema está mal colocado. De fato, com proposições tão genéricas a respeito do homem, todo mundo vai estar de acordo: o que está em jogo é pequeno demais, quase inexistente. Mas não se trata de definir o homem de maneira abstrata ou meramente especulativa: trata-se de saber qual é o conceito suposto do homem que fundamenta as ciências estudando esse homem. E as divergências de fundo começam logo com as primeiras perguntas concretas, e em qualquer área. Como, por exemplo, explicar o autismo e a partir daí propor uma maneira de tratá-lo?

Será que devemos nos referir a uma teoria psicanalítica (distúrbio da relação com a mãe, carência de simbolização) ou a uma teoria cognitivista (distúrbio da “agentividade”, de origem genética, ausência de “teoria da mente” no autista)? Como analisar os fenômenos religiosos contemporâneos? Por um lado, com Durkheim e a maioria de seus sucessores sociólogos, eles podem ser considerados um fenômeno social fundamental que tem por função conectar ou até cimentar os homens numa comunidade. Mas, por outro lado, com os antropólogos cognitivistas (Pascal Boyer ou outros), as crenças religiosas podem ser analisadas como manifestações de certas peculiaridades da mente humana em geral. Como, por exemplo, sua necessidade de imaginar agentes sobrenaturais, dotados de um intelecto e de uma força de vontade, com os quais mantemos interações espirituais, sobretudo a respeito da dimensão moral de nossas ações – se for certo que todas as religiões, apesar de sua imensa variedade, têm como traço comum a representação dos espíritos interessados pelas ações do homem. Claro, há outras possibilidades. Mas o que importa é que não existem um único problema, um único conceito, uma única prática humana para os quais não se possa propor pelo menos duas teorias científicas – é sempre possível encontrar uma teoria ou duas sobre qualquer coisa -, mas de maneira genérica dois grandes tipos de abordagens metodológicas opostas, antinaturalista ou naturalista, congregando elas mesmas diversas teorias possíveis ou até diversas abordagens disciplinares.

Finalmente, dispomos de quatro conceitos do homem. Poderíamos descrevê-los segundo um esquema evolutivo: o homem da ciência moderna, pensado na primeira pessoa, foi edificado para extirpar o homem da velha ciência natural e principalmente para ajustar essa última ao pensamento matemático e à causalidade mecânica; o homem das ciências humanas foi erguido contra a onipotência atribuída classicamente à consciência, transparente e soberana, e principalmente para poder construir ciências das quais o homem possa ser ao mesmo tempo sujeito e o objeto de conhecimento; o homem das ciências cognitivas foi edificado contra o homem separado da natureza pelas ciências humanas e esquartejado entre suas diferentes disciplinas, segundo um duplo projeto de naturalização e de reunificação do homem.

Mas esse esquema evolucionista, parcialmente legítimo, não deve ser confundido com uma visão “progressista”, segundo a qual o novo seria sempre melhor que o antigo. Pois, se formos considerá-los em si, abstratamente, cada um desses quatro conceitos do homem parece tão “verdadeiro” quanto o outro. Parece verdadeiro que o homem seja um animal racional ou político e não menos verdade que ele seja dotado de uma consciência reflexiva; parece verdadeiro também que sua consciência e seus atos sejam determinados por causas psíquicas, históricas ou sociais; trata-se mesmo assim de um ser natural como os outros, submetido à evolução e às exigências adaptativas de seu meio. Dizer que parecem igualmente verdadeiros equivale a dizer que são provavelmente “falsos”, isto é: eles são discutíveis. E vão continuar infinitamente discutíveis enquanto forem considerados fora de seu contexto científico. Recolocados no seu contexto, não ganham verdade, antes legitimidade. E essa é igual em cada um dos quatro casos.

É preciso agora passar do plano científico – ou seja, teórico – para o plano ético – ou seja, prático. Se esses quatro conceitos são igualmente legítimos de um ponto de vista científico, como ficam de um ponto de vista ético? Quais as problemáticas morais, as consequências práticas, os riscos dessas quatro visões do homem?

