1992

Bergson, Proust: tensões do tempo

por Franklin Leopoldo e Silva

Resumo

Literatura e filosofia habitam regiões muito distantes uma da outra. Interessante, nesse caso, é que a distância que separa é a mesma que aproxima. Assim sendo, se não se deve, de um lado, ceder a paralelismos – mesmo os mais evidentes – ou flagrar na narrativa qualquer tipo de hipótese filosófica, pode-se, por outro, encontrar, no núcleo mais íntimo da trama romanesca, o impulso de desvendamento da realidade, obsessão de quem procura ir além do conjunto de significações que o cotidiano naturalizou.

Tal excedente de percepção e compreensão do mundo e de si mesmo investe a literatura de “saber”, e é isso, enfim, que a aproxima da filosofia.

A realidade insofismável e o enigma. Foi de tal aporia, aliás, que nasceu a metafísica, pois é já Zenão que denuncia a insuficiência da percepção. Platão confirma-a, a partir do momento em que dissocia Verdade de realidade do devir. Em Descartes tal dissociação é radicalizada… O que, nisso, permanece mistério é o que há entre percepção e realidade.

Quanto à percepção, o filósofo francês Henri Bergson segue a tradição, sobretudo porque – nota – o uso que se faz dela é pragmático, o que implica um recorte prévio e esquematizado do mundo. O tempo e o movimento, por exemplo, não são percebidos em si, mas como sucessões de pontos em linhas imaginárias. Assim, um objeto move-se, evolui ou transforma-se quando passa de um ponto a outro. Eis mesmo o enigma: entre dois instantes, o que há de mais profundo na realidade. A isso a tradição responde com conceitos e ideias; substratos, essências, acidentes… E Bergson?

Para ele, o esforço filosófico consiste em conceber a realidade não a partir da substância, mas da mobilidade e da temporalidade mesmas. E as consequências disso? De início, é preciso purgar o erro fundamental, ou seja, o abandono da percepção. Mais: alargá-la, aprofundá-la. Enriquecê-la, enfim. É possível isso? Não só possível quanto provado – pela arte. Por isso, a mencionada percepção do real que nele vê mais coisas do que o hábito permite. Daí ela como gênese de um enigma. No caso de Proust, o do tempo.

Tanto que “Em busca …” se passa entre um antes indeterminado e um depois em aberto. Paisagem de origem e nostalgia de futuro.

“Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo” – é essa a frase de abertura de “Em busca…”: uma reflexão sobre a questão da origem, que remete a uma anterioridade indefinida no tempo. Emblemática, ela é talvez a mais curta do livro, como se fosse a continuação de um texto virtual ou – descobre-se depois – um estado originário entre o sono e a vigília, ou a distensão da memória e a tensão do presente. Daí que: “Um homem que dorme mantém em torno de si o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos” ou “a obra é filha da noite, do silêncio e da obscuridade porque sua trama será tecida como esse ‘fio de horas'”.

 


Já que vamos estabelecer aqui uma relação entre Bergson e Proust no que concerne a alguns aspectos da apreensão do Tempo, convém desde logo esclarecer que não se pretende sugerir, com isto, qualquer tipo de identificação, ainda que parcial, entre a obra romanesca e a teoria filosófica. Não estarão pressupostas, em tudo o que adiante se dirá, influências ou mesmo comunidade de ideias, nem mesmo a força de uma ambiência cultural que a ambos foi comum, por terem sido contemporâneos. O romance não necessita de filosofia para expressar ideia, assim como a filosofia não necessita tornar-se poesia para estudar a alma. Literatura e filosofia habitam regiões muito diferentes e também muito distantes uma da outra. Mas quando se convive um pouco com ambas, percebe-se que a distância que separa é a mesma que aproxima. Se a distância que separa nos impede de ceder aos paralelismos, por vezes tão aparentes, de reencontrar na construção romanesca as ideias filosóficas que às vezes ela parece ilustrar, de reenviar a ficção diretamente às teses que por vezes até sabemos terem sido defendidas pelo próprio escritor, por outro lado o percurso da distância que aproxima a literatura da filosofia nos permite encontrar, na elaboração mais específica da narração, no núcleo mais íntimo da trama romanesca, o impulso de desvendamento da realidade, fruto da inquietude, do espanto e da perplexidade, sentimentos que definem, ao menos em parte, a situação daqueles que buscam a verdade, procurando compreender o real um pouco para além do conjunto de significações que a vida cotidiana nos tornou familiares. Quando lemos um texto de filosofia, não precisamos nos perguntar por que o autor se dá ali ao trabalho de, descrevendo a realidade que é a de todos nós, tentar transmitir-nos, a respeito dela, uma compreensão que nos ajude a percebê-la ao mesmo tempo de uma forma mais refinada e mais ingênua, no sentido de mais imediata. E não precisamos perguntar porque, nesse caso, sabemos que o autor o faz por dever de ofício. Mas quando, diante de uma obra literária, questionamos a razão da escrita e indagamos o porquê daquela descrição do mundo que nos é apresentada, a resposta já não é tão fácil. Diante do prazer e da beleza que a obra de arte exalta pela sua forma, poderíamos ser tentados a dizer que a razão da obra está na sua finalidade: agradar, proporcionar prazer, excitando a nossa imaginação a ponto de nos levar a sentimentos e percepções dantes insuspeitados. Esse caráter inesperado da obra de arte certamente se vincula ao prazer estético, mas não podemos esquecer também que é o inesperado do mundo e o insuspeitado do real que a obra nos apresenta e aos quais acedemos, com os quais concordamos na relação de contemplação. Então, vemos que aquilo que a obra nos mostra está nela, mas aponta para além dela, pois não entendemos a obra de arte como uma exposição objetiva, à maneira de uma teoria descritiva do real, mas sentimos que isso que por meio dela nos é apontado está muito próximo de nós, quando não está em nós. A relação estética nos compromete porque a criação artística só pode ser entendida nos termos de uma participação. E se, ao participar, concordamos com o que nos é mostrado, deixamo-nos levar pela descrição desse mundo que, entretanto, não era nosso, é porque certamente compreendemos que o insuspeitado e o inesperado trazem algo de verdadeiro que, uma vez mostrado, não podemos deixar de ver, com o que não podemos deixar de concordar, por ser a verdade da realidade, e trazem a força e o caráter impositivo que advêm de serem o mesmo a verdade e a realidade. E assim percebemos por que o autor escreveu: percebemos por que o que o moveu é também aquilo que agora nos move, não porque sejamos capazes de repetir o que ele fez, mas simplesmente porque o que ele nos mostrou, por ser real e verdadeiro, incorporou-se àquilo que de mais profundo sabemos sobre as coisas e sobre nós.