O avesso do homem de Aristóteles

Para Aristóteles, os homens possuem uma essência: até aí, tudo bem. Todos são animais políticos ou racionais: tudo bem também. Mas como pensar a extrema diversidade dos seres humanos senão como a impossível identificação dos homens com sua própria essência? O drama da essência é que ela lida mal com a variedade dos indivíduos. Digamos que todos os homens sejam “políticos” por natureza. Existe, contudo, uma grande diversidade de regimes, alguns melhores que outros, pois estão em conformidade com o interesse geral: pode-se deduzir então que alguns regimes (como a tirania ou a oligarquia), embora “políticos” num certo sentido, não estão em conformidade com a essência política do homem; pode-se concluir também que alguns outros (como a aristocracia ou a realeza), embora em conformidade com essa essência, são menos autenticamente políticos que outros, como a “república”. Logo, entre todos os regimes políticos, alguns são mais políticos que outros.
Assim que introduzimos um critério normativo (o melhor e o não tão bom) entre todas as coisas que supostamente compartilham a mesma essência, vemos que essa variedade é interpretada como graus na realização da essência. Além do mais, todos os homens vivem politicamente; mas já que “político” significa “apto a viver numa pólis”, alguns homens, como os gregos, que realmente vivem em pólis, são autenticamente políticos; outros, como os persas, que vivem em grandes reinos, alguns bárbaros que vivem em tribos selvagens, são, logo, menos políticos e, portanto, menos homens que os gregos. Vemos então que, entre todas as coisas que supostamente compartilham a mesma essência, o grau de realização da essência permite introduzir um critério normativo e por isso hierárquico: os gregos são superiores aos bárbaros. Então, o homem é um animal político; todavia, certos regimes, certos povos, são mais políticos que outros; logo, certos homens são mais homens que outros. Ora a norma é interpretada como realização da essência, ora a realização da essência é interpretada como norma.

Assim acontece com a outra definição possível do homem: o animal racional. Segundo a visão vertical e hierárquica da ordem do mundo, que coloca os homens entre os deuses e os animais, todos os seres naturais são submetidos a esse princípio que diz que o superior deve mandar no inferior. Todos os homens são racionais então, mas alguns têm faculdades intelectuais e morais que os tornam naturalmente aptos ao comando, outros à obediência, como o corpo obedece à alma, como o desejo é feito para obedecer ao intelecto, a criança ao parente, o animal ao homem: igualmente, a mulher é naturalmente feita para obedecer ao homem e o escravo ao mestre.

Está em conformidade com a harmonia do conjunto da natureza: tudo no universo obedece a uma feliz e beneficente hierarquia, o inferior sendo submetido ao superior e o não tão bom ao melhor. A essa primeira forma de justificação vem se acrescentar uma segunda: qualquer forma de dominação entre homens é legitimada tanto pelo interesse dos dominados quanto pelo dos dominadores; é obrigatoriamente bom para o “escravo natural” obedecer, porque ele não tem a mente desenvolvida o suficiente para mandar em si mesmo, do mesmo modo que uma criança desprovida de pais não pode ser autônoma. Portanto, a essência do homem se realiza diversamente segundo os homens, para o bem de cada um e para o bem do Todo.

O que constatamos em Aristóteles? A lógica, a metafísica e o conhecimento científico da natureza, notadamente a biologia e a cosmologia, necessitam de uma definição universal – logo, a priori igualitária – do homem. A natureza do homem é uma, sempre a mesma, idêntica em todos os homens, e ela é determinada pelo lugar único do homem no conjunto da natureza. Mas essa mesma definição tem seu lado sombrio: pois permite justificar no plano moral e político diversas formas de dominação entre os homens, dos gregos sobre os bárbaros, dos homens sobre as mulheres, dos mestres sobre os escravos. Dirão que essa visão escravagista é própria a Aristóteles ou pelo menos à Antiguidade. É em grande parte verdade. No entanto, é preciso notar duas coisas.

Primeiro, a visão hierarquizadora do mundo e do homem vai muito além da Antiguidade. Todos os argumentos de Aristóteles a favor da escravidão e particularmente sua concepção dos escravos “naturais” (isto é, não os que foram conquistados sobre o inimigo nem comprados na feira, mas naturalmente feitos para obedecer porque sua natureza não lhes permite politicamente mandar em si mesmos) foram retomados palavra por palavra no momento da conquista das Américas, na ocasião da controvérsia que chamam de Valladolid, entre Sepúlveda, defensor da escravidão dos índios, e Bartolomeu de las Casas. De fato, apoiando-se em Aristóteles, Sepúlveda afirma que os ameríndios são “bárbaros, simples, iletrados, sem educação(…), cheios de vícios e cruéis, de uma espécie tão ruim que ela seria mais bem governada por outrem”. O conjunto do universo justifica a dominação exercida pelo superior sobre o inferior, em nome da própria natureza do dominado.

Segundo, o que leva Aristóteles à legitimação da dominação é a articulação de dois princípios: um naturalismo essencialista (vertical) e uma visão hierárquica (horizontal) da natureza. É o cruzamento desses princípios que é moralmente perigoso, como se pode ver sistematicamente em toda a história das ideias. Assim que se coloca que o homem tem uma essência e uma só, somos necessariamente levados a pensar que a diversidade dos homens se explica pela sua proximidade maior ou menor com a essência. Até agora, nenhum problema. Mas logo que se enraíza esse afastamento da essência na natureza considerada um conjunto, ou na natureza de determinados povos, de determinadas culturas, de um determinado sexo, de determinados indivíduos, cai-se obrigatoriamente na visão hierárquica do mundo.