É por nos proporcionar esta espécie de excedente de percepção e de compreensão sobre o mundo e sobre nós que a obra de arte se faz portadora de saber, e é isto que a aproxima da filosofia, guardada sempre a distância entre os dois modos de apreensão e de expressão da verdade em diferentes gêneros de discurso. No entanto, se por meio da obra de arte se dá uma apreensão da realidade, podemos dizer que aí se encontram, ao mesmo tempo, uma constatação e um problema. E com essa dupla referência, que nos encaminha simultaneamente para a realidade e para o enigma, abordamos o nosso tema. Quando dizemos que a apreensão artística do real é uma constatação, queremos significar que reconhecemos uma dimensão da atividade humana, o fazer artístico, em que uma tal apreensão, desde séculos, se dá. A simples existência de obras de arte, e sua reverberação em termos de conhecimento e de cultura, o prova. Quando nos referimos ao problema aí envolvido, queremos dizer que a convivência com as obras de arte e com o alargamento da percepção e da compreensão que elas nos proporcionam não nos fazem progredir em nada na elucidação do modo como o artista chega a nos dar a conhecer o inesperado e o insuspeitado que caracterizam o seu produto.

Bergson é atento a isto que de um lado é realidade insofismável e de outro enigma absoluto. Esta dupla referência tem importância para a sua filosofia porque ele deseja mostrar que não estamos irremediavelmente condenados aos quadros da percepção habitual, aquela que recorta o mundo segundo nossas necessidades e nossas expectativas de agir sobre ele — isto é, de maneira eminentemente pragmática. É lugar-comum na tradição filosófica a denúncia da insuficiência da percepção. Pode-se dizer que a metafísica nasceu a partir da crítica da percepção, primeiramente do raciocínio eleático, Zenão mostrando o absurdo envolvido na percepção aparente do movimento, e posteriormente Platão remetendo às Ideias a verdade que a percepção empírica não encontra na realidade do devir. Podemos lembrar também, no início da modernidade, a crítica paradigmática que faz Descartes das contradições e ilusões da percepção sensível. Em toda esta trajetória especulativa está implícita a ideia de que, se nossa percepção alcançasse o real na sua verdadeira essência, não haveria necessidade de raciocínios e concepções que preenchessem o vazio da percepção direta. Mas há, desde Platão até os modernos, a necessidade de preencher este vazio que efetivamente existe: o pensamento formula então os conceitos, isto é, concebe o real, já que não há como percebê-lo na sua verdade. O conceito elimina do real as ilusões e as contradições em que nos mergulha a percepção.