É o que acontece, por exemplo, com todos os que definem a priori os homens como criaturas iguais de Deus, de um único e mesmo Deus. Igualitarismo de essência, portanto. Porém, vemos claramente a posteriori que os homens praticam religiões diferentes. Devemos então concluir que os que não reconhecem o único e mesmo Deus, o de todos os homens, não reconhecem sua própria essência e não adotam a verdadeira religião. Então, são menos homens que os autênticos fiéis, afinal de contas. Temos que exigir deles (por convicção, por imposição, pela conquista, pela guerra) que reconheçam sua autêntica essência de homens, criaturas do verdadeiro e único Deus. O igualitarismo se adapta finalmente muito bem a uma discriminação real, a desigualdade de fato não contradiz a identidade da essência. Sempre foi assim. Quando a essência se baseia numa natureza, ela implica uma visão hierárquica do mundo. Reciprocamente, quando a essência cruza um critério de valor, ela sofre da mesma ambiguidade que a “natureza”: é para descrever como as coisas são ou como elas devem ser? Eis o avesso dos princípios que governam essa imagem do homem – que esse seja considerado “animal racional”, “animal político” ou como se quer. Vemos que eles vão muito além do seu contexto aristotélico ou até antigo.

O avesso do homem de Descartes

Descartes também é “essencialista”. Ele pensa que a natureza do homem é constituída pela estreita união entre a alma e o corpo, mas que a verdadeira essência do homem está somente no pensamento, somente na alma, separável do corpo, e, logicamente, no puro exercício do pensamento, na razão, livre da influência do corpo e de suas paixões. Ele também pensa que os homens diferem uns dos outros, que eles são mais ou menos conforme com o que deveriam ser, dependendo do seu grau de submissão ou de liberdade às suas paixões. Isso, no entanto, não o leva a uma visão hierárquica dos homens ou dos povos. Para ele, as diferenças entre os homens estão somente na sua maneira de conduzir sua razão, o que funda por um lado um método científico accessível a todos, e por outro, um método moral para dominar suas paixões, esse também acessível a todos.

Existe, contudo, uma espécie de hierarquia entre os seres do mundo: Deus, o homem, o resto do mundo. Mas Deus está infinitamente afastado de nós, a tal ponto que permanece completamente incompreensível, já que seu entendimento é infinito quando o nosso é limitado. E, da mesma forma, o resto da natureza fora de nós (animais, vegetais, minerais, astros etc.) está infinitamente afastado de nós, seres pensantes: com efeito, abaixo de nós, só há matéria bruta e uniforme, sem hierarquia possível entre os diferentes seres que a compõem, visto que os seres vivos, os animais também, são como o resto: apenas corpos mecânicos. A natureza fora de nós não nos oferece entre os seres algo que possa servir de fundamento para uma hierarquia entre os homens. O essencialismo de Descartes está, portanto, a salvo de qualquer risco de deslize igualitarista.

Todavia, essa infinita distância que nos afasta do resto da natureza, esse reducionismo que junta todos os outros seres, notadamente animais e plantas, num único e mesmo nível, o do corpo – assim como o correlato científico dessa redução, ou seja, o mecanismo-, também têm consequências práticas e, logo, riscos. Como vimos, o fato de que tudo esteja submetido à potência da única força motriz permite não somente saber como as coisas ocorrem necessariamente na natureza, mas permite também produzi-las, e reproduzi-las ao nosso bel-prazer. Se eu sei como o movimento ou a luz percorrem os corpos segundo uma lei necessária, a relação de causa e efeito se torna para mim uma relação de meio e fim, e também sei fabricar autômatos que obedecem às mesmas leis. Se eu sei como funciona a máquina dos corpos, também posso tentar fabricar máquinas baseadas no seu modelo ou esperar curar os corpos doentes de uma disfunção, assim como se conserta um relógio.

Daí o projeto, a ambição e a esperança de uma concepção e de um empreendimento desses, inscritos num famoso texto da 6ª parte do Discurso do método, no qual Descartes explica que do seu projeto científico de física matemática ele pretende extrair “conhecimentos que sejam muito úteis para a vida”, especialmente os sobre a força e a ação de todos os corpos, que “poderíamos empregar (…) para todos os usos que lhes são próprios e assim nos tornar como os mestres e donos da natureza”. Viram muitas vezes nesse texto a origem do projeto moderno da submissão absoluta da natureza pela onipotência da técnica.

É verdade, em parte pelo menos, embora os principais benefícios que Descartes espera dessa “filosofia prática” sejam progressos na medicina, o que podemos louvar: basta comparar as condições de vida e de higiene no século XVII e agora.

O risco não está de fato nos progressos técnicos que permitem um conhecimento científico cada vez mais preciso das leis físicas; ele está antes na ideia de que eles podem ser “sem limites”; e essa ideia se baseia na redução de toda a natureza a uma mera corporeidade da qual nós mesmos somos excluídos, já que somos pensantes. Por isso, assim como seria absurdo acusar Aristóteles de ser o “responsável” de certa forma pelo extermínio dos índios, pelo tráfico dos escravos africanos ou pelo colonialismo, seria igualmente absurdo acusar Descartes de ser o “responsável” pela bomba atômica, pela criação industrial de animais, pela destruição da biodiversidade ou pelo aquecimento climático.

No entanto, podemos ainda atribuir os riscos do “tecnicismo sem limites” a certos princípios gerais presentes na filosofia de Descartes, subjacentes à sua concepção do homem. É a combinação de um dualismo que opõe o homem à natureza com um reducionismo que coloca todos os seres naturais num mesmo plano, enquanto os considera como sendo de uma essência completamente diferente da nossa. Aproxima-se o perigo de considerar a natureza um simples instrumento ao nosso eterno dispor, entregue desenfreadamente à saciedade dos nossos desejos, com riscos para nós mesmos ou nossos descendentes, visto que não temos mais o limite que constituiria pelo menos o respeito de uma hierarquia dos seres naturais: por exemplo, o valor dos seres vivos em relação à matéria inerte, a dos animais em relação às plantas, a dos animais que nos são próximos em relação aos outros e assim por diante. Qualquer corpo, seja ele orgânico ou não, é apenas uma coisa. Tudo o que não é a gente se torna consumível, explorável e destrutível ao nosso bel-prazer.

Não é esse perigo que ronda as ciências humanas. Elas não correm o risco nem de levar à destruição da biosfera que ameaça a visão cartesiana do homem nem às discriminações que ameaçam a visão aristotélica do homem. Pelo contrário: o fato de uma das principais lições da antropologia cultural no século XX ter sido um relativismo evidenciando as diversas maneiras – sem hierarquia possível entre elas – que o homem tem de lidar com seu ambiente e de moldá-lo pôde servir de escudo potente contra as ideologias não igualitárias ou racistas. O fato de uma das principais lições da psicanálise ter sido a de relativizar a oposição entre loucura e normalidade, mostrando que todo homem tem desejos mais ou menos recalcados – que voltam sob diversas formas, nos sonhos, na vida cotidiana ou através de sintomas -, também contribuiu bastante para neutralizar o preconceito secular que diz existir uma barreira absoluta entre as condutas ou as fantasias naturais, normais, legítimas, e as condutas ou fantasias condenáveis, por serem anormais ou não naturais; isso também contribuiu para nos tornar muito mais tolerantes com as outras maneiras de desejar, sem rejeitá-las a priori na barbárie. Será que as ciências são apenas uma escola de tolerância? Será que estão imunes a qualquer risco?

Nem um pouco. O perigo vem da imagem comum que todas as ciências humanas devem propor do homem para defender a legitimidade de seu projeto científico. Elas precisam que o homem não seja um sujeito. Melhor: é imprescindível que os homens estejam na ilusão sobre o que são e o que fazem: somente a ciência pode esclarecer isso. A consequência é que todos os seus conteúdos sobre consciência são mistificados, logo suas crenças e opiniões também; na melhor das hipóteses, elas são apenas o efeito ou o reflexo de um determinismo social: o habitus., a educação, o meio social, cultural, ou, ainda, os desejos inconscientes, as fantasias, o destino de suas pulsões.

O que está ameaçado por essa visão do homem são as bases da democracia, isto é, a confrontação das opiniões, o pressuposto de sua equivalência, a posição segundo a qual “a cada homem, uma voz”, a que lhe dita sua convicção individual e apenas ela. Como conciliar esse homem da democracia, necessariamente sujeito de suas opiniões, com essa concepção da consciência como o lugar de todas as ilusões? Que sentido dar à ideia de uma educação dos cidadãos à liberdade, pelo domínio de seu idioma e pelas ferramentas de sua própria cultura, se toda educação se contenta em transmitir o habitus de uma classe e não pode fazer nada contra os determinismos (familiares, sociais, culturais) aos quais os indivíduos são necessariamente submetidos?

Essa ilusão da consciência não se manifesta somente nas crenças de cada sujeito (logo, nas suas convicções), mas também nos seus atos e consequentemente nas suas vontades, intenções, no seu consentimento. Não é mais a democracia que está ameaçada por esse não sujeito, é o edifício todo do direito racional que se apoia nas noções de responsabilídade individual, em que cada um (e não a coletividade, o povo, a nação) pode ser considerado responsável pelo que fez com consciência, pelo que quis, deliberadamente, e não pelo que foi levado a fazer, contra sua vontade, por um determinismo psíquico qualquer (como o homem que está sob o domínio de uma droga ou de uma crise de demência) ou por um determinismo social qualquer (como a criança que foi ensinada a roubar ou a matar e que repete o que aprendeu maquinalmente).