Bergson está de acordo com a constatação de que a percepção não nos apresenta o verdadeiro real, e já vimos as razões: a percepção tem uma função pragmática, percebemos para agir sobre o mundo e não para conhecê-lo, portanto a percepção está estruturada para nos mostrar do real aquilo que interessa à prática. Daí o recorte, a articulação, o desenho do mundo que já pré-esquematiza nossa ação sobre ele. Não percebemos, por exemplo, o tempo e o movimento, mas o esquema da mobilidade e da sucessão, isto é, pontos em que se divide uma trajetória e posições que os objetos ocupam no tempo. Não percebemos o mover-se propriamente, assim como não percebemos o passar do tempo, que é sua característica mais intrínseca. O que percebemos do tempo são instantes que se sucedem como pontos sobre uma linha imaginária: os objetos que se movem são percebidos, a cada vez, imóveis num ponto do espaço e fixos numa posição da linha temporal. Reconstituímos depois o tempo e o movimento relacionando esses pontos e essas posições, e dizemos então que o objeto se moveu, isto é, passou de um ponto a outro, ou então que ele evoluiu, transformou-se no tempo porque comparamos entre si duas posições, o antes e o depois. Mas o que se dá entre os pontos e as posições, o processo pelo qual o objeto se move e muda, transformando-se no seu evoluir temporal, isto não percebemos, e são essas, para Bergson, as características mais profundas da realidade. É verdade, portanto, tal como já vira a tradição, que não percebemos a realidade tal como é em si mesma. Mas e quanto à solução que para esse problema aventou a tradição, isto é, o abandono da percepção em prol do conceito e da ideia, pode o bergsonismo concordar com ela? Note-se que, como já dissemos, o impulso inicial da metafísica foi o de abandonar a percepção porque o que aí percebíamos de movimento e de mudança apresentava contradições. Com efeito, movimento significa que o objeto, percebido como existindo num certo lugar, já aí não mais está quando se move; e que o mesmo objeto, percebido de uma certa maneira e com certas características, já não é mais assim ao mudar ou transformar-se. Por isso, há que marcar, no objeto ou fora dele, algo de permanente que nos permita identificá-lo, caso contrário não resolveremos a transição continua entre o ser e o não-ser. Platão optou por pensar a essência das coisas fora delas mesmas, no mundo das ideias; Aristóteles categorizou os diferentes aspectos em que a realidade se nos apresenta, dividindo-os em substância e acidentes, sendo que tempo e movimento seriam acidentes que se acrescentariam como atributos a algo de permanente que seria o objeto mesmo, idêntico a si. Em ambas as soluções, e nas variantes que depois foram pensadas no decorrer da história da filosofia, privilegiou-se o substrato permanente, identificado com a essência, relativamente ao qual se ordenam os acidentes, como tempo e lugar, aspectos portanto secundários em relação ao primeiro. A realidade se livra da contradição na medida em que a pensamos ou a concebemos como uma articulação de modos ou aspectos, o principal e os secundários, e essa articulação se expressa na lógica do nosso pensamento pelas categorias e conceitos a partir dos quais visamos o mundo para conhecê-lo. Ora, o que Bergson é levado a notar é que, se a percepção natural não me punha em contato com o movimento e a mudança, muito menos o farão os conceitos que se sobrepõem à percepção e se confundem com a própria realidade, já que optamos por pensá-la e não por percebê-la. Essa permanência do real enquanto substrato não me dá, por exemplo, a característica mais interna do tempo que é passar, assim como o lugar ou a variável posicional não me faz chegar mais perto do processo de movimento. E assim se passou de uma percepção-confusão do movimento e do tempo para a sua completa anulação. Tudo isso ocorreu porque a filosofia partiu do princípio de que o que há de substancial na realidade é o que ela tem de imóvel e de imutável, e esses deviam ser então os pontos de partida do conhecimento.

No entanto, tudo isso se modificaria inteiramente se partíssemos da hipótese de que o que a realidade tem de substancial é a sua mobilidade e a sua temporalidade. Se víssemos o próprio movimento e a própria mudança como anteriores aos objetos que se movem e mudam. Nesta perspectiva, qualquer objeto imóvel e imutável deveria ser visto como uma espécie de instantâneo fotográfico, portanto artificial, da mobilidade e da temporalidade. O ser, o que verdadeiramente existe, são mobilidade e mudança, ou seja, temporalidade, e não objetos que permanecem. Dito paradoxalmente: o ser é devir, isto é, contínuo fluxo temporal, que apenas acidental e artificialmente pode ser visto como ponto imóvel ou posição fixa no tempo. Um exame das concepções de tempo nas filosofias tradicionais autoriza, assim o crê Bergson, a constatar na história do pensamento uma série de procedimentos sistemáticos que têm como objetivo escamotear o Tempo. Qual a causa dessa verdadeira unanimidade relativa ao prestígio da estabilidade, da permanência e da imobilidade entre os filósofos? Ela deriva da fundamental cumplicidade entre três modos de visar o mundo: senso comum, percepção e intelectualização. O senso comum e a percepção obedecem às prerrogativas da prática, como já vimos. O intelecto, para o qual se voltou a filosofia tradicional em busca da verdadeira realidade, está também intimamente comprometido com o interesse prático que se traduz no conhecimento em vista da ação. Neste sentido, ele prolonga a percepção e o senso comum, organizando a realidade por meio de quadros categoriais que só fazem exacerbar e sistematizar a articulação e o recorte prático do real. As chamadas filosofias da representação, sobretudo Descartes e Kant, fundamentaram no sujeito essa articulação, elevando a inteligência prática ao estatuto de órgão especulativo. Por isso, a metafísica moderna não contraria fundamentalmente Platão e Aristóteles, na medida em que se mantém fiel à vocação estabilizadora e imobilizadora da percepção e da inteligência. É preciso, contudo, que se diga que, estruturadas desse modo, percepção e inteligência cumprem funções essenciais no que respeita à articulação da práxis. A ordenação perceptiva e intelectual da realidade é absolutamente necessária a um conhecimento que se rege por finalidade eminentemente prática de domínio do real, para transformá-lo conforme as necessidades humanas.

Mas as necessidades humanas não podem governar o conhecimento da realidade em si, isto é, a realidade conhecida não para nós mas por ela, não em vista da nossa maneira de ver e de agir, mas em vista do que ela é em si mesma. A filosofia deveria prover esse saber desinteressado da práxis, aquele que visaria o conhecimento da realidade por ela mesma, mas disto está impedida por partir do princípio de que é o intelecto o órgão desse conhecimento. Tal o instrumento, tal o resultado: as teorias filosóficas, assim como a percepção e o senso comum, imobilizam o real, paralisam o devir e ainda conferem a este conhecimento artificial e esquemático o prestígio da especulação metafísica.

Ora, se, como vimos, não é a percepção tal como a temos habitualmente nem o intelecto prático os meios de obter essa aproximação do caráter substancialmente temporal da realidade, como então o faremos? Segundo Bergson, o erro das teorias filosóficas foi o de ter abandonado a percepção. Não se tratava de dar as costas à percepção, diz ele, mas de alargá-la e aprofundá-la. Como fazê-lo, poder-se-ia perguntar, se a percepção é estruturalmente voltada para a articulação pragmática da realidade? Podemos modificar a nossa constituição natural? Evidentemente não, mas há uma evidência de que se pode perceber a realidade tal como não o fazemos habitualmente. Trata-se de dar à percepção o caráter que ela não tem no nosso trato costumeiro com o mundo. Que isso é possível, prova-o a arte. Reencontramos assim aquilo que havíamos dito inicialmente. Há uma percepção do real que nele vê mais coisas do que aquilo que habitualmente percebemos. A originalidade do artista e aquilo que vimos ser o caráter inesperado e insuspeitado da arte derivam da peculiar percepção do artista. Aí está pois a percepção alargada e aprofundada: nós temos acesso não a ela mesma, mas àquilo que ela produz. A arte enquanto produto é uma realidade, a arte enquanto gênese desse produto é um enigma. Mas mediante a realidade da obra podemos lançar um olhar para a região enigmática em que ela se produz. A elucidação do procedimento artístico tateará, portanto, essa imensa e obscura distância que se situa entre a arte e a filosofia da arte, distância que separa e aproxima. Mas não será preciso caminhar muito. Basta que reflitamos um pouco sobre o significado do pragmatismo estrutural que caracteriza a percepção habitual. Por que nossa consciência, que de direito deveria perceber tudo, percebe o mundo apenas parcialmente? Por que a nossa consciência se apresenta o mundo em vez de apresentá-lo simplesmente a si, tal como ele é nele mesmo? Por que, enfim, as coisas que não interessam à nossa ação sobre o mundo não estão presentes no horizonte de nossa consciência empírica? A resposta bergsoniana é, em princípio, de uma simplicidade desconcertante. Não percebemos os aspectos do real que não interessam à nossa prática porque não prestamos atenção neles. A atenção é o mecanismo seletor da percepção e é ela que faz com que vejamos no real apenas aquilo que preenche nossas expectativas de ação. E nos relacionamos intelectualmente com o real da mesma forma na medida em que para nós ele é um instrumento e não um fim. O real é a disponibilidade instrumental pela qual as coisas se dispõem para nós em vista do uso que podemos fazer delas. A atenção mantém nossa consciência perceptiva e intelectual ligada aos aspectos instrumentais do real. Trata-se de uma tensão e de um esforço continuamente desenvolvido para que o homem se mantenha na condição de senhor das coisas e de usuário da natureza. Aquilo que de direito perceberíamos, se nosso espírito se pusesse diante da realidade desarmado de qualquer critério pragmático, se obnubila: nosso espírito se concentra, tensionando, estreitando-se como um cone para que só a ponta deste cone toque o real, o adentre e o domine naquilo em que ele nos pode ser útil.

A condição da arte é o relaxamento desta tensão. Nunca saberemos por que ele ocorre: é esta a parte enigmática da gênese da obra, a partir da percepção do artista. O que para nós aparece como criação é fruto dessa descontração, dessa distração pela qual o espírito se distende e, por desatenção, percebe mais e mais profundamente. A percepção alargada e aprofundada, de que falávamos havia pouco, consiste nesta indeterminação do foco de atenção, graças à qual o artista percebe e revela os aspectos insuspeitados e inesperados do real. O senso comum sempre se espantou com esse aspecto misterioso que é o próprio centro da criação artística: como o desligamento da realidade, a desatenção às coisas pode ser a condição de uma percepção mais aguda, mais profunda e mais ampla? Esse espanto do senso comum com o aparente paradoxo que crê encontrar é índice da verdade que, insuspeitada e inesperadamente, nos é dada a ver na obra de arte.

Mas no contexto da perspectiva bergsoniana, tal como o indicamos há pouco, isto se esclarece. O artista percebe o que de direito é perceptível, isto é, tudo. E desse todo, pelo qual passeia o foco indeterminado de sua atenção descontraída, retira os aspectos em que a verdade mais nítida e mais inteiramente se apresenta: são os aspectos que, para a percepção comum, aparecem como inesperados e insuspeitados, mas que ela mesma, percepção comum, reconhece como portadores de verdade, porque reconhece neles aquilo que de direito poderia perceber, não fossem os critérios pragmáticos da visão simplesmente humana do mundo.