Mas se o direito e, de maneira mais geral, a responsabilidade, se a própria noção de ato fazem sentido, é preciso que a consciência em ação, logo, o agente, seja, pelo menos em grande parte, mestre de si, do que ele faz, do que ele quer. Que sentido dar à oposição entre um assassinato premeditado e um homicídio por imprudência se de qualquer forma e mesmo no segundo caso é sempre a força de um desejo inconsciente do sujeito que se manifesta? Que sentido dar à distinção entre relações sexuais consensuais e estupro se de qualquer forma o sujeito nunca sabe o que ele realmente quer e se engana sempre sobre seus verdadeiros desejos? Parece óbvio que esse homem das ciências humanas, não sujeito, não pode ser nem autor de suas convicções nem responsável por seus atos.

Seria evidentemente absurdo tornar as ciências humanas também responsáveis pelas ameaças que pesam ou pesaram ao longo do século XX sobre os fundamentos da democracia e da responsabilidade penal. Com efeito, não é tanto o homem das ciências humanas propriamente dito que está em causa, mas, como nos casos anteriores, os princípios gerais nos quais elas se baseiam. Todo conhecimento do homem supõe obrigatoriamente que a consciência seja ignorante sobre si mesmo ou, como diria Espinosa, ignorante das causas que, independentemente dela mesmo, a determinam a pensar e querer o que ela pensa e quer. Não é esse conhecimento nem esse homem que são perigosos para o exercício da democracia e o funcionamento do direito. Arriscada é, antes, a ideia muito mais radical (frequentemente defendida pelas ciências humanas) de que a consciência não somente ignora as causas que a determinam mas é também mistificada pelas suas crenças, e, sobretudo, que é preciso que ela esteja mistificada para que “funcione”. Para que o que funcione?

A História, que para funcionar supõe que os homens acreditem que são sujeitos que fazem sua própria história quando ela sempre escapa deles. Ou a sociedade, que para funcionar supõe que os homens tenham a ilusão biográfica de serem os sujeitos de uma vida que formaria um conjunto; ou ainda as relações sociais, que para funcionar supõem que os homens acreditem em certas ideologias mistificadoras, por exemplo, no mito da unidade do corpo social, na fábula do contrato social, na impostura da igualdade dos direitos; ou finalmente: a estrutura psíquica, que para funcionar supõe que o sujeito esteja iludido sobre o que ele é e o que ele deseja. No fundo, o deslize arriscado das ciências humanas começa assim que não se trata mais unicamente de esclarecer a consciência, de abranger seu campo de conhecimento e de ação – que é o velho projeto humanista dos Iluministas -, mas de negá-la como lugar possível de conhecimento e de ação. Eis como o projeto subjacente às ciências humanas pode às vezes levar ao pior. Isso explica porque o paradigma naturalista das ciências cognitivistas não corre o mesmo risco, embora ele também esteja baseado na tese deter­ minista para a qual a consciência – ou a mente – ignora as causas que a determinam e para a qual a ciência tem como dever evidenciá-las. O naturalismo não ataca a consciência, ele tenta explicá-la, como qualquer outro fenômeno natural. Será que ele próprio é sem risco?

Uma resposta vem imediatamente à mente: será que não é o naturalismo evolucionista em si que representa o maior perigo? Será que não deveríamos desconfiar quando pretendem explicar o homem em termos biológicos, quando pretendem reduzi-lo a seus genes? Será que não deveríamos ficar desconfiados, especialmente quando recorrem a argumentos evolucionistas? Afinal de contas, em que se baseia o racismo, ou até a crença em raças, se não na essencialização das diferenças naturais e na imisção dessas diferenças naturais na vida social? Em que se apoiam a eugenia e as ideologias mais sombrias do século XX se não na ideia da pureza do sangue, na crença de que a evolução das espécies deve levar às raças superiores, até ao super-homem, na convicção (desviada de Darwin, mas realmente inspirada pelas teses evolucionistas) de que a natureza estaria “mostrando” que é preciso eliminar os mais fracos? O nazismo se inspira no darwinismo social de Herbert Spencer, que interpreta a teoria evolucionista em termos de “seleção dos mais aptos” e conclui que os povos menos “adaptados” à luta pela sobrevivência teriam ficado “parados” no estágio primitivo. Daí a luta pela existência entre a raça germano-ariana produtiva e a raça judia parasita.