Mas ao constatarmos assim que a desatenção do artista é responsável pela sua percepção peculiar do mundo deparamo-nos com um problema. A atenção constitui o campo da visibilidade do fato, isto é, delimita o factual a que nós, homens da percepção comum, chamamos de mundo real. Por contraposição o artista seria, então, aquele que nos apresenta o mundo “irreal”, o simplesmente “imaginado” no sentido de fingido. Tudo o que dissemos até aqui nos leva a responder que não. Justamente, a percepção alargada e aprofundada revela mais e mais intensamente o real, aproximando o artista do que chamamos a realidade em si, aquela não recortada pelas nossas expectativas e pré-concepções. E, no entanto, o que ele nos apresenta é, em certa medida, fruto da imaginação. E essa medida é aquela em que o único procedimento de que dispomos para alargar e aprofundar a percepção é a própria imaginação. Mas, se o real a que acede o artista não é fingido e sim conhecido, como pode ser fruto da imaginação? É que, como vimos, não podemos mudar nossa constituição e perceber, no mesmo sentido em que percebemos habitualmente, aquilo que não é acessível à percepção. Por isso, na percepção alargada, imaginação e percepção se fundem num único gesto de visão que descortina a totalidade do real e que se prolonga no gesto da expressão, pelo qual o artista lança na tela, na escrita, na pedra, na música e em todas as possíveis condições de expressividade a visão que, incondiciona-da, é em si inexprimível. A obra é a expressão possível, perceptível, da visão. Por isso, a reconhecemos e a incorporamos, numa assimilação necessariamente empobrecida daquilo que foi a expressão, já de si também incompleta e contin-genciada, de um conhecimento que é coincidência com o real no que ele tem de mais íntimo.

E o que o real tem de mais íntimo e de mais essencial é aquilo que para nós é o mais fugidio, evanescente e imperceptível: o Tempo. A realidade de direito percebida está na dimensão da invisibilidade. A essência da realidade é imperceptível não porque a transcenda, mas porque está profundamente arraigada no seu interior. Por isso, a visão da interioridade é inabitual e extraordinária. O que se traduz para nós no seu caráter fugidio e evanescente. A luta pela expressão é o esforço de fixar esse movimento absoluto do tempo; e é um esforço da imaginação, que, portanto, é órgão de conhecimento, de acesso mais profundo e mais direto à realidade. A tentativa de traduzir em obra este conhecimento que é antes de tudo sentimento de coincidência com o interior da realidade, a sua temporalidade, reencontra a atenção agora não mais como esforço de percepção localizada, mas como trabalho de mediação metafórica que faça da significação um veículo expressivo da transição absoluta que é a realidade enquanto devir. O trabalho de expressão é tenso — e até mesmo agônico — porque a linguagem é em si um produto da inteligência, naturalmente apto apenas para exprimir aquilo que percebemos habitualmente. É a imprecisão da linguagem natural, a que Bergson denomina mobilidade dos significados, que possibilita o trânsito entre as significações. A face transferencial da semântica abre o espaço da sugestão significativa que é a mediação metafórica de que se serve o artista quando tenta transmitir aproximativamente uma percepção que se dá no interior do objeto e não a partir de perspectivas externas a ele. Vê-se o quanto a noção de percepção sensível foi modificada. Não se trata de rodear o objeto para fotografar os seus perfis e depois pretender que a soma dessas visões parciais nos dê a totalidade do objeto. O contorno exterior do mundo nos fornece o esquema da realidade, não o seu ser. Trata-se de coincidir com as coisas da mesma forma que coincidimos conosco. Portanto, o primeiro passo para experimentar essa coincidência é tentar viver a intimidade de si próprio. Não é porque somos próximos a nós mesmos que vivemos realmente a nossa própria intimidade. A vocação exteriorizante da percepção habitual e do intelecto faz com que vivamos a maior parte do tempo fora de nós mesmos, distantes do núcleo de nossa vida interior, da multiplicidade fluente de nossas vivências. Há uma compatibilidade no falseamento do ritmo interno e do ritmo externo da duração: só transitamos bem entre um e outro quando os concebemos como dois trens que vão na mesma direção e na mesma velocidade, e, assim, um relativamente ao outro, é como se estivessem parados. Apesar da velocidade, podemos passar de um para outro porque estabelecemos uma situação artificial em que o movimento e a imobilidade se equivalem. Mas é notório que isto é conseguido graças à anulação da diferença: ora, a diferença é o cerne do movimento temporal. Temporalidade é sobretudo transformação e é a transformação que marca o ritmo de nossa história interior. Quando coincidimos conosco, coincidimos com essa história que é um incessante vir-a-ser qualitativo. A percepção sensível no sentido que assume no bergsonismo significa a sensibilidade a essas transformações, sempre internas mesmo quando não se dão em nós mas nas coisas ou nos outros. Não há como perceber o tempo senão por meio desta sensibilidade para o contínuo ato de transformar-se que é a realidade. Quando o artista coincide com a interioridade é com esse ato que ele coincide e é por isto que a obra é eminentemente atividade e atualização da percepção interna. Ativação daquilo que no âmbito da vida ordinária permanece oculto; atualização de tudo o que habitualmente existe de direito e em estado virtual. A arte é a descrição da realidade do ponto de vista da duração, que não é, já se vê, um ponto de vista como outro qualquer, mas um ponto de vista que assume a realidade desde o seu núcleo temporal. Ponto de vista, portanto, que, participando daquela indeterminação que caracteriza o relaxamento do foco de atenção, em qualquer perspectiva que se coloque descortinará sempre algo de absoluto.

E assim o mundo, a realidade, é o referencial indeterminado dos mundos que se originam da criação artística. Porque a pluralidade dos mundos que nascem da criação se identificam na função reveladora da verdade que a obra de arte nos dá a perceber. Disto deriva o profundo compromisso da narração com a verdadeira história da consciência e das coisas. Compreender o modo como se estabelece este compromisso é entender a singularidade de cada mundo romanesco, é elucidar a visão original que cada artista tem da temporalidade, sempre a partir dela mesma, é aproximar-se da descrição originária que se dá por meio da palavra criadora, do logos que se faz mundo ao recriar o mundo.

Falamos há pouco do enigma do encontro entre o artista e a realidade percebida desde a sua interioridade. Sabemos agora que este encontro é o da consciência com a temporalidade, sem que por isto saibamos qualquer coisa acerca do próprio enigma. E como o ser da realidade é duração, na consciência e nas coisas, este encontro é também uma comunhão temporal, um sentimento de participação que é antes de mais nada um reencontro de si. Na narrativa, este encontro de si é a instituição do narrador. A narrativa proustiana é o exemplo privilegiado de experiência temporal, e o narrador é a mediação ordenadora desta experiência. Qual o teor desta experiência? Ela foi efetivamente vivida e depois narrada como autobiografia mesclada de ficção? A Recherche pertence ao gênero do realismo memorialista? O tempo redescoberto é o passado reencontrado na reordenação narrativa do que foi vivido? Sabemos que todas essas classificações são insuficientes; e o sabemos simplesmente por atentar para o fato, aparentemente trivial, de que a Recherche é uma obra de ficção. O livro de Proust não é um documento histórico, o texto não é cativo da representação cronológica. Nisto todos provavelmente concordarão. Mas é preciso ir mais além e caracterizar a própria experiência temporal que é narrada. É preciso dizer que a experiência na sua efetividade cronológica não determina a narração da experiência tal Como aparece na obra de ficção. E isto porque, como mostrou Paul Ricoeur[1] num enunciado de grande alcance para a compreensão da Recherche, a experiência do tempo é ficcional. Que uma obra de ficção narre uma experiência ficcional talvez não seja mais do que um truísmo. Mas que a narrativa dessa experiência, na forma romanesca da Busca do Tempo Perdido, seja também uma Busca da Verdade, na forma da narratividade reflexiva, eis algo em que talvez valha a pena insistir, à luz do que antes dissemos acerca da relação entre percepção da realidade e obra de arte. E isto porque a redescoberta do Tempo não é a representação literária do tempo vivido, mas a revelação da essência temporal da realidade.

O aprendizado do que seja a realidade é certamente uma dimensão da Recherche, pela qual ela se aparenta ao gênero dos romances de formação, narrações da descoberta progressiva da realidade do sujeito e da realidade do mundo. Mas em Proust esta descoberta se faz desde o início sob o signo do Tempo, o que significa que ela é temporalmente qualificada como dissolução, como degradação do ser, como constatação fundamental da inscrição de todos os entes na finitude. Este aprendizado, portanto, “forma” o sujeito da mesma maneira que a temporalidade “forma” todas as coisas: predispondo-as para a dissolução, para a morte como verdade última do finito. As formações temporais têm o nada como determinação teleológica. Por isso, a travessia da transitoriedade é um aprendizado sui generis. A formação é uma conformação à temporalidade dissolvente que rege o devir humano, e que é tanto mais inquietante quanto é menos visível à consciência imediata mergulhada na cronologia das sensações. As personagens não sabem que são marionetes do tempo; em cada momento da transitoriedade, elas vivem como se o Eu ali se afirmasse definitivamente, com uma identidade inabalável, com a auto-suficiência própria dos que ignoram a temporalidade, sem suspeitar que há um trabalho interno da duração que, paradoxalmente, torna efêmeras todas as coisas, pois só o que dura é o próprio tempo. O indivíduo está mergulhado em alguma coisa que é muito mais do que ele, mas que ele na maioria das vezes ignora porque o fascínio do presente encobre a inquietação inerente à temporalidade como transitoriedade. O narrador se destaca dessas personagens alienadas de si porque nele está em latência a suspeita da vocação, que se manifesta primeiramente na inquietação em meio à transitoriedade vivida como frivolidade e intermitência.

Assim é que, para o narrador, a vivência da frivolidade é atravessada pela inquietude que faz com que o aprendizado seja uma decifração. Deleuze[2] mostrou que toda a Recherche pode ser lida como um longo exercício de decifração de signos que a frivolidade e as intermitências oferecem ao narrador. Isto é correto, desde que acrescentemos que a decifração depende de uma chave hermenêutica que só aparecerá no final do romance, quando a revelação final permitir avaliar a distância que separa e aproxima o tempo perdido do tempo redescoberto. Pois que a verdade da posse seja a perda, que o amor seja a outra face do ciúme, que o desejo apenas revele a inquietude, em suma, que tudo o que é atual esteja irremediavelmente comprometido com a irrealidade, são coisas a serem aprendidas primeiramente no regime das intermitências, quando a experiência temporal ainda não trouxe a chave da decifração definitiva. Neste sentido, a experiência temporal é decifração infinita, porque submetida à transitoriedade. Gilberte, Oriana, Albertina, em todas elas o amor é objeto de decifração. Mas, enquanto os signos do amor não puderem ser lidos a partir do caráter decepcionante da realidade transitória, o amor será sempre ainda concebido como possibilidade. Será apenas no episódio da revelação final que o narrador compreenderá a essencial identificação entre sucessão e decepção, e a razão pela qual, no mundo da irrealidade, os desejos estão voltados ao nada. A irrealização vivida como realização intermitente marca assim o significado imediato da transitoriedade, a eternidade interrompida, a felicidade que apenas surge para desaparecer, a completude ilusória do mundo da vida. Esse mundo de múltiplos Eus, em que a transitoriedade fragmenta a identificação na diversidade dos desejos, em que o sujeito é escravo de cada instante e em que a ilusão da permanência custa o ocultamento do Tempo, é também o mundo da frivolidade: da representação social e da duplicidade, outros signos a interpretar.