Nesse delírio racista e eugenístico, será que é o próprio naturalismo que está sendo questionado? Afinal de contas, ser naturalista significa pensar que qualquer explicação boa deve permanecer imanente à natureza e que não há nisso nada de perigoso; seria, pelo contrário, sinal de uma atitude racional, sã. Diremos então que o que constitui um perigo moral, político e ideológico não é a explicação naturalista dos fenômenos humanos, mas antes o uso que é feito do evolucionismo. Todos os seres vivos, entre os quais a espécie humana, são submetidos à evolução natural. Porém, não basta. O que torna o evolucionismo perigoso, o que faz com que essa teoria autenticamente científica possa se transformar numa ideologia perniciosa, é quando querem casá-la com uma ideia cientificamente incompatível: o essencialisrno, isto é, a ideia de que o homem é isso. O que permite a passagem entre “o que é” e “o que deve ser”, como já vimos, é o fato de crer que os indivíduos, apesar de suas diferenças, têm uma identidade de essência que, mesmo que ela não consiga definir o que eles são (já que são todos diferentes), indica o que eles deveriam ser: determinada cultura, determinado povo ou indivíduo não seriam somente diferentes dos outros, como o são todos os indivíduos de uma população espalhada, mas seriam mais ou menos próximos ou afastados da essência da espécie. É assim que certas nações acham que são raças, que certas supostas “raças” acham que são superiores, e que alguns acham que são “super­homens”, qualificando os outros de “sub-homens”.

A prova de que não é o essencialismo naturalista em si que é perigoso, mas realmente a essencialização das diferenças naturais, é que esse mesmo essencialismo, quando casado com um evolucionismo culturalista, se torna igualmente perigoso e sinistro. De fato, se associarmos a ideia de evolução necessária à ideia de que a essência do homem é a cultura ou a sociedade ou até a história e não a natureza, teremos então o equivalente totalitário do nazismo. Pensemos na Rússia stalinista, na China maoísta ou no Camboja de Pol Pot: há nesses casos a expressão de uma vontade prometeica de construir urna ordem nova, conforme com o progresso inelutável – não da natureza, mas da história humana -, e de produzir com todas as forças um homem que finalmente corresponderá à sua essência; para tanto, é preciso reeducar ou até eliminar os indivíduos “impuros” – não pela sua origem natural, mas pela sua classe social (como os cúlaques) ou pela sua educação (os intelectuais durante a Revolução Cultural chinesa) ou pelo seu ambiente cultural (os moradores das cidades no Camboja).

Nesse caso, não é a evolução natural que permite determinar a essência do homem e dizer o que ele deve ser, é a evolução histórica; ela própria não é determinada por uma identidade natural (a do sangue ou da raça), mas por uma identidade social (a da classe social); e o totalitarismo chamado de “comunista” não foi buscar essa essência purificada de toda influência patógena num passado mítico qualquer (o da raça ariana antes da miscigenação), mas num futuro tão mítico quanto (o do homem novo dos amanhãs radiosos, após o sacrifício de algumas gerações).

Então, nem o evolucionismo nem o naturalismo constituem um perigo em si, enquanto não forem associados a um princípio essencialista ou a uma ideologia hierárquica (o que dá no mesmo, na maioria das vezes). Será que a nova imagem do homem, um animal como os outros, não corre perigo? Sabemos que sim. Mas o verdadeiro perigo não é esse.

Essa definição do homem (“um animal como os outros”) com certeza determina um programa de pesquisa científica sólido e fecundo e talvez cumpra a promessa de uma reintegração das ciências humanas ao seio das ciências naturais, que foi o sonho do próprio Freud ou de Lévi-Strauss. Alguns temem que ela também determine um programa de pesquisa tecnológica: clonagem, manipulações genéticas etc. Aspectos sobre os quais os jornais ou as narrativas de ficção científica nos alertam. Apesar de algumas fantasias, esse risco talvez não seja diferente por natureza ou mais grave que aquele da exploração sem limites da natureza à qual estamos acostumados há muito tempo. O verdadeiro problema não reside nisso, mas no risco que essa definição do homem seja tomada – aliás, já está sendo tomada assim, e cada vez mais – como um programa de redefinição da ética. Partindo do fato – incontestável em si – de que o homem é um animal como os outros, estão chegando a duas consequências morais inadmissíveis.

A primeira consiste em tomar pura e simplesmente essa proposição cientificamente fecunda como uma proposição dotada de sentido moral. A nova definição do homem pode contribuir para nossos conhecimentos, mas ela não pode servir de fundamento para nossas condutas. O risco seria o de reduzir a aspiração humana a “viver bem” ao simples desejo animal de “viver”: viver, no sentido de sobreviver, limitando na medida do possível nossas dores e aumentando se possível nossos prazeres, assim como o exige a moral utilitarista mais comumente ligada à naturalização do homem. Com efeito, se o que torna um ser moralmente digno de respeito moral ou lhe permite ser um sujeito de direitos é apenas sua sensibilidade ao prazer e à dor, como o quer a moral utilitarista cada vez mais dominante no movimento naturalista, então somos na verdade seres moralmente tão respeitáveis quanto ratos ou porcos. Mas a moral humana não se reduz a “não sofrer e não fazer sofrer”, nem a ter “direitos naturais”. Ela também consiste em ideais de generosidade, de beleza, de dedicação, de sacrifício; ela também se fixa objetivos políticos de justiça, de liberdade, de igualdade, e tudo isso é irredutível à oposição do prazer e da dor, no sentido animal do termo. Portanto, a proposição segundo a qual o homem é um animal como os outros não pode em nenhum caso ser considerada um programa moral, por mais minimalista que seja.

A segunda consequência ética que podemos às vezes ser levados a tirar do fato de que o homem é um animal como os outros é que seria legítimo, até necessário, tratar moralmente todos os animais como devemos tratar o homem. É a recíproca da conclusão anterior: não devemos mais aos homens do que aos animais, mas não devemos menos aos animais do que aos homens. De repente, parece anódino. Soa até “generoso”: será que não significa estender o alcance da moral além da humanidade, até às outras espécies? Será que não significa ser mais “moral” ainda do que a moral “humanista”? Eis a armadilha: pois a proposição que diz que devemos tratar os animais como devemos tratar o homem é logicamente equivalente à proposição inversa, que diz que devemos tratar o homem como devemos tratar os animais;. Sob essa forma, é possível sentir o perigo de imediato. Colocada nesses termos, fica claro que essa concepção, longe de ser uma extensão da moral humanista, é na verdade sua própria negação.

É preciso distinguir nitidamente a tese científica, reguladora do paradigma cognitivista, segundo a qual o homem é (também, primeiro, antes de tudo) um animal como os demais, da ideia moral segundo a qual o homem deve ser “tratado” como os outros animais. Mas de onde vem essa ideia, que se impõe cada vez mais, para o melhor e provavelmente também para o pior? Ela possui muitas fontes. Vamos citar algumas. Está claro, para começar, que o desenvolvimento exponencial das técnicas, a mercantilização imoderada dos seres vivos, assim como a mecanização desenfreada da agricultura e da criação de animais – preço a pagar pela imagem do homem definido como soberano onipotente da natureza (vejam o que imputam a Descartes) – tiveram como consequência o rebaixamento frequente de animais a meros objetos: daí uma reação sã em favor da defesa da biosfera e da biodiversidade.

Além do mais, os progressos consideráveis da urbanização, a perda de qualquer contato com a vida selvagem para a maioria da humanidade, a vitória aparente (ou provisória) nos países desenvolvidos dos homens na sua luta secular contra certos males naturais – ataques de animais selvagens, epidemias trazidas pela fauna -, o crescimento do número de animais domésticos nas grandes cidades ocidentais: todas essas manifestações da modernidade tiveram como consequência a imposição de uma representação cada vez mais adocicada da natureza, como se ela fosse apenas um cenário de conto de fadas, o reino da harmonia preestabelecida, tal como a vemos nos desenhos animados da Walt Disney: os ratos não são portadores da peste, é Ratatouille; os grilos não devastam as colheitas, é o Grilo Falante, etc.

Por um lado, então, a modernidade tecnicista “coisificou” e “mercantilizou” os seres naturais; por outro, e em grande parte em reação contra essa “coisificação”, a natureza é remitificada, sacralizada e até santificada como fonte absoluta e intrínseca de valores: os seres naturais seriam sempre bons, acredita-se, enquanto continuarem sendo naturais. (Novo exemplo da confusão entre o natural e o legítimo.) A isso vem se acrescentar a divulgação muito midiatizada dos progressos da biologia: a ideia, por exemplo, de que o homem compartilha 98% de seu patrimônio genético com os macacos e 90% com o camundongo é muitas vezes interpretada como se existissem apenas diferenças menores, negligenciáveis, entre nós e os macacos, entre nós e os camundongos inclusive, e assim por diante, entre nós e as moscas ou tudo o que você quiser, e que, por conseguinte devêssemos tratar todos esses animais, tão próximos da gente, como tratamos nossos familiares.