A representação social é, por excelência, o ocultamento da transitoriedade. É a dimensão em que a duquesa de Guermantes não tem tempo para ouvir de Swan a revelação de que ele está para morrer; em que a morte da princesa Sherbatoff não é suficiente para interromper a festa dos Verdurin; em que a notícia da morte de um parente não impede o duque de Guermantes de entrar no baile de máscaras, ainda que tal notícia lhe seja transmitida à entrada da festa. É também a dimensão em que a morte da avó somente será realmente sentida pelo narrador quando uma reminiscência involuntária o fizer novamente vivê-la, na dimensão do seu pleno significado, muito tempo depois. No mundo da frivolidade a morte não tem lugar porque a vida não tem lugar, já que seu caráter essencialmente transitório é apagado pela obsessão do instante presente, a ilusória plenitude do eu exterior que deseja imobilizar o fluxo dissolvente do devir.

O herói escapa a esta exteriorização porque se duplica em narrador. A enunciação cronológica, orientada pelo futuro como toda cronologia, é entrecortada pela reflexividade narrativa que confere ao vivido a significação temporal profunda. Desde o princípio, a voz narrativa se sobrepõe à cronologia, fazendo do futuro um futuro anterior, narrando o estrato premonitório dos signos que são vividos pelo herói no aprendizado da decifração. A dimensão premonitória se confunde assim com a reflexão, que no entanto não está nunca fora do universo narrativo. Essa reflexividade narrativa é perceptível na vivência inquieta da frivolidade que, além de ser suspeita da vocação, como já dissemos, é também antecipação da percepção do Tempo na dimensão da essência da transitoriedade. E o que pode ser esta antecipação senão o recolhimento intermitente do narrador a si, narrado como a melancolia da obra sempre adiada? Este adiamento indefinido do ato da escrita, narrado também como dúvida acerca da própria vocação, se identifica com a inquietude diante da frivolidade da representação social da vida, mas é, antes de tudo, o índice maior de que a narrativa da transitoriedade só se pode completar no encontro do instante essencial, possibilidade do processo de eternização da temporalidade, que afinal é a elaboração da obra.

O que governa esta elaboração é a percepção do Tempo como a dimensão interna e essencial da transitoriedade. Esta percepção, sabemos, se dá com o ressurgimento das impressões que instaura a possibilidade da obra. As pedras desiguais do pátio de entrada do palacete Guermantes, o barulho da colher contra o prato, a sensação de manusear o guardanapo engomado, eventos que por sua vez repetem, no estrato da sua significação, o célebre episódio da madeleine molhada no chá, tudo isso evoca as paisagens interiores de sensações consubstanciadas em impressões e guardadas no fundo da memória, de onde nunca poderia retirá-las a inteligência rememorativa, muito menos a percepção associativa. O caráter anódino da sensação que provoca a reminiscência é prova da transcendência objetiva do Tempo. Como se o cone, de que falamos no início, tivesse agora sua intencionalidade direcional voltada para dentro, para a profundidade intelectualmente insondável da memória involuntária, na abertura de uma perspectiva infinita para o passado — mas não o passado da simples lembrança, e sim o passado imemorial que revela a plenitude do Tempo. A lembrança do imemorial: esta é a descrição mais aproximada da reminiscência, que se utiliza da atualidade do presente para trazer de volta a realidade inatual do Tempo reencontrado. E dessa forma o narrador decifra definitivamente o sentido do presente: figurabilidade material cuja única função é aludir ao passado e, transportando-nos para a memória enquanto dimensão mais profunda da subjetividade, indicar o Tempo por meio da presença do instante intemporal, aquele que não é nem passado nem presente, mas que se situa num entretempo a partir do qual a obra ganhará o caráter de eternidade. Mas, se o encontro da eternidade é criação, isto significa também que essa eternidade não transcende o tempo como um a priori que o determinaria na sua transitoriedade. Com efeito, se a eternidade é alcançada pela percepção do entretempo, é a partir do efêmero passado e do efêmero presente que nos elevamos ao plano em que a conversão à obra enquanto decisão da escrita será, propriamente, o processo de eternização: a expressão, pela mediação metafórica, da revelação da essência temporal da realidade.

Assim se esclarece um pouco mais o que dissemos há pouco acerca da longa travessia da transitoriedade. Ela por vezes nos confunde pelo seu acúmulo descritivo e por aquilo que parece ser a notação obsessiva do real na sua intrínseca frivolidade, na vacuidade da representação social da pequena história dos seres que se consomem em si mesmos. A voz do herói se eleva acima da do narrador na dimensão do que chamamos enunciação cronológica do vivido. Por que este crescimento desmesurado da observação e qual o seu valor? Já se notou muitas vezes que o resultado da observação em Proust não é uma descrição realista à maneira de Zola, nem tampouco são interpolações descritivas no fluxo narrativo, à maneira de Flaubert. A descrição em Proust está a serviço da constituição do universo das impressões que é verdadeiramente o núcleo da narração. Podemos dizer que o real não é descrito, mas narrado, e esta diferença torna-se importante na medida em que esta narração está desde o princípio guiada pela reflexividade enquanto expressão da intuição ou da percepção do Tempo. Intuição e percepção interna se identificam, e o recolhimento das impressões na forma de descritividade narrativa tem desde sempre o objetivo de atingir, pela decifração da aparência, o que Proust chama de verdadeira realidade. O efêmero é sinal do eterno: por isso, a literatura realista resulta na abstração. A sensação encerrada em si mesma, a descrição pura e simples da multiplicidade ou o inventário dos perfis da aparência nos fazem perder de vista a singularidade do mundo. O realista é aquele que se torna cego de tanto ver. Por isso, a descrição impressionista preservará não a atualidade configurativa do efêmero, mas o núcleo temporal do evento que impressiona a consciência, e que atravessa o estrato meramente receptivo da subjetividade para imprimir-se no solo reminiscente da memória, pela mediação do esquecimento, que é essencial para que a reminiscência seja o ressurgimento da impressão. Não é por outra razão que a obra pressupõe o estranhamento, a distância que é condição de revelação da verdadeira realidade. Afastando-se dos homens e das coisas, o narrador está mais próximo deles do que eles estão de si mesmos. O conteúdo realista da descritividade marca exatamente a possibilidade de separar a realidade sensível presente na sensação da efetividade da impressão, que é o pouco de tempo que todo evento traz em si e que o narrador pretende detectar “em estado puro”.

E se a obra pressupõe a travessia da transitoriedade para buscar o tempo em estado puro ela se colocará, também, do ponto de vista da elaboração, numa situação temporalmente indeterminada, entre dois horizontes, o do começo, numa abertura indefinida para o antes, e o do fim, numa perspectiva indefinidamente aberta para o depois. E há que ser assim, posto que narrar o tempo não pode envolver a pretensão de encerrá-lo nos limites da obra escrita, e sim assumi-lo como meio envolvente, em que se transita e em relação ao qual o começo e o fim não são instantes absolutos mas, respectivamente, paisagem de origem e nostalgia de completude. É por isto que se pode dizer, no limite, que a Recherche não tem começo e nem fim. E isso não se deve apenas ao caráter circular da obra, que é com frequência apontado pelos comentadores: ao fato de que o fim da narrativa é também, enquanto revelação da vocação e decisão da escrita, o começo da obra. Deve-se muito mais ao fato de que o começo da Recherche não é o início pontual da narrativa, mas uma reflexão sobre a questão da origem, que remete a uma anterioridade não definida no tempo. A frase inicial, neste sentido, nada inaugura, porém constitui o motivo de uma reflexão acerca da tomada de consciência do curso do tempo. “Longtemps, je me suis couché de bonne heure” [Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo]. Ricoeur assinala, a respeito desta frase, que ela aponta para um antes “sem fronteiras”. Podemos dizer também que a frase é quase emblemática, em mais de um sentido. Ela é curta, o que não é comum em Proust, como para indicar, quase intencionalmente, diríamos, que é a continuação de um texto virtual que remonta a uma anterioridade talvez infinita. É como se a narrativa, para se iniciar, tivesse de recuperar um tempo que ela não tomará diretamente como objeto, mas que ela tem de considerar, na medida em que o tempo romanesco tem como referencial o Tempo em si que se revelará ao narrador no final. Começar unicamente pelo instante em que a consciência desperta para a vivência da temporalidade seria deixar de lado a realidade fundamental que envolve e supera a consciência individual. Este tempo que não é narrado, portanto que não é vivido pela consciência narrativa, é o horizonte originário do romance, a presença sonhada, imaginada, isto é, interiormente percebida. E o momento do despertar é originário na medida em que se situa entre o sono e a vigília, entre a distensão da memória e a tensão do presente. A infância, por figurar este entretempo entre o sonho e a realidade, figura a origem, o obscuro passado do Tempo, fonte da verdadeira realidade e da obra. “Um homem que dorme mantém em círculo em torno de si o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos.” A obra é filha da noite, do silêncio e da obscuridade porque sua trama será tecida como esse “fio das horas”.

Assim, a consciência que se situa no tempo percebe a origem não por situar-se na origem do tempo, mas por viver a distância interna da duração que nos separa e nos aproxima da origem. A distância temporal separa e aproxima porque o Tempo é tensão qualitativa e não extensão espacial. Perceber esta tensão é assumir um ponto de vista no infinito. A partir dele o filósofo e o artista narrarão a história interior dos seres, que nada mais são do que traços deixados pelo Tempo.

Notas

[1] Paul Ricoeur, Temps et récit, II, La configuration du temps dans le récit de fiction, cap. 4, item III, Paris, Seuil, 1984.

[2] Gilles Deleuze, Proust et les signes, Paris, 1964.

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