Daí o progresso considerável de todos esses movimentos, às vezes simpáticos (como as poderosíssimas associações vegetarianas, em permanente crescimento nos Estados Unidos, na Inglaterra ou na Austrália), às vezes muito menos simpáticos (como os movimentos terroristas que se autoproclamam de libertação animal); daí o sucesso de todas essas formas de militância, meio políticas, meio filosóficas a favor do antiespeciesismo, isto é: a doutrina que diz que a espécie à favor da qual um ser pertence não é um critério pertinente para decidir como tratá-lo ou para determinar o respeito que lhe é devido. Os diversos sofismas do antiespeciesismo são, no entanto, óbvios. Os primeiros se situam nesse raciocínio aparentemente lógico: do mesmo modo que o fato de pertencer a determinado sexo, a determinada religião ou raça não deve ser um critério de como os seres devem ser considerados moralmente, o fato de pertencer a determinada espécie, à humana, por exemplo, tampouco serve de critério. Mas seria esquecer que o antirracismo apenas é a forma negativa do universalismo humanista: se não devo discriminar ninguém em função de sua raça é porque devo tratar todos os homens igualmente. Porém, nenhum tipo de universalismo pode por hipótese ser estendido a todas as espécies animais (e os ratos? E os piolhos?), menos ainda a todas as espécies vivas (será que devo deixar de usar antibióticos ou de lutar contra os vírus?). Sem contar que o universalismo humanista não se baseia somente na ideia de igualdade, mas também na da reciprocidade: tenho que tratar todos os homens como eles deveriam me tratar. É nessa ideia de reciprocidade que se fundamentam muitos dos nossos preceitos morais, a começar pelo conceito de justiça. Posso constituir uma comunidade com qualquer homem e, logo, uma comunidade justa, porque recíproca. Que reciprocidade esperar do crocodilo ou do mosquito? Que comunidade moral ou política é possível imaginar com eles com tranquilidade? O antiespecista comete outro sofisma, menos visível embora mais pernicioso, visto que ele entra obrigatoriamente em contradição com seus próprios princípios. De fato, nada é mais antropocentrista que o antiespeciesismo.
Com efeito, ele não respeita a natureza em nada, já que, ao contrário de todas as outras espécies naturais, ele pretende tratar todas com o mesmo respeito. Porém nenhuma espécie natural respeita naturalmente as outras. Ocorre geralmente o contrário, inclusive, como o mostra com precisão a biologia evolucionista. Mas o fato de que nenhuma espécie natural seja antiespecista, embora alguns queiram que o homem o seja – e somente ele em toda a natureza-, prova uma coisa essencial: é o homem – e somente ele – a fonte de qualquer moral (até da antiespecista), e não a natureza.

Se tivermos então que preservar as condições ambientais da vida na Terra, para o bem dos homens e especificamente o das gerações futuras; se tivermos que preservar a biodiversidade na medida do possível, que nos abster da crueldade inútil para com os animais no respeito das condições da boa convivência humana; se tivermos que denunciar a criação industrial de animais ou a comercialização das espécies ameaçadas: isso surge da moral humana, puramente humana, que é sempre feita, colocada ou criada pelo homem em nome de uma ideia do homem. Isso não quer dizer que ela deva necessariamente ser concebida somente em proveito do homem, mas que ela deve sempre ser concebida em primeiro lugar em proveito do homem (e não de Deus ou dos animais) e contanto que ela se aplique universalmente a todos, os homens. É isso que é moral, justamente porque não é natural, justamente porque vai contra o comportamento natural. Que se trate do comportamento das outras espécies entre si ou do comportamento dos homens em relação aos outros homens, pois o homem é naturalmente quem mais massacra, não a natureza, mas o próprio homem. A moral não pode se fundamentar na natureza. Seu valor reside justamente no fato de que ela não é natural.

Eis talvez o que se pode dizer depois desse século XX que foi provavelmente o dos maiores genocídios (armênio, judeu, cigano, tutsi etc.) e de todas as formas de crimes em massa (Hiroshima, Kolyma, Katyn, Srebrenica, etc.). Não mais do que as outras espécies naturais, os homens se comportam naturalmente, seguindo princípios de um humanismo universalista. É justamente o contrário! É logo isso que faz o valor desses princípios.

Em suma, encontramos quatro concepções do homem. Cada uma tem um fundo de verdade. Todas são legítimas, visto que fundaram novas disciplinas científicas: cosmologia, física, matemática, ciências humanas, ciências cognitivas. Consideradas por si mesmas, porém, independentemente desse contexto científico, todas têm seu avesso ético. O avesso do essencialismo hierárquico ou do animal racional é que ele pode levar a todas as formas de discriminação; a “coisa pensante” pode conduzir à destruição do mundo natural; o não sujeito pode tornar crível a irresponsabilidade individual; o animal humano (ao contrário da coisa pensante) pode fazer com que as pessoas achem que não há limite nítido separando o humano do não humano e que a moral pode consequentemente se basear na própria natureza, ou seja, em qualquer coisa.

Com efeito, quando não é mais o homem que está no horizonte de nossas condutas, então qualquer coisa pode de fato servir: a natureza (que nunca diz nada, já que nela encontramos tudo e seu contrário), por exemplo, ou qualquer livro que seja chamado de sagrado, ou ainda qualquer imagem que as pessoas acreditem ser imposta pela “Ciência”: mas a ciência também é muda sobre o que devemos fazer, o que tem valor, o que deveria ser; sobre a natureza ou o Céu. Pois a moral é autossuficiente. Ela não precisa de autoridade externa a ela: natureza, ciência ou Deus. É uma característica própria do homem, e talvez seja sua única característica própria autêntica. Por conseguinte, ela só pode ter como princípio e fim o próprio homem. Há evidentemente sempre um abismo entre o que os homens fazem geralmente e o que deveriam fazer sempre. Sim, a espécie humana é a única que se automassacra sistematicamente, essa é sua “natureza”. Sim, a espécie humana também é a única que pode agir em função de normas universais: essa é sua “moral”. Existe de fato um precipício entre essa natureza e essa moral. Esse precipício, esse abismo, é justamente a condição humana.

Tradução de Yves Bergougnoux

